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15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.
CONTINUA
15
Ziggy nunca sentira tanto medo na vida. Tropeçando, tentou recuar. Mas Brian o alcançara, agarrando-o pela gola da jaqueta. Empurrou Ziggy contra a parede, caindo de socos sobre ele. Donny e Kenny ficaram parados, sem saber o que fazer, enquanto o outro homem abotoou depressa as calças e saiu correndo.
- Brian, quer que a gente vá atrás do outro? - perguntou Kenny.
- Não, esse aqui é perfeito. Sabem quem é essa florzinha nojenta aqui?
- Não - respondeu Donny. - Quem é?
- Simplesmente um dos filhos da puta que mataram Rosie. - Com as mãos cerradas em punhos, desafiava Ziggy com os olhos a tentar escapar.
- Nós não matamos Rosie - disse Ziggy, incapaz de disfarçar o tremor de medo em sua voz. - Eu tentei salvar a vida dela.
- Tá, depois de ter estuprado e esfaqueado a minha irmã, sei. Estava tentando provar pros seus amiguinhos que era um homem de verdade e não uma bichona, né? - gritou Brian. - Bom, meu filho, é a hora da confissão. Você vai me contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha irmã.
- Estou contando a verdade. Não encostamos em um fio de cabelo dela.
- Eu não acredito em você. E vou te obrigar a me contar a verdade. E já sei até como. - Sem tirar os olhos de Ziggy, ele disse: - Kenny, vá até o porto e me traga uma corda. De tamanho razoável, ouviu?
Ziggy não fazia a menor ideia do que estava por vir, mas sabia que não ia ser boa coisa. A única chance que tinha era tentar convencê-los.
- Essa não é uma boa ideia - disse ele. - Eu não matei a sua irmã. E já fiquei sabendo que os tiras te avisaram para nos deixar em paz. Não se iluda achando que eu não vou prestar queixa.
Brian deu uma gargalhada.
- Você acha que eu sou idiota? Você vai até a polícia e vai dizer: "Com licença, senhor, eu estava chupando o pau de um babaca qualquer e aí Brian Duff apareceu e me deu um tapa"? E eu lá tenho cara de palhaço? Você não vai contar a ninguém sobre isso. Senão, vão descobrir que você é viado.
- Eu não ligo - disse Ziggy. E, naquela hora, parecia um destino menos terrível do que fosse lá o que um Brian Duff descontrolado pudesse lhe impor. - Eu corro esse risco. Você tem certeza de que vai querer mais uma carga de sofrimento depositada na porta da sua mãe?
Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy percebeu que calculara mal. Brian fechou a cara. Ele suspendeu a mão e deu uma bofetada tão violenta no rosto de Ziggy, que chegou a ouvir o barulho da vértebra do seu pescoço estalar.
- Não fale da minha mãe, seu chupador. Ela jamais sofreu na vida até vocês, seus desgraçados, matarem a minha irmã. - Deu outra bofetada. - Confesse. Você sabe que vai ter que pagar, mais cedo ou mais tarde.
- Eu não vou confessar uma coisa que eu não fiz - disse Ziggy, com a voz embargada. Podia sentir o gosto do sangue; a ponta afiada de um dos seus dentes rasgara a bochecha por dentro.
Brian afastou a mão e acertou um soco no estômago de Ziggy, com toda a força. Ele caiu de joelhos, curvando-se no chão. Um vômito quente desceu como uma cascata, respingando nos seus pés. Arfando, sentiu a parede de pedra em suas costas, a única coisa que o mantinha ereto.
- Diga lá - sibilou Brian.
Ziggy fechou os olhos.
- Não tenho nada para dizer - respondeu, com dificuldade.
Kenny voltou, alguns socos mais tarde. Ziggy não sabia que era possível sentir tanta dor sem desmaiar. Um corte em seus lábios cobria o seu queixo de sangue e os seus rins estavam mandando pontadas agudas de agonia por todo o seu corpo.
- Por que você demorou tanto? - perguntou Brian. Ele suspendeu as mãos de Ziggy na frente do colega. - Amarre uma das pontas nos pulsos dele - ordenou ele a Kenny.
- O que você vai fazer comigo? - perguntou Ziggy, com os lábios inchados.
Brian sorriu.
- Obrigar você a falar, chupador.
Quando Kenny terminou, Brian apanhou a corda. Deu a volta na cintura de Ziggy, apertando-a firmemente. Agora, as mãos dele estavam presas contra o seu corpo. Brian puxou a corda.
- Vamos, temos muito a fazer.
Ziggy fincou os calcanhares no chão, mas Donny agarrou a corda junto com Brian e puxou tão forte que ele quase caiu.
- Kenny, vê se tá tudo ok aí fora.
Kenny correu na frente, até o arco. Olhou para o pátio. Nenhum sinal de vida. Estava muito frio para se estar na rua, andando à toa, e ainda era muito cedo para os passeadores de cachorro de última hora.
- Ninguém por perto, Bri - disse ele, baixinho.
Brian e Donny seguiram em frente, puxando a corda.
- Mais rápido - disse Brian a Donny. Desceram a rua e Ziggy tentava se equilibrar desesperadamente, enquanto forçava as mãos na esperança de se livrar da corda. Que diabos iam fazer com ele? A maré estava alta. Será que iam jogá-lo no mar? As pessoas morriam no mar do Norte em questão de minutos. Fosse lá o que tivessem planejado, Ziggy sabia instintivamente que ia ser muito pior do que ele podia imaginar.
O chão sumiu sob os seus pés de repente e ele caiu, rolando sem parar, até chocar-se contra as pernas de Brian e Donny. Uma chuva de palavrões e depois mãos sobre o seu corpo, puxando-o violentamente para cima, colocando-o de frente para um muro. Ziggy foi se localizando aos poucos. Estavam no caminho que, ao longo do muro, circundava o castelo. Aquele não era um talude medieval, apenas uma barreira moderna para deter vândalos e casais. Será que o levariam para dentro e o pendurariam no alto da muralha?
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Donny, inquieto. Não sabia se tinha estômago para fazer fosse lá o que Brian havia planejado.
- Kenny, pule o muro - ordenou Brian.
Acostumado com a liderança de Brian, Kenny fez o que ele mandou, escalando o muro de quase dois metros e desaparecendo do outro lado.
- Vou jogar a corda por cima, Kenny - gritou Brian. - Segura aí.
Virou-se para Donny.
- Vamos ter que suspender ele até o outro lado. Como em um arremeso de mastro, só que com as duas mãos.
- Vocês vão quebrar o meu pescoço - protestou Ziggy.
- Não se você for com cuidado. A gente vai te ajudar a subir. Você vai se virar quando chegar lá em cima e se jogar para o outro lado.
- Não consigo fazer isso.
Brian deu de ombros.
- Você escolhe. Pode ir de cabeça ou colocar os pés primeiro, mas vai de qualquer jeito. A não ser, é claro, que esteja pronto a me contar a verdade.
- Já te contei a verdade - gritou Ziggy. - Você tem que acreditar em mim!
Brian balançou a cabeça.
- Quando você me contar a verdade, eu vou saber. Pronto, Donny?
Ziggy tentou se desvencilhar, mas era tarde demais. Foi virado de frente para o muro e então, cada qual apanhando uma perna, o suspenderam até o alto, com muita dificuldade. Não ousou lutar contra; sabia como a proteção da medula espinhal era frágil na base do crânio e não queria acabar paraplégico. Ficou pendurado pela metade no topo do muro, como um saco de batatas. Devagar, com infinita cautela, moveu uma das pernas para o outro lado do muro. Depois, ainda mais devagar, girou o corpo até que a outra perna estivesse no topo do muro. Os nós dos dedos arranhados incutiram nova dor aos seus braços.
- Vamos lá, chupador - gritou Brian, impaciente.
Ele se lançou sobre o muro e pouco depois estava na altura dos pés de Ziggy. Brian os puxou violentamente para o lado, fazendo com que Ziggy perdesse o equilíbrio. A bexiga de Ziggy se esvaziou enquanto ele caía, o susto aumentando ainda mais a sua adrenalina. Ele aterrissou pesadamente sobre os pés, e os joelhos e tornozelos cederam diante do impacto da queda. Ziggy estava encolhido no chão, com lágrimas de vergonha e dor ardendo em seus olhos. Brian pousou ao seu lado.
- Bom trabalho, Kenny - disse ele, pegando a corda novamente.
O rosto de Donny surgiu do outro lado do muro.
- Dá para me dizer o que está acontecendo aí? - perguntou ele.
- E estragar a surpresa? Nem pensar. - Brian puxou a corda. - Vamos, chupador. Vamos passear.
Subiram a ladeira íngreme coberta de relva até a parte mais baixa do muro leste do castelo em ruínas. Ziggy tropeçou e caiu algumas vezes, mas havia sempre mãos de prontidão para erguê-lo novamente. Cruzaram o muro e chegaram ao pátio. A lua escapou de trás de uma nuvem, derramando sobre eles um brilho sinistro.
- Eu e meu irmão adorávamos vir aqui quando éramos pequenos - disse Brian, diminuindo o passo. - Foi a igreja que construiu esse castelo. Não um rei. Sabia disso, chupador?
Ziggy fez que não com a cabeça.
- Nunca estive aqui antes.
- Pois devia. É lindo. A mina e a contramina. Dois dos maiores trabalhos de cerco do mundo inteiro. - Dirigiam-se para a região norte, a Torre da Cozinha à sua direita e a Torre do Mar à esquerda. - Isso aqui já foi muito bonito. Era uma residência e uma fortaleza. - Virou-se para olhar para Ziggy, andando de costas. - E era uma prisão.
- Por que você está me dizendo isso? - perguntou Ziggy.
- Porque é interessante. Assassinaram um cardeal aqui também. Mataram e depois penduraram o seu corpo nu no muro do castelo. Aposto que você nunca pensou nisso, hein, chupador?
- Eu não matei a sua irmã - repetiu Ziggy.
Àquela altura, já estavam diante da entrada da Torre do Mar.
- Existem duas câmaras no andar de baixo aqui - disse Brian, informalmente, entrando na frente. - A do leste tem uma coisa quase tão interessante quanto a mina e a contramina. Você sabe o que é?
Ziggy continuou em silêncio. Mas Kenny respondeu por ele:
- Você não vai colocá-lo na Masmorra da Garrafa, vai?
Brian sorriu.
- Muito bem, Kenny. Vai ser o primeiro da classe. - Brian meteu a mão no bolso e sacou um isqueiro. - Donny, me dá o seu jornal.
Donny tirou um exemplar do Evening Telegraph do bolso interno do casaco. Brian enrolou o jornal bem apertado e acendeu uma das pontas, adentrando na câmara leste. Com a luz da tocha improvisada, Ziggy pôde distinguir um buraco no chão, coberto por uma pesada grade de ferro.
- Eles abriram um buraco na pedra. No formato de uma garrafa. E é bem profundo.
Donny e Kenny entreolharam-se. Aquilo estava ficando sério demais para o gosto deles.
- Calma aí, Brian - protestou Donny.
- O quê? Foram vocês mesmos que disseram que os viados não contam. Vamos lá, me deem uma mãozinha aqui. - Ele amarrou uma das pontas da corda de Ziggy na grade. - Vou precisar de vocês dois para suspender isso aqui.
Agarraram a grade, ficando de cócoras para executar a tarefa. Grunhiram, fazendo força. Por um longo e feliz instante, Ziggy pensou que eles não fossem capazes de levantá-la. Mas, por fim, com um arranhão agudo do metal contra a pedra, a grade se moveu. Eles a colocaram de lado e viraram para Ziggy.
- Você tem alguma coisa para me dizer? - perguntou Brian Duff.
- Eu não matei a sua irmã! - disse Ziggy, desesperado. - Você realmente acha que vai conseguir escapar impune depois de me jogar dentro de uma masmorra e me abandonar à morte?
- O castelo fica aberto nos fins de semana durante o inverno. São só alguns dias. Você não vai morrer. Bom, provavelmente não, eu acho. - Ele cutucou Donny no peito e riu. - Ok, pessoal, vamos lançar a bomba.
Seguraram Ziggy e o empurram apressadamente para a estreita abertura. Ele se debateu furiosamente, contorcendo-se. Mas três contra um, seis mãos contra mão nenhuma, ele não tinha a menor chance. Em segundos, estava sentado à beira do buraco circular, as pernas penduradas no ar.
- Não façam isso - implorou ele. - Por favor, não façam isso. Vocês vão passar anos presos. Não façam isso. Por favor. - Ele fungou, tentando não abrir caminho para as lágrimas de pânico que estavam entaladas na sua garganta. - Eu estou implorando.
- É só me dizer a verdade - disse Brian. - É a sua última chance.
- Eu não matei - soluçou Ziggy. - Não matei.
Brian deu um chute nas suas costas, atirando-o violentamente alguns centímetros abaixo. Os ombros de Ziggy foram batendo dolorosamente contra as paredes de pedra do túnel estreito. Então, Brian estacou, a corda apertando cruelmente a barriga de Ziggy. A risada do outro ecoou à sua volta.
- Você achou que fôssemos jogar você até lá embaixo?
- Por favor - soluçou Ziggy. - Eu não a matei. Não sei quem matou. Por favor...
Estava descendo novamente, a corda cedendo aos poucos. Parecia que ia cortá-lo ao meio. Podia ouvir a respiração ofegante deles lá em cima, um palavrão aqui e lá quando a corda queimava uma palma da mão descuidada. A cada passo mergulhava ainda mais na escuridão e as tênues luzinhas bruxuleantes desapareciam no ar úmido e gelado.
Parecia não terminar nunca. Até que ele sentiu uma diferença na qualidade do ar que o rodeava e parou de se chocar contra as paredes. A garrafa estava ficando mais larga. Eles realmente iam até o fim. Realmente iam abandoná-lo ali.
- Não! - gritou ele, o mais alto que pôde. - Não!
Os seus pés rasparam no chão e felizmente atenuaram a força da corda que apertava o seu estômago. A corda acima dele ficou mais frouxa. Uma voz dissonante e descarnada ecoou lá de cima:
- Última chance, chupador. Confessa e a gente te tira daí.
Seria tão fácil. Mas teria sido uma mentira que o levaria a lugares impossíveis. Mesmo para salvar a sua pele, Ziggy não poderia passar por assassino.
- Você está enganado - gritou ele, com toda a força, lá do fundo.
A corda aterrissou na sua cabeça, as suas falcaças surpreendentemente pesadas. Ele ouviu uma última gargalhada zombeteira, depois, silêncio. Um silêncio absoluto, esmagador. O brilho tremeluzente de luz no topo do poço desaparecera. Estava enclausurado nas trevas. Por mais que forçasse os olhos, era impossível enxergar alguma coisa. Fora lançado em uma escuridão total.
Ziggy moveu-se de um lado para o outro, com cuidado. Não dava para calcular se estava muito afastado das paredes e ele não queria dar com o seu rosto delicado em uma parede maciça de pedra. Lembrou-se de ter lido algo sobre caranguejos brancos cegos que evoluíram em cavernas subterrâneas. Em algum lugar das Ilhas Canárias, pensou ele. Gerações inteiras de escuridão tornaram os olhos redundantes. E era aquilo o que ele era agora: um caranguejo cego, esgueirando-se na impenetrabilidade.
A parede surgiu antes do que ele imaginava. Virou-se e deixou os seus dedos sentirem o arenito granuloso. Estava lutando para não entrar em pânico, concentrando-se somente no ambiente físico onde se encontrava. Não podia se dar ao luxo de especular quanto tempo ficaria preso ali. Acabaria louco, perderia o controle, estouraria o cérebro em uma pedra se parasse para pensar nas possibilidades. Será que teriam mesmo coragem de abandoná-lo ali, para morrer? Brian Duff talvez tivesse, mas os seus amigos não se arriscariam.
Ziggy ficou de costas para a parede e foi escorregando aos poucos, até sentar no chão gelado. O corpo todo estava doído. Provavelmente não havia nada quebrado, mas sabia que não era preciso ter fraturas para experimentar um tipo de dor que demanda analgésicos fortes.
Sabia que não podia ficar sentado ali, sem fazer nada. O seu corpo ficaria enrijecido e as suas juntas teriam câimbra se ele não continuasse a se movimentar. Morreria de frio naquela temperatura se não mantivesse o sangue circulando e não estava disposto a dar essa alegria àqueles desgraçados. Precisava soltar as mãos. Ziggy abaixou a cabeça o máximo que pôde, encolhendo-se de dor devido aos ferimentos nas costelas e na espinha. Se esticasse as mãos, até o máximo que a corda permitia, poderia alcançar o nó com os dentes.
Enquanto lágrimas silenciosas de dor e comiseração escorriam pelo seu nariz, Ziggy começou a batalha mais crucial da sua vida.
16
Alex ficou surpreso ao encontrar a casa vazia quando voltou. Ziggy não tinha dito que ia sair e Alex imaginou que ele ficaria em casa estudando. Talvez tivesse ido visitar um dos seus colegas de Medicina. Ou talvez Mondo tivesse voltado e eles tivessem saído para tomar uma cerveja. Não que estivesse preocupado. Só porque fora atacado por Cavendish e o seu grupo não significava que tivesse motivos para acreditar que algo ruim tinha acontecido com Ziggy.
Alex preparou uma xícara de café e umas torradas. Sentou-se à mesa na cozinha, com as suas anotações sobre a palestra diante de si. Sempre tivera certa dificuldade para distinguir os pintores venezianos na sua cabeça, mas os slides daquela noite serviram para esclarecer alguns elementos e ele queria se certificar de que havia compreendido tudo. Estava rabiscando algumas anotações quando Esquisito adentrou na cozinha, repleto de uma sincera bonomia.
- Rapaz, que noite a minha! - disse, entusiasmado. - Lloyd conduziu um estudo da Bíblia absolutamente inspirado, sobre a Carta aos Efésios. É impressionante como ele consegue extrair tanta coisa do texto.
- Que bom que você se divertiu - respondeu Alex, distraído. As entradas de Esquisito eram repetitivas e dramáticas, desde que começara a sair com os cristãos. Alex há muito deixara de prestar atenção nelas.
- Cadê Zig? Estudando?
- Saiu. Não sei para onde. Se você vai esquentar água para você, aceito um outro café.
A chaleira mal havia esquentado quando eles ouviram o barulho da porta da sala se abrindo. Para a surpresa de ambos, era Mondo, e não Ziggy.
- Olá, desconhecido - disse Alex. - Ela expulsou você?
- Está em crise por causa de uma dissertação - disse Mondo, pegando uma xícara e servindo-se de café. - Se eu ficasse por lá, não ia nem conseguir dormir, ela ia ficar reclamando o tempo todo. Então, resolvi agraciá-los com a minha presença. Cadê Ziggy?
- Não sei. Por acaso sou o guardião dos meus irmãos?
- Gênesis, capítulo quatro, versículo nove - disse Esquisito, convencido.
- Puta que pariu, Esquisito - disse Mondo. - Você ainda não saiu dessa?
- Você não "sai" de Jesus, Mondo. Mas eu não espero que alguém superficial como você compreenda isso. Falsos deuses, é isso o que você está adorando.
Mondo riu.
- Pode até ser. Mas ela paga o melhor dos boquetes.
Alex gemeu.
- Não aguento mais. Vou me deitar. - Deixou os dois discutindo e foi embora, deleitar-se com a paz de um quarto só para ele novamente. Não mandaram ninguém para ficar no lugar de Cavendish e de Greenhalgh, então ele se mudou para o antigo quarto de Cavendish. Parou diante da soleira, olhando para o quarto com os instrumentos. Mal conseguia lembrar qual fora a última vez que sentaram juntos para tocar. Até o presente semestre, tocavam praticamente todos os dias, por pelo menos meia hora. Mas aquilo era outra coisa que ficara para trás, junto com a intimidade.
Talvez isso fosse de fato o que acontece quando se fica mais velho. Mas Alex suspeitava que tinha mais a ver com o que a morte de Rosie Duff os ensinara sobre eles próprios e sobre os outros. Não havia sido uma jornada muito edificante até agora. Mondo refugiara-se em egoísmo e sexo; Esquisito desaparecera para um planeta distante, cujo próprio idioma parecia incompreensível. Só Ziggy continuara sendo o seu amigo íntimo de sempre. E agora, até mesmo ele começara a desaparecer sem dar satisfações. E por baixo de tudo isso, suspeita e dúvida corroíam os seus espíritos. Mondo fora o único a pronunciar as palavras perniciosas, mas Alex já fornecera um belo banquete para a sua própria pulga atrás da orelha.
Uma parte dele esperava que as coisas acalmassem e voltassem ao normal. Mas a outra parte sabia que algumas coisas, uma vez quebradas, não podiam ser restauradas. Pensar em restauração fez com que ele se lembrasse de Lynn, trazendo um sorriso aos seus lábios. Iam para Edimburgo assistir a um filme. O Céu Pode Esperar, com Julie Christie e Warren Beatty. Uma comédia romântica parecia um bom ponto de partida. Era um acordo tácito entre eles não saírem juntos em Kirkcaldy. Muita gente fofoqueira, que gosta de julgar os outros.
Mas talvez contasse a Ziggy. Ia contar a ele naquela noite. Mas, como o céu, aquilo também podia esperar. Afinal, eles não iam a lugar nenhum.
Ziggy daria tudo o que tinha para estar em qualquer outro lugar. Parecia que já estava ali há horas, encarcerado na masmorra. Estava congelando de tanto frio. A mancha úmida na sua calça, do lugar onde fizera xixi, estava gelada e o seu pau e os seus colhões estavam tão encolhidos que pareciam os de uma criança. E ainda não tinha conseguido libertar as mãos. A câimbra arrebatara os seus braços e as suas pernas em espasmos, fazendo-o chorar de tanta dor. Mas, finalmente, começava a sentir o nó cedendo.
Abocanhou a corda de náilon novamente com a sua mandíbula dolorida e sacudiu a cabeça para lá e para cá. Sim, com certeza estava cedendo. Ou então ele estava tão desesperado que aquele progresso não passava de uma alucinação. Um puxão para a esquerda, seguido de um empurrão para trás. Repetiu o movimento várias vezes. Quando a ponta da corda finalmente se desenrolou, resvalando em seu rosto, Ziggy caiu no choro.
Uma vez libertado esse nó, o resto cedeu com facilidade. De uma só vez, ficou com as mãos livres. Dormentes, mas livres. Os seus dedos estavam tão inchados e frios como salsichas congeladas. Enfiou as mãos dentro da jaqueta, alojando os dedos no sovaco. Axilas, pensou ele, lembrando-se que o frio era inimigo da mente, que desacelerava o cérebro. "Lembre-se das aulas de anatomia", disse ele, em voz alta, recordando-se de como ele e um colega haviam achado graça ao lerem o procedimento para recolocar um ombro deslocado no lugar. "Coloque o pé, usando meia ou meia-calça, nas axilas", ensinava o texto. "Lição número 1 para médicos que gostam de se vestir de mulher", zombou o seu colega. "Não posso me esquecer de levar uma meia-calça de seda preta, caso me depare com um deslocamento."
É assim que eu vou conseguir sobreviver, pensou ele. Memória e movimento. Agora que estava com os braços livres para se equilibrar, poderia tentar se mover. Poderia correr sem sair do lugar. Um minuto de corrida, dois minutos de descanso. O que seria ótimo, se ele conseguisse ver o seu relógio, pensou ele, reconhecendo a burrice da ideia. Pela primeira vez na vida, desejou ser um fumante, pois teria fósforos, um isqueiro. Alguma coisa que quebrasse aquela escuridão aterradora. "Privação sensorial", disse ele. "Quebre o silêncio. Fale sozinho. Cante alguma coisa."
O formigamento em suas mãos fez com que ele se contorcesse. Tirou as mãos da jaqueta e sacudiu vigorosamente os punhos. Tentou, muito desajeitado, fazer com que uma massageasse a outra e, aos poucos, a dormência foi passando. Tocou a parede, alegre por sentir a firmeza do arenito. Estava começando a ficar preocupado com um dano permanente causado pela má circulação. Os seus dedos continuavam inchados e enrijecidos, mas pelo menos podia senti-los novamente.
Ficou de pé e começou a levantar os pés, ensaiando uma corrida. Esperou a circulação aumentar e depois parou até que ela voltasse ao normal. Lembrou de todas as tardes em que detestara as aulas de Educação Física. Professores de ginástica sádicos, corridas sem fim e rúgbi. Movimento e memória.
Ia sobreviver. Não ia?
Amanheceu, e nada de Ziggy na cozinha. Preocupado, Alex foi até o quarto dele. Nada. Era difícil dizer se ele passara a noite na cama ou não, já que Alex duvidava muito que Ziggy tivesse feito a cama alguma vez, desde o início do semestre. Voltou até a cozinha, onde Mondo estava devorando uma farta tigela de cereal.
- Estou preocupado com o Ziggy. Acho que ele não voltou para casa ontem.
- Você parece uma velha, Gilly. Não te passou pela cabeça que ele pode ter se dado bem?
- Acho que ele teria mencionado essa possibilidade.
Mondo bufou.
- Não o Ziggy. Quando ele não quer que a gente saiba, é impossível descobrir. Ele não é transparente, como eu e você.
- Mondo, há quanto tempo nós moramos juntos?
- Há três anos e meio - respondeu Mondo, revirando os olhos.
- E quantas vezes Ziggy dormiu fora de casa?
- Sei lá, Gilly. Caso você não tenha notado, eu mesmo costumo me ausentar da base com uma certa frequência. Ao contrário de você, eu tenho uma vida além dessas quatro paredes.
- Eu não chego a ser um monge, Mondo. Mas até onde sei, Ziggy nunca passou uma noite fora. E eu estou preocupado porque não tem muito tempo que Esquisito levou aquela surra dos irmãos Duff. E ontem, eu briguei com Cavendish e os amiguinhos dele. E se ele se meteu em uma briga? E se foi parar no hospital?
- E se ele dormiu com alguém? Preste atenção no que você está falando, Gilly, você parece até a minha mãe.
- Vai se danar, Mondo. - Alex apanhou a jaqueta e se dirigiu para a porta.
- Aonde você vai?
- Vou ligar para Maclennan. Se ele me disser que eu pareço a mãe dele, então eu calo a minha boca, valeu? - Alex bateu a porta ao sair. Estava com um outro medo, que não dividira com Mondo. E se Ziggy tivesse saído atrás de sexo e tivesse sido preso? Aquela era a pior das hipóteses.
Foi até as cabines telefônicas no prédio da administração e ligou para a delegacia. Para a sua surpresa, passaram a ligação direto para Maclennan.
- Sou eu, Alex Gilbey, inspetor - disse ele. - Eu sei que isso provavelmente vai soar como uma perda de tempo para o senhor, mas estou preocupado com Ziggy Malkiewicz. Ele não voltou para casa ontem à noite, coisa que nunca fez antes...
- E depois do que aconteceu com o Sr. Mackie, você ficou um pouco apreensivo, não é? - completou Maclennan.
- Exatamente.
- Você está em Fife Park agora?
- Estou.
- Não saia. Estou indo para aí.
Alex não sabia se ficava aliviado ou preocupado com o fato de o detetive tê-lo levado a sério. Voltou para casa e disse para Mondo que a polícia ia bater por lá.
- Ele vai te agradecer muito quando aparecer aqui com cara de acabei-de-trepar - disse Mondo.
Quando Maclennan chegou, Esquisito havia se juntado aos outros dois. Esfregando o seu nariz recém-curado, ele disse:
- Estou com Gilly dessa vez. Se Ziggy bateu de frente com os irmãos Duff, pode estar até no CTI agora.
Maclennan quis saber com Alex tudo o que havia se passado na véspera.
- E você não faz ideia de onde ele possa ter ido?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Ele não disse que ia sair.
Maclennan lançou um olhar perspicaz para Alex.
- Você sabe se ele costuma buscar parceiros em lugares públicos?
- Como assim, buscar parceiros? - perguntou Esquisito.
Mondo o ignorou e olhou feroz para Maclennan.
- O que você quer dizer com isso? Você está chamando o meu amigo de bicha?
Esquisito parecia ainda mais atarantado.
- Como assim, parceiros? Quem é bicha?
Furioso, Mondo se virou para Esquisito.
- Buscar parceiros é o que os viados fazem. Pegam estranhos em banheiros públicos e trepam com eles. - Fez um gesto com o dedão para Maclennan. - Por algum motivo, o nosso amigo da polícia aí acha que Ziggy é viado.
- Mondo, cala a boca - pediu Alex. - Vamos conversar sobre isso depois. - Os outros dois ficaram surpresos com o súbito acesso de autoridade de Alex, confusos com o rumo que a história estava tornando. Alex virou-se para Maclennan. - Ele às vezes vai a um pub em Edimburgo. Mas nunca comentou nada sobre lugares por aqui, em St. Andrews. O senhor acha que ele pode ter sido preso?
- Eu dei uma olhada nas celas antes de vir para cá. Ele não passou por nós. - O rádio de Maclennan deu sinal de vida e ele foi até o corredor para responder ao chamado. As suas palavras alcançaram a cozinha. - O castelo? Você está brincando... Na verdade, acho que sei quem é, sim. Mande os bombeiros para o local. Eu encontro com você lá.
Ele reapareceu na cozinha, visivelmente preocupado.
- Acho que o encontraram. Um dos guias do castelo chamou a polícia. Ele faz uma ronda todas as manhãs. Ele ligou para a polícia dizendo que tem alguém na Masmorra da Garrafa.
- Na Masmorra da Garrafa? - perguntaram os três, ao mesmo tempo.
- É uma prisão subterrânea cavada em uma pedra, embaixo de uma das torres. Tem o formato de uma garrafa. Uma vez lá dentro, não dá para sair. Tenho que ir lá, ver o que está acontecendo. Vou pedir para alguém deixar vocês informados.
- Não. Vamos com o senhor - insistiu Alex. - Se ele ficou entalado lá a noite toda, merece ver um rosto amigo.
- Desculpem, rapazes. Não dá, não. Se quiserem ir por conta própria, eu deixo um recado para eles autorizarem a entrada de vocês. Mas eu não quero ninguém atrapalhando uma operação de resgate. - E, assim, ele se foi.
Assim que a porta se fechou, Mondo partiu para cima de Alex.
- Que diabos foi aquilo, hein? Gritando com a gente daquele jeito? E que história é essa de buscar parceiros?
Alex olhou para o outro lado.
- Ziggy é gay - disse ele.
Esquisito reagiu, incrédulo.
- Não, não é, não. Como ele pode ser gay? Nós somos os seus melhores amigos, íamos saber.
- Eu sei - disse Alex. - Ele me contou há uns dois anos.
- Maravilha - disse Mondo. - Obrigado por compartilhar isso com a gente, Gilly. Pro diabo com "Um por todos e todos por um". Não éramos bons o bastante para saber da novidade, né? Você pode saber, mas nós não temos o direito de ficar sabendo que o nosso suposto melhor amigo é viado.
Alex encarou Mondo.
- Bom, julgando pela sua reação tolerante e tranquila, eu diria que Ziggy acertou em cheio em sua escolha.
- Você deve ter entendido errado - teimou Esquisito. - Ziggy não é gay. Ele é normal. Gays são nojentos. São uma abominação. Ziggy não é assim.
Aquela foi a gota d’água para Alex. Raramente perdia a cabeça, mas quando isso acontecia, era um espetáculo de tirar o fôlego. O seu rosto ficou vermelho e ele bateu com a mão espalmada na parede.
- Calem a boca, vocês dois! Estou com vergonha de ser amigo de vocês. Não quero mais ouvir uma palavra intolerante de nenhum dos dois. Durante quase dez anos, Ziggy cuidou de nós três. Foi nosso amigo, sempre estendeu a mão pra gente, nunca nos decepcionou. E daí se ele gosta mais de homem do que de mulher? Eu estou cagando pra isso. Não quer dizer que ele esteja interessado em mim, ou em vocês, do mesmo modo que não estou interessado em qualquer mulher que tenha um par de peitos. Não quer dizer que eu tenho que tomar cuidado no chuveiro, pelo amor de Deus. Ele continua sendo a mesma pessoa. Eu continuo amando ele como um irmão. Continuo colocando a mão no fogo por ele, e vocês também deveriam continuar. E você - acrescentou ele, espetando um dedo no peito de Esquisito. - Você se diz cristão? Como ousa julgar um homem que vale uma dúzia de homens como você e os seus fanáticos aloprados? Você não merece um amigo como o Ziggy. - Ele apanhou o casaco, de supetão. - Eu estou indo lá para o castelo. E não quero ver a cara de vocês por lá, a não ser que já tenham recobrado a porra da consciência.
Quando ele bateu a porta, até as janelas chacoalharam.
Quando Ziggy viu uma tênue claridade, pensou novamente que estava tendo uma alucinação. Oscilara entre a consciência e a inconsciência em uma espécie de delírio, mas percebera, em seus momentos lúcidos, que estava começando a fazer um quadro de hipotermia. Apesar de todos os seus esforços para se manter em movimento, a letargia era um adversário e tanto. De vez em quando, deixava-se cair no chão desmaiado, a sua cabeça vagando pelos caminhos mais estranhos. Em uma dessas vezes, pensou que o pai estivesse com ele, conversando sobre as chances do seu time chegar à final do campeonato. Bom, aquilo era definitivamente surreal.
Não fazia ideia de quanto tempo passara ali embaixo. Mas quando a luz apareceu, sabia o que tinha de fazer. Pulou, gritando com toda a força.
- Socorro! Socorro! Estou aqui embaixo. Socorro!
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, a luz machucou os seus olhos. Ziggy tapou o rosto da claridade.
"Olá?", ecoou a voz lá embaixo, preenchendo a câmara.
- Me tirem daqui! - gritou Ziggy. - Por favor, me tirem daqui.
- Vou buscar ajuda - gritou a voz. - Se eu jogar a lanterna, você consegue apanhar?
- Espera aí - gritou Ziggy. Não confiava nas mãos. E, depois, a lanterna ia descer com a velocidade de uma bala. Tirou a jaqueta e o suéter, dobrou-os e os colocou no centro da tênue poça de luz. - Tudo bem, pode jogar agora - gritou ele.
A lanterna desceu ricocheteando e se chocando contra as paredes, produzindo loucos efeitos de luz diante das suas espantadas retinas. A saída do poço se iluminou de repente e então uma pesada lanterna aterrissou mansamente na jaqueta de lã de carneiro. As lágrimas ardiam nos olhos de Ziggy, uma reação fisiológica e emocional ao mesmo tempo. Apanhou a lanterna, trazendo-a de encontro ao peito, como um talismã.
- Obrigado - soluçou ele. - Obrigado, obrigado, obrigado.
- Vou voltar o mais rápido possível, está bem? - disse a voz, desaparecendo à medida que o seu dono se afastava.
Agora era possível suportar aquilo, pensou Ziggy. Estava com uma lanterna. Jogou luz pelas paredes. O arenito vermelho escuro estava desgastado em alguns cantos, o teto e as paredes enegrecidas com manchas de fuligem e sebo. Deveria ser como a antessala do inferno para os prisioneiros que haviam sido mantidos ali. Pelo menos ele sabia que ia ser resgatado, e em breve. Mas, para eles, a luz deve ter servido apenas para aumentar o seu desespero - o reconhecimento de que era inútil nutrir qualquer esperança de fuga.
Quando Alex chegou ao castelo, dois carros de polícia, um do corpo de bombeiros e uma ambulância estavam estacionados do lado de fora. A visão da ambulância lhe deu um aperto no peito. O que será que acontecera com Ziggy? Não encontrou nenhum empecilho para entrar; Maclennan mantivera a sua palavra. Um dos bombeiros lhe indicou o caminho, do outro lado do pátio coberto de grama, na Torre do Mar, onde ele encontrou uma cena de calma eficiência. Os bombeiros armaram um gerador portátil para iluminar a cena e um sarilho. Uma corda foi arremessada dentro de um buraco no meio do chão. Alex estremeceu ao ver a cena.
- É o Ziggy mesmo. O bombeiro acabou de descer em uma espécie de guindaste. Como uma boia-calção, sabe como? - perguntou Maclennan.
- Acho que sim. O que aconteceu?
Maclennan deu de ombros.
- Ainda não sabemos.
Enquanto falavam, uma voz surgiu, lá de baixo.
- Pode mandar subir.
O bombeiro operando o sarilho apertou um botão e a maquinaria começou a roncar, em ação. A corda ia se enrolando em um cilindro, centímetro a centímetro, em uma espera tantalizante. Parecia não ter mais fim. Então o rosto familiar de Ziggy surgiu. Ele estava um caco; o rosto manchado de sangue e sujeira. Um dos olhos estava inchado e machucado, o lábio cortado. Ele piscava diante das luzes, mas assim que os seus olhos se acostumaram com a claridade e ele viu Alex, ensaiou um sorriso.
- Ei, Gilly - disse ele. - Que bom que você veio me visitar.
Quando já estava com o torso para fora, mãos prestativas o puxaram, ajudando-o a sair. Ziggy cambaleou, desorientado e exausto. Em um impulso, Alex correu em sua direção e tomou o amigo em seus braços. Pôde sentir um cheiro acre de suor e urina, sobreposto ao mau cheiro de terra.
- Está tudo bem - disse Alex, abraçando-o com força. - Está tudo bem agora.
Ziggy retribuía o abraço como se a sua própria vida dependesse dele.
- Tive tanto medo de morrer lá embaixo - sussurrou ele. - Não podia ficar pensando nisso, mas nunca tive tanto medo de morrer na minha vida.
17
Maclennan saiu às pressas do hospital. Quando alcançou o carro, bateu com as mãos no teto. Aquele caso era um pesadelo. Nada havia dado certo desde a noite em que Rosie Duff fora assassinada. E agora a vítima de sequestro, agressão e cárcere privado se recusava a prestar queixa dos seus agressores. Segundo Ziggy, ele fora atacado por três homens. Mas estava escuro e ele não pôde ver os seus rostos direito. Também não reconheceu as vozes e eles não se chamaram pelo nome. E, sem mais nem menos, jogaram-no dentro da Masmorra da Garrafa. Maclennan chegou a ameaçá-lo de prisão por obstrução da justiça, mas um Ziggy pálido e exausto o olhou nos olhos e disse: "Eu não estou pedindo para você investigar nada, então como posso estar obstruindo a justiça? Foi apenas uma brincadeira que passou dos limites, nada mais."
Escancarou a porta do lado do carona e se lançou para dentro do carro. Janice Hogg, que estava na direção, lançou um olhar interrogativo para ele.
- Ele disse que foi uma brincadeira que passou dos limites. Não quer prestar queixa, nem sabe quem foram os responsáveis.
- Brian Duff - disse Janice, decidida.
- Por que tanta certeza?
- Quando o senhor estava lá dentro, esperando eles darem uma olhada em Malkiewicz, eu fiz algumas perguntas por aí. Duff e os seus dois amiguinhos do peito andaram bebendo perto do porto ontem à noite. Estavam próximos do castelo. Saíram de lá por volta de nove e meia. E, de acordo com o dono do bar, eles estavam com cara de que iam aprontar alguma.
- Bom trabalho, Janice. Mas isso não prova nada.
- Por que o senhor acha que Malkiewicz não quer prestar depoimento? O senhor acha que ele está com medo de sofrer represálias?
Maclennan suspirou.
- Não as do tipo que você está imaginando. Acho que ele estava procurando um parceiro lá pela igreja. Ele está com medo porque acha que se entregar Duff e os amigos, eles vão até o tribunal afirmar que Ziggy Malkiewicz é bicha. O rapaz quer ser médico. Ele não vai correr esse risco. Meu Deus, como eu detesto esse caso. Para qualquer lado que eu viro, me deparo com um beco sem saída.
- O senhor pode dar uma prensa no Duff.
- E dizer o quê?
- Não sei, senhor. Mas talvez isso o faça se sentir melhor.
Maclennan olhou para Janice, surpreso. Então, abriu um sorriso.
- Você tem razão, Janice. Malkiewicz pode ainda ser um suspeito, mas só nós é que temos o direito de dar uma surra nele. Vamos para Guardbridge. Já faz tempo que eu não visito aquela fábrica de papel.
Brian Duff adentrou o escritório do gerente com o andar pretensioso de quem acha que sabe tudo. Inclinou-se contra a parede e deitou um olhar arrogante sobre Maclennan.
- Não gosto de ser interrompido em meu trabalho - disse ele.
- Cale a boca, Brian - respondeu Maclennan, com desprezo.
- Isso não são modos para com um cidadão, inspetor.
- Não estou falando com um cidadão, estou falando com um arruaceiro de merda. Eu sei o que você e os seus amiguinhos idiotas andaram fazendo ontem à noite, Brian. E sei que você pensa que vai escapar ileso porque conhece o segredo de Ziggy Malkiewicz. Bom, eu estou aqui para provar o contrário. - Ele se aproximou de Brian, ficando cara a cara com ele. - Daqui para a frente, Brian, você e o seu irmão são cartas marcadas. Se ultrapassar um quilômetro por hora acima do limite de velocidade naquela sua moto, vai ser parado. Um drinque a mais, e vai ser submetido ao bafômetro. Um mísero sopro em qualquer um daqueles quatro rapazes e você vai preso na hora. E dessa vez, por bem mais do que três meses. - Maclennan parou para respirar.
- Isso é abuso de autoridade - disse Brian, com a sua arrogância apenas levemente neutralizada.
- Não, não é não. Abuso de autoridade é quando você acidentalmente cai da escada a caminho da sua cela. Quando tropeça e quebra o nariz contra a parede. - Com um movimento súbito e veloz, Maclennan agarrou o saco de Brian. Ele apertou o máximo que pôde, girando o punho firmemente.
Brian gritou, ficando pálido. Maclennan o soltou, dando um ligeiro passo para trás. Brian se curvou, xingando entre os dentes.
- Isso é abuso de autoridade, Brian. Pode ir se acostumando. - Maclennan abriu a porta. - Caramba. Acho que o Brian deu uma pancada na mesa e acabou se machucando - disse ele para a assustada secretária na antessala. Sorriu quando passou por ela, cruzou a porta e saiu, de volta para a fria luz da manhã. Entrou no carro.
- Você estava certa, Janice. Estou me sentindo bem melhor agora - disse ele, abrindo um sorriso.
Nenhum trabalho estava sendo executado naquele dia na pequena casa em Fife Park. Mondo e Esquisito perambulavam para lá e para cá na sala de música, mas violão e bateria não faziam uma bela dupla e Alex obviamente não estava a fim de participar. Estava deitado na cama, tentando compreender os seus sentimentos sobre o que havia acontecido com eles quatro. Sempre se perguntara por que Ziggy hesitava tanto diante da possibilidade de compartilhar o seu segredo com os outros dois. No fundo, Alex achava que eles o aceitariam porque conheciam Ziggy bem o suficiente para reagir de outra forma. Mas subestimara o poder da intolerância impensada. Não gostava nem um pouco do que a reação dos seus amigos dizia sobre eles. E aquilo o levara a questionar o seu próprio julgamento. O que estava fazendo ali, investindo tanto tempo e energia em pessoas que, no fundo, tinham uma mentalidade tão tacanha quanto o babaca do Brian Duff? A caminho da ambulância, Ziggy contara para Alex o que havia acontecido, sussurrando em seu ouvido. O que deixava Alex mais assustado era pensar que os seus amigos compartilhavam os mesmos preconceitos do bando que atacara Ziggy.
Tudo bem, Esquisito e Mondo não seriam capazes de sair por aí espancando gays na falta do que fazer para se divertir à noite. Mas nem todos em Berlim fizeram parte da Noite dos Cristais. E vejam onde isso foi parar. Ao compartilhar a mesma intolerância, você acaba dando um apoio tácito aos extremistas. Para que o mal triunfe, lembrou-se Alex, basta que os homens bons cruzem os braços.
Podia quase compreender a atitude de Esquisito. Ele se enfiara no meio de um bando de fundamentalistas que o obrigavam a engolir a doutrina inteirinha. Você não podia eliminar as partes de que não gostava.
Mas não havia desculpa para Mondo. Ele estava se comportando de tal forma que Alex não tinha sequer vontade de sentar ao lado dele à mesa.
Estava tudo desabando e ele não sabia como impedir.
Ouviu um barulho na porta da frente e pulou da cama, descendo as escadas depressa. Ziggy estava encostado na parede, com um sorriso incerto nos lábios.
- Você não devia estar no hospital? - perguntou Alex.
- Eles queriam me manter em observação. Mas eu posso fazer isso em casa. Não tem cabimento ficar ocupando uma cama por lá.
Alex o ajudou a ir até a cozinha e colocou água para ferver na chaleira.
- Você não teve hipotermia?
- Muito de leve. Não foi nada muito grave, não. Eles conseguiram reajustar a minha temperatura corporal, então, beleza. Não quebrei nada, só fiquei machucado mesmo. Não estou urinando sangue, então os meus rins devem estar funcionando bem. Prefiro sofrer na minha cama do que ter que aturar médicos e enfermeiras rindo da minha cara e fazendo piadinhas sobre médicos que não sabem se curar.
Ouviram alguns passos na escada e em seguida Mondo e Esquisito apareceram na soleira da porta, ressabiados.
- Bom te ver, cara - disse Esquisito.
- Podes crer - concordou Mondo. - Que diabos aconteceu?
- Eles já sabem, Ziggy - interrompeu Alex.
- Você contou a eles? - O tom de acusação na voz de Ziggy saiu mais cansado do que irritado.
- Maclennan nos contou - respondeu Mondo, bruscamente. - Ele só confirmou.
- Melhor assim - disse Ziggy. - Não acho que Brian e os seus amigos selvagens estivessem procurando especificamente por mim. Acho que eles saíram dispostos a sacanear os viados e acabaram dando de cara comigo e um carinha lá na igreja de Santa Maria.
- Vocês estavam transando na igreja? - A voz de Esquisito não escondia o seu horror.
- É uma ruína - acudiu Alex. - Não é necessariamente um solo sagrado. - Esquisito parecia prestes a dizer mais alguma coisa, mas o olhar de Alex fez com que ele engolisse o seu comentário na hora.
- Você estava transando com um estranho ao ar livre, em uma noite gelada de inverno? - perguntou Mondo, com uma mistura de nojo e desprezo.
Ziggy olhou para ele, demoradamente.
- Você preferiria que eu o trouxesse para cá?
Mondo não respondeu.
- Não, acho que não. Ao contrário da torrente de mulheres que você despeja sobre nós regularmente.
- É diferente - disse Mondo, jogando o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Por quê?
- Bom, para começar, não é contra a lei - respondeu ele.
- Obrigado pelo apoio, Mondo. - Ziggy ficou de pé, devagar e com dificuldade, como um senhor idoso. - Vou me deitar.
- Você ainda não contou para a gente o que aconteceu - disse Esquisito, demonstrando um tato excepcional, como sempre.
- Quando eles perceberam que era eu, Brian quis que eu confessasse. Como eu não tinha nada a confessar, eles me amarraram e me jogaram lá embaixo, na Masmorra da Garrafa. Não foi a melhor noite da minha vida. Agora, se vocês me derem licença...
Mondo e Esquisito abriram caminho para ele passar. As escadas eram estreitas demais para duas pessoas, então Alex não se ofereceu para ajudar. Achava que Ziggy não ia aceitar mesmo, nem vindo dele.
- Por que vocês dois não se mudam e vão morar com alguém com quem se sintam mais confortáveis, hein? - perguntou Alex, ao passar por eles. Apanhou os seus livros e o seu casaco. - Estou indo para a biblioteca. Seria ótimo se vocês dois já não estivessem mais por aqui quando eu voltar para casa.
Algumas semanas se passaram no que parecia ser uma trégua desconfortável. Esquisito passava a maior parte do tempo estudando na biblioteca, ou com os seus amigos evangélicos. Ziggy parecia ter recuperado o seu sang froid à medida que os seus machucados físicos cicatrizavam, mas Alex percebeu que ele não gostava de sair sozinho à noite. Alex meteu a cara nos estudos, mas procurava estar por perto quando Ziggy precisava de companhia. Foi passar um fim de semana em Kirkcaldy e levou Lynn para Edimburgo. Almoçaram em uma pequena cantina italiana com uma decoração efusiva e foram ao cinema. Andaram desde a rodoviária até a casa dela, a cinco quilômetros do centro da cidade. Enquanto atravessavam a fileira de árvores que ocultavam o Dunnikier Estate da estrada principal, ela o puxou para as sombras e o beijou, com paixão. Ele voltou para casa cantarolando.
A pessoa mais afetada pelos últimos acontecimentos, paradoxalmente, parecia ser Mondo. A história do ataque que Ziggy sofrera se espalhou pela universidade como fogo. A versão que chegou ao conhecimento do público deixou de fora, convenientemente, a primeira parte da história, mantendo intacta a sua privacidade. Mas uma maioria considerável estava se referindo a eles como suspeitos, como se houvesse alguma justificativa para o que fizeram com Ziggy. Haviam se tornado párias.
A namorada de Mondo terminou com ele, sem cerimônia. Estava preocupada com a sua reputação, disse ela. Ele não conseguiu arrumar outra com facilidade. As meninas não retribuíam mais os seus olhares. Elas se afastavam quando ele se aproximava para puxar um assunto nos bares e nas discotecas.
Os seus colegas no curso de Francês também deixaram bem claro que não o queriam por perto. Estava isolado de uma maneira que nenhum dos outros três estava. Esquisito tinha os cristãos; os colegas de Medicina de Ziggy estavam firmes do seu lado; Alex não dava a mínima para o que os outros pensavam, tinha Ziggy e, embora Mondo não soubesse, tinha Lynn.
Perguntava-se se ainda dispunha de um ás na manga, mas tinha medo de exibir as suas cartas, com receio de que esse trunfo não fosse suficiente. Não era exatamente fácil abordar a pessoa com quem precisava falar e, até agora, fracassara lamentavelmente em suas tentativas de fazer contato. Não conseguia nem esboçar um exercício em interesse pessoal mútuo. Porque estava convencido de que era disso que se tratava. Não chantagem. Apenas uma pequena reciprocidade. Mas até mesmo isso parecia fora do seu alcance. Era de fato um fracasso completo; transformava tudo o que tocava em lixo.
O mundo era a sua ostra e agora tudo o que Mondo podia sentir era um gosto de areia. Sempre fora o mais emocionalmente frágil do quarteto e, sem o apoio dos outros três, desabou. A depressão o cobriu como um cobertor bem pesado, abafando o mundo lá fora. Ele passou até mesmo a falar como uma pessoa que carrega uma cruz pesada demais nas costas. Não conseguia estudar, não conseguia dormir. Parou de tomar banho e de se barbear, mudando raramente de roupa. Passava horas intermináveis prostrado em sua cama, olhando para o teto e ouvindo fitas do Pink Floyd. Ia para pubs onde sabia que ninguém o conhecia e bebia até não poder mais, rabugento. Depois, saía cambaleando pela madrugada e perambulava pela cidade até o dia clarear.
Ziggy tentou conversar com ele, mas Mondo não quis ouvir. No fundo, culpava Ziggy, Esquisito e Alex pelo que acontecera com ele e não queria aceitar o que, aos seus olhos, não passava de piedade. Aquilo seria o golpe de misericórdia para ele. Queria amigos de verdade, que o valorizassem, e não pessoas que tivessem pena dele. Queria amigos em quem pudesse confiar, e não amigos que o deixassem preocupado em relação ao que podia acontecer com ele, só porque se dava com essas pessoas.
Uma noite, ao voltar trôpego de um pub, foi parar em um pequeno hotel perto do porto. Dirigiu-se até o bar e pediu um chope, embaralhando as palavras. O barman olhou para ele com um desprezo parcamente disfarçado e disse:
- Sinto muito, meu filho. Mas não vou te servir.
- Como assim, não vai me servir?
- Este é um lugar de respeito e você parece um vagabundo. Eu tenho todo o direito de recusar atender qualquer pessoa que eu não queira bebendo aqui dentro. - Ele sinalizou com o polegar um aviso na parede que respaldava as suas palavras. - Pra rua.
Mondo olhou para ele, sem acreditar. Olhou em volta, buscando o apoio dos outros fregueses. Todos evitavam deliberadamente olhar para ele.
- Vá se foder - disse ele, jogando um cinzeiro no chão e correndo para a rua.
Durante o breve período em que esteve dentro do pub, a chuva violenta que estava ameaçando cair durante todo o dia descera sobre a cidade, varrendo as ruas com a ajuda do forte vento leste. Em questão de segundos, estava ensopado até os ossos. Mondo enxugou a chuva do rosto e percebeu que estava chorando. Não aguentava mais aquilo. Não podia suportar mais um dia de sofrimento e inutilidade. Não tinha amigos, as mulheres o desprezavam e sabia que ia perder o ano porque não fizera um trabalho sequer na universidade. Ninguém se importava, porque ninguém compreendia.
Bêbado e deprimido, arrastou-se pela rua até o castelo. Não aguentava mais. Ia mostrar para todos qual era o seu ponto de vista. Escalou o parapeito e ficou lá, cambaleante, à beira do penhasco. Abaixo, o mar chocava-se violentamente contra as pedras, lançando um chafariz de espuma no ar. Mondo aspirou aquele ar salgado e sentiu-se curiosamente em paz, olhando para o mar revolto lá embaixo. Abriu os braços, deixou a chuva cair no seu rosto e lançou o seu grito de dor aos céus.
18
Maclennan estava passando pela central de rádio na delegacia quando ouviu o chamado. Decodificou o número da ocorrência. Suicídio em potencial no penhasco do castelo. Não era exatamente da alçada do DIC e, além do mais, estava de folga. Só passara por lá para organizar uns papéis. Podia sair dali, chegar em casa em dez minutos, uma latinha de cerveja em punho e o suplemento esportivo do jornal aberto no colo. Como quase todos os dias, desde que Elaine o deixara.
Sem discussão.
Enfiou a cabeça na porta da sala dos rádios.
- Diga que eu estou a caminho - disse ele. - E envie o barco salva-vidas de Anstruther.
O operador olhou para ele, surpreso, mas fez um sinal afirmativo com o dedão. Maclennan dirigiu-se até o estacionamento. Deus, que tarde horrorosa. O tempo por si só já era suficiente para alguém querer se suicidar. Foi até o castelo, os limpadores mal conseguindo dar conta dos grossos pingos de chuva que encharcavam o para-brisa.
O penhasco do castelo era um dos lugares favoritos para tentativas de suicídio. Na maioria das vezes, eram bem-sucedidos quando a maré estava a seu favor. Havia uma contracorrente violenta que arrebatava os desavisados para o alto-mar em questão de segundos. E ninguém durava muito no mar do Norte em pleno inverno. Havia alguns que fracassavam, como o zelador de uma escola primária que calculou mal sua tentativa. Ele acabou caindo em uma parte rasa, evitou as pedras e ainda conseguiu aterrissar na areia. Quebrou os tornozelos e ficou tão mortificado com o seu fiasco cômico que tomou um ônibus para Leuchars assim que saiu do hospital, capengou em suas muletas pela linha do trem e se jogou debaixo do expresso de Aberdeen.
A história não se ia se repetir, porém. Maclennan tinha certeza de que a maré estava alta e o vento leste açoitaria o mar em um turbilhão incessante abaixo do penhasco. Só esperava que eles conseguissem chegar lá a tempo.
Havia uma viatura no local quando ele chegou. Janice Hogg e um outro policial estavam parados, indecisos, próximos ao parapeito, olhando um rapaz curvar-se contra o vento, com os braços abertos como os de Cristo na cruz.
- Não fiquem aí parados - disse Maclennan, levantando a gola do casaco para se proteger da chuva. - Tem um salva-vidas mais adiante. Um desses, com uma corda. Vão buscá-lo, já.
O policial correu apressado, na direção em que Maclennan estava apontando. O detetive subiu no parapeito e ensaiou uns passos.
- Tudo bem, filho - disse ele, delicadamente.
O rapaz se virou e Maclennan pôde constatar que era Davey Kerr. Estava péssimo e arruinado, mas era Davey Kerr, com certeza. Era impossível confundir aquele rosto élfico, aqueles olhos de bâmbi aterrorizado.
- Você chegou tarde demais - balbuciou ele. O seu corpo balançava, embriagado.
- Nunca é tarde demais - respondeu Maclennan. - Seja lá o que estiver errado, a gente pode dar um jeito.
Mondo voltou-se para Maclennan. Deixou os braços caírem ao longo do corpo.
- Dar um jeito? - Os seus olhos faiscaram. - Foram vocês mesmos que estragaram tudo, para começar. Graças à sua cambada, todo mundo acha que eu sou um assassino. Não tenho mais amigos. Não tenho mais futuro.
- Claro que você tem amigos. Alex, Ziggy, Tom. Eles são seus amigos. - O vento gemia e a chuva atingia o seu rosto, mas Maclennan abstraíra tudo, a não ser o rosto assustado diante dele.
- Grandes amigos. Eles não querem saber de mim, porque eu digo a verdade. - Levou a mão à boca e mordiscou a ponta do dedo. - Eles me odeiam.
- Não é o que eu acho. - Maclennan deu mais um passo à frente. Mais alguns centímetros e já seria possível segurar o garoto.
- Não se aproxime. Continue aí. Isso é problema meu. Você não tem nada a ver com isso.
- Pense no que está fazendo, Davey. Pense nas pessoas que o amam. Isso vai destruir a sua família.
Mondo sacudiu a cabeça.
- Eles não ligam para mim. Sempre gostaram mais da minha irmã.
- Diga-me o que está te perturbando. - Mantenha-o falando, mantenha-o vivo, instruía a si mesmo. Maclennan não queria que aquele virasse mais um problema, mais um pesadelo para o atormentar.
- Você está surdo, cara? Já te disse - gritou Mondo, contorcendo o rosto em um esgar de dor. - Vocês arruinaram a minha vida.
- Isso não é verdade. Você tem um belo futuro pela frente.
- Não tenho mais, não tenho. - Ele tornou a abrir os braços como se fossem asas. - Ninguém entende o que eu estou passando.
- Me ajude a entender. - Maclennan avançou ainda mais. Mondo tentou se afastar, mas os seus pés embriagados escorregaram na fina grama molhada. O seu rosto era uma máscara de pavor atônito. Em um terrível salto mortal pantomímico, ele lutou contra a força da gravidade. Por alguns intermináveis segundos, parecia que ele ia conseguir. Então os seus pés perderam o equilíbrio e ele desapareceu de vista por um segundo aterrador.
Maclennan lançou-se para a frente, mas se movera tarde demais. Oscilou na beira do parapeito, mas o vento estava ao seu favor e o manteve lá em cima, até ele recuperar o equilíbrio novamente. Olhou para baixo. Acreditava ter visto Mondo se espatifando na água. Então avistou o rosto pálido de Mondo, entre a espuma branca do mar. Virou-se, enquanto Janice e o outro policial aproximavam-se dele. Uma outra viatura apareceu e dela saíram Jimmy Lawson e dois policiais uniformizados.
- O salva-vidas - gritou Maclennan. - Segure a corda.
Ao dizer isso, já estava despindo o casaco e a jaqueta e tirando os sapatos. Maclennan apanhou o salva-vidas e olhou para baixo. Desta vez, distinguiu um braço escuro contra a espuma. Respirou fundo e lançou-se no ar.
A queda era de parar o coração, repentina. Oscilando no vento, Maclennan sentiu-se leve e insignificante. Tudo terminou em uma questão de segundos. Cair na água era como cair no chão. Ficou completamente sem ar. Arquejando e engolindo grandes quantidades de água salgada e gelada, Maclennan lutou até a superfície. Tudo o que conseguia ver era água, chuva e espuma. Mexia as pernas, tentando se localizar.
Então, em um intervalo entre as ondas, avistou Mondo. Ele estava a alguns metros de distância, à sua esquerda. Maclennan avançou na sua direção, tolhido pelo salva-vidas em sua mão que o detinha. O mar o suspendia e depois o deitava fora, carregando-o cada vez para mais perto de Mondo. Agarrou-o pelo pescoço, como a um gato.
Mondo agitou-se vigorosamente. Primeiro, Maclennan pensou que ele estivesse determinado a se soltar e a se deixar afogar. Depois ele percebeu que Mondo estava disputando o salva-vidas com ele. Maclennan sabia que não ia aguentar por muito tempo. Soltou o salva-vidas e tentou se apoiar em Mondo.
Mondo apanhou o salva-vidas. Enfiou o braço nele e tentou passar pela cabeça. Mas Maclennan ainda estava segurando na gola da sua camisa, pois a sua vida dependia daquilo. Só havia uma solução. Mondo reuniu todas as suas forças e deu um empurrão em Maclennan com o seu cotovelo livre. E conseguiu se soltar.
Colocou o salva-vidas no corpo, lutando desesperadamente para respirar naquele ar saturado. Logo atrás dele, Maclennan também lutava, pois conseguira, de algum jeito, segurar a corda presa ao salva-vidas. Foi preciso um esforço sobre-humano, e as suas roupas encharcadas impediam que ele se movimentasse. Estava sendo abocanhado por um frio mortal, que já entorpecera os seus dedos. Agarrou a corda com apenas um dos braços, acenando com o outro para cima, para que o grupo no penhasco os erguesse.
Pôde sentir a corda sendo puxada. Será que bastariam cinco homens para erguer os dois até lá em cima? Será que algum deles tinha tido a iniciativa de apanhar um dos barcos do porto? Já estariam mortos muito antes do barco de Anstruther chegar.
Aproximaram-se do penhasco. Por um instante, Maclennan teve consciência da leveza da água. Então, tudo o que sentiu foi o seu peso, quando foi erguido para fora dela, agarrando-se no salva-vidas e em Mondo para sobreviver. Olhou para cima, grato por ver o rosto pálido do primeiro homem que segurava a corda, as suas feições embaçadas pela chuva e pela espuma do mar.
Estavam a poucos metros do penhasco quando Mondo, com medo de que Maclennan o puxasse de volta para o turbilhão no mar, o chutou para fora da corda. Os dedos de Maclennan desistiram de lutar. Caiu de costas, indefeso, de volta para a água. Novamente foi até o fundo, novamente lutou para alcançar a superfície. Pôde ver o corpo de Mondo sendo lentamente erguido até o penhasco. Não conseguia acreditar. O desgraçado lhe dera um chute para se salvar. Ele não estava querendo se suicidar. Estava fingindo, querendo chamar a atenção.
Maclennan cuspiu mais água. Estava determinado a aguentar o máximo possível, pelo menos para fazer com que Davey Kerr se arrependesse de não ter morrido afogado. Tudo o que tinha de fazer agora era manter a cabeça para fora da água. Eles na certa jogariam um salva-vidas para ele. Ou mandariam um bote. Ou não?
Estava perdendo as forças rapidamente. Não conseguia lutar contra a água, então deixou que ela o levasse. Tinha de se concentrar em manter a cabeça para fora do mar.
Era mais fácil falar do que fazer. A contracorrente o sugava, as ondas lançavam negros paredões de água em sua boca, no seu nariz. Não sentia mais frio, o que era bom. Ouviu, bem longe, o barulho de um helicóptero. Estava à deriva agora, em um lugar onde tudo parecia muito calmo. Resgate Céu/Mar, então esse era o responsável pelo barulho. Swing low, sweet chariot. Coming for to carry me home.[6] Gozado o que passa pela cabeça da gente. Ele riu e engoliu mais um bocado de água.
Sentia-se incrivelmente leve, como se o mar fosse um berço, ninando-o delicadamente para dormir. Barney Maclennan, dormindo profundamente em uma onda do mar.
O farol do helicóptero vasculhou o mar por uma hora. Nada. O assassino de Rosie Duff fizera uma segunda vítima.
Parte Dois
19
Novembro de 2003; Glenrothes, Escócia
O subchefe de polícia James Lawson estacionou na vaga que levava o seu nome no estacionamento da sede da polícia. Não passava um dia sem que ele se parabenizasse pelo seu feito. Nada mau para o filho ilegítimo de um mineiro, que crescera em um miserável conjunto habitacional em uma cidade deprimente, erguido na década de 50 para abrigar trabalhadores desempregados cuja única possibilidade de trabalho era nas promissoras minas de carvão em Fife. Que piada. Em vinte e cinco anos, a indústria havia praticamente desaparecido, abandonando os seus antigos empregados em dramáticos oásis de desemprego. Os seus colegas acharam graça quando ele virou as costas para as minas para fazer parte do que eles consideravam como o lado dos chefes. Quem está rindo por último agora?, pensou Lawson com um sorriso soturno, tirando a chave da sua Land Rover oficial da ignição. Margareth Thatcher se livrara dos mineiros e transformara a polícia em seu novo exército particular. A Esquerda morrera e a fênix que renascera das suas cinzas era quase tão a favor da linha dura quanto os conservadores. Era o momento perfeito para ser um oficial de carreira. A sua aposentadoria um dia haveria de comprovar isso.
Apanhou a sua pasta no banco do carona e caminhou lépido até o prédio, de cabeça baixa para proteger-se de um desagradável vento que vinha da costa leste e prometia violentas pancadas de chuva antes da tarde. Digitou sua senha no painel eletrônico da porta dos fundos e dirigiu-se ao elevador. Em vez de subir direto para o seu escritório, desceu no quarto andar, no gabinete da equipe encarregada dos casos não resolvidos. Não havia muitos assassinatos não solucionados na história de Fife, de modo que qualquer sucesso seria visto como espetacular. Lawson sabia que aquela operação tinha o potencial de aumentar a sua reputação se fosse conduzida corretamente. E estava determinado a evitar um trabalho malfeito. Seria prejudicial para todos.
A sala que solicitara para a sua equipe tinha um tamanho razoável. Era suficiente para uma meia dúzia de computadores e, embora não dispusessem de luz natural, havia espaço de sobra para cada um dos casos ser disposto em grandes quadros de cortiça, que praticamente revestiam as paredes. Ao lado de cada caso, havia uma lista impressa com tarefas a serem executadas. Conforme os oficiais as cumpriam, novas tarefas eram adicionadas à lista, em adendos escritos à mão. Caixas de arquivo estavam empilhadas até a altura da cintura em duas paredes. Lawson gostava de acompanhar o progresso de perto; embora a operação tivesse atraído a atenção do público e da mídia, isso não significava que tivessem carta branca no orçamento. A maioria dos novos exames forenses era cara demais para ser solicitada e ele não queria que a sua equipe ficasse seduzida com o glamour da tecnologia e desperdiçasse todos os recursos financeiros em contas de laboratório, não deixando nada para as tarefas investigativas tradicionais.
Com exceção de uma pessoa, Lawson selecionara o time de seis detetives a dedo, escolhendo aqueles que tinham fama de dispensar uma atenção meticulosa aos detalhes e um talento especial para juntar peças desconexas de informações. A exceção era um detetive cuja mera presença no recinto perturbava Lawson. Não porque fosse um policial ruim, e sim porque a sua ligação com a investigação era pessoal demais. O irmão do detetive-inspetor Robin Maclennan, Barney Maclennan, morrera enquanto investigava um daqueles casos não resolvidos e, se dependesse de Lawson, ele não estaria trabalhando na revisão. Mas Maclennan apelara ao superior de Lawson, o chefe de polícia, que deferira o pedido dele.
A única coisa que podia fazer era manter Maclennan longe do caso de Rosie Duff. Após a morte de Barney, Robin fora transferido de Fife para um lugar ao sul. Voltara após a morte do pai, no ano anterior, querendo trabalhar os anos que lhe restavam antes da aposentaria perto da sua mãe. Por sorte, Maclennan tinha uma ligação remota com um dos outros casos, então Lawson convenceu o seu chefe a deixá-lo designar o DI para o caso de Lesley Cameron, uma estudante que havia sido estuprada e assassinada em St. Andrews dezoito anos antes. Naquela época, Robin Maclennan trabalhava perto da casa dos pais da moça e fora designado para lidar com a família dela, provavelmente por causa das suas próprias ligações com a polícia de Fife. Lawson suspeitava que Maclennan poderia estar olhando por cima do ombro da detetive que ficara com o caso de Rosie Duff, mas pelo menos sabia que ele não podia interferir diretamente na investigação.
Naquela manhã de novembro, apenas dois oficiais estavam em suas mesas. O detetive de polícia Phil Parhatka estava com o que talvez fosse o caso mais delicado de todos. A sua vítima era um jovem encontrado morto em sua própria casa. O seu melhor amigo fora acusado e condenado pelo crime, mas uma série de revelações constrangedoras sobre a investigação policial levara à reversão da condenação mediante recurso. A repercussão do caso fez com que várias carreiras descessem pelo ralo e a pressão agora era para a polícia encontrar o verdadeiro assassino. Lawson escolhera Parhatka em parte por causa da sua famosa sensibilidade e discrição. Mas também porque vira no jovem detetive o mesmo apetite pelo sucesso que o movera quando ele próprio tinha aquela idade. Parhatka queria tão desesperadamente encontrar um resultado que Lawson por pouco não conseguia ver a fumaça daquele desejo queimando sobre a sua cabeça.
Quando Lawson chegou, a outra oficial estava acabando de se levantar. A detetive de polícia Karen Pirie puxou um casaco de lã de carneiro fora de moda, mas funcional, das costas da cadeira e aninhou-se nele. Levantou os olhos, sentindo uma presença na sala, e cumprimentou Lawson com um sorriso exausto.
- Nenhuma novidade. Vou ter que conversar com as testemunhas originais do caso.
- Não faz sentido ir atrás das testemunhas antes de descartar as provas - disse Lawson.
- Mas, senhor...
- Você vai ter que descer lá e fazer uma busca manual.
Karen olhou para ele, espantada.
- Mas isso pode demorar semanas.
- Eu sei. Mas é o único jeito.
- Mas, senhor... e o nosso orçamento?
Lawson suspirou.
- Deixa que eu me preocupo com o orçamento. Eu não vejo outra alternativa para você. Precisamos dessas provas para pressioná-los. E elas não estão na caixa em que deveriam estar. A única explicação que a equipe de armazenamento de provas me ofereceu é de que a caixa de alguma maneira "foi parar no lugar errado" durante a mudança para as novas instalações de armazenamento. Eles não têm pessoal suficiente para fazer uma busca, então você vai ter que assumir.
Karen ergueu a bolsa e pendurou-a no ombro.
- Está bem, senhor.
- Eu disse desde o início que, se quiséssemos fazer algum progresso nesse caso, as provas seriam o mais importante. E, se existe alguém capaz de encontrá-las, esse alguém é você. Faça o melhor possível, Karen. - Ele a observou indo embora e o seu próprio andar era um simulacro da obstinação que o levara a designar Karen Pirie para o assassinato de Rosemary Duff, vinte e cinco anos atrás. Após algumas palavras de encorajamento para Parhatka, Lawson saiu para o seu próprio escritório, no terceiro andar.
Instalou-se em sua ampla mesa e experimentou uma leve preocupação de as coisas não funcionarem como ele havia esperado na revisão dos casos não solucionados. Dizer simplesmente que haviam feito o melhor possível jamais seria o bastante. Precisavam de, pelo menos, um resultado. Bebericou o seu chá, doce e forte, e pegou a sua correspondência. Passou os olhos em alguns memorandos, colocando as suas iniciais no topo das páginas e depositando-as na bandeja da correspondência interna. Viu então uma carta de um cidadão comum, endereçada pessoalmente a ele. O que já era bem incomum, por si só. Mas o conteúdo da carta foi o que chamou a atenção de James Lawson.
12 Carlton Way
St. Monans
Fife
Ao Subchefe de Polícia James Lawson
Sede da Polícia de Fife
Detroit Road
Glenrothes
KY6 2RJ
8 de novembro de 2003
Caro James Lawson,
Li com bastante interesse uma matéria no jornal anunciando que a polícia de Fife estava para realizar uma revisão de assassinatos não solucionados. Creio que, dentre estes, os senhores certamente hão de reexaminar o de Rosemary Duff. Gostaria de marcar um encontro com o senhor para conversarmos a respeito. Tenho informações que, embora não sejam diretamente relevantes ao caso, podem contribuir para o seu esclarecimento.
Por favor, não tome esta carta como o ato de um desequilibrado. Tenho motivos para crer que a polícia não estava a par destas informações na época da investigação.
Aguardo ansiosamente a sua resposta.
Atenciosamente,
Graham Macfadyen
Graham Macfadyen vestiu-se com esmero. Queria causar uma boa impressão ao subchefe Lawson. Receava que a polícia fosse descartar a sua carta como o ato de um desequilibrado que queria chamar a atenção. Mas, para sua surpresa, recebeu uma resposta em sua caixa postal. E, o que foi ainda mais surpreendente, o próprio Lawson havia respondido, pedindo que ele ligasse para agendarem um encontro. Imaginou que ele fosse passar a sua carta para o subordinado encarregado do caso. Ficou impressionado ao constatar que a polícia estava levando o assunto tão a sério. Quando ele ligou, Lawson sugeriu que eles se encontrassem na casa de Macfadyen, em St. Monans. "É mais informal do que aqui na delegacia", dissera ele. Macfadyen suspeitava que Lawson queria vê-lo em seu habitat natural, para avaliar melhor o seu estado mental. Mas aceitou a sugestão, sem problemas, ainda mais porque detestava dirigir pelo labirinto de rodeios pelo qual Glenrothes parecia ser formado.
Na véspera, passou a noite toda arrumando a sala. Sempre se julgara um homem relativamente organizado e, nas ocasiões em que a presença de uma outra pessoa em sua casa era iminente, ficava surpreso ao constatar que a casa precisava de tanta limpeza. Talvez isso acontecesse porque ele raramente tinha a oportunidade de demonstrar a sua hospitalidade. Nunca entendera qual era a graça de se ter uma namorada e, francamente, não sentia a menor falta de uma mulher em sua vida. Lidar com os colegas parecia esgotar toda a sua energia para interações sociais e ele raramente os encontrava fora do trabalho; apenas o suficiente para não destoar dos outros. Aprendera desde criança que era sempre melhor ser invisível do que ser notado. Mas não importava quanto tempo tinha de passar desenvolvendo softwares, jamais se cansava das máquinas. Fosse navegando na internet, trocando informações em fóruns ou participando de jogos com outras pessoas online, Macfadyen era sempre mais feliz quando havia uma barreira de silício entre ele e o resto do mundo. O computador não julgava, não o achava incompetente. As pessoas acham que computadores são complicados e difíceis de entender, mas elas estão enganadas. Os computadores são previsíveis, oferecem segurança. Não te decepcionam. Você sabe exatamente como lidar com eles.
Examinou-se diante do espelho. Aprendera que ser discreto era a melhor maneira de não chamar atenção indesejada para si. Queria que a sua aparência transmitisse tranquilidade, normalidade, que não fosse nada ameaçadora. Nem estranha. Sabia que a maioria das pessoas achava que quem trabalhava com tecnologia de informação era automaticamente estranho e não queria que Lawson também pensasse assim. Ele não era estranho. Apenas diferente. Mas isso era algo que ele, definitivamente, não queria que Lawson percebesse. Passe despercebido, aquela era a regra para que pudesse conseguir o que queria.
Escolheu uma calça Levi’s e uma camisa polo. Nada que assustasse as criancinhas. Passou uma escova no cabelo grosso e escuro, franzindo um pouco as sobrancelhas ao ver a sua imagem refletida. Uma mulher certa vez lhe dissera que ele lembrava o James Dean, mas ele interpretou aquilo como uma tentativa patética de fazer com que ele se interessasse por ela. Calçou um par de mocassins pretos e deu uma olhada no relógio. Ainda tinha dez minutos. Macfadyen foi até o quarto de hóspedes e sentou-se diante de um dos seus três computadores. Ia contar uma mentira e, se queria ser convincente, precisava estar calmo.
James Lawson dirigiu devagar pela subida de Carlton Way. Era um apanhado de pequenas casas, umas separadas das outras, construídas na década de 90, imitando o tradicional estilo East Neuk de casas. As paredes rebocadas com cal, os telhados inclinados e o rufo serrilhado eram marcas registradas da arquitetura local e as casas eram afastadas o bastante umas das outras para se integrarem inocuamente aos seus arredores. A aproximadamente oitocentos metros de distância da vila de pescadores de St. Monans, as casas eram perfeitas para jovens profissionais que não tinham condições de bancar as casas mais tradicionais, geralmente arrematadas por pessoas de maior poder aquisitivo, que buscavam algo mais exótico, ou para curtir a aposentadoria, ou para alugar nas férias.
A casa de Graham Macfadyen era uma das menores. No máximo dois quartos, pensou Lawson. Não havia garagem, mas o espaço na frente da casa era grande o suficiente para acomodar dois carros pequenos. Um Golf prateado, bem antigo, estava estacionado lá. Lawson estacionou na rua e dirigiu-se até a casa, sentindo a calça do seu terno tremelicar com a brisa que vinha do estuário de Forth. Tocou a campainha e esperou, impaciente. Odiaria ter de morar em um lugar tão deserto e frio. Podia até ser bonito no verão, mas naquela tarde gelada de novembro, era triste e cinzento.
Um homem que ainda não devia ter nem trinta anos abriu a porta. Estatura média, magro, pensou Lawson, automaticamente. O cabelo era preto e encaracolado, com o tipo de ondulado quase impossível de se ajeitar direito. Os olhos eram azuis, profundos, o rosto era anguloso e a boca carnuda, quase feminina. Sem ficha criminal, já havia verificado. Mas era jovem demais para estar pessoalmente envolvido com o caso de Rosie Duff.
- Sr. Macfadyen? - perguntou Lawson.
O rapaz assentiu com a cabeça.
- O senhor deve ser o subchefe de polícia James Lawson. É assim que devo lhe chamar?
Lawson sorriu, tranquilizando o rapaz.
- Não precisa de tudo isso, não. Sr. Lawson está ótimo.
Macfadyen deu um passo para trás.
- Entre, por favor.
Lawson o seguiu por um estreito hall até uma sala de estar bem-arrumada. Havia um conjunto de sofá com duas poltronas de couro marrom e uma televisão, junto a um aparelho de videocassete e um DVD. Os aparelhos eram flanqueados por prateleiras, repletas de fitas e DVDs. Fora isso, a única mobília da sala era uma estante com copos e diversas garrafas de uísque. Mas Lawson só percebeu isso depois. O que chamou a sua atenção foi o único quadro que decorava as paredes nuas da sala. Uma ampliação de uma fotografia, que qualquer um que estivesse envolvido com o caso de Rosie Duff reconheceria imediatamente. Tirada ao pôr do sol, a fotografia revelava as sepulturas do cemitério picto em Hallow Hill, onde o corpo da moça fora encontrado. Lawson estava paralisado. A voz de Macfadyen o trouxe de volta ao presente.
- Aceita um drinque? - perguntou ele. Estava parado na soleira da porta, como uma presa imobilizada diante do olhar do predador.
Lawson sacudiu a cabeça, tanto para dissipar a imagem, quanto para recusar a oferta.
- Não, obrigado. - Sentou-se sem ser convidado, sabendo que a confiança adquirida nos seus anos junto à polícia lhe garantiam aquela permissividade.
Macfadyen entrou na sala e sentou-se em uma poltrona, de frente para Lawson, que estava um pouco preocupado por não conseguir decifrar o rapaz.
- Você disse na carta que tinha alguma informação sobre o caso Rosemary Duff - começou ele, cauteloso.
- Exatamente. - Macfadyen inclinou-se um pouco para a frente. - Rosie Duff era a minha mãe.
20
Dezembro de 2003
Um cronômetro desmantelado, removido de um videocassete; uma lata de tinta; 250 ml de gasolina; restos de fios de fusível. Nada extraordinário, nada que não pudesse ser encontrado em um acervo doméstico de bugigangas, em qualquer porão ou sótão. Tudo muito inofensivo.
Exceto quando combinado em uma configuração específica. Então, tornava-se algo completamente incontrolável.
O cronômetro marcou a data e a hora estabelecidas; uma fagulha atravessou o fio elétrico e inflamou a gasolina. A tampa da lata de tinta explodiu, espalhando a gasolina em papéis e lascas de madeira. Uma operação impecável, perfeita e mortal.
As chamas continuaram a se alimentar com rolos de carpete descartados, latas de tinta pela metade, o casco envernizado de um pequeno bote. Fibras de vidro e combustível, mobília de jardim e latas de aerossol transformavam-se em tochas e em lança-chamas, conforme o incêndio crescia. As cinzas subiam, em densas nuvens, como na exibição barata de fogos de artifício.
E a fumaça ficava mais espessa. Enquanto o incêndio crescia lá embaixo, os vapores rondavam pela casa, primeiro despretensiosos, depois cada vez mais intensos. Na frente, invisíveis, vapores tênues emanavam do chão e flutuavam em correntes de ar quente. Provocaram apenas uma tosse no homem que dormia, mas não eram acres o bastante para acordá-lo. Conforme a fumaça se disseminava, tornavam-se ainda mais perceptíveis os espectros de névoa misteriosa pairando sobre as nesgas de luz que a lua refletia pelas janelas nuas, sem cortinas. O cheiro também se tornava palpável, um alerta para qualquer um que estivesse em condições de percebê-lo. Mas a fumaça já prejudicara a reação do homem adormecido. Se alguém tivesse sacudido o seu ombro, talvez ele tivesse conseguido acordar e se dirigir, cambaleante, até a janela, onde uma promessa de salvação o esperava. Mas estava sozinho e não podia fazer nada. O sono estava se transformando em inconsciência. E a inconsciência, em breve, se transformaria em morte.
O incêndio crepitava e faiscava, lançando caudas de cometa rubras e douradas ao céu. As vigas gemiam e despencavam no chão. Matar alguém nunca foi tão bonito de se ver, nem tão fácil.
Apesar do ambiente artificialmente aquecido do seu escritório, Alex Gilbey sentiu um calafrio. Céu cinzento, calhas cinzentas, concreto cinzento. A geada que cobria os telhados no outro lado da rua continuava praticamente intacta. Ou eles possuíam um excelente isolamento, ou a temperatura não subira nada desde a véspera naquele gélido dezembro. Olhou para baixo, para a Dundas Street. A fumaça dos canos de descarga pairava no ar como fantasmas natalinos no tráfego, o que tornava as vias para o centro da cidade ainda mais congestionadas do que o normal. Moradores dos arredores da cidade estavam lá para fazer as compras de Natal, sem perceber que encontrar uma vaga para estacionar o carro no centro de Edimburgo às vésperas das festas de fim de ano era mais complicado do que encontrar o presente ideal para uma adolescente caprichosa.
Alex contemplou novamente o céu. Cinzento e carregado, estava anunciando neve com a mesma sutileza de um comercial de showroom de móveis na tevê. Ficou ainda mais deprimido. Até então, estava indo bem naquele ano. Mas se começasse a nevar, toda a sua determinação haveria de se esvair e ele seria presa fácil para a sua tradicional depressão de fim de ano. De todos os dias do ano, aquele era justamente o único que ele podia passar sem neve. Há exatamente vinte e cinco anos, encontrara algo que havia transformado todos os Natais subsequentes em um turbilhão de memórias ruins. Nenhuma dose de boa vontade de qualquer homem no mundo, ou qualquer mulher, poderia apagar o aniversário da morte de Rosie Duff do calendário mental de Alex.
Devia ser, pensou ele, o único fabricante de cartões do mundo que detestava a época mais lucrativa do ano. Nos andares de baixo, a equipe de televendas deveria estar recebendo pedidos de última hora do estoque de reabastecimento dos atacadistas e aproveitando a oportunidade para aumentar os pedidos para o Dia dos Namorados, o Dia das Mães e a Páscoa. E no depósito, os funcionários deveriam estar começando a relaxar, cientes de que o pior da correria já havia passado, aproveitando para avaliar os sucessos e fracassos das últimas semanas. E no departamento de contabilidade, deveriam estar rindo à toa. Os lucros daquele ano estavam pelo menos oito por cento maiores do que no ano anterior, em parte graças a uma nova série de cartões que o próprio Alex desenvolvera. Há mais de dez anos não precisava ganhar a vida com canetas e tintas, mas mesmo assim Alex gostava de prestar uma contribuição ocasional à gama de cartões da empresa. Nada como uma atitude assim para manter o resto dos funcionários estimulados.
Mas ele criara os cartões em abril, quando a sombra do passado não pairava sobre ele. Era impressionante o quão sazonal era aquele mal-estar. Assim que as decorações de Natal eram armazenadas novamente no Dia de Reis, o fantasma de Rosie Duff era relegado ao esquecimento, deixando a sua mente clara e afastando as nuvens da memória. Estava pronto para voltar a sentir prazer na vida. Mas no final do ano, não havia nada a fazer, a não ser suportar.
Tentara diversas estratégias ao longo dos anos para lidar com aquela situação. No segundo aniversário da morte de Rosie, bebeu até não poder mais. Até hoje não sabia quem o levara de volta para a sua cama em Glasgow, nem em que bar terminara a sua bebedeira. Mas tudo o que ele conseguiu foi garantir que o sorriso irônico e o riso fácil de Rosie estrelassem os seus sonhos suados e paranoicos naquela noite, em um louco e irrefreável caleidoscópio do qual ele não conseguia escapar.
No ano seguinte, resolveu visitar o túmulo da moça no cemitério em St. Andrews, nos limites da cidade. Esperou escurecer para que ninguém visse o seu rosto. Estacionou o seu Escort anônimo e caindo aos pedaços o mais próximo possível da entrada, enterrou um boné de tweed na cabeça, quase cobrindo os olhos, suspendeu a gola do casaco e adentrou, sorrateiro, na escuridão úmida do cemitério. O problema é que não sabia exatamente onde Rosie estava enterrada. Só havia visto as fotos do funeral que o jornal local exibira na primeira página e tudo o que haviam lhe dito uma vez é que a sepultura ficava nos fundos do cemitério.
Prosseguiu de cabeça baixa entre as sepulturas, sentindo-se um maluco completo, desejando ter trazido uma lanterna e constatando em seguida que não havia melhor maneira de chamar a atenção do que carregando uma lanterna. Os postes na rua ofereciam alguma iluminação e ela já era suficiente para que pudesse ler a maior parte das inscrições. Alex já estava quase desistindo quando a encontrou, em um canto escondido, encostada num muro.
Era uma sepultura simples, de granito preto. As letras foram gravadas em ouro e ainda pareciam tão novas quanto no dia em que foram talhadas. Primeiro, Alex se refugiou em seu papel de artista, lidando com o que tinha diante de si como um objeto puramente estético. Nesse sentido, era satisfatório. Mas ele não pôde ignorar por muito tempo a importância das palavras que estava tentando contemplar somente como letras em uma pedra. "Rosemary Margaret Duff. Nascida em 25 de maio de 1959. Cruelmente arrebatada de nós em 16 de dezembro de 1978. Querida filha e irmã, perdida para sempre. Que ela descanse em paz." Alex lembrou que a polícia havia se dividido para pagar pela sepultura. Devem ter conseguido um bom dinheiro para terem encomendado uma inscrição tão longa, pensou ele, ainda tentando evitar se relacionar com o que aquelas palavras significavam.
Outro detalhe impossível de ignorar era a variedade de homenagens florais cuidadosamente depositadas ao pé da sepultura. Devia haver uma dúzia de ramalhetes e buquês, diversos depositados nos vasos de chão que os floristas vendiam exatamente para aquela finalidade. O excesso repousava sobre a grama, um poderoso lembrete de que Rosie ainda morava em vários corações.
Alex desabotoou o casaco e apanhou a rosa branca que trouxera consigo. Agachou-se para colocá-la solta entre as outras quando quase fez xixi nas calças. A mão sobre o seu ombro surgira do nada. A grama molhada absorvera os passos e ele estava absorto demais em seus pensamentos para que os seus instintos animais o prevenissem.
Alex girou nos calcanhares, afastando-se da mão, e acabou escorregando na grama e caindo estatelado de costas, em uma repetição nauseante daquela noite de dezembro, três anos antes. Encolhendo-se, ficou à espera do chute ou do soco que a pessoa que o perturbara haveria de desferir ao reconhecê-lo. Estava completamente despreparado para ouvir uma voz familiar, francamente preocupada, chamando-o por um apelido que só os amigos mais íntimos conheciam.
- Gilly, você está bem? - Sigmund Malkiewicz estendeu a mão para ajudar Alex a se levantar. - Não queria te assustar.
- Credo, Ziggy, o que mais você esperava, chegando assim de fininho em um cemitério todo escuro? - queixou-se Alex, levantando-se sozinho, com muito custo.
- Foi mal. - Ziggy fez um gesto na direção da rosa. - Bom gosto. Nunca consegui saber ao certo o que seria mais adequado.
- Você já esteve aqui antes? - Alex se aprumou, tirando a sujeira da roupa, e virou-se para o seu amigo mais antigo. Ziggy parecia fantasmagórico sob aquela luz fraca e o seu rosto pálido parecia emanar um brilho.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Só nos aniversários de morte. Mas nunca vi você por aqui antes.
Alex deu de ombros.
- Primeira vez. Estou numa de fazer qualquer negócio para tentar tirar isso da minha cabeça, sabe?
- Acho que eu nunca vou conseguir.
- Nem eu. - Sem trocar mais nenhuma palavra, eles deram as costas para a sepultura e dirigiram-se até a entrada principal, cada qual absorto em suas próprias lembranças ruins. Em um acordo silencioso, desde que deixaram a universidade, evitavam tocar no assunto que mudara as suas vidas tão profundamente. A sombra continuava lá, mas eles não mais reconheciam a sua presença. Talvez a decisão de evitar essas conversas tivesse sido justamente o que mantivera tão sólida a amizade que ainda os unia. Não conseguiam mais se ver com tanta frequência, pois Ziggy estava imerso na rotina infernal de médico residente em Edimburgo, mas quando conseguiam se encontrar para uma saída à noite, a velha intimidade continuava firme e forte.
Quando alcançaram o portão do cemitério, Ziggy parou e disse:
- Quer tomar um chope?
Alex balançou a cabeça.
- Se eu começar, não paro mais. E aqui não é o melhor lugar para enchermos a cara. Ainda tem muita gente por aqui que acha que somos assassinos que conseguiram se safar. Melhor não, vou voltar para Glasgow.
Ziggy o puxou para si, em um abraço apertado.
- Nos vemos no Ano-Novo então, né? Na Town Square, à meia-noite.
- Hum-hum. Eu e Lynn vamos estar lá.
Ziggy assentiu com a cabeça, compreendendo tudo o que aquelas poucas palavras comportavam. Levantou a mão em um cumprimento debochado e se afastou na escuridão envolvente.
Desde então, Alex nunca mais voltara ao cemitério. Não ajudara em nada e nem era daquele jeito que ele queria encontrar com Ziggy. Era frio demais, carregado demais com tudo o que eles queriam evitar.
Pelo menos, não precisava sofrer em silêncio, como imaginava que os outros sofriam. Desde o início, Lynn soubera tudo sobre a morte de Rosie Duff. Estavam juntos desde aquele inverno. Às vezes se perguntava se aquela havia sido a única coisa que tornara o amor dele por ela possível, o fato de ela estar a par do seu maior segredo.
Era difícil não perceber que as circunstâncias daquela noite haviam, de algum modo, usurpado a sua possibilidade de um futuro diferente. Aquele era o seu calvário particular, uma mancha na memória que o deixara sentindo-se permanentemente maculado. Ninguém ia querer fazer amizade com ele se soubesse do seu passado, das suspeitas que muitos ainda nutriam a seu respeito. Mas Lynn sabia de tudo e, ainda assim, o amava.
Demonstrara aquele amor de várias maneiras ao longo dos anos. E, em breve, daria a Alex a prova definitiva. Em dois meses, com a graça de Deus, daria à luz o filho que eles desejavam há muito tempo. Ambos quiseram esperar alcançar uma certa estabilidade antes de iniciar uma família, mas já começavam a achar que haviam esperado demais. Foram três anos de tentativas e já estavam até mesmo com uma consulta marcada na clínica de fertilidade quando Lynn engravidou de repente. Sentiam que, em vinte e cinco anos, aquele era o primeiro recomeço de verdade para eles.
Alex desviou o olhar da janela. A sua vida estava prestes a mudar. E talvez, se ele se empenhasse de verdade, conseguisse se desvencilhar do passado. E ia começar naquela noite. Reservara uma mesa no restaurante no terraço do Museu da Escócia. Levaria Lynn para um jantar especial, em vez de ficar em casa, remoendo as mágoas.
Quando ia pegar o telefone, ele começou a tocar. Sobressaltado, Alex o contemplou, abobado, alguns segundos antes de atender.
- Alô.
Demorou alguns instantes para ligar a voz do outro lado à pessoa. Não era um estranho, mas também não era alguém que esperasse escutar em uma tarde qualquer, muito menos naquela tarde em particular.
- Alex, sou eu, Paul. Paul Martin.
Descobrir quem estava falando estava ainda mais difícil, graças à flagrante agitação do sujeito.
Paul. Paul do Ziggy. Um cientista molecular, seja lá o que fosse isso, com o porte de um jogador de futebol americano. O homem que fazia os olhos de Ziggy brilharem nos últimos dez anos.
- Oi, Paul, que surpresa.
- Alex, não sei como te dizer isso... - A voz dele falhou. - Tenho más notícias.
- Ziggy?
- Ele morreu, Alex. Ziggy morreu.
Alex quase sacudiu o fone, como se algo mecânico tivesse feito com que ele não entendesse direito o que Paul acabara de dizer.
- Não - disse Alex. - Não pode ser, deve ter sido algum engano.
- Quem me dera - desabafou Paul. - Não tem engano nenhum, Alex. A casa pegou fogo ontem à noite. Não sobrou nada. O meu Ziggy... ele está morto.
Alex olhava fixamente para a parede, mas não via nada diante dos seus olhos. Ziggy tocava violão, repetia uma voz absurda na sua cabeça.
Não mais.
21
Apesar de ter passado o dia inteiro escrevendo a data em diversos papéis, ao lado das suas iniciais, James Lawson conseguira esquecer completamente o seu significado. Até se deparar com um pedido do detetive Parhatka para autorização de teste de DNA em um possível suspeito da sua investigação. A combinação da data com a equipe da revisão dos casos não solucionados trouxe a lembrança à tona. Não havia como fugir dela. Aquele era o vigésimo quinto aniversário de morte de Rosie Duff.
Tentou imaginar como Graham Macfadyen estaria lidando com aquilo e a lembrança do encontro desconfortável que tivera com ele fez Lawson agitar-se na cadeira. No início, ficou incrédulo. Ninguém jamais havia mencionado uma criança ao longo de toda a investigação sobre a morte de Rosie. Nem os amigos nem a família haviam feito uma referência sequer a este segredo. Mas Macfadyen estava irredutível.
- Não é possível que vocês não soubessem que ela teve um filho - insistiu ele. - O legista com certeza percebeu isso na autópsia, não é?
Lawson instantaneamente lembrou-se da figura desengonçada do Dr. Kenneth Fraser. Ele já estava praticamente aposentado na época do assassinato e cheirava mais a uísque do que a formol. A maioria dos trabalhos que fizera em sua longa carreira havia sido bem simples; tinha pouquíssima experiência com assassinatos e Lawson naquele momento se lembrou de Barney Maclennan questionando em voz alta se não teria sido melhor convocar alguém com mais experiência no assunto.
- Isso nunca foi mencionado - respondeu ele, evitando fazer mais comentários.
- É inacreditável - disse Macfadyen.
- Talvez o ferimento tenha camuflado a evidência.
- É, pode até ser - disse Macfadyen duvidoso. - Eu achava que vocês sabiam a meu respeito, mas não haviam conseguido me encontrar. Eu sempre soube que era adotado - disse ele. - Mas, em consideração aos meus pais, achei melhor só pesquisar o paradeiro da minha mãe verdadeira depois da morte deles. O meu pai morreu há três anos. E a minha mãe... bem, minha mãe está no asilo. Ela tem Alzheimer. Isso não vai fazer a menor diferença para ela agora, é como se estivesse morta. Então, há alguns meses, comecei a fazer as minhas investigações. - Ele saiu do quarto e voltou, em questão de segundos, com uma pasta de papelão azul nas mãos. - Aqui está - disse ele, entregando a pasta para Lawson.
O policial sentia como se tivesse acabado de receber um galão de nitroglicerina nas mãos. Não conseguia compreender a leve sensação de desagrado que se apoderava dele, mas isso não impediu que abrisse a pasta. A papelada lá dentro estava organizada em ordem cronológica. Em primeiro lugar, uma carta de Macfadyen, solicitando informações. Lawson correu os olhos por ela, absorvendo os pontos principais da correspondência. Ao chegar na certidão de nascimento, fez uma pausa. Lá, no espaço reservado para o nome da mãe, uma informação familiar saltava aos olhos. Rosemary Margaret Duff. Data de nascimento, 25 de maio de 1959. Profissão: desempregada. No espaço onde deveria estar escrito o nome do pai, a palavra "desconhecido" despontava, como uma letra escarlate no vestido de uma puritana. Mas o endereço era desconhecido.
Lawson levantou o rosto. Macfadyen estava crispando as mãos nos braços da cadeira.
- Abrigo Livingstone, em Saline? - perguntou Lawson.
- Está tudo aí. É um abrigo da igreja, para onde as moças grávidas eram mandadas até terem os seus filhos. Atualmente é um orfanato, mas naquela época era um lugar aonde as mulheres iam para esconder a sua vergonha dos vizinhos. Consegui localizar a senhora que tomava conta do lugar na época. Uma tal de Ina Dryburgh. Ela deve estar com uns setenta anos agora, mas ainda está bem lúcida. Fiquei surpreso com a sua boa vontade para conversar comigo. Pensei que fosse ser mais difícil. Mas ela disse que já havia passado muito tempo, que ninguém ia se incomodar. Os mortos que enterrem os seus mortos, parecia ser a filosofia dela.
- E o que ela te contou? - perguntou Lawson, inclinando-se para a frente em seu assento, esperando ansiosamente que Macfadyen revelasse de uma vez o segredo que conseguira, por milagre, ficar de fora de uma investigação minuciosa de homicídio.
O rapaz relaxou um pouco ao perceber que Lawson o estava levando a sério.
- Rosie engravidou quando tinha quinze anos. Tomou coragem e contou à mãe, quando já estava com três meses, antes que alguém percebesse. A mãe agiu depressa. Foi conversar com o padre e ele a colocou em contato com o Abrigo Livingstone. Na manhã seguinte a Sra. Duff pegou um ônibus e foi ver a Sra. Dryburgh. Ela concordou em aceitar Rosie no abrigo e sugeriu à Sra. Duff que dissesse que Rosie tinha ido visitar um parente que acabara de passar por uma cirurgia e precisava de ajuda em casa para cuidar dos filhos. Rosie deixou Strathkinness na mesma semana e foi para Saline. Passou o resto da gravidez sob os cuidados da Sra. Dryburgh. - Macfadyen respirou fundo.
"Ela nunca chegou a me ter nos braços. Nunca chegou sequer a me ver. Tinha só um retrato e olhe lá. Naquela época, as coisas eram bem diferentes. Eu fui levado para os meus pais no mesmo dia em que nasci. E, naquela mesma semana, Rosie voltou para Strathkinness, como se nada tivesse acontecido. A Sra. Dryburgh disse que, depois disso, ela só voltou a ouvir o nome de Rosie no noticiário da tevê. - Ele exalou o ar, de maneira curta e pungente.
"E foi então que ela me contou que a minha mãe já estava morta há vinte e cinco anos. Assassinada. E que ninguém havia sido preso pelo crime. Eu fiquei sem saber o que fazer. Pensei em procurar o resto da minha família. Consegui descobrir que os meus avós já morreram também. Mas, ao que parece, eu ainda tenho dois tios.
- Você chegou a entrar em contato com eles?
- Não sabia se devia fazer isso. Aí eu vi aquela matéria no jornal, sobre a revisão dos casos não solucionados, e resolvi falar com o senhor primeiro.
Lawson olhou para o chão.
- Olha, a não ser que eles tenham mudado muito desde a época em que eu os conheci, posso te dizer com toda certeza que é melhor deixar do jeito que está. - Sentiu os olhos de Macfadyen sobre ele e levantou a cabeça. - Brian e Colin sempre foram superprotetores com Rosie. E sempre estavam prontos para briga também. Tenho a impressão de que eles vão interpretar o que você tem a dizer como uma mancha na reputação dela. Não acho que seria uma reunião familiar particularmente feliz.
- Eu pensei que, sei lá... talvez eles pudessem me ver como uma parte de Rosie que sobreviveu, sabe?
- Eu não contaria com isso - disse Lawson, firme.
Macfadyen, teimoso, ainda não estava convencido.
- Mas e se esta informação ajudasse na revisão do caso? Eles encarariam de outra maneira então, o senhor não acha? Com certeza eles querem ver o assassino finalmente na cadeia, não é?
Lawson deu de ombros.
- Para ser sincero, eu não vejo em que isso pode nos ajudar. Você nasceu praticamente quatro anos antes da sua mãe morrer.
- Mas e se ela ainda estivesse se encontrando com o meu pai? E se isso tivesse alguma coisa a ver com o crime?
- Não há nenhuma evidência de um relacionamento longo no passado de Rosie. Ela teve vários namorados no ano anterior à sua morte, mas nenhum relacionamento sério. Acho que não sobra muito tempo para encaixarmos mais alguém.
- Sei, mas e se ele foi embora e depois reapareceu? Eu li nas matérias de jornal sobre o caso que havia a possibilidade de ela estar saindo com alguém, mas ninguém sabia quem era o sujeito. Talvez o meu pai tivesse voltado e ela não quisesse que os pais ficassem sabendo que ela estava se encontrando com o cara que a engravidou. - Havia urgência na voz de Macfadyen.
- É uma hipótese, concordo. Mas se ninguém sabia quem era o pai da criança, não nos leva a lugar algum.
- Mas naquela época vocês não sabiam que ela tinha tido um filho. Aposto que nunca procuraram saber com quem ela se relacionara quatro anos antes do crime. Talvez os irmãos dela soubessem quem era o meu pai.
Lawson deixou escapar um suspiro.
- Eu não vou lhe dar esperanças falsas, Sr. Macfadyen. Em primeiro lugar, Brian e Colin Duff estavam querendo desesperadamente que nós encontrássemos o assassino de Rosie. - Lawson foi enumerando os motivos em seus dedos. - Se o pai do filho de Rosie estivesse por perto, ou se tivesse reaparecido, pode apostar que eles seriam os primeiros a bater na nossa porta, aos berros, exigindo que o colocássemos na cadeia. E se nós não colocássemos, é bem provável que eles mesmos quebrassem as pernas do sujeito. No mínimo.
Macfadyen apertou os lábios.
- Então quer dizer que o senhor não vai considerar essa linha de investigação?
- Se for possível, gostaria de levar esta pasta comigo para fazer uma cópia para a detetive encarregada do caso da sua mãe. Não custa nada incluir na nossa investigação, pode ser até mesmo útil.
O brilho do triunfo acendeu brevemente nos olhos de Macfadyen, como se tivesse alcançado uma grande vitória.
- Então o senhor acredita no que eu estou dizendo? Que Rosie era a minha mãe?
- É o que parece. Embora, obviamente, tenhamos que fazer as nossas próprias investigações a respeito.
- Então vão precisar de uma amostra do meu sangue?
Lawson franziu a testa.
- Amostra de sangue?
Macfadyen ficou de pé, em um acesso súbito de energia.
- Espere um instante - disse ele, saindo da sala novamente. Quando voltou, trazia consigo uma grossa brochura, que abriu na linha da lombada. - Eu li tudo o que pude sobre o assassinato da minha mãe - disse ele, empurrando o livro para Lawson.
Lawson passou os olhos na capa. Crimes sem Punição: Os Maiores Casos Não Resolvidos do Século XX. Rosie merecera cinco páginas. Lawson folheou o livro, impressionado ao constatar que os autores não haviam praticamente passado nenhuma informação errada. O livro trouxe de volta, em uma lembrança desconfortavelmente nítida, o terrível momento em que ele se viu diante do corpo de Rosie sobre a neve.
- Continuo não entendendo - disse ele.
- Aí diz que havia vestígios de sêmen no corpo e nas roupas. E que, apesar dos métodos primitivos de análise forense da época, vocês conseguiram determinar que três dos estudantes que a encontraram seriam possíveis candidatos a terem depositado o sêmen. Mas com o que pode ser feito agora, é claro que vocês podem comparar o DNA do sêmen com o meu DNA, não é? É possível descobrir se ele pertencia ao meu pai.
Lawson estava começando a se sentir como Alice através do espelho. Era absolutamente compreensível que Macfadyen estivesse ansioso para descobrir alguma coisa sobre o pai. Mas, no momento em que essa obsessão o levava a preferir que o pai tivesse cometido um crime a jamais conseguir encontrá-lo, a coisa começava a ficar doentia.
- Se fôssemos fazer algum tipo de comparação, certamente não seria com você, Graham - disse ele, com o tom de voz mais gentil que pôde. - Seria com os quatro rapazes mencionados aí no seu livro. Os tais que encontraram Rosie.
- O senhor está dizendo "se" - atacou Macfadyen.
- Se?
- O senhor disse "Se fôssemos fazer algum tipo de comparação". Não "quando". "Se".
Livro errado. Aquele era, definitivamente, Alice no País das Maravilhas. Lawson tinha a sensação de que caíra de cabeça em uma toca profunda e escura, sem ter a garantia do chão firme sob os seus pés. As dores de algumas pessoas estavam relacionadas ao clima e suas mudanças. Já o nervo ciático de Lawson era um barômetro preciso de estresse.
- Isso é extremamente constrangedor para todos nós, Sr. Macfadyen - disse ele, escondendo-se por trás da linha de batalha da formalidade. - Em algum momento nos últimos vinte e cinco anos, as provas ligadas ao assassinato da sua mãe se extraviaram.
O rosto de Macfadyen se contorceu em um esgar de incredulidade feroz.
- Como assim, se extraviaram?
- Exatamente isso que o senhor ouviu. As provas foram trocadas de lugar três vezes. Primeiro, quando a delegacia em St. Andrews mudou para outro prédio. Depois, foram encaminhadas para o estoque central na nossa sede. E, recentemente, nós as levamos para as novas instalações de armazenamento. E, em algum momento, os sacos com as roupas da sua mãe se extraviaram. Quando fomos procurá-los, não estavam na caixa onde deveriam estar.
Macfadyen parecia estar prestes a bater em alguém.
- Como foi que isso pôde acontecer?
- A única explicação que eu posso dar é erro humano. - Lawson estava constrangido diante do olhar de desprezo furioso do rapaz. - Não somos infalíveis.
Macfadyen balançou a cabeça.
- Não é a única explicação. Alguém pode ter pego de propósito.
- Por que alguém faria isso?
- Bom, isso é óbvio. O assassino não ia querer que ninguém encontrasse isso agora, ia? Todo mundo sabe que hoje em dia existe o teste de DNA. Assim que vocês anunciaram a revisão do crime, ele soube que não tinha muito tempo, que precisava agir o quanto antes.
- As provas estavam trancadas nas instalações de armazenamento da polícia. E não recebemos nenhuma queixa de arrombamento.
Macfadyen bufou.
- Não seria preciso arrombar. Bastava oferecer dinheiro à pessoa certa. Todo mundo tem o seu preço, até mesmo os policiais. A gente mal consegue abrir um jornal ou assistir televisão sem ver provas concretas da corrupção na polícia. Talvez o senhor devesse apurar qual dos seus oficiais enriqueceu de repente.
Lawson sentia-se desconfortável. A persona sensata de Macfadyen evaporara, revelando um traço de paranoia, até então invisível.
- Essa é uma acusação muito séria - disse ele. - E não há um fundamento sequer para embasá-la. Acredite, seja lá o que tenha acontecido com as provas neste caso, aconteceu porque errar é humano.
Macfadyen lançou um olhar feroz e revoltado.
- Então é isso? Vocês vão simplesmente encobrir a tramoia?
Lawson tentou exibir uma expressão conciliatória em seu rosto.
- Não há tramoia nenhuma para ser encoberta, Sr. Macfadyen. Posso garantir ao senhor que a oficial encarregada do caso está empreendendo uma busca em nossas instalações de armazenamento. É possível que ela ainda encontre as provas.
- Mas não é provável - disse ele, pesadamente.
- Não - concordou Lawson. - Não é provável.
Alguns dias se passaram antes que James Lawson tivesse a chance de voltar a sua atenção para o penoso encontro com o filho ilegítimo de Rosie Duff. Conversou rapidamente com Karen Pirie, mas ela estava desanimadamente pessimista em relação à possibilidade de encontrar alguma coisa no depósito de provas.
- Agulha no palheiro, senhor - dissera ela. - Já encontrei três sacos com provas arquivadas no lugar errado. Se as pessoas ficassem sabendo disso...
- Vamos garantir que nunca fiquem - rebatera Lawson, severo.
Karen olhara para ele, horrorizada.
- Claro, meu Deus, pode deixar.
Lawson tinha a esperança de que a trapalhada com as provas no caso Duff pudesse ser enterrada. Mas essa esperança fora por água abaixo graças ao seu próprio descuido com Macfadyen. E agora ele seria obrigado a confessar tudo novamente. Se alguém descobrisse que ele escondera essa informação específica da família, o seu nome ia ser coberto de lama nas manchetes. E isso não seria bom para ninguém.
Strathkinness não mudara muito em vinte e cinco anos. Lawson percebia isso enquanto estacionava o seu carro em frente a Caberfeidh Cottage. Havia algumas casas novas, mas no geral a vila resistira à invasão da construção civil. O que era de fato surpreendente, pensou. Com aquela paisagem, era uma locação natural para um hotel-fazenda grã-fino voltado para a indústria do golfe. Por mais que os seus moradores tivessem mudado, Strathkinness ainda parecia uma vila operária.
Lawson empurrou o portão, observando que o jardim continuava tão bem conservado quanto na época em que Archie Duff ainda estava vivo. Talvez Brian estivesse contrariando os piores prognósticos e se transformando em seu pai. Lawson tocou a campainha e esperou.
O homem que abriu a porta estava em ótima forma. Lawson sabia que ele devia estar com uns quarenta e tantos anos, mas Brian Duff parecia ter uns dez anos a menos. Seu rosto era corado, saudável, típico daqueles que gostam de uma vida ao ar livre. O cabelo bem curto não dava sinais de calvície e a sua camiseta revelava um peito largo, com o mínimo revestimento de gordura sobre o seu abdômen trabalhado. Lawson sentiu-se um velho. Brian olhou para ele de cima a baixo e arrematou a sua inspeção com um olhar de desdém.
- Ah, é você - disse ele.
- Ocultar informações importantes pode ser interpretado como obstrução da lei. E isso é crime. - Lawson não ia deixar que Brian Duff o intimidasse.
- Nem sei do que você está falando. Mas estou andando na linha há mais de vinte anos. Você não tem o direito de vir bater na minha porta, esfregando acusações no meu nariz.
- Estou me referindo há mais de vinte anos, Brian. Estou falando sobre o assassinato da sua irmã.
Brian Duff continuou impassível.
- É, eu ouvi dizer que você estava tentando sair em uma caçada implacável, colocando os seus soldadinhos para resolver os seus velhos fracassos.
- Não tenho nada a ver com o fracasso dos outros. Eu era um mero guarda naquela época. Você vai me convidar para entrar ou a gente vai continuar a conversa aqui, para todo mundo ver?
Duff deu de ombros.
- Não tenho nada a esconder. Pode entrar, se quiser.
A casa havia sido reformada por dentro. Impecavelmente arrumada e em tons pastéis, a sala de estar exibia a assinatura de alguém com um dom para decoração.
- Ainda não conheci a sua esposa - comentou Lawson, seguindo Brian até uma cozinha moderna, duplicada de tamanho devido a um ambiente anexado, tipo estufa.
- E vai continuar sem conhecer. Ela só vai chegar daqui a uma hora. - Brian abriu o congelador e tirou uma lata de cerveja. Abriu a lata e encostou-se ao fogão. - Então, qual é o problema agora? Que história é essa de esconder informações? - A sua atenção estava ostensivamente focada na lata de cerveja, mas Lawson sentiu que Brian estava alerta como um gato em um jardim desconhecido.
- Nenhum de vocês mencionou o filho de Rosie - disse Lawson.
A afirmação sem rodeios não provocou nenhuma reação visível em Brian.
- Deve ser porque isso não tem nada a ver com o crime - respondeu Duff, flexionando os ombros, inquieto.
- Você não acha que cabia a nós decidir isso?
- Não. Era um assunto particular. E tinha se passado anos antes. O sujeito com quem ela saía na época nem morava mais aqui. E ninguém, além da família, sabia dessa história do bebê. Como é que pode ter alguma coisa a ver com o assassinato? A gente também não queria o nome de Rosie na lama, que é exatamente para onde ele seria arrastado se você e a sua turma tivessem ficado sabendo disso. Vocês iam transformar a minha irmã em uma vagabunda, que com certeza merecia o que aconteceu com ela. Iam fazer qualquer coisa para tirar a atenção da incompetência de vocês para resolver o caso.
- Isso não é verdade, Brian.
- É, é verdade sim. A informação teria vazado para os jornais. E eles pintariam Rosie como a piranha da cidade. Ela não era assim, e você sabe muito bem disso.
Lawson concordou, franzindo o rosto em uma careta.
- Eu sei que não. Mas vocês deviam ter contado. Talvez tivesse ajudado em alguma coisa na investigação.
- Ia ser uma busca inútil. - Brian tomou um longo gole de cerveja. - Como foi que você descobriu isso depois de tanto tempo?
- O filho de Rosie tem mais consciência social do que você. Ele foi me procurar quando leu nos jornais que estávamos fazendo uma revisão dos casos não solucionados.
Desta vez, houve uma reação. Brian, que estava levando a lata de cerveja à boca, interrompeu o gesto imediatamente. Colocou a lata sobre a bancada da pia.
- Meu Deus do céu - blasfemou ele. - Como foi que isso aconteceu?
- Ele conseguiu localizar a senhora que dirigia o abrigo onde Rosie teve o bebê. Ela lhe contou sobre o assassinato. E agora ele quer encontrar o responsável pela morte da mãe, tanto quanto vocês.
Brian balançou a cabeça.
- Isso eu duvido muito. Ele sabe onde eu e Colin moramos?
- Ele sabe que você mora aqui. E sabe que Colin tem uma casa em Kingsbarns, embora passe a maior parte do tempo no Golfo. Ele disse que conseguiu rastrear vocês dois através de registros públicos. O que deve ser verdade mesmo. Ele não tem motivos para mentir. Eu disse que achava que você não ia gostar muito de conhecê-lo.
- Pelo menos nisso você acertou. Talvez fosse até diferente, se vocês tivessem colocado o assassino dela na cadeia. Mas eu, pelo menos, não quero ficar me lembrando dessa parte da vida de Rosie. - Ele esfregou costas da mão contra os olhos. - E aí? Vocês vão finalmente prender aqueles estudantes de merda?
Lawson trocou de posição, jogando o peso para a outra perna.
- Não temos certeza de que foram eles, Brian. Eu sempre apostei em alguém de fora.
- Não me vem com essa! Você sabe que eles eram suspeitos. Vocês tem que investigá-los novamente.
- Estamos fazendo o melhor que podemos, Brian. Mas a coisa não parece muito promissora.
- Mas agora tem o DNA. Vai dizer que isso não faz a maior diferença? Vocês acharam sêmen nas roupas dela.
Lawson desviou o olhar. Um ímã de geladeira feito a partir de uma fotografia de Rosie chamou a sua atenção. O sorriso dela, brilhando através dos anos, o atingiu em cheio em uma pontada de culpa, dolorida e profunda.
- Aí é que está o problema - disse ele, temendo o que sabia estar prestes a acontecer.
- Que problema?
- As provas se extraviaram.
Brian ergueu-se rígido e retesado, apoiando-se na ponta dos pés.
- Vocês perderam as provas? - Apesar de não vê-lo há muito tempo, Lawson reconheceu naquele momento, queimando no olhar de Brian, a mesma fúria de antigamente.
- Eu não disse que nós perdemos. Disse que se extraviaram. Não estão onde deveriam estar. Não estamos medindo esforços para encontrar e eu estou confiante de que vamos conseguir. Mas, no momento, estamos de pés e mãos atados.
Brian fechou os punhos.
- Então quer dizer que aqueles quatro desgraçados se safaram novamente?
Um mês depois, apesar de ter tirado férias e se dedicado à pescaria, tentando relaxar, Lawson ainda não conseguia esquecer Brian, e a sua fúria ainda reverberava no seu peito. Não teve mais notícias do irmão de Rosie. Mas o filho dela passou a ligar regularmente. E, estando ciente da ira justificada de ambos, Lawson redobrou a sua consciência de que necessitava de pelo menos uma solução para aquele caso. O aniversário da morte de Rosie, de alguma forma, tornou aquela necessidade ainda mais urgente. Suspirando, levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se até a sala onde sua equipe trabalhava nos casos não solucionados.
22
Alex estava parado diante da sua casa, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não conseguira sequer se lembrar do caminho que fizera até lá de Edimburgo, passando pela Forth Bridge e North Queensferry. Aturdido, entrou com o carro e estacionou perto da calçada, deixando bastante espaço para Lynn colocar o carro dela mais perto da casa.
A casa revestida de pedra ficava em um penhasco, perto das vigas de sustentação da ponte. Com aquela proximidade do mar, a luta da neve contra o ar salgado estava fadada ao fracasso. Era preciso tomar cuidado com a neve derretida no chão e Alex quase perdeu o equilíbrio várias vezes, caminhando do carro até a porta de casa. Depois de limpar os pés e fechar a porta, fugindo do mau tempo, a primeira coisa que ele fez foi ligar para o celular de Lynn, para deixar uma mensagem pedindo que ela tomasse cuidado quando chegasse.
Olhou de soslaio para o relógio de pé, enquanto cruzava o corredor, acendendo as luzes conforme passava por elas. Ele raramente chegava em casa tão cedo em um dia de semana no inverno, quando ainda era tecnicamente dia, mas o céu estava tão carregado que parecia ser mais tarde do que realmente era. Lynn ainda demoraria pelo menos uma hora para chegar em casa. Ele precisava de companhia, mas teria de se arranjar com a que tem dentro de uma garrafa até a volta da sua mulher.
Na sala de jantar, Alex se serviu um conhaque. Não muito, alertou a si mesmo. Ficar bêbado só ia piorar as coisas. Pegou o copo e seguiu pela casa, até a ampla estufa que oferecia uma vista panorâmica do estuário de Forth, e ficou sentado no escuro, sem prestar atenção nas luzes dos navios que piscavam sobre a água. Não sabia por onde começar a lidar com as notícias daquela tarde.
Ninguém chega aos quarenta e seis anos sem ter perdido alguém na vida. Mas Alex tivera mais sorte do que a maioria. É verdade que, quando tinha lá os seus vinte e poucos anos, presenciara o enterro dos quatro avós. Mas isso era o que naturalmente se espera que vá acontecer a pessoas muito idosas e, de alguma forma, todas as quatro mortes foram referidas pelos adultos como "um merecido descanso". Os seus pais e os seus sogros ainda estavam vivos. Assim como, até aquele dia, todos os seus amigos mais íntimos. O mais próximo que chegara da morte fora uns dois anos antes, quando o seu principal tipógrafo morrera em um acidente de carro. Alex ficara triste com a morte de um homem de quem ele gostava como pessoa e em quem confiava como profissional, mas não dava para fingir que ficara devastado com aquela perda.
Mas agora, tudo era diferente. Ziggy fizera parte da sua vida por mais de trinta anos. Compartilharam todos os ritos de passagem; um funcionava como a pedra de toque das memórias do outro. Sem Ziggy, sentia-se apartado da sua própria história. Alex recordou-se do seu último encontro com o amigo. Ele e Lynn haviam passado duas semanas na Califórnia, no último verão. Ziggy e Paul juntaram-se a eles por três dias, em uma caminhada em Yosemite. O céu exibia um azul brilhante e a luz do sol destacava o contorno das extraordinárias montanhas, cada detalhe claramente realçado, como as linhas de uma gravura. Na última noite dos quatro juntos, eles foram de carro até a costa e hospedaram-se em um hotel que ficava em um penhasco, com vista para o Pacífico. Após o jantar, Alex e Ziggy recolheram-se em uma banheira bem quente com seis garrafas de cerveja da cervejaria local e comemoraram o fato de as suas vidas terem dado tão certo. Conversaram sobre a gravidez de Lynn e Alex ficara contente de ver a alegria flagrante de Ziggy.
- Você vai me deixar ser o padrinho, né? - perguntou ele, dando uma leve batida na garrafa de Alex com a sua garrafa de cerveja.
- Acho que não vamos batizar a criança - respondeu Alex. - Mas se os nossos pais encherem muito o saco, é óbvio que vai ser você.
- Vocês não vão se arrepender - disse Ziggy.
E Alex sabia que não teria se arrependido mesmo. Nem por um segundo. Mas isso era algo que jamais aconteceria.
Na manhã seguinte, Ziggy e Paul partiram pela manhã, bem cedo, em sua longa jornada até Seattle. Alex ainda podia vê-los, acenando da varanda sob a luz perolada do amanhecer. Outra coisa que jamais aconteceria novamente.
Qual fora mesmo a última coisa que Ziggy havia gritado da janela do carro antes de partir? Algo sobre Alex ter de satisfazer todos os caprichos de Lynn durante a gravidez, para ir se preparando para ser papai. Não conseguia se lembrar das palavras exatas, nem do que ele gritara em resposta. Mas o fato de suas últimas palavras para Alex terem sido para cuidar de alguém era típico de Ziggy. Porque Ziggy sempre cuidara de todo mundo.
Em todo grupo, sempre existe alguém que acaba sendo o porto seguro dos outros, alguém que fornece um refúgio para que os membros mais fracos possam se fortalecer. Para os Garotos de Kirkcaldy, essa pessoa era Ziggy. Não que ele fosse mandão ou controlador. Ele simplesmente tinha uma aptidão natural para aquele papel e os outros três haviam se beneficiado com a sua habilidade para resolver as coisas. Mesmo em suas vidas adultas, era Ziggy que Alex sempre procurava quando estava precisando de um bom conselho. Quando ele começou a considerar a hipótese de deixar um emprego bem pago para arriscar-se abrindo a sua própria empresa, passaram um final de semana em Nova York juntos, discutindo os prós e os contras e, para ser franco, a confiança que Ziggy demonstrara em seu talento no final das contas pesou mais do que a convicção de Lynn de que ele se sairia bem.
Mais uma coisa que jamais tornaria a acontecer.
- Alex? - A voz da sua mulher interrompeu os seus devaneios. Estava tão desligado que sequer percebera o carro dela estacionando, nem o som dos seus passos. Virou-se na direção da tênue brisa do seu perfume.
- Por que você está aí, sentado no escuro? E por que chegou em casa tão cedo? - Não havia acusação em sua voz, apenas preocupação.
Alex balançou a cabeça. Não queria ter de compartilhar a notícia.
- Tem alguma coisa errada - insistiu Lynn, aproximando-se e sentando-se em uma cadeira ao lado do marido. Pousou a mão no braço dele. - Alex? O que houve?
Ao ouvir a sua inquietação, a anestesia do seu estado de choque dissipou-se, abruptamente. Uma dor lancinante cortou o seu peito, fazendo com que ele perdesse o fôlego por um instante. Os seus olhos encontraram os olhos preocupados de Lynn e se esquivaram. Sem dizer nada, ele esticou a mão e a encostou delicadamente na sua barriga.
E Lynn cobriu a mão de Alex com a sua própria.
- Alex... me conta o que aconteceu.
Alex notou que a sua própria voz lhe parecia estranha, um simulacro falho e embargado da sua articulação normal.
- Ziggy - disse ele, penosamente. - Ziggy morreu.
Lynn abriu a boca. Um esgar de incredulidade tomou conta do seu rosto.
- Ziggy?
Alex pigarreou.
- É - disse ele. - Houve um incêndio na casa, durante a noite.
Lynn estremeceu.
- Não. O Ziggy, não. Foi um engano.
- Não, não foi. Paul me contou. Ele me ligou hoje.
- Como isso pôde acontecer? Ele e Ziggy dormem na mesma cama. Como é que Paul pode estar bem e Ziggy morto? - A voz de Lynn estava alguns decibéis mais alta e a sua incredulidade ecoava pela casa.
- Paul não estava em casa. Estava dando uma palestra como convidado em Stanford. - Alex fechou os olhos, ao imaginar a cena. - Ele voltou pela manhã. Foi do aeroporto direto para casa. E, quando chegou lá, encontrou os bombeiros e os policiais revirando os escombros da casa deles.
Lágrimas silenciosas cintilaram nos cílios de Lynn.
- Isso deve ter sido... ah, meu Deus. Eu não posso suportar!
Alex cruzou os braços contra o peito.
- A gente nunca acha que as pessoas que amamos podem ser tão frágeis. Num minuto estão lá, no outro, não estão mais.
- Eles já têm alguma ideia do que pode ter acontecido?
- Disseram a Paul que ainda é muito cedo para afirmar qualquer coisa. Mas ele me disse que pegaram meio pesado com ele nas perguntas. Ele acha que pode parecer suspeito, que eles estão achando essa história de ele não estar em casa conveniente demais.
- Meu Deus, coitado do Paul. - Os dedos de Lynn mexiam-se agoniados em seu colo. - Perder Ziggy já é um inferno. E ainda ter que aturar a polícia... Coitado, coitado do Paul.
- Ele me pediu para avisar Esquisito e Mondo. - Alex balançou a cabeça. - Ainda não tive coragem.
- Eu ligo pro Mondo - disse Lynn. - Mais tarde. Não corremos o risco de ele ficar sabendo antes, mesmo.
- Não, eu é que vou ter que ligar. Eu disse a Paul...
- Ele é meu irmão. Eu conheço bem a peça. Mas você vai ter que se virar com Esquisito. Acho que eu não vou aguentar ter que ouvir que Jesus me ama agora.
- Eu sei. Mas alguém vai ter que contar a ele. - Alex forçou um sorriso amargo. - Ele provavelmente vai querer fazer um sermão no funeral.
Lynn olhou para ele, em pânico.
- Ah, não. Você não pode deixar isso acontecer.
- Eu sei. - Alex inclinou-se e levantou o copo. Bebeu as últimas gotas do seu conhaque. - Você sabe que dia é hoje?
Lynn ficou paralisada.
- Ai, meu Deus do céu.
O reverendo Tom Mackie colocou o telefone no gancho e acariciou a cruz banhada em prata que trazia no peito da sua batina de seda roxa. A sua congregação americana gostava de ter um pastor britânico e, como não sabiam distinguir um escocês de um inglês mesmo, ele satisfazia o seu desejo de ostentação com os adornos mais exagerados do anglicanismo ortodoxo. Era uma vaidade, ele próprio reconhecia, mas uma vaidade essencialmente inofensiva.
A sua secretária já havia ido embora e a solidão do seu escritório vazio lhe permitia confrontar a confusa reação emocional que o choque da morte de Ziggy Malkiewicz provocara, sem precisar de disfarces. Embora não faltasse uma certa manipulação cínica na maneira como Esquisito praticava o seu sacerdócio, as crenças que sustentavam o seu regime evangélico eram sinceras e profundas. E ele sabia, no fundo do seu coração, que Ziggy era um pecador, irreversivelmente maculado pela nódoa da sua homossexualidade. No universo fundamentalista de Esquisito, não havia nenhuma dúvida quanto a isso. A Bíblia era bem clara em sua proibição e em sua abominação do pecado. Seria difícil encontrar a salvação, mesmo que Ziggy tivesse se arrependido sinceramente e, até onde Esquisito sabia, Ziggy morrera tal como havia vivido, abraçando o seu pecado com entusiasmo. Sem dúvida a maneira como havia morrido estava relacionada ao seu modo de vida, que desobedecia às leis divinas. A conexão seria mais óbvia se o Senhor o tivesse punido com a praga da Aids. Mas Esquisito já havia criado uma sequência mental de acontecimentos que apontava a escolha arriscada de Ziggy como culpada pela sua morte. Talvez um amante casual tivesse esperado Ziggy dormir para roubá-lo e depois tivesse incendiado a casa para ocultar o seu crime. Talvez eles estivessem fumando maconha e um baseado mal apagado tivesse sido o responsável pelo incêndio.
Fosse lá o que tivesse acontecido, a morte de Ziggy, não obstante, era para Esquisito um lembrete poderoso de que era possível odiar o pecado e amar o pecador. Não havia como negar a realidade da amizade que o amparara durante a sua adolescência, quando o seu próprio espírito selvagem impedia que ele visse a luz, quando ele de fato havia sido Esquisito. Sem Ziggy, ele jamais teria atingido a idade adulta sem ter se envolvido em uma confusão séria. Ou algo pior.
Sem fazer esforço, a sua memória exibiu uma sequência em flashback. Inverno, 1972. O ano da passagem para o ensino médio. Alex desenvolvera um dom para arrombar carros sem danificar a fechadura. Tudo o que ele precisava era de um pedaço flexível de metal e muita habilidade. Era uma maneira de se sentirem anárquicos sem serem criminosos. O procedimento era simples. Bastavam algumas cervejinhas ilícitas no Pub do Porto e lá iam eles, impetuosos, noite adentro. Escolhiam uma meia dúzia de carros aleatoriamente, no caminho entre o pub e a rodoviária. Alex inseria o pedaço de metal na porta do carro e abria a fechadura. Então Ziggy e Esquisito entravam no carro e escreviam uma mensagem no para-brisa. Com um batom vermelho, previamente furtado de uma loja, do tipo que é uma chatice para tentar remover, eles escreviam o refrão da música "Laughing Gnome", de David Bowie.[7] O que sempre acabava fazendo os quatro terem um incontrolável acesso de riso.
E assim iam embora, trôpegos, rindo feito bobos, cuidando para deixar o carro bem trancado. Era uma brincadeira que conseguia ser boba e brilhante ao mesmo tempo.
Uma noite, Esquisito estava empoleirado atrás do volante de um Escort. Enquanto Ziggy escrevia, ele abriu o cinzeiro e viu, maravilhado, uma chave sobressalente. Sabendo que furto não estava nos planos e que Ziggy com certeza não ia deixar ele se divertir, Esquisito esperou o amigo sair do carro, encaixou a chave na ignição e ligou o motor. Ao acender os faróis, pôde ver a expressão de susto no rosto dos outros três. A sua primeira intenção era apenas surpreender os amigos. Mas, diante da possibilidade de fazer alguma coisa realmente radical, Esquisito deixou-se levar. Nunca dirigira antes, mas estava familiarizado com a teoria e já vira o pai dirigindo o bastante para se convencer de que se sairia bem. Engatou a marcha, soltou o freio de mão e avançou, aos trancos e barrancos.
Saiu do estacionamento, dirigindo-se para a saída que o levaria para o passeio público, a faixa de quase quatro quilômetros que se estendia ao longo do quebra-mar. Os postes de luz eram um borrão alaranjado e as letras vermelhas escritas no para-brisa tornavam-se pretas à medida que ele avançava, fazendo o carro pular cada vez que ele mudava a marcha. Mal conseguia manter o carro em linha reta, estava às gargalhadas.
O passeio público chegou ao fim, inacreditavelmente rápido. Ele girou o volante para a direita, conseguindo, de algum modo, fazer a curva depois da garagem dos ônibus. Por sorte havia poucos carros na rua: a maioria das pessoas havia preferido ficar em casa naquela noite gelada de fevereiro. Pisou no acelerador, indo para a Invertiel Road, por baixo da ponte, depois da Jawbanes Road.
A velocidade foi a sua ruína. Ao subir a rua e tentar uma curva para a esquerda, Esquisito deslizou em uma poça congelada e o carro girou. Desacelerando, o carro rodopiou em uma lentíssima valsa, completando 360 graus. Ele agarrava o volante, mas isso só parecia piorar ainda mais a situação. O para-brisa ficou coberto com uma massa encharcada de grama e então, de repente, o carro capotou de lado e ele foi jogado contra a porta, afundando as costelas na manivela.
Não sabia dizer quanto tempo ficou lá, atordoado e sentindo dor, ouvindo o tique-taque do motor afogado esfriando no ar da noite. Quando deu por si, viu a porta sobre a sua cabeça desaparecer e ser substituída por Alex e Ziggy, olhando para baixo, assustados.
- Seu retardado filho de uma puta - gritou Ziggy, assim que percebeu que Esquisito estava mais ou menos bem.
De algum modo, conseguiu sair do carro com muita dificuldade, enquanto os dois o rebocavam, gritando de dor quando as suas costelas fraturadas protestavam. Deitou-se arfando sobre a grama congelada, cada suspiro era uma pontada de agonia. Levou um tempinho para perceber que um Austin Allegro estava estacionado na rua atrás do Escort destruído, os seus faróis dissipando a escuridão e lançando curiosas sombras.
Ziggy o colocara de pé na calçada.
- Seu retardado filho de uma puta - ele continuou repetindo, empurrando Esquisito no banco de trás do Allegro. Atordoado com a dor, Esquisito ouviu a conversa.
- O que a gente vai fazer agora? - perguntou Mondo.
- Alex vai levar vocês até o passeio público e vocês vão colocar esse carro direitinho onde ele estava. Depois, vocês vão pra casa. Ok?
- Mas Esquisito está machucado - protestou Mondo. - Ele vai ter que ir pro hospital.
- Ah, tá. Vamos anunciar pra todo mundo que ele sofreu um acidente de carro. - Ziggy inclinou-se para dentro do Allegro e colocou a mão diante do rosto de Esquisito. - Quantos dedos tem aqui, retardado?
Ainda confuso, Esquisito franziu a testa.
- Dois - gemeu ele.
- Viu só? Ele não sofreu nenhuma concussão. Incrível. Eu sempre achei que ele devia ter cimento no lugar do cérebro. São só as costelas, Mondo. Tudo o que eles vão fazer no hospital é dar uns analgésicos pra ele.
- Mas ele está morrendo de dor. O que ele vai dizer quando chegar em casa?
- Isso é problema dele. Ele diz que caiu de uma escada, sei lá. Qualquer coisa. - Ziggy inclinou-se novamente. - Você vai ter que segurar a sua onda, retardado.
Esquisito se aprumou, estremecendo.
- Eu dou um jeito.
- E o que você vai fazer? - perguntou Alex, ajeitando-se atrás do volante do Allegro.
- Vou dar uns cinco minutos, esperar vocês saírem de perto. Depois, vou incendiar o carro.
Trinta anos depois, Esquisito ainda conseguia lembrar da expressão de choque no rosto de Alex.
- O quê?
Ziggy esfregou a mão no rosto.
- O carro está coberto com as nossas impressões digitais. A nossa marca registrada está rabiscada no para-brisa. Quando a gente só estava fazendo isso, não ia atrair a atenção da polícia. Mas agora, temos um carro roubado, destruído. Vocês acham que eles vão encarar isso como uma brincadeira? Vamos ter que pôr fogo no carro. Ele não serve mais para nada, mesmo.
Não havia como argumentar. Alex ligou o motor e partiu com facilidade, procurando uma rua paralela que desse mão, para fazer a curva. Alguns dias mais tarde, Esquisito perguntou:
- Onde foi que você aprendeu a dirigir?
- No verão passado. Numa praia. Foi o meu primo quem me ensinou.
- E como você conseguiu dar partida no Allegro sem chave?
- Você não reconheceu o carro?
Esquisito balançou a cabeça.
- É do "Sammy" Seale.
- O professor de trabalho em metal?
- Exatamente.
Esquisito sorriu. A primeira coisa que eles haviam aprendido a fazer na oficina de metal era uma caixa magnetizada para colocar no chassi do carro, para guardar uma chave sobressalente.
- Que sorte, hein?
- Sorte pra você, retardado. Foi Ziggy quem viu e identificou o carro.
Como as coisas poderiam ter sido diferentes, refletiu Esquisito. Se Ziggy não tivesse aparecido para salvá-lo, ele seria preso, fichado na polícia e teria estragado a sua vida. Em vez de abandoná-lo para sofrer as consequências do seu próprio disparate, Ziggy arrumara um jeito de livrar a cara dele. E, de quebra, ainda se arriscara. Incendiar um carro era algo grave para um sujeito correto e ambicioso. Mas Ziggy não hesitara.
E agora Esquisito tinha que retribuir esse e outros favores. Falaria no funeral de Ziggy. Pregaria arrependimento e perdão. Era tarde demais para salvar Ziggy, mas a graça de Deus certamente haveria de resgatar uma alma perdida.
23
Esperar era uma das coisas que Graham Macfadyen sabia fazer melhor. O seu pai adotivo havia sido um ornitólogo amador entusiasta e, quando criança, ele havia sido obrigado a passar boa parte da sua juventude com o pai fazendo hora, esperando avistarem pássaros interessantes o bastante para justificar o levantar do binóculo aos olhos. Aprendera a ficar quietinho desde bem cedo; valia qualquer coisa para evitar o lado violento do sarcasmo do pai. As feridas da culpa eram tão profundas quanto as agressões físicas e Macfadyen fazia o possível, dentro dos seus limitados poderes, para evitá-las. O segredo, ele descobrira bem cedo, era vestir-se de acordo com o tempo. De modo que, embora passasse a maior parte do dia exposto a rajadas de neve e lufadas geladas do vento norte, continuava confortável na sua parca acolchoada com plumas, a sua calça comprida forrada de lã e as suas botas de caminhada. E era especialmente grato pelo assento dobrável em forma de bengala que trazia consigo, pois o seu posto de observação não oferecia nenhum lugar para se sentar, a não ser em sepulturas. E aquilo parecia uma tremenda falta de respeito.
Tirou uma licença do trabalho. Tivera de mentir, mas não tinha outro jeito. Sabia que estava deixando muita gente na mão, que a sua ausência talvez equivalesse à perda de um prazo crucial. Mas havia coisas mais importantes do que cumprir a data de pagamento de um contrato. E ninguém ia suspeitar que um sujeito tão consciencioso como ele pudesse estar fingindo. Mentir, assim como passar despercebido e manter a calma, era algo que ele fazia muito bem. Sabia que Lawson não nutrira a menor sombra de dúvida quando ele afirmou ter amado os seus pais adotivos. Bem que tentou amá-los, só Deus sabia quanto. Mas a distância emocional que eles impunham, combinada com o desgaste constante da desaprovação e da decepção, havia minado o seu afeto, deixando-o insensível e isolado. As coisas teriam sido bem diferentes com a sua mãe verdadeira, ele tinha certeza. Mas ele havia sido privado dessa chance e tudo o que restara era a fantasia de conseguir, de alguma maneira, fazer com que o responsável pagasse pelo que fizera. Esperara demais do seu encontro com Lawson, mas a incompetência da polícia fizera com que o chão sumisse sob os seus pés. Contudo, só porque o caminho mais óbvio fechara-se para ele, isso não significava que deveria desistir da sua missão. Os seus anos de experiência como programador haviam lhe ensinado esta persistência.
Não sabia ao certo se a sua vigília seria bem-sucedida, mas se sentira impelido a ir até aquele lugar. Se não funcionasse, pensaria em outra maneira de conseguir o que queria. Chegou um pouco depois das sete e caminhou até o túmulo. Já estivera no cemitério antes e ficara frustrado por não conseguir se sentir mais próximo da mãe que jamais conhecera. Desta vez, apenas colocara a sua discreta homenagem floral ao pé da sepultura e depois voltara para o ótimo posto de observação que localizara em sua última visita. Ficava praticamente encoberto pelo pomposo memorial erguido em homenagem a um antigo conselheiro da cidade, mas de lá era possível observar perfeitamente o último repouso de Rosie.
Alguém ia aparecer. Havia nutrido esta certeza, mas agora que os ponteiros do seu relógio moviam-se em direção às sete horas, começava a ter dúvidas. Lawson que se danasse - não ia deixar de procurar os seus tios. Faria contato. Imaginara que se aproximar dos tios em um local tão emocionalmente significativo neutralizaria a sua hostilidade e permitiria que pudessem vê-lo como alguém que, assim como eles, tinha direito de ser considerado parte da família de Rosie. Mas já estava começando a achar que calculara mal. E este pensamento o deixava irritado.
Foi então que viu uma sombra mais escura delineando-se sobre as sepulturas. Era a silhueta de um homem, andando rapidamente em sua direção. Macfadyen inspirou fundo e prendeu a respiração.
Com a cabeça abaixada por causa do mau tempo, o homem afastou-se da trilha e embrenhou-se com segurança pelas sepulturas. À medida que se aproximava, Macfadyen pôde ver que ele trazia um pequeno buquê de flores na mão. O homem diminuiu a marcha e estacou, a mais ou menos um metro e meio da lápide de Rosie. Ficou parado, de cabeça baixa, por um bom tempo. Quando se inclinou para depositar as flores, Macfadyen se aproximou dele sorrateiramente, valendo-se da neve para abafar os seus passos.
O homem se ergueu e deu um passo para trás, chocando-se contra Macfadyen.
- Mas que... - exclamou ele, virando-se para trás.
Macfadyen levantou as mãos, em um gesto apaziguador.
- Desculpe. Não quis assustar o senhor. - Ele desceu o capuz da sua parca, para parecer menos intimidador.
O homem lançou um olhar furioso para ele e, pendendo a cabeça para o lado, examinou-o atentamente.
- Eu te conheço? - perguntou ele, e a sua voz era tão hostil quanto a sua postura.
Macfadyen não hesitou.
- Acho que o senhor é meu tio - disse ele.
Lynn deixou Alex a sós para dar o telefonema. A tristeza era como um caroço desconfortável no seu peito. Perturbada, foi até a cozinha e cortou o frango, funcionando no piloto automático. Colocou os pedaços de frango no refratário de alumínio, junto com algumas cebolas muito mal cortadas e com as pimentas. Despejou o molho comprado pronto, adicionou uma pequena dose de vinho branco e colocou no forno. Como sempre, esquecera de preaquecer. Pescou com o garfo algumas batatas e colocou para assar, na prateleira acima do frango. Alex já deve ter falado com Esquisito, pensou ela. Não podia mais adiar a ligação para Mondo.
Quando parou para pensar no assunto, Lynn achou um tanto estranho que, apesar dos laços de sangue e do seu desprezo pela pregação do fogo do inferno e na eterna danação de Esquisito, Mondo tivesse se transformado no membro mais afastado do antigo quarteto. Ela sempre tinha a impressão de que se não fosse pelo fato de serem irmãos, ele teria desaparecido completamente da vida de Alex. Geograficamente falando, ele era o que estava mais perto, em Glasgow. Mas já no fim das suas carreiras universitárias, parecia que ele queria romper com todos os laços que o uniam à sua infância e adolescência.
Ele fora o primeiro a deixar o país, indo para a França após a formatura para seguir a sua ambição de uma carreira acadêmica. Mal voltou a Escócia nos três anos seguintes, não dando as caras sequer no enterro da avó. Lynn tinha lá as suas dúvidas se ele teria se dado ao trabalho de comparecer ao seu casamento com Alex caso já não estivesse morando novamente no Reino Unido, dando aulas na Universidade de Manchester. Sempre que Lynn tentava sondar o motivo da sua ausência, ele dava um jeito de mudar de assunto - coisa que este seu irmão mais velho sempre fizera muito bem.
Lynn, que permanecera firmemente ancorada às suas raízes, não conseguia entender por que alguém escolheria se desligar da sua história pessoal. Mondo não tivera uma infância ruim, nem uma adolescência traumática. Era bem verdade que sempre fora meio frouxo, mas depois que se juntara com Alex, Esquisito e Ziggy ficara protegido dos implicantes de plantão. Ela lembrava como costumava invejar a amizade inabalável dos quatro, a maneira casual como conseguiam sempre se divertir. As suas músicas horrorosas, o seu lado subversivo, o seu total desprezo pela opinião dos colegas. Para ela, parecia uma atitude masoquista dar as costas a um sistema de apoio como aquele.
Ele sempre fora fraco, Lynn sabia disso. Sempre que surgia algum problema, Mondo dava no pé. Mais um motivo, na concepção de Lynn, para ele ter mantido as amizades que o ajudaram a vencer tantas dificuldades. Perguntara a Alex uma vez o que ele achava daquilo tudo e ele dera de ombros. "O nosso último ano em St. Andrews foi brabo. Talvez ele não queira ficar lembrando disso."
Fazia um certo sentido. Ela conhecia Mondo o suficiente para compreender a vergonha e a culpa que ele sentia pela morte de Barney Maclennan. Ele teve de suportar o sarcasmo maldoso dos arruaceiros de bar que lhe disseram que, da próxima vez que fosse tentar se matar, fizesse a coisa direitinho. Sofrera a angústia de saber que o seu exibicionismo egoísta custara a vida de uma pessoa. E ainda teve de aturar várias sessões de análise que serviram mais para lembrá-lo do terrível momento em que um pedido de atenção transformara-se no pior dos pesadelos. Ela imaginava que a presença dos outros três servia mais como uma deixa para as lembranças que ele queria apagar do que qualquer outra coisa. Também sabia que, embora ele jamais tivesse dito uma palavra a respeito, Alex jamais conseguira se desvencilhar da suspeita de que Mondo talvez soubesse mais do que estivera disposto a contar sobre a morte de Rosie Duff. O que era um absurdo, lógico. Se algum deles tivesse sido capaz de cometer aquele crime específico, naquela noite específica, esse alguém teria sido Esquisito, que estava fora de si devido à sua mistura de bebida e drogas e frustrado porque a sua molecagem com a Land Rover não impressionara as garotas como ele imaginara. E ela sempre achara aquela conversão milagrosa e repentina muito suspeita.
Mas, independentemente dos possíveis motivos, ela sentira saudade do irmão ao longo dos últimos vinte anos. Quando era mais nova, sempre imaginara que ele se casaria com uma garota que se tornaria a sua melhor amiga; que eles ficariam ainda mais unidos com a chegada dos filhos, que desenvolveriam uma dessas famílias agradáveis e enormes, onde todos se davam bem uns com os outros. Mas nada disso se tornara realidade. Após uma série de relacionamentos quase sérios, Mondo finalmente se casou com Hélène, uma aluna francesa dez anos mais nova do que ele, que mal conseguia disfarçar o seu desprezo por qualquer pessoa que não soubesse discutir Foucault ou alta costura com a mesma naturalidade. Alex, por exemplo, era alguém que ela desdenhava abertamente por ter escolhido o comércio e abandonado a arte. E Lynn, ela tratava com uma certa condescendência e com um morno entusiasmo pela sua carreira como restauradora de belas-artes. Assim como ela e Alex, eles também não tinham filhos, mas Lynn suspeitava que era por escolha própria e que eles continuariam assim no futuro.
Lynn achava que a distância talvez facilitasse a sua tarefa de dar a notícia. Mas, ainda assim, pegar o telefone naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que ela fez na vida. A ligação foi atendida logo no segundo toque, por Hélène.
- Oi, Lynn. Que bom que você ligou. Eu vou chamar o David - disse ela, e o seu inglês quase perfeito era uma reprovação em si. Hélène abandonou o fone antes mesmo que Lynn pudesse adiantar o motivo pelo qual estava ligando. Houve uma longa pausa e depois a voz familiar do seu irmão ressoou no seu ouvido.
- Lynn - disse ele. - Como vai? - Como se ele se importasse muito.
- Mondo, eu tenho más notícias.
- Nossos pais? - interrompeu ele, antes que ela pudesse continuar.
- Não, eles estão bem. Falei com mamãe ontem à noite. É uma notícia que surpreendeu a todos nós. Alex recebeu uma ligação de Seattle esta tarde. - Lynn sentiu um bolo na garganta, ao relembrar. - Ziggy morreu. - Silêncio do outro da linha. Ela não sabia dizer se era um silêncio de choque ou de dúvida acerca da resposta adequada. - Sinto muito - disse ela.
- Eu não sabia que ele estava doente - disse Mondo, finalmente.
- Não estava. A casa pegou fogo durante a noite. Ziggy estava deitado, dormindo. Ele morreu no incêndio.
- Que horror, meu Deus. Pobre Ziggy. Não consigo acreditar. Ele sempre foi tão cuidadoso. - Ele emitiu um som esquisito, quase como uma risada. - Se era para um de nós morrer num incêndio, qualquer um apostaria no Esquisito. Ele sempre foi fadado a sofrer acidentes. Mas Ziggy?
- Eu sei. É difícil de acreditar.
- Meu Deus. Coitado do Ziggy.
- Pois é. Nós passamos uns dias maravilhosos com ele e Paul em setembro, lá na Califórnia. Ainda não consigo me acostumar com a ideia.
- E Paul? Morreu também?
- Não. Ele estava viajando, passou a noite fora. Quando voltou, encontrou a casa destruída e Ziggy morto.
- Ih... isso vai pegar muito mal para ele.
- Bom, tenho certeza de que esta é a última coisa que deve estar passando pela cabeça dele agora, né? - retrucou Lynn, áspera.
- Não, você entendeu mal. O que eu quis dizer é que isso vai piorar ainda mais as coisas para ele. Credo, Lynn. Eu sei muito bem o que é ter as pessoas todas olhando para você como se você fosse um assassino - relembrou Mondo.
Houve uma pequena pausa, para ambos acalmarem os ânimos e evitarem uma discussão.
- Alex vai ao enterro. - Lynn levantou a bandeira branca.
- Ih, acho que não vai dar para ir ao enterro, não - Mondo apressou-se em dizer. - Vamos para a França daqui a dois dias. Já reservamos as passagens e tudo. E depois, eu nunca mais tive contato com Ziggy, como você e Alex.
Lynn contemplava a parede, sem conseguir acreditar no que estava ouvindo.
- Vocês quatro eram como irmãos de sangue. Será que isso não merece uma alteração nos seus planos de viagem?
Houve um longo silêncio. Então, Mondo disse:
- Eu não quero ir, Lynn. O que não significa que eu não ligue para Ziggy. É que eu não suporto enterros. Vou escrever para o Paul. De que adianta cruzar o mundo para ir a um enterro que só vai me fazer mal? Isso não vai trazer Ziggy de volta, mesmo.
Lynn sentiu-se subitamente exausta, mas grata por ter assumido o fardo e ter livrado Alex daquela penosa conversa. O pior é que, apesar de tudo, ela ainda conseguia ser solidária com o seu irmão ultrassensível.
- Nenhum de nós gostaria que você se sentisse mal - suspirou ela. - Bom, vou deixar você ir fazer as suas coisas.
- Só um minuto, Lynn - disse ele. - Ziggy morreu hoje?
- Foi, bem cedinho, pela manhã.
Uma respiração tensa do outro lado.
- Que sinistro, hein? Você sabe que hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada?
- Nós não esquecemos. Fico boba de você ter se lembrado.
Ele deu uma risada amargurada.
- Você acha que eu poderia esquecer o dia em que a minha vida foi destruída? Está entalhado no meu coração.
- Bem, pelo menos assim você vai se lembrar do aniversário da morte de Ziggy - disse Lynn, percebendo que, mais uma vez, Mondo estava girando o seu caleidoscópio e fazendo com que tudo girasse ao seu redor. Às vezes, ela realmente desejava que os laços familiares pudessem ser rompidos.
Lawson lançou um olhar furioso para o telefone, ao recolocá-lo no gancho. Detestava políticos. Tivera de aturar, durante dez minutos, o parlamentar que representava o principal suspeito de Phil Parhatka despejando em seu ouvido uma baboseira sobre os direitos humanos do cretino. Lawson teve vontade de perguntar: "E os direitos humanos do pobre coitado que ele matou?", mas o bom senso o impediu de verbalizar a sua irritação. Em vez disso, ele emitiu sons conciliatórios e anotou mentalmente que deveria dar uma palavrinha com os pais da vítima e pedir que lembrassem ao seu advogado que ele deveria ficar do lado das vítimas, e não dos criminosos. E de avisar a Phil Parhatka que era melhor se proteger.
Deu uma olhadela no relógio, surpreso ao constatar que já era bem tarde. Era melhor dar uma passada na sala da revisão dos casos antes de sair, ver se por acaso Phil ainda estava por lá.
Mas a única pessoa na sala àquela hora da noite era Robin Maclennan. Ele estava examinando um arquivo de depoimentos de testemunhas, a testa franzida em franca concentração. Banhado na aura de luz oferecida pela luminária sobre a mesa, a semelhança com o seu irmão era impressionante. Lawson estremeceu, sem querer. Era como ver um fantasma, mas um fantasma que havia envelhecido uns doze anos desde a sua última aparição na terra.
Lawson pigarreou e Robin levantou os olhos, dissipando a ilusão à medida que os seus próprios maneirismos se sobrepunham à semelhança fraternal.
- Boa-noite, senhor - disse ele.
- Está ficando até tarde, hein? - comentou Lawson.
Robin deu de ombros.
- Diane levou as crianças ao cinema. Dá no mesmo ficar aqui ou sozinho em casa.
- Sei bem o que é isso. Eu mesmo tenho me sentido assim, desde que Marian morreu, ano passado.
- O seu filho não está em casa?
Lawson deu um muxoxo.
- O meu filho já está com vinte e dois anos, Robin. Michael se formou no verão. Em economia. E agora está trabalhando como motoboy em Sydney, na Austrália. Às vezes eu me pergunto pra que trabalhei feito um condenado. Quer tomar um chope?
Robin ficou levemente surpreso.
- Sim, quero - disse ele, fechando o arquivo e levantando-se da mesa.
Escolheram um pequeno pub nos arredores de Kirkcaldy, que não ficasse muito longe da casa de ambos, por causa da volta. O lugar estava barulhento, com um zumbido de conversação lutando contra a seleção de músicas natalinas que pareciam inevitáveis naquela época do ano. Enfeites dourados decoravam o pórtico e uma espalhafatosa árvore de Natal de fibra ótica inclinava-se torta em um dos cantos do bar. Enquanto no rádio a banda Wizzard desejava a plenos pulmões que pudesse ser Natal todo dia, Lawson comprou dois chopes e duas doses de uísque para rebater. Neste meio-tempo, Robin encontrou uma mesa relativamente tranquila no canto mais afastado do bar. Ele pareceu um tanto surpreso quando viu as duas bebidas a sua frente.
- Obrigado, senhor - disse ele, circunspecto.
- Esqueça a hierarquia, Robin. Só por esta noite, que tal? - Lawson tomou um longo gole do seu chope. - Para ser sincero, fiquei contente de te encontrar por lá. Queria tomar um drinque esta noite, mas não queria beber sozinho. - Ele o encarou, curioso. - Você sabe que dia é hoje?
O rosto de Robin subitamente assumiu uma expressão cautelosa.
- 16 de dezembro.
- Acho que você pode fazer melhor do que isso.
Robin apanhou o uísque e bebeu tudo, de uma só vez.
- Hoje faz vinte e cinco anos que Rosie Duff foi assassinada. É isso o que você quer ouvir?
- Imaginei que você soubesse. - Nenhum dos dois conseguia pensar o que dizer a seguir, então beberam em um silêncio desconfortável por alguns minutos.
- Como Karen está se saindo? - perguntou Robin.
- Pensei que você soubesse melhor do que eu. O chefe é sempre o último a saber, não é o que dizem por aí?
Robin fez uma careta.
- Não neste caso. Karen mal tem aparecido no escritório ultimamente. Ao que parece, ela tem passado o tempo todo no depósito lá embaixo. E quando ela está na mesa dela, eu costumo ser a última pessoa com quem ela quer falar. Assim como os outros, ela fica constrangida quando tem de abordar o maior fracasso de Barney. - Bebeu o último gole e se levantou. - Mesma coisa?
Lawson concordou. Quando Robin voltou, ele disse:
- É isso o que você acha? Que foi o maior fracasso de Barney?
Robin balançou a cabeça, impaciente.
- Era isso o que ele achava. Eu me lembro daquele Natal. Nunca tinha visto Barney daquele jeito. Como ele se desgastou. Ele se culpava pelo fato de não terem prendido ninguém. Tinha certeza de que estava deixando passar alguma coisa óbvia, alguma coisa fundamental. Aquilo estava acabando com ele.
- É, eu me lembro que ele realmente levou para o lado pessoal.
- E como. - Robin olhava fixamente para o seu uísque. - Eu quis ajudar. Só entrei para a polícia porque Barney era o meu ídolo. Eu queria ser como ele. Cheguei até a pedir transferência para St. Andrews, para integrar a mesma equipe. Mas ele foi contra. - Robin suspirou. - Não consigo deixar de pensar que se eu estivesse lá...
- Você não poderia tê-lo salvado, Robin - disse Lawson.
Robin bebeu o seu segundo uísque.
- Eu sei. Mas não consigo parar de pensar nisso.
Lawson assentiu.
- Barney era um ótimo policial. Um sujeito único, insubstituível. E o modo como ele morreu chega a me deixar enojado, sabe? Eu sempre achei que devíamos ter acusado Davey Kerr.
Robin levantou a cabeça, confuso.
- Acusado? De quê? Tentativa de suicídio não é crime.
Sobressaltado, Lawson desconversou:
- Sim, mas... Tem razão, Robin. Onde é que eu estava com a cabeça? - gaguejou ele. - Esquece o que eu disse.
Robin inclinou-se sobre a mesa.
- Diz o que você ia me dizer.
- Não era nada, não. Sério. - Lawson tentou disfarçar a sua confusão bebendo mais um gole. Tossiu, engasgado, respingando uísque no queixo.
- Você ia me contar algo sobre a maneira como Barney morreu. - Os olhos de Robin imobilizaram Lawson no seu assento.
Ele enxugou a boca e suspirou.
- Pensei que você soubesse.
- Soubesse o quê?
- Homicídio doloso, era isso que deveria constar na acusação de Davey Kerr.
Robin franziu a testa.
- Isso jamais se sustentaria no tribunal. Kerr não tinha intenção de pular, foi um acidente. Ele só estava querendo chamar atenção, não estava tentando cometer suicídio de verdade.
Lawson parecia desconfortável. Empurrou a cadeira para trás e disse:
- Você precisa de outro uísque. - Dessa vez, voltou com uma dose dupla. Sentou-se e olhou Robin nos olhos. - Meu Deus - disse ele, baixinho. - Sei que decidimos abafar o assunto, mas eu tinha certeza de que você sabia.
- Continuo sem saber do que você está falando - disse Robin, o rosto atento, compenetrado. - Mas acho que mereço uma explicação.
- Eu era a primeira pessoa puxando a corda - disse Lawson. - Eu vi com os meus próprios olhos. Quando estávamos puxando eles lá de baixo, Davey entrou em pânico e chutou Barney de volta para a água.
Robin franziu o rosto, incrédulo.
- Você está me dizendo que Davey Kerr jogou Barney de volta pro mar para salvar a própria pele? - A voz de Robin soava igualmente incrédula. - E como é que eu só estou sabendo disso agora?
Lawson deu de ombros.
- Sei lá. Quando eu contei o que tinha visto ao superintendente, ele ficou chocado. Mas disse que não adiantava nada levar a coisa adiante. A promotoria jamais teria conseguido levar a acusação para frente. A defesa teria alegado que, nestas condições, eu não poderia ter visto o que vi. Que nós estávamos querendo nos vingar porque Barney morreu tentando salvar Davey Kerr. Que estávamos querendo provar que a morte de Barney fora um homicídio doloso porque não conseguimos prender Kerr e os seus colegas pelo assassinato de Rosie Duff. Então, eles decidiram deixar para lá.
Robin apanhou o seu uísque e a sua mão tremia tanto que o copo se chocou contra os seus dentes. O rosto dele perdera a cor, ele estava pálido e suado.
- Eu não acredito nisso.
- Eu sei o que eu vi, Robin. Sinto muito, pensei que você soubesse.
- Esta é a primeira... - Ele olhou à sua volta, como se não compreendesse onde estava, ou como chegara até ali. - Desculpe, preciso sair daqui. - Levantou-se abruptamente e dirigiu-se até a porta, esbarrando nos fregueses do pub e ignorando as suas reclamações.
Lawson fechou os olhos e suspirou. Quase trinta anos na polícia e ele ainda não se acostumara à sensação de vazio que experimentava no estômago sempre que tinha de dar más notícias. O verme da ansiedade roía as suas entranhas. O que tinha feito, revelando a verdade para Robin Maclennan depois de tantos anos?
24
As rodinhas da mala roncavam atrás de Alex quando ele surgiu no saguão do aeroporto SeaTac. Era difícil identificar as pessoas que ficavam esperando os passageiros e, se Paul não tivesse acenado, ele provavelmente passaria por ele direto. Alex apressou-se em sua direção e os dois se abraçaram sem nenhum constrangimento.
- Obrigado por ter vindo - agradeceu Paul baixinho.
- Lynn mandou um beijo - disse Alex. - Ela queria muito vir comigo, mas...
- Eu entendo. Há tanto tempo que vocês querem esse bebê, melhor não arriscar. - Paul apanhou a mala de Alex e o conduziu até a saída do terminal. - O voo foi tranquilo?
- Dormi durante a maior parte da travessia do Atlântico. Mas não consegui relaxar depois da escala. Fiquei pensando em Ziggy, no incêndio. Que maneira brutal de partir.
Paul, que estava olhando para a frente, não desviou o olhar.
- Não paro de pensar que a culpa foi minha.
- Como pode ter sido culpa sua? - perguntou Alex, seguindo Paul até o estacionamento.
- Você soube que nós transformamos o sótão em um quarto grande com banheiro? Devíamos ter colocado uma saída de incêndio externa. Eu vivia querendo pedir para o pedreiro voltar e instalar uma, mas sempre aparecia uma coisa mais importante para ser feita... - Paul parou diante do seu carro e guardou a mala de Alex no porta-malas. Por baixo do paletó de xadrez escocês, era possível distinguir os músculos em seus ombros largos, flexionados pelo esforço.
- Todos nós adiamos coisas - disse Alex, pousando a mão nas costas de Paul. - Você sabe que Ziggy não ia culpar você por isso. Era uma responsabilidade dos dois.
Paul deu de ombros e sentou-se atrás do volante.
- Tem um hotelzinho razoável a uns dez minutos de onde ficava a casa. Estou hospedado lá. Fiz uma reserva para você, tudo bem? Se você preferir ficar na cidade, a gente pode cancelar.
- Não. Prefiro ficar com você. - Deu um sorriso exausto para Paul. - Assim a gente pode chorar as mágoas um com o outro.
- Certo.
Ficaram em silêncio enquanto Paul saía da estrada, em direção a Seattle. Eles contornaram a cidade e prosseguiram rumo ao norte. Ziggy e Paul moravam fora dos limites da cidade, em uma casa de madeira de dois andares, construída em uma encosta com vistas de tirar o fôlego do estreito de Puget, estreito Possession e, a distância, do monte Walker. Na primeira vez que estiveram lá, Alex pensou que tivesse sido transportado para um cantinho do paraíso. "Espera só começar a chover", dissera Ziggy.
Naquele dia estava nublado, com a luminosidade que costuma acompanhar as nuvens altas. Alex queria que chovesse, para combinar com o seu espírito. Mas o tempo não parecia muito disposto a satisfazê-lo. Olhou para fora da janela e ocasionalmente conseguia ver o topo coberto de neve da Olympics e da Cascades. A beira da estrada estava coberta de neve derretida e pardacenta e alguns cristais de gelo faiscavam quando captavam a luz. Estava feliz por só ter visitado no verão. A paisagem que via pela janela era diferente o bastante para trazer memórias dolorosas à tona.
Paul deixou a estrada principal alguns quilômetros antes da saída que conduzia à sua antiga casa. A estrada ladeada de pinheiros terminava em um penhasco, que dava para a Whidbey Island. O hotel optara pelo estilo cabana rústica de madeira, o que Alex achou ridículo em uma construção grande o bastante para abrigar uma recepção, um bar e um restaurante. Mas as cabanas individuais, construídas lado a lado à beira das árvores, eram bem razoáveis. Paul, que estava hospedado na cabana vizinha à de Alex, o deixou a sós para desfazer as malas.
- Te vejo no bar daqui a meia hora, ok?
Alex pendurou o terno e a camisa que usaria no funeral, deixando o resto das roupas na mala. Passara a maior parte do voo transcontinental desenhando; destacou a folha que lhe parecera conter o melhor desenho e a escorou contra o espelho. Ziggy olhava para ele em um perfil de três quartos, um sorriso torto enrugando os seus olhos. Nada mau para um esboço feito de memória, pensou Alex tristemente. Verificou a hora. Quase meia-noite em casa. Lynn não se incomodaria com o avançado da hora. Ligou para ela. A conversa breve com a mulher aliviou a dor aguda da perda que ameaçara tomar conta dele por um instante.
Jogou um pouco de água fria no rosto. Sentindo-se ligeiramente mais desperto, caminhou lentamente até o bar, onde a decoração natalina pareceu-lhe incongruente diante da sua tristeza. A voz de Johnny Mathis soava melosa e Alex teve vontade de abafar as caixas de som, assim como os cascos dos cavalos eram abafados antigamente durante as procissões fúnebres. Encontrou Paul sentado, esquentando uma garrafa de cerveja na mão. Fez sinal para o barman para trazer mais uma e sentou-se diante dele. Agora que podia vê-lo melhor, pôde observar os sinais de cansaço e de tristeza. O cabelo castanho-claro de Paul estava amarfanhado e sujo, os seus olhos azuis exaustos e avermelhados. Um pedaço de barba por fazer abaixo da orelha esquerda exibia um descuido raro em um homem que estava sempre arrumado e bem-cuidado.
- Liguei para Lynn - disse Alex. - Ela queria saber notícias suas.
- Ela tem um bom coração - disse Paul. - Sinto que pude conhecê-la bem melhor este ano. Parece que depois que ficou grávida, ela ficou mais solta.
- Sei o que você quer dizer. Pensei que ela fosse ficar paralisada de tanta ansiedade durante a gravidez. Mas ela está completamente tranquila. - A bebida de Alex chegou à mesa.
Paul levantou o copo.
- Vamos brindar ao futuro - disse ele. - Agora não consigo ver o que ele tem a me oferecer, mas sei que Ziggy ia ficar pau da vida se eu ficasse me prendendo ao passado.
- Ao futuro - repetiu Alex. Ele tomou um longo gole de cerveja e perguntou: - Como é que você está?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que a ficha ainda não caiu. Tive que resolver tanta coisa. Avisar as pessoas, tomar as providências para o funeral, etc. e tal. Ah, falando nisso, o seu amigo Tom, aquele que Ziggy chamava de Esquisito. Ele chega amanhã.
A notícia provocou uma reação confusa em Alex. Uma parte dele ansiava pelo vínculo com o passado que Esquisito forneceria. Outra parte reconhecia o desconforto que ainda pesava em seu peito quando ele se lembrava da noite em que Rosie Duff morrera. E parte dele temia o problema que Esquisito traria consigo se começasse com a sua homofobia fundamentalista.
- Ele não vai fazer sermão no funeral, vai?
- Não. Vamos fazer uma cerimônia humanista. Mas os amigos de Ziggy vão ter a oportunidade de ir até o altar e falar sobre ele. Se Tom quiser falar alguma coisa, será bem-vindo.
Alex gemeu.
- Você sabe que ele é um fundamentalista fanático que acredita no fogo do inferno e na danação eterna, não sabe?
Paul sorriu.
- É melhor ele ter cuidado. Não é só no sul que eles lincham as pessoas.
- Vou falar com ele antes. - O que vai ser tão eficaz quanto um graveto para frear um trem em alta velocidade, pensou Alex.
Bebericaram as suas cervejas em silêncio por alguns minutos. Então Paul pigarreou e disse:
- Preciso te contar uma coisa, Alex. Sobre o incêndio.
Alex assumiu uma expressão intrigada.
- Sobre o incêndio?
Paul massageou o cavalete do nariz.
- Não foi um acidente, Alex. Foi armado. Deliberadamente.
- Você tem certeza?
Paul suspirou.
- Chamaram investigadores de incêndios criminosos, eles começaram a rastrear o lugar assim que as coisas esfriaram um pouco.
- Mas isso é horrível. Quem faria uma coisa dessas com Ziggy?
- Alex, eu sou o suspeito número um da polícia.
- Isso é ridículo. Você amava Ziggy.
- Exatamente por isso. Eles sempre investigam o cônjuge primeiro, não é? - O tom de voz de Paul foi ríspido.
Alex balançou a cabeça.
- Ninguém que conhecesse vocês direito ia pensar uma coisa dessas.
- Mas os policiais não conheciam a gente. E por mais que tentem disfarçar, a maioria dos policiais gosta tanto dos gays quanto o seu amigo Tom. - Paul tomou um longo gole de cerveja, como se quisesse tirar o gosto do seu sentimento da boca. - Passei uma boa parte do meu dia ontem na delegacia, sendo interrogado.
- Isso não entra na minha cabeça. Você estava a centenas de quilômetros de distância. Como é que eles acham que você tacou fogo na sua casa lá da Califórnia?
- Você se lembra da disposição dos cômodos da casa? - Alex assentiu com a cabeça e Paul prosseguiu. - Eles estão dizendo que o incêndio começou no porão, na caldeira. De acordo com o sujeito do corpo de bombeiros, parece que alguém empilhou latas de tinta e gasolina em um dos lados da caldeira, depois amontoou papel e madeira em volta. Coisa que nós certamente não fizemos. Mas eles também encontraram o que parece ser os fragmentos de uma bomba de fogo. Um dispositivo bem simples, segundo eles.
- Não foi destruída pelo fogo?
- Esses caras são especialistas em reconstruir o que aconteceu em um incêndio. Pelos vestígios que eles encontraram, parece que a coisa aconteceu assim. Eles acharam os fragmentos de uma lata de tinta fechada. Fixado na parte de dentro da tampa, tinha o resto de um cronômetro eletrônico. Eles estão achando que a lata devia ter gasolina ou qualquer outro catalisador. Algo que produzisse vapor. A maior parte do espaço interno teria sido ocupada pelo vapor. E aí, quando o cronômetro atingiu o horário estipulado, a faísca abrasou o vapor e a lata explodiu, espalhando o catalisador em chamas para os outros materiais inflamáveis. E como a casa era de madeira, deve ter queimado feito uma tocha. - A narração impassível de Paul vacilou e os seus lábios tremeram. - Ziggy não teve a menor chance.
- E eles acham que você fez isso? - Alex não conseguia acreditar. E sentia, ao mesmo tempo, uma profunda compaixão por Paul. Alex conhecia melhor do que ninguém as consequências de suspeitas infundadas e o preço que elas exigiam.
- Eles não têm outros suspeitos. Ziggy não era exatamente o tipo de pessoa que fazia inimigos. E eu sou o principal beneficiário do testamento dele. E, além de tudo, sou físico.
- E isso quer dizer que você sabe montar uma bomba?
- Para eles, sim. É meio complicado explicar o que eu faço, mas para eles a coisa é simples: "O cara é cientista, ele deve saber incendiar as pessoas." Se não fosse tão trágico, era para rir mesmo.
Alex fez um sinal para que o barman trouxesse mais duas bebidas.
- Então eles acham que você plantou a bomba e foi para Califórnia, dar a sua palestra?
- É mais ou menos isso o que estão pensando, sim. Pensei que o fato de estar longe de casa por três dias ia servir para livrar a minha cara, mas, pelo visto, a coisa não funciona desse jeito. O investigador de incêndios disse ao meu advogado que o cronômetro usado pelo assassino poderia ter sido colocado com até uma semana de antecedência. Então, continuo na mira deles.
- E você não estaria se arriscando muito? E se Ziggy descesse até o porão e visse?
- A gente quase não descia lá no inverno. O porão estava abarrotado de coisas de verão - canoas, pranchas de windsurfe, móveis de jardim. Guardávamos os nossos esquis na garagem. O que é outro ponto contra mim. Como é que outra pessoa saberia que a armação estaria segura lá embaixo?
Alex rechaçou o argumento com um aceno de mão.
- Quantas pessoas frequentam os seus porões no inverno? Do jeito que eles falam, parece que a máquina de lavar de vocês ficava lá embaixo. Vem cá, esse porão era muito difícil de se arrombar?
- Não muito - respondeu Paul. - Não estava ligado no sistema de segurança da casa, porque o cara que cuidava do nosso jardim no verão tinha que ficar entrando e saindo. E a gente não quis ficar dando os detalhes do alarme para ele. Eu acho que qualquer um determinado a entrar lá não teria encontrado muita dificuldade.
- E, obviamente, qualquer prova do arrombamento teria sido destruída pelo fogo - suspirou Alex.
- De modo que, como você pode ver, a situação não está nada boa pro meu lado.
- Mas isso é loucura. Foi como eu disse, qualquer pessoa que te conhece sabe que você jamais faria algo para machucar Ziggy, quanto mais para matar.
O sorriso de Paul não chegou nem mesmo a suspender o seu bigode.
- Fico grato pela sua confiança, Alex. E nem vou me dar ao trabalho de passar recibo para as acusações deles, negando algo que não fiz. Mas queria que você ficasse sabendo o que andam dizendo por aí. Você sabe como é horrível ser suspeito de um crime que você não cometeu.
Alex estremeceu, apesar do calor do bar aconchegante.
- Eu não desejaria isso para o pior inimigo, quanto menos para um amigo. É horrível. Meu Deus, Paul, espero que eles descubram logo quem fez isso, por você. O que aconteceu com nós quatro estragou a minha vida.
- A de Ziggy também. Ele jamais se esqueceu como a raça humana pode ser hostil, de uma hora para a outra. Isso fez com que ele fosse ultracauteloso em sua maneira de lidar com as pessoas. E por isso a coisa é ainda mais absurda. Ele fez de tudo para não criar inimigos na vida. Não que fosse uma mosca morta...
- Ninguém pode acusá-lo disso - concordou Alex. - Mas você tem razão. Uma resposta gentil espanta a ira. Era o lema dele. Mas e no trabalho dele? Quero dizer, coisas dão errado em hospitais. As crianças morrem, ou não melhoram como o esperado. E os pais precisam pôr a culpa em alguém.
- Estamos nos Estados Unidos, Alex - Paul disse, irônico. - Os médicos aqui não correm riscos desnecessários. Eles morrem de medo de ser processados. É claro que, de tempos em tempos, Ziggy perdia um paciente. E, às vezes, as coisas não saíam como ele esperava. Mas um dos motivos que o faziam ser um pediatra tão bem-sucedido era que ele fazia amizade com os seus pacientes e com as famílias deles. As pessoas confiavam nele, e com razão. Ele era um médico excelente.
- Eu sei disso. Mas às vezes, quando uma criança morre, a lógica desaparece.
- Não aconteceu nada parecido. Se tivesse acontecido, eu teria ficado sabendo. A gente conversava muito, Alex. Mesmo após dez anos de relacionamento, a gente conversava sobre tudo.
- E os colegas dele? Você sabe se ele andou irritando alguém?
Paul balançou a cabeça.
- Acho que não. Ele era muito exigente e eu acho que nem todo mundo que trabalhava com ele conseguia acertar tudo, o tempo todo. Mas ele escolheu a equipe com o maior cuidado. E o clima lá na clínica era ótimo. Acho que não tinha uma pessoa lá dentro que não respeitasse Ziggy. Cara, essas pessoas são nossos amigos. Eles iam para os churrascos lá de casa, a gente tomava conta dos filhos deles. Sem Ziggy para dirigir a clínica, o futuro deles seria ameaçado.
- Você está falando como se ele fosse perfeito - disse Alex. - E nós dois sabemos muito bem que ele não era.
Desta vez, o sorriso de Paul alcançou os seus olhos.
- Não, ele não era perfeito. Perfeccionista, talvez. E isso era de enlouquecer qualquer um. Da última vez que fomos esquiar, pensei que fosse ter que arrastar ele da montanha à força. Tinha uma volta na descida que ele não conseguia fazer direito. Todas as vezes que tentou, fez errado. E aí, tínhamos que subir tudo de novo. Mas você não mata uma pessoa porque ela é cheia de merda. Se eu quisesse me livrar de Ziggy, era só ir embora. Não é? Eu não precisaria matá-lo.
- Mas você não queria se livrar dele, aí é que está.
Paul mordeu os lábios e ficou olhando para os anéis de cerveja derramada sobre o tampo da mesa.
- Eu daria tudo para tê-lo de volta - disse ele, baixinho.
Alex esperou um pouco, até Paul se recompor.
- Eles vão descobrir quem fez isso - disse ele, por fim.
- Você acha? Gostaria de poder concordar com você. Mas o que não me sai da cabeça é o que aconteceu com vocês quatro, anos atrás. Eles nunca descobriram quem matou aquela moça. E todo mundo passou a olhar vocês com outros olhos por causa disso. - Ele suspendeu a cabeça e olhou para Alex. - Eu não sou forte como Ziggy. Não sei se vou aguentar viver assim.
25
Com os olhos marejados, Alex tentou concentrar-se nas palavras impressas no folheto da cerimônia. Se alguém lhe perguntasse que música da lista o teria comovido até as lágrimas no funeral de Ziggy, ele provavelmente teria escolhido "Rock and Roll Suicide", de David Bowie, com a sua desafiadora recusa final de solidão. Mas aguentou firme durante a música, sustentado pelas vívidas imagens de um jovem Ziggy projetadas no telão no fundo do crematório. Mas não conseguiu se segurar quando o Coral Masculino Gay de São Francisco começou a cantar um trecho de Brahms, adaptado de uma passagem da carta de São Paulo aos Coríntios, sobre fé, esperança e amor. Wir sehen jetzt durch einen Spiegel in einem dunkeln Worte; nós vemos agora através do espelho, obscuramente. As palavras pareciam dolorosamente apropriadas. Nada do que ouvira sobre a morte de Ziggy fazia sentido, nem lógica nem metafisicamente.
Lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas ele não ligava nem um pouco. Não era a única pessoa chorando no crematório lotado e estar longe de casa parecia libertá-lo da sua habitual reserva emocional. Esquisito estava ao seu lado, empertigado em uma batina feita sob medida que o deixava mais papagaiado do que qualquer um dos gays presentes no local prestando as suas últimas homenagens a Ziggy. Não estava chorando, é claro. Os seus lábios moviam-se constantemente, o que Alex supunha ser um sinal de devoção e não de doença mental, uma vez que a mão de Esquisito volta e meia buscava o conforto da ridícula e chamativa cruz banhada de prata que trazia no peito. Quando a viu pela primeira vez no aeroporto, Alex quase soltou uma gargalhada. Esquisito caminhou em sua direção, confiante, largando o carrinho com a sua mala para envolver o velho amigo em um abraço teatral. Alex notou como a sua pele parecia esticada e especulou se ele havia se submetido a uma cirurgia plástica.
- Foi bonito da sua parte ter vindo - disse Alex, conduzindo Esquisito até o carro que ele alugara pela manhã.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo. Junto com você e com Mondo. Eu sei que as nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas nada pode mudar isso. A vida que eu levo agora, devo em parte à amizade que compartilhamos. E eu seria um cristão muito pouco digno se ignorasse isso.
Alex não conseguia entender por que tudo o que Esquisito dizia soava como se fosse preparado para um público. Sempre que ele abria a boca, era como se tivesse uma congregação imaginária à sua frente, atenta a cada palavra que ele dizia. Encontraram-se pouquíssimas vezes nos últimos vinte anos, mas era sempre a mesma coisa. Crente dos infernos, era como Lynn o batizara na primeira vez que o visitaram na pequena cidade da Geórgia onde ele estabelecera o seu ministério. O apelido continuava tão apropriado agora quanto fora na época.
- E como está Lynn? - perguntou Esquisito assim que se acomodou no assento do carona, alisando o seu impecável hábito clerical.
- Com sete meses de gravidez, e passando muitíssimo bem - respondeu Alex.
- Louvado seja o Senhor! Eu sei o quanto vocês esperaram por isso. - O rosto de Esquisito iluminou-se no que parecia ser um sorriso sincero. Mas também, ele já havia passado tanto tempo na frente das câmeras para a sua pregação televisiva em um canal local que ficava difícil distinguir a aparência da realidade. - Agradeço a Deus pela bênção que são as crianças. As lembranças mais felizes que eu trago comigo são dos meus cinco filhos. O amor que um homem sente pelos filhos é mais profundo e mais puro do que qualquer outra coisa neste mundo. Alex, tenho certeza de que você vai adorar esta mudança na sua vida.
- Obrigado, Esquisito.
O reverendo encolheu-se, fazendo uma careta.
- Pode ir parando por aí - disse ele. - Acho que esse apelido não é mais adequado atualmente.
- Desculpa. É um velho hábito. Você sempre será Esquisito para mim.
- Ah, é? E quem é que te chama de Gilly hoje em dia?
Alex assentiu com a cabeça.
- Você tem razão. Eu vou tentar me lembrar. Tom.
- Eu agradeço, Alex. E se você quiser batizar a criança, ficarei feliz em realizar a cerimônia.
- Acho que não vamos embarcar nessa, não. O nosso filho vai poder decidir depois, quando tiver idade suficiente.
Esquisito apertou os lábios, em um flagrante gesto de reprovação.
- A escolha é sua, é claro. - As entrelinhas estavam bem claras. Condene o seu filho à perdição eterna, se é isso o que você quer fazer. Ele olhou pela janela para a paisagem em movimento. - Para onde estamos indo?
- Paul reservou um quarto para você no hotel onde estamos hospedados.
- E é próximo ao local do incêndio?
- Uns dez minutos. Por quê?
- Gostaria de ir até lá primeiro.
- Por quê?
- Quero fazer uma oração.
Alex suspirou.
- Está bem. Olha, tem algo que você precisa saber. A polícia está achando que o incêndio foi criminoso.
Esquisito abaixou a cabeça, solene.
- Eu já havia imaginado isso.
- Sério? Por quê?
- Ziggy escolheu um caminho perigoso. Vai saber que tipo de gente ele levou para dentro de casa? Que alma tortuosa ele não levou a cometer atos tresloucados?
Alex esmurrou o volante.
- Puta que pariu, Esquisito. Não está escrito lá na Bíblia, "Não julgue, para não ser julgado"? Quem diabos você pensa que é para falar uma merda dessas? Sejam quais forem os seus preconceitos sobre o estilo de vida de Ziggy, é melhor deixar isso de lado agora. Ziggy e Paul eram monogâmicos. Nenhum dos dois transou com outra pessoa nos últimos dez anos.
Esquisito deu um sorrisinho condescendente e Alex teve vontade de esmurrá-lo.
- Você sempre acreditou em tudo o que Ziggy dizia.
Alex não queria brigar. Engoliu a sua resposta malcriada e disse:
- O que eu estava tentando te dizer é que a polícia encasquetou com esta ideia absurda de que Paul foi o responsável pelo incêndio. Então vê se faz um esforcinho para ser mais compreensivo perto dele, tá?
- Por que você acha que é uma ideia absurda? Eu não sei como a polícia trabalha mas, pelo que me disseram, a maioria dos homicídios que não têm nenhuma relação com gangues é cometida pelos cônjuges. E já que você me pediu para ser compreensivo, estou pressupondo que Paul seja o cônjuge de Ziggy. Se eu trabalhasse na polícia, me consideraria negligente se não levantasse esta possibilidade.
- Tudo bem. Este é o trabalho deles. Mas nós somos amigos de Ziggy. Lynn e eu convivemos bastante com o casal ao longo dos anos. E, vai por mim, aquele não era um relacionamento que estava caminhando para um assassinato. Você deve lembrar como é ser suspeito de um crime que não cometeu. Imagina como deve ser bem pior quando a pessoa em questão era alguém que você amava. Enfim, é isso o que está acontecendo com Paul. E é ele quem merece o nosso apoio, e não a polícia.
- Tá bem, tá bem - resmungou Esquisito inquieto, perdendo a compostura momentaneamente ao lembrar-se do medo que o levara para os braços da igreja. Ficou quieto pelo resto da viagem, com a cabeça virada para a paisagem fugaz na janela para evitar as olhadas ocasionais de Alex em sua direção.
Alex pegou a saída da autoestrada e prosseguiu para a casa de Ziggy e Paul. Sentiu uma contração na barriga quando eles se aproximaram da rua coberta de cascalho que ziguezagueava pelas árvores. A sua imaginação já correra solta, recriando imagens do incêndio. Mas quando ele fez a última curva e viu o que restou da casa, constatou que, infelizmente, a sua imaginação fértil pintara um quadro muito menos chocante. Ele imaginara uma fachada negra e manchada. Mas o que viu foi uma destruição praticamente completa.
Sem fala, Alex parou o carro, devagar. Desceu e ensaiou uns passos lentos até as ruínas da casa. Para sua surpresa, o cheiro de queimado ainda estava impregnado no ar, irritando a garganta e as narinas. Olhou demoradamente para as ruínas carbonizadas diante dele, mal conseguindo sobrepor a sua memória da casa sobre aquele caos. Pôde distinguir algumas vigas, fincadas em ângulos esquisitos, mas era quase impossível reconhecer mais alguma coisa. A casa deve ter incendiado como uma tocha encharcada de piche. As árvores mais próximas também haviam sido tragadas pelo fogo; era possível distinguir a vista do mar e das ilhas através dos seus esqueletos retorcidos.
Alex mal percebeu Esquisito passando por ele. De cabeça abaixada, o pastor estacou diante das faixas amarelas da polícia que contornavam os destroços carbonizados. Então, jogou a cabeça para trás e o seu espesso cabelo grisalho parecia brilhar com a claridade.
- Oh, Senhor - começou ele, e a sua voz parecia ainda mais sonora ao ar livre.
Alex fez esforço para não rir. Sabia que aquilo devia ser em parte uma reação nervosa à comoção que a ruína da casa provocara nele. Mas não dava para segurar. Qualquer um que tivesse visto Esquisito doidão de ácido ou vomitando em uma sarjeta no fim da noite não conseguiria levar a performance dele a sério. Alex voltou para o carro, batendo a porta para não ter de ouvir as baboseiras que Esquisito estava declamando para as nuvens. Sentiu-se tentado a ir embora e deixar o pregador exposto às intempéries. Mas Ziggy jamais abandonara Esquisito - nem qualquer um deles, por sinal. E, àquelas alturas, o máximo que Alex podia fazer por Ziggy era ser leal às suas convicções. Por isso, não saiu do lugar.
Uma série de imagens visuais bem nítidas projetava-se em sua mente. Ziggy dormindo em sua cama; uma faísca repentina de fogo; as chamas lambendo a madeira; a fumaça viajando por cômodos familiares; Ziggy agitando-se vagamente assim que os vapores insidiosos invadiram o seu aparelho respiratório; o contorno embaçado da casa oscilando por trás de uma névoa de calor e fumaça; e Ziggy, inconsciente, no coração das chamas. Era quase insuportável e Alex queria dispersar aquelas imagens da cabeça. Tentou pensar em Lynn, mas não conseguia manter a imagem dela por muito tempo. O que ele mais queria era ir embora dali, para qualquer lugar onde a sua mente pudesse se concentrar em uma vista diferente.
Após uns dez minutos, Esquisito voltou para o carro, trazendo uma lufada de vento gelado consigo.
- Brrr. Essa história de que o inferno é quente nunca me convenceu. Se dependesse de mim, seria mais gelado do que um frigorífico.
- Tenho certeza de que você vai poder dar uma palavrinha com Deus sobre o assunto quando chegar ao céu. Podemos voltar para o hotel agora?
Aparentemente, a viagem satisfizera o desejo de Esquisito pela companhia de Alex. Assim que deu entrada no hotel, anunciou que tinha chamado um táxi para levá-lo até Seattle. "Tem um colega meu morando aqui, quero ver se passo um tempinho com ele", justificara Esquisito. Combinou de encontrar com Alex na manhã seguinte para irem juntos ao funeral e pareceu estranhamente murcho. Mesmo assim, Alex temia o que Esquisito poderia aprontar.
O coral terminou de cantar Brahms e Paul levantou-se e caminhou até o atril.
- Estamos reunidos aqui porque Ziggy era especial para todos nós - disse ele, lutando para manter a voz sob controle. - Mesmo que eu passasse o dia inteiro falando, não conseguiria transmitir nem metade do que ele significava para mim. Por isso, não vou nem tentar. Mas se algum de vocês quiser compartilhar as suas memórias de Ziggy, tenho certeza de que todos nós gostaríamos de ouvir.
Um pouco antes de ele terminar de proferir essas palavras, um senhor idoso levantou-se na primeira fileira e caminhou rigidamente até a plataforma. Quando ele se virou para encarar o público, Alex pôde ver o fardo de se enterrar um filho. Karel Malkiewicz parecia ter encolhido, os seus ombros largos estavam curvados e os seus olhos escuros pareciam mais fundos, como enterrados no crânio. Não via o pai viúvo de Ziggy havia alguns anos, mas a mudança era deprimente.
- Sinto saudade do meu filho - disse ele com o sotaque polonês ainda por trás do escocês. - Durante toda a minha vida, tive orgulho dele. Ele sempre se preocupou com os outros, desde pequeno. Sempre foi ambicioso, mas nunca por benefício próprio. Sempre quis dar o melhor de si, pois era assim que ele podia fazer o melhor pelos outros. Ziggy nunca se preocupou muito com o que as pessoas pensavam dele. Sempre disse que seria julgado pelo que fazia e não pelas opiniões dos outros. Fico feliz em ver tanta gente aqui hoje, porque isso significa que vocês entendiam o meu filho. - Ele tomou um gole de água. - Eu amava o meu filho. Talvez não tenha dito isso o bastante. Mas espero que ele tenha morrido sabendo. - Ele abaixou a cabeça e voltou para o seu lugar.
Alex beliscou o cavalete do nariz, tentando conter as lágrimas. Um após o outro, amigos e colegas de Ziggy deram o seu depoimento. Alguns se limitaram a dizer o quanto o amavam e que sentiriam muita saudade. Outros contaram casos, alguns tocantes e engraçados, sobre o seu relacionamento com Ziggy. Alex queria se levantar e dizer alguma coisa, mas sabia que não podia confiar na sua voz, que ela ficaria embargada assim que ele abrisse a boca. Então, o momento que ele temia chegou. Sentiu Esquisito movendo-se ao seu lado e ficando de pé. Alex resmungou baixinho.
Vendo o amigo caminhar até a plataforma, Alex admirou-se com o porte que ele adquirira ao longo dos anos. Ziggy sempre fora o mais carismático, ao passo que Esquisito era o mais desajeitado do grupo, aquele que sempre dizia a coisa errada, fazia a coisa errada, tocava a nota errada. Mas ele aprendera a sua lição direitinho. Um alfinete caindo teria sido ouvido enquanto Esquisito se preparava para falar.
- Ziggy era o meu amigo mais antigo - entoou ele. - Eu não aprovava o caminho que ele havia escolhido. E ele me achava um sujeito idiota. Talvez até mesmo um charlatão. Mas isso nunca fez a menor diferença. O elo que existia entre nós dois era forte o bastante para sobreviver a esta pressão. Isso porque os anos que passamos juntos costumam ser os mais difíceis na vida de qualquer homem, os anos em que se passa da infância para a idade adulta. Todos nós enfrentamos dificuldades durante esse período, tentando descobrir quem somos e o que temos a oferecer ao mundo. E alguns de nós têm a sorte de ter um amigo como Ziggy, para nos ajudar quando fazemos besteira.
Alex assistia, incrédulo. Mal podia acreditar no que ouvia. Estava esperando a velha história de fogo do inferno e danação e, ao invés, o que estava escutando era amor puro. Surpreendeu-se sorrindo, apesar das circunstâncias.
- Éramos quatro - continuou Esquisito. - Os Garotos de Kirkcaldy. Nos conhecemos no primeiro dia de aula na escola e algo mágico aconteceu. Viramos melhores amigos. Compartilhamos os nossos medos mais recônditos e as nossas maiores vitórias. Durante alguns anos, formamos a pior banda de rock do mundo, e não estávamos nem aí. Em qualquer grupo, cada um assume um papel. Eu era o doidivanas. O palhaço. Aquele que sempre tomava atitudes radicais. - Esquisito deu de ombros, com uma expressão depreciativa no rosto. - Alguns dizem que ainda sou assim. Mas foi Ziggy quem me salvou de mim mesmo. Foi Ziggy quem impediu que eu me destruísse. Ele me protegeu dos piores excessos da minha personalidade até o dia em que encontrei um Redentor maior. Mas mesmo então, ele não me abandonou.
"Não nos vimos com muita frequência nos últimos anos. As nossas vidas estavam ocupadas demais com o presente. Mas isso não significava que tivéssemos jogado o nosso passado fora. Ziggy continuou sendo um exemplo para mim, em vários aspectos. Não vou fingir que aprovava todas as suas escolhas. Vocês me tomariam como hipócrita se eu fizesse isso. Mas hoje, aqui, nada disso importa. O que importa é que o meu amigo está morto e, com a sua morte, uma luz se apagou para sempre na minha vida. E nenhum de nós pode perder uma luz como essa. Por isso, hoje, eu lamento a morte de um homem que tornou o meu caminho até a salvação muito mais fácil. Tudo o que eu posso fazer pela memória de Ziggy é tentar fazer o mesmo por qualquer pessoa que cruze o meu caminho precisando de ajuda. Se eu puder ajudar qualquer um de vocês hoje, não hesitem em me procurar, em se apresentar a mim. Por Ziggy. - Esquisito olhou em torno do aposento, ostentando um sorriso extasiado. - Agradeço a Deus pelo dom de Sigmund Malkiewicz. Amém.
Tudo bem, pensou Alex. Ele teve uma recaída no final. Mas Esquisito deixara Ziggy orgulhoso, à sua própria maneira. Quando o seu amigo se sentou novamente, Alex esticou o braço e apertou a sua mão. E Esquisito, retribuindo o gesto, não a largou.
Saíram em fila indiana, parando para cumprimentar Paul e Karel Malkiewicz. Lá fora, sob a fraca luz do sol, deixaram-se levar até o local onde estavam depositadas as últimas homenagens a Ziggy. Apesar de Paul ter pedido para que quem não fosse da família não mandasse flores, havia umas duas dúzias de buquês e coroas.
- Ele tinha um jeito de fazer com que todos nós nos sentíssemos da família - comentou Alex.
- Éramos irmãos de sangue - disse Esquisito, suavemente.
- Foi bonito o que você falou lá em cima.
Esquisito sorriu.
- Não era o que você estava esperando, né? Dava para ver na sua cara.
Alex não respondeu. Inclinou-se para ler um cartão. Querido Ziggy, o mundo ficou grande demais sem você. Com amor, de todos os seus amigos da clínica. Ele sabia exatamente o que eles queriam dizer. Deu uma olhada em todos os outros cartões, depois parou na última coroa. Era pequena e discreta, feita de rosas brancas e alecrim. Alex leu o cartão e franziu a testa. Lembrança de Rosemary.
- Viu isso? - perguntou a Esquisito.
- Bom gosto - aprovou ele.
- Você não achou meio... sei lá. Muito íntimo.
Esquisito franziu as sobrancelhas.
- Acho que você está vendo fantasma onde não existe. É uma homenagem bem apropriada.
- Esquisito, ele morreu no vigésimo quinto aniversário da morte de Rosie Duff. O cartão não está assinado. Você não acha meio suspeito?
- Alex, isso é passado. - Esquisito abriu os braços, em um gesto que englobava as pessoas presentes no local. - Você realmente acha que existe alguém aqui além de nós dois que já ouviu o nome de Rosie Duff? É só um cartão meio afetado, o que era de se esperar, tendo em vista o pessoal que está aqui.
- Eles reabriram o caso, você sabe, né? - Alex podia ser tão teimoso quanto Ziggy quando cismava com alguma coisa.
Esquisito pareceu surpreso.
- Não, não sabia.
- Eu li no jornal. Estão fazendo uma revisão de casos não solucionados, levando em consideração os novos progressos tecnológicos. DNA, etc.
Esquisito pôs a mão sobre a sua cruz.
- Graças a Deus.
Intrigado, Alex perguntou:
- Você não fica com medo de as velhas mentiras serem trazidas à tona novamente?
- Por quê? Não temos nada a temer. Pelo menos, vão limpar os nossos nomes.
Alex estava visivelmente preocupado.
- Quem dera se as coisas fossem assim tão simples.
O Dr. David Kerr empurrou o seu laptop, bufando de irritação. Estava tentando aprimorar o primeiro esboço de um artigo sobre poesia francesa contemporânea havia uma hora, mas as palavras faziam cada vez menos sentido conforme ele contemplava fixamente a tela do computador. Tirou os óculos e esfregou os olhos, tentando se convencer de que não havia nada o incomodando além do habitual cansaço de final de semestre. Mas sabia que estava mentindo para si mesmo.
Por mais que tentasse desviar o pensamento, não conseguia ignorar que, enquanto ele estava ali sentado remexendo no seu texto, os amigos e a família de Ziggy estavam se despedindo dele, do outro lado do mundo. Não estava arrependido por não ter ido; Ziggy representava uma parte da sua história tão longínqua que parecia uma experiência de vida passada e não achava que devia tanto assim ao seu velho amigo para compensar o trabalho e a chateação de ter de viajar para Seattle para um funeral. Mas a notícia da morte de Ziggy reacendeu lembranças que David Kerr esforçara-se para enterrar profundamente, de modo que não voltassem à superfície para perturbá-lo. Não eram lembranças confortáveis.
Ainda assim, quando o telefone tocou, ele atendeu sem nenhuma apreensão.
- Dr. Kerr? - A voz não era familiar.
- Ele mesmo. Quem fala?
- É o detetive-inspetor Robin Maclennan, da polícia de Fife. - Ele falou devagar, pronunciando palavra por palavra, como um homem que sabe que bebeu além da sensatez.
David estremeceu sem querer, sentindo-se de repente tão gelado quanto se estivesse novamente imerso no mar do Norte.
- E por que está me ligando? - perguntou ele, protegendo-se atrás da sua agressividade.
- Faço parte da equipe que está reexaminando os casos não solucionados. O senhor deve ter lido nos jornais, não é?
- Isso não responde a minha pergunta - retrucou David.
- Gostaria de conversar com o senhor sobre as circunstâncias da morte do meu irmão. O detetive-inspetor Barney Maclennan.
David foi pego de surpresa e ficou sem fala diante da abordagem direta. Sempre temera um momento como aquele mas, depois de vinte e cinco anos, convencera-se de que ele jamais aconteceria.
- O senhor ainda está aí? - perguntou Robin. - Eu disse que gostaria de conversar sobre...
- Eu ouvi - respondeu David asperamente. - Não tenho nada a dizer ao senhor. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo se o senhor me prender. Vocês já destruíram a minha vida uma vez. Não vou dar oportunidade para que façam isso novamente. - Bateu o telefone no gancho, com a respiração arquejante e as mãos trêmulas. Cruzou os braços sobre o peito em um abraço. O que estava acontecendo? Não fazia a menor ideia que Barney Maclennan tinha um irmão. Por que ele havia esperado tanto tempo para tomar satisfações com David sobre aquela tarde pavorosa? Por que estava levantando o assunto agora? Quando ele mencionou a revisão dos casos, David teve certeza de que ele queria falar sobre Rosie Duff, o que já teria sido por si só inadmissível. Mas Barney Maclennan? Não era possível que a polícia de Fife tivesse decidido, após vinte e cinco anos, que havia sido um assassinato.
Estremeceu novamente, olhando pela janela para a noite lá fora. O pisca-pisca das árvores de Natal nas casas da rua pareciam milhares de olhos o espiando. Levantou-se abruptamente e fechou as cortinas da sua sala de leitura. Depois, encostou-se na parede de olhos fechados, sentindo o coração disparado. David Kerr fizera de tudo para enterrar o passado. Fizera o possível para que ele não o encontrasse. Obviamente, não fora o bastante. Agora, só restava uma opção. A questão era: será que ele teria coragem de executá-la?
26
A luz da sala de leitura foi subitamente obscurecida por pesadas cortinas. O observador franziu as sobrancelhas. Aquilo era uma quebra na rotina. E ele não gostava disso. Ficou preocupado com o que havia provocado a mudança. Mas, finalmente, as coisas voltaram ao normal. As luzes se apagaram no andar de baixo. Já estava familiarizado com o padrão. Um abajur se acenderia no quarto da frente da sofisticada casa de três andares e então a silhueta da mulher de David Kerr surgiria na janela. Ela fecharia as cortinas, deixando apenas uma pequena fresta. Quase simultaneamente, uma poça oblonga de luz surgiria no telhado da garagem. O banheiro, imaginava ele. Possivelmente, David Kerr fazendo a sua toalete noturna. Tal como Lady Macbeth, as suas mãos jamais ficavam limpas. Uns vinte minutos depois, as luzes do quarto se apagariam. E nada mais aconteceria naquela noite.
Graham Macfadyen girou a chave na ignição e partiu. Estava começando a se compadecer com a vida de David Kerr, mas ainda tinha tanta coisa que queria descobrir. Por que, por exemplo, ele não fizera o mesmo que Alex Gilbey e pegara um avião para Seattle. Aquilo fora um ato de extrema frieza. Como não prestar as últimas homenagens a alguém que não só foi um dos seus amigos mais antigos, como o seu parceiro em um crime?
A não ser, é claro, que eles tivessem se desentendido. As pessoas falam sobre brigas entre ladrões. É natural que também haja brigas entre assassinos. O tempo e a distância deviam ter contribuído para o afastamento. As consequências imediatas do crime que cometeram não foram nada óbvias. Sabia disso agora, graças ao seu tio Brian.
A lembrança da conversa com o tio ocupava a maior parte das suas horas de vigília, ocorrendo-lhe sem cessar, como um cordão mental de contas de preocupação, cujo movimento reforçava ainda mais a sua determinação. Ele só queria encontrar os seus pais verdadeiros; jamais imaginara ser consumido por esta busca por uma verdade maior. Mas era assim que se sentia. Outros poderiam ver nisso uma obsessão a ser descartada, o que era típico de quem não compreende a natureza do compromisso e a necessidade de justiça. Estava convencido de que a sombra inquieta da sua mãe o espreitava, encorajando-o a fazer o que fosse necessário. Esta era a última coisa que pensava antes de ser vencido pelo sono e o seu primeiro pensamento consciente ao se levantar. Alguém precisava pagar pelo crime.
O tio não ficara nada contente com o encontro no cemitério. No início, Macfadyen chegou a pensar que o homem fosse agredi-lo fisicamente. As mãos estavam fechadas em punho e ele abaixara a cabeça como um touro, prestes a atacar.
Macfadyen mantivera-se firme.
- Só quero conversar um pouco sobre a minha mãe - dissera ele.
- Não tenho nada para te dizer - retrucara Brian Duff.
- Só quero saber como ela era.
- Pensei que Jimmy Lawson tivesse pedido para você não me procurar.
- Lawson veio te procurar para falar de mim?
- Não fique vaidoso, meu filho. Ele me procurou para falar sobre a nova investigação sobre o assassinato da minha irmã.
Macfadyen assentiu com a cabeça.
- Então ele te contou que perderam as provas, né?
Duff fez um gesto afirmativo.
- Hum-hum. - Ele abaixou os braços e desviou o olhar. - Babacas inúteis.
- Já que o senhor não quer falar sobre a minha mãe, pode ao menos me contar o que aconteceu quando ela foi assassinada? Preciso saber o que houve. E o senhor estava presente.
Duff sabia reconhecer persistência quando via um exemplo vivo diante de si. Era, afinal de contas, uma característica que aquele estranho compartilhava com ele e com o seu irmão.
- Você não vai desistir, não é? - perguntou ele, amargo.
- Não, não vou. Olha, eu nunca esperei ser aceito de braços abertos pela minha família biológica. Sei que o senhor deve achar que não faço parte da família. Mas eu tenho o direito de conhecer as minhas origens e o que aconteceu com a minha mãe.
- Se eu te contar, você promete que vai sumir daqui e nos deixar em paz?
Macfadyen refletiu por um momento. Era melhor do que nada. E talvez ele conseguisse descobrir uma maneira de neutralizar as defesas de Brian Duff, deixando uma brecha para o futuro.
- Está bem - concordou ele.
- Você conhece o Pub Lammas?
- Estive lá algumas vezes.
Duff suspendeu as sobrancelhas.
- Te encontro lá em meia hora. - Virou-se e partiu. Enquanto a escuridão engolia o seu tio, Macfadyen sentiu uma emoção subir pela garganta como bile. Estava há tanto tempo procurando respostas que a perspectiva de finalmente conseguir algumas era quase insuportável.
Voltou correndo para o carro e foi direto para o Bar Lammas, arrumando um cantinho tranquilo para poderem conversar em paz. Os seus olhos perscrutaram o local, imaginando se ele havia mudado muito desde a época em que Rosie trabalhava atrás do balcão. Tudo indicava que o lugar sofrera uma reforma significativa no início da década de 90, mas a julgar pela pintura descascada e a atmosfera geral de depressão, o Lammas nunca deve ter sido exatamente um pub muito divertido.
Macfadyen já estava na metade da sua cerveja quando Brian Duff abriu a porta e seguiu direto para o bar. Ele era visivelmente um habitué da casa; a garçonete foi buscar um copo antes mesmo de ele fazer o pedido. Armado com a sua cerveja gelada, juntou-se a Macfadyen.
- Pois bem - disse ele. - O que você sabe?
- Só o que li naqueles arquivos de jornais. E também encontrei alguma coisa em um livro sobre crimes não solucionados que eu descobri. Mas só estou por dentro dos fatos.
Duff tomou um longo gole da cerveja, sem tirar os olhos de Macfadyen.
- Fatos, talvez. A verdade? Longe disso. Porque não dá para chamar as pessoas de assassinas sem que um júri chame primeiro.
O coração de Macfadyen acelerou. Parecia que as suas suspeitas não eram infundadas.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
Duff respirou fundo, soltando o ar devagar. Era óbvio que ele não estava disposto a prosseguir com aquela conversa.
- Deixa eu te contar a história. Na noite em que morreu, Rosie estava trabalhando aqui. Atrás do balcão. Às vezes eu dava uma carona pra ela até em casa, mas nessa noite não. Ela disse que ia a uma festa, mas a verdade é que ia se encontrar com alguém depois do trabalho. Todos nós sabíamos que ela estava se encontrando com alguém, mas ela não queria contar quem era o sujeito de jeito nenhum. Rosie era chegada a uns segredinhos. Mas eu e Colin achávamos que ela estava escondendo o namorado porque pensava que não íamos aprovar o cara, sabe? - Duff coçou o queixo. - Nós pegávamos meio pesado mesmo para defender Rosie. Depois que ela engravidou, então... Enfim, não estávamos a fim de ver a nossa irmã envolvida com outro fracassado.
"Bom, ela foi embora depois que o pub encerrou as suas atividades e ninguém viu com quem ela se encontrou. É como se ela tivesse desaparecido da face da terra por quatro horas. - Agarrou o copo de cerveja com firmeza, exibindo os nós esbranquiçados dos dedos. - Lá pelas quatro horas da manhã, quatro estudantes que estavam voltando de uma festa, completamente embriagados, encontraram o corpo dela, estirado na neve, lá em Hallow Hill. A versão oficial é que eles literalmente tropeçaram sobre ela. - Ele balançou a cabeça. - Mas no lugar onde ela estava, era impossível encontrá-la por acaso. Essa é a primeira coisa que você tem que se lembrar.
"Ela levou uma única facada na barriga. Mas era uma ferida ingrata. Dessas bem profundas, que saem perfurando tudo. - Duff suspendeu os ombros, protetoramente. - Ela sangrou até morrer. E o assassino a levou até lá e a largou no chão, na neve, como se ela fosse um saco de estrume. Essa é a segunda coisa que você tem que lembrar. - A voz dele estava tensa e entrecortada e dava para ver que a emoção ainda o arrebatava, mesmo depois de vinte e cinco anos.
"Disseram que ela deve ter sido estuprada. Tentaram vir com uma história para cima da gente, de que em vez do estupro podia ter sido apenas uma relação sexual violenta, mas eu nunca engoli isso, não. Rosie aprendera a sua lição. Ela não se deitava com os sujeitos com quem saía. Os policiais disseram que ela estava enrolando a mim e Colin com esse papo. Mas nós andamos sondando uns caras com quem ela saiu e eles juraram de pés juntos que nunca transaram com ela. E eu acreditei, porque a gente não pegou leve com eles, não. É claro que rolavam umas sacanagens. Sexo oral, masturbação, essas coisas. Mas ela não transava com eles. Donde se conclui que ela só pode ter sido estuprada. E encontraram sêmen nas roupas dela. - Ele bufou, irado. - Não acredito que aqueles fodidos inúteis perderam as provas. Era tudo o que eles precisavam, o teste de DNA faria o resto do serviço. - Brian tomou mais alguns goles da cerveja. Macfadyen aguardava, tenso como um cão de caça em alerta. Tinha medo de falar alguma coisa e dissipar o feitiço.
"Pois bem, foi isso o que aconteceu com a minha irmã. E nós queríamos descobrir quem foi que fez isso com ela. A porra da polícia não fazia a menor ideia. Eles deram uma investigada nos quatro estudantes que encontraram Rosie, mas nunca partiram para cima deles direito. Tá vendo como é esta cidade? Ninguém quer levar problemas para a universidade. E naquela época, ainda era pior.
"Guarde estes nomes. Alex Gilbey, Sigmund Malkiewicz, Davey Kerr, Tom Mackie. São os quatro sujeitos que encontraram a minha irmã. Que apareceram cobertos de sangue, mas com uma desculpa tida como justificável. E o que eles estavam fazendo durante as quatro horas misteriosas? Estavam em uma festa. Em uma festinha de colegas da universidade, enchendo a cara, onde ninguém presta atenção em ninguém. Eles podem ter saído e voltado sem ninguém ter percebido. Quem pode garantir que eles estiveram lá o tempo todo, ou só durante uma meia hora no início e uma meia hora no final da festa? E, como se não bastasse, eles ainda estavam com uma Land Rover.
Macfadyen sobressaltou-se.
- Não li este detalhe em nenhuma das minhas fontes.
- Não, nem pode ter lido. Eles roubaram uma Land Rover, de um sujeito que morava com eles. Passaram a noite toda com ela, para lá e para cá.
- E por que não foram acusados? - perguntou Macfadyen.
- Boa pergunta. Que nunca foi respondida, por sinal. Possivelmente, por causa disso que eu te disse ainda agora. Ninguém quer levar problemas para a universidade. Talvez os policiais não quisessem perder tempo com acusações menores, já que não conseguiam provar a acusação realmente séria. Teria sido patético.
Brian pousou o copo na mesa e começou a enumerar os pontos com os dedos.
- Então, eles não tinham um álibi de verdade. Estavam com um veículo perfeito para dirigir por aí carregando um corpo em uma nevasca. Costumavam beber aqui no Lammas. Conheciam Rosie. Eu e Colin sempre achamos que os estudantes eram um bando de desclassificados que usavam garotas como Rosie até encontrarem alguém melhor para casar e ela sabia disso, então acho que ela jamais teria dito pra gente que estava saindo com um estudante. Um deles chegou a confessar que tinha convidado Rosie para a tal festa. E, pelo que me disseram, o esperma nas roupas de Rosie pode ter sido ou de Sigmund Malkiewicz, ou de Davey Kerr ou de Tom Mackie. - Brian se recostou, momentaneamente exausto pela intensidade do seu monólogo.
- Não apareceram outros suspeitos?
Brian deu de ombros.
- Tinha o tal namorado misterioso. Mas, como eu disse, ele pode muito bem ter sido um dos quatro. Jimmy Lawson veio com uma ideia de jerico de que ela tinha sido capturada por um maníaco para ser sacrificada em um ritual satânico. Ele achava que era por isso que ela tinha sido desovada no cemitério. Mas ninguém nunca encontrou nenhuma prova disso. Além do mais, como é que o tal maníaco teria encontrado Rosie? Não era possível que ela estivesse passeando por aí com um tempo daqueles.
- O que o senhor acha que aconteceu naquela noite? - Macfadyen não conseguiu conter a pergunta.
- Eu acho que ela estava saindo com um deles. Acho que ele ficou de saco cheio de não conseguir avançar o sinal com ela. Acho que ele a estuprou. Deus me livre, mas vai ver até que os quatro a estupraram. Não tenho certeza. Quando perceberam o que tinham feito, se tocaram que estariam fodidos se deixassem ela viva para contar a história. Ia ser o fim dos seus sonhados diplomas, dos seus futuros brilhantes. Aí eles mataram Rosie. - Houve um longo silêncio.
Macfadyen foi o primeiro a falar.
- Eu nunca soube quais eram os três com esperma compatível.
- Isso nunca foi divulgado. Mas a polícia sabia, dá no mesmo. Um colega meu estava saindo com uma garota que trabalhava na polícia. Ela era civil, mas estava por dentro das coisas. Com o que eles tinham sobre os quatro, foi um crime a polícia ter deixado eles escaparem.
- Eles não chegaram nem a ser presos?
Duff fez um gesto negativo com a cabeça.
- Foram interrogados, mas não deu em nada. Continuam soltos por aí. Livres como pássaros. - Ele terminou a cerveja. - Bem, agora você já sabe o que aconteceu. - Brian arrastou a cadeira, prestes a ir embora.
- Espere - pediu Macfadyen, suplicante.
Brian parou, impaciente.
- Como é que vocês nunca fizeram nada a respeito?
Brian deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco.
- Quem disse que não fizemos?
- Bom, foi o senhor mesmo quem acabou de falar que eles estão soltos por aí, livres como pássaros.
Brian suspirou tão profundamente que o seu bafo azedo de cerveja inundou as narinas de Macfadyen.
- Não podíamos fazer muita coisa. Metemos a porrada em dois deles, mas ficamos muito visados. A polícia avisou a gente que se alguma coisa acontecesse com um dos quatro, nós é que iríamos parar na cadeia. Se fôssemos só eu e Colin, não tinha problema. Mas não podíamos dar este desgosto a nossa mãe. Não depois de tudo o que ela já havia sofrido. Então, colocamos a nossa viola no saco. - Ele mordeu o lábio. - Jimmy Lawson vivia dizendo que o caso jamais seria encerrado. Um dia, disse ele, a pessoa que matou Rosie vai ter o que merece. E eu realmente acreditei que essa hora havia chegado, por causa da nova investigação. - Ele balançou a cabeça. - Eu sou um idiota mesmo. - Ficou finalmente de pé. - Cumpri a minha parte do nosso trato. Agora, cabe a você cumprir a sua. Fique longe de mim e da minha família.
- Só mais uma coisa. Por favor.
Brian hesitou, a mão apoiada no espaldar da cadeira, a um passo da fuga.
- O quê?
- O meu pai. Quem era o meu pai?
- É melhor nem saber, filho. Ele era um sujeito completamente inútil, desses que só vêm ao mundo para ocupar espaço.
- Mesmo assim. Metade dos meus genes vem dele. - Macfadyen podia ver a dúvida pairando nos olhos de Brian Duff. Ele lançou mão de seu último trunfo. - Me diga quem era o meu pai e nunca mais vai precisar me ver novamente.
Brian deu de ombros.
- O nome dele era John Stobie. Ele se mudou para a Inglaterra, uns três anos antes de Rosie morrer. - Brian girou nos calcanhares e partiu.
Macfadyen ficou um tempo sentado, olhando para o nada, ignorando a sua cerveja. Um nome. Aquilo já era pelo menos um começo, uma pista para rastreá-lo. Pelo menos, conseguira um nome. E muito mais do que isso. Conseguira uma justificativa para levar adiante a decisão que tomara logo após a admissão de incompetência de Lawson. Os nomes dos estudantes não eram novidade para ele. Eles constavam nas matérias de jornal sobre o crime. Já sabia aqueles nomes de cor há meses. Tudo o que havia lido reforçara a sua necessidade desesperada de encontrar alguém para culpar pelo que acontecera a sua mãe. Quando começou a sua busca para descobrir o paradeiro dos quatro homens que haviam destruído a sua chance de conhecer a sua mãe verdadeira, ficou decepcionado ao constatar que todos eles levavam vidas bem-sucedidas, dignas e respeitáveis. Que tipo de justiça era aquela?
Imediatamente, colocara um alerta na internet para receber qualquer informação sobre os quatro. E quando Lawson fizera a sua revelação, aquilo só serviu para reforçar ainda mais a decisão de Macfadyen de que eles não podiam continuar impunes. Se a polícia de Fife não conseguia puni-los pelo seu crime, então ele teria de descobrir um outro jeito de obrigá-los a pagar pelo que fizeram.
Na manhã seguinte ao encontro com o seu tio, Macfadyen acordou bem cedo. Não aparecia no trabalho havia mais de uma semana. Programar era a sua especialidade e costumava ser a única coisa que o deixava relaxado. Mas ultimamente a ideia de ficar sentado diante de um monitor trabalhando nas complexas estruturas do seu projeto atual o deixava impaciente só de pensar. Comparado a todas as coisas que borbulhavam em seu cérebro, aquilo parecia insignificante, irrelevante, sem sentido. Nada em sua vida o preparara para aquela missão e ele percebia que ela o exigia por inteiro, e não o que sobrava após um dia de trabalho no laboratório de computação. Foi ao médico e alegou que estava com estresse. Não era exatamente uma mentira e ele fora bem convincente, de modo que ganhara uma licença até depois do Ano-Novo.
Pulou para fora da cama e cambaleou até o banheiro, sentindo como se tivesse dormido por alguns minutos, e não por algumas horas. Mal se olhou no espelho, pouco reparando as olheiras e o rosto macerado. Tinha mais o que fazer. Conhecer os assassinos de sua mãe era mais importante do que se lembrar de se alimentar direito.
Sem parar para se vestir ou para fazer um café, ele foi direto para a sala onde ficavam os computadores. Clicou no mouse de uma das máquinas. Uma mensagem piscando no canto da tela dizia <Nova Mensagem>. Abriu a sua caixa postal. Dois novos e-mails. Abriu o primeiro. David Kerr escrevera um artigo no último número de um periódico acadêmico. Um lixo qualquer sobre um escritor francês de quem Macfadyen jamais ouvira falar. Ele não podia estar menos interessado. Mesmo assim, era bom saber que o dispositivo de alerta na internet estava funcionando direitinho. David Kerr não era exatamente um nome raro e até ele refinar a sua busca, estava recebendo dezenas de ocorrências diárias. O que era uma chatice.
A mensagem seguinte era bem mais interessante. Ela o remeteu às páginas do Seattle Post Intelligencer. Conforme lia o artigo, um sorriso abria-se lentamente em seu rosto.
PEDIATRA DE DESTAQUE MORRE EM INCÊNDIO SUSPEITO
O fundador da famosa Clínica Fife morreu em um incêndio supostamente criminoso em sua casa, em King County.
O Dr. Sigmund Malkiewicz, conhecido como doutor Ziggy pelos seus pacientes e colegas, não resistiu ao incêndio que destruiu a sua reservada propriedade, nas primeiras horas da madrugada de ontem.
Três carros do corpo de bombeiros estiveram presentes no local, mas as chamas já haviam destruído a maior parte da casa, construída em madeira. O chefe do corpo de bombeiros, Jonathan Ardiles, declarou que "a casa já estava completamente consumida pelo fogo quando o vizinho do Dr. Malkiewicz chamou os bombeiros. Quando chegamos, havia muito pouco a ser feito, a não ser evitar que o incêndio se alastrasse para a floresta vizinha".
O detetive Aaron Bronstein revelou hoje que a polícia está tratando o incêndio como criminoso. "Investigadores especiais estão trabalhando no local. No momento, não podemos dar mais informações."
Nascido e criado na Escócia, o Dr. Malkiewicz, 45, trabalhou nos arredores de Seattle por mais de 15 anos. Foi pediatra no King County General antes de deixar o hospital, há nove anos, para abrir a sua própria clínica. Estabeleceu uma reputação na área de oncologia pediátrica, especializando-se no tratamento de leucemia.
A dra. Angela Redmond, que trabalhava com o Dr. Malkiewicz na clínica, declarou: "Estamos todos chocados com essa notícia tão trágica. O doutor Ziggy era um colega generoso, que ajudava a todos nós e era extremamente dedicado aos seus pacientes. Qualquer um que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ficará arrasado."
As palavras bailavam diante dos seus olhos, provocando uma curiosa mistura de alegria e frustração. Com o que sabia sobre o esperma, parecia adequado que Malkiewicz fosse o primeiro a morrer. Mas estava decepcionado ao ver que o jornalista não fora esperto o bastante para desencavar alguns detalhes sórdidos sobre a vida de Malkiewicz. Pelo artigo, parecia que ele tinha sido uma espécie de Madre Teresa, quando a verdade era bem diferente, como Macfadyen sabia. Talvez devesse mandar um e-mail para o jornalista, para esclarecer alguns pontos.
Mas talvez não fosse uma ideia tão genial assim. Seria mais difícil continuar vigiando os assassinos se eles começassem a achar que tinha alguém interessado em saber o que aconteceu com Rosie Duff, há vinte e cinco anos. Não, era melhor ficar quietinho por enquanto. Não obstante, podia descobrir alguns detalhes sobre o funeral e mandar o seu recado, se eles fossem espertos para captá-lo. Plantar a semente da insegurança em seus corações não faria mal a ninguém e não custava nada fazer com que eles começassem a sofrer um pouquinho. Eles já haviam causado bastante sofrimento aos outros, ao longo dos anos.
Verificou a hora no computador. Se saísse imediatamente, conseguiria chegar até a North Queensferry em tempo de alcançar Alex Gilbey a caminho para o trabalho. Passaria a manhã em Edimburgo e depois iria até Glasgow, ver o que David Kerr andava aprontando. Mas antes disso, estava na hora de começar a procurar por John Stobie.
Dois dias depois, seguiu Alex até o aeroporto e o viu embarcar em um avião para Seattle. Vinte e cinco anos haviam se passado, mas o crime ainda os mantinha unidos. Tinha uma vaga esperança de ver David Kerr por lá também. Mas ele não deu as caras. E quando ele correu até Glasgow para ver se tinha sido tapeado pela sua presa, encontrou-o em um auditório, dando uma palestra, conforme havia sido anunciado.
O que era de uma frieza extrema, sem a menor sombra de dúvida.
27
Alex nunca ficara tão feliz ao ver as luzes de aterrissagem no aeroporto de Edimburgo. A chuva chocava-se contra as janelas do avião, mas ele pouco se importava. Queria apenas estar em casa novamente, ficar quietinho ao lado de Lynn, com a mão sobre a sua barriga, sentindo a vida que crescia lá dentro. O futuro. Como tudo o que passava pela sua cabeça, aquele pensamento fez com que ele se lembrasse da morte de Ziggy. Uma criança que o seu melhor amigo não haveria de conhecer, que jamais seguraria nos braços.
Lynn estava esperando por ele na área de desembarque do aeroporto. Ela parecia cansada, pensou ele. Gostaria que ela tivesse desistido de trabalhar. Não precisavam do dinheiro, mesmo. Mas ela era inflexível nesse ponto e queria trabalhar até o último mês. "Quero usar a minha licença-maternidade para ficar com o bebê e não para ficar em casa, esperando por ele", dissera ela. Ela continuava determinada a voltar ao trabalho após seis meses de licença, mas Alex se perguntava se ela não acabaria mudando de ideia.
Acenou, apressando-se em sua direção. Logo estavam um nos braços do outro, abraçando-se como se tivessem ficado separados por semanas, e não por alguns dias.
- Senti saudade - murmurou ele, com os lábios nos cabelos da mulher.
- Eu também. - Desfizeram o abraço e dirigiram-se para o estacionamento, Lynn lhe dando o braço. - Você está bem?
Alex fez um gesto negativo com a cabeça.
- Para falar a verdade, não. Estou me sentindo vazio. Literalmente. Como se tivesse um buraco dentro de mim. Só Deus sabe como Paul está conseguindo se virar.
- Como ele está?
- É como se ele estivesse sem rumo. Resolver as coisas para o funeral fez com que ele se concentrasse em outra coisa, com que tirasse a perda pouco da cabeça. Mas ontem à noite, depois que todo mundo foi embora ele parecia completamente perdido. Eu não sei como ele vai aguentar passar por tudo isso.
- Ele tem alguém para dar uma força por lá?
- Eles tinham vários amigos. Não creio que ele vá ficar isolado. Mas, no final das contas, a gente fica sozinho mesmo, né? - Alex suspirou. - Isso tudo fez com que eu visse a sorte que eu tenho. Você, o bebê que vai chegar. Eu não sei o que faria se te perdesse, Lynn.
Ela apertou o braço dele.
- É normal você estar pensando essas coisas. Uma morte como a de Ziggy faz com que qualquer um se sinta vulnerável. Mas não vai acontecer nada comigo, não.
Chegaram ao carro e Alex assumiu a direção.
- Vamos para casa, então - disse ele. - Eu nem acredito que amanhã já é véspera de Natal. Estou louco para passar uma noite tranquila em casa, só nós dois.
- Xiii... - disse Lynn, ajeitando o cinto de segurança sobre o barrigão.
- Ah, não. A sua mãe, não. Não esta noite.
Lynn sorriu.
- Não, não é a minha mãe. Mas é quase tão ruim quanto. Mondo está aqui.
Alex franziu a testa.
- Mondo? Ué, ele não estava na França?
- Mudança de planos. Eles iam passar uns dias com o irmão de Hélène em Paris, mas a mulher dele caiu de cama, gripada. Então, eles trocaram as passagens.
- E qual é a dele, vindo aqui pra casa?
- Ele disse que tem uns negócios para resolver em Fife, mas eu acredito que ele está é se sentindo culpado por não ter ido a Seattle com você.
Alex bufou.
- Lógico, ele sempre foi bom em assumir a culpa tarde demais. O que nunca o impediu de fazer o que o deixava se sentindo culpado, mesmo assim.
Lynn pousou a mão na coxa do marido. Não havia nada de sexual no gesto.
- Você nunca o perdoou, não é mesmo?
- Acho que não. No geral, eu já esqueci. Mas quando as coisas acontecem, como nesta última semana... Realmente, acho que não o perdoei, não. Em parte por ter me colocado no fogo com os policiais naquela época, só para livrar a cara dele. Se ele não tivesse contado a Maclennan que eu tinha uma queda por Rosie, acho que eles não teriam levado tão a sério essa história de sermos suspeitos. Mas o que eu realmente não consegui perdoar foi aquela palhaçada que custou a vida de Maclennan.
- E você acha que Mondo não se sente culpado por isso?
- E tem mais é que se sentir mesmo. Mas se ele não tivesse contribuído para colocar o nosso na reta, para começar, ele não teria tido necessidade de fazer aquele showzinho ridículo para chamar a atenção. E eu não teria que aturar todo mundo apontando para mim aonde quer que eu fosse até o meu último dia de aula na universidade. Sinto muito, mas não consigo deixar de responsabilizar Mondo por isso.
Lynn abriu a bolsa e caçou umas moedas para pagar o pedágio da ponte.
- Eu acho que ele sempre soube disso.
- Vai ver que é por isso que ele se empenhou tanto em criar tanta distância entre nós. - Alex suspirou. - Desculpe, porque eu sei que quem saiu perdendo foi você.
- Deixa de ser bobo - disse ela, passando as moedas para Alex enquanto ele diminuía a velocidade pela estrada de acesso à ponte Forth Road, com a sua majestosa extensão oferecendo a melhor vista possível das três vigas da ponte que cobria o estuário. - Quem perdeu foi ele, Alex. Eu já sabia, quando me casei com você, que Mondo jamais se acostumaria com a ideia. Mas continuo achando que eu saí ganhando. Prefiro mil vezes ter você no centro da minha vida do que o meu irmão mais velho neurótico.
- Sinto muito por tudo isso, Lynn. Eu ainda gosto dele, você sabe. Ele faz parte das minhas melhores lembranças.
- Eu sei. Então tente lembrar disso quando você estiver com vontade de estrangulá-lo esta noite.
Alex abriu a janela, estremecendo ao sentir a chuva gelada contra o seu rosto. Entregou o dinheiro do pedágio e acelerou, com a mesma sensação que sempre tinha quando se aproximava de Fife: a sensação de que a sua casa o atraía, como um ímã. Olhou para o relógio no painel do carro.
- E quando é que ele chega?
- Ele já está lá em casa.
Alex fez uma careta contrariada. Sem tempo para relaxar. Sem lugar para se esconder.
A detetive de polícia Karen Pirie apressou-se até o abrigo que a porta do pub oferecia e a empurrou, aliviada. Uma rajada de ar quente e acre, carregado com cheiro de cerveja e cigarro, bafejou em seu rosto. Era o cheiro da libertação. Estava tocando Tourist de St. Germain. Boa escolha. Ela esticou o pescoço, examinando os fregueses, tentando ver quem estava por lá. No bar, avistou Phil Parhatka inclinado sobre uma cerveja e um pacote de batatas chips. Ela abriu caminho e puxou um banco ao seu lado.
- Para mim é um Bacardi Breezer - disse ela, cutucando ele.
Phil levantou-se e fez sinal para um garçom esgotado. Fez o pedido, depois se reclinou no bar. Ele sempre ficava mais satisfeito quando tinha companhia do que quando estava sozinho, lembrou-se Karen. Ninguém podia estar mais longe do clichê televisivo do tira solitário e independente, fazendo justiça com as próprias mãos, do que Phil Parhatka. Ele não era exatamente o centro das atenções; preferia estar sempre acompanhado do seu grupo. E ela não se incomodava nem um pouco de substituir o grupo. Quem sabe, a dois, ele percebesse que ela era uma mulher. Karen apanhou o seu drinque e tomou grandes goles.
- Agora sim - disse ela, sem fôlego. - Eu estava precisando.
- Trabalhinho sedento o seu, hein? Ficar remexendo aquelas caixas de provas. Não imaginei encontrar com você aqui hoje, pensei que fosse direto para casa.
- Que nada, precisei voltar e checar umas coisas no computador. Um saco, mas fazer o quê, né? - Ela bebeu mais um pouco e inclinou-se em tom de conluio para o seu colega. - E você nem imagina quem eu flagrei bisbilhotando os meus arquivos.
- Lawson - disse Phil, sem fazer o menos esforço.
Karen reclinou-se, irritada.
- Como é que você sabia disso?
- Quem mais está interessado no que estamos fazendo? Além disso, ele tem pegado mais no seu pé do que no de qualquer um de nós desde que começamos a trabalhar na revisão. Parece que ele tem um interesse pessoal no caso.
- Bom, ele foi o primeiro policial a chegar ao local.
- Tá, mas ele era peixe pequeno naquela época. O caso não era dele, nem nada. - Ele deslizou as batatas na direção de Karen e terminou a sua primeira cerveja.
- Eu sei. Mas eu acho que ele se sente mais ligado a esse caso do que aos outros. Ainda assim, foi engraçado flagrar o chefe mexendo nas minhas coisas. Pensei que ele fosse enfartar quando eu falei com ele. Ele estava tão entretido que nem me ouviu entrando.
Phil apanhou a sua segunda cerveja e tomou um gole.
- Ele foi procurar o irmão dela há pouco tempo, não foi? Para contar sobre a cagada com as provas.
Karen sacudiu os dedos, fazendo o gesto de alguém querendo se livrar de algo desagradável agarrado nas mãos.
- Vou te contar, eu comemorei quando soube que ele ia fazer isso pessoalmente. Não deve ter sido um encontro muito agradável. "Olá, senhor. Sinto muito, mas perdemos as provas que poderiam finalmente ter colocado o assassino da sua irmã na cadeia. Bom, fazer o quê?, é a vida." - Ela fez uma careta. - E você, como está indo?
Phil deu de ombros.
- Sei lá. Pensei que estivesse chegando a algum lugar, mas pelo visto é outro beco sem saída. E ainda tenho que aturar o membro do Parlamento Escocês local com esse papo de direitos humanos. É um pé no saco esse trabalho.
- Você tem algum suspeito?
- Tenho três. O que eu não tenho é uma prova decente. Ainda estou esperando o laboratório mandar o resultado do teste de DNA. É a única chance que eu tenho de levar o caso para frente. E você? Quem você acha que matou Rosie Duff?
Karen esticou as mãos.
- Escolhe um dos quatro.
- Você realmente acha que foi um dos estudantes que a encontraram?
Karen assentiu com a cabeça.
- Todas as provas circunstanciais apontam nesta direção. E tem mais uma coisa. - Ela fez uma pausa, esperando a deixa.
- Está bem, Sherlock, vamos lá. O que é?
- A psicologia da coisa. Ritual satânico ou estupro seguido de morte, os psicólogos afirmam que assassinos assim não aparecem do nada. Teriam acontecido algumas tentativas antes.
- Como com Peter Sutcliffe?
- Exatamente. Você não se transforma no Estuprador de Yorkshire da noite para o dia. O que tem tudo a ver com o meu próximo argumento. Maníacos sexuais são um pouco como a minha avó. Eles se repetem.
Phil gemeu.
- Ah, muito boa.
- Não bata palmas, apenas jogue o dinheiro. Eles se repetem porque sentem tesão matando, assim como as pessoas normais sentem tesão com um filminho pornô. Enfim, o que eu quero dizer é que nós nunca mais vimos nem sinal desse maníaco específico em qualquer lugar da Escócia.
- Talvez ele tenha se mudado.
- Pode ser. Mas talvez aquilo tudo tenha sido uma encenação. Talvez não tenha sido sequer este tipo de maníaco. Talvez um ou todos os estudantes tenham estuprado Rosie e entrado em pânico. Eles não queriam uma testemunha viva. E aí eles a mataram. Mas armaram a coisa para parecer o ato de um maníaco sexual tresloucado. Eles não sentiram o menor tesão com o assassinato, por isso jamais pensaram em repetir a dose.
- Você acha que quatro garotos bêbados conseguiriam agir com essa frieza com uma garota morta nas mãos?
Karen cruzou as pernas e ajeitou a saia. Percebeu que ele olhou e sentiu um calor que não tinha nada a ver com a bebida.
- Essa é a questão, não é?
- E qual é a resposta?
- Quando você lê os depoimentos, um deles chama a atenção. O estudante de medicina, Malkiewicz. Ele manteve a calma e o seu depoimento é bem frio. O exame das digitais indicou que ele foi o último a dirigir a Land Rover. E ele era um dos três secretores do grupo O entre os quatro. Pode ter sido o esperma dele.
- Bom, não deixa de ser uma boa teoria.
- Que merece outro drinque, na minha opinião. - Desta vez, Karen pagou a rodada. - O problema com as teorias - continuou ela, após terem enchido o seu copo - é que elas precisam de provas. E isso é exatamente o que eu não tenho.
- E o filho ilegítimo? Não tem um pai por aí, em algum lugar? E se foi ele?
- Não sabemos quem era o pai. Brian Duff não quer abrir o bico. E eu ainda não consegui falar com Colin. Mas Lawson me deu a dica que provavelmente é um sujeito chamado John Stobie. E ele saiu da cidade na hora certa.
- Mas pode ter voltado.
- Era isso o que Lawson estava procurando no arquivo. Queria ver se eu tinha chegado a algum lugar com esta história. - Karen deu de ombros. - Mas mesmo que ele tivesse voltado, por que mataria Rosie?
- Vai ver que ele ainda era apaixonado por ela e ela não quis saber mais dele.
- Não acho, não. O sujeito saiu da cidade porque levou uma surra de Brian e Colin. Ele não me parece um herói que volta para recuperar o amor perdido. Mas temos que tentar de tudo. Mandei um pedido para os nossos colegas do lugar onde ele está morando agora. Eles vão procurá-lo, ter uma conversinha com ele.
- Ah, tá. E ele vai se lembrar onde estava em uma noite de dezembro há vinte e cinco anos.
Karen suspirou.
- Eu sei. Mas pelo menos os policiais que forem interrogar o sujeito vão conseguir apurar se ele leva jeito para a coisa ou não. Mas eu continuo apostando em Malkiewicz, ou sozinho, ou com a ajuda dos amigos. Enfim. Chega de falar de trabalho. E aí, topa um último curry antes da típica ceia natalina tomar conta do pedaço?
Assim que Alex entrou na sala, Mondo levantou-se depressa, quase derrubando o seu copo de vinho tinto.
- Alex - disse ele, com um certo nervosismo na voz.
Alex ponderou, surpreso com a constatação, como era fácil voltar ao passado tão abruptamente, como quando um acontecimento inusitado bagunça o nosso cotidiano e nos leva de volta à companhia de velhos amigos. Mondo, tinha certeza, era seguro e competente em sua vida profissional. Tinha uma esposa culta e sofisticada, com quem fazia programas cultos e sofisticados que Alex mal podia vislumbrar. Mas, diante do seu amigo de adolescência, Mondo voltava a ser o mesmo garoto nervoso de antigamente, exibindo vulnerabilidade e carência.
- Oi, Mondo - respondeu Alex, exausto, jogando-se na cadeira à sua frente e apanhando a garrafa de vinho para se servir.
- Fez boa viagem? - O sorriso dele era praticamente uma súplica.
- Longe disso. Cheguei inteiro, que é o melhor que a gente pode dizer de qualquer viagem de avião. Lynn está preparando o jantar, ela disse que já vem.
- Desculpa por ter aparecido aqui hoje sem avisar, mas eu tinha que vir a Fife mesmo para me encontrar com uma pessoa, e como vamos para a França amanhã, esta era a única oportunidade...
Você não está nem um pouco arrependido, pensou Alex. Você só quer fazer as pazes com a sua consciência às minhas custas.
- Foi uma pena você não ter ficado sabendo da gripe da sua cunhada antes. Porque aí você poderia ter ido a Seattle comigo. Esquisito estava lá. - A voz de Alex soava impassível, mas ele quis que as suas palavras atingissem Mondo em cheio.
Mondo ajeitou-se na cadeira, esquivando o olhar.
- Eu sei que você acha que eu deveria estar lá também.
- Acho mesmo. Ziggy foi um dos seus melhores amigos durante quase dez anos. Ele sempre te ajudou tanto... Na verdade, ele sempre ajudou todos nós. Eu quis retribuir isso e acho que você deveria ter retribuído também.
Mondo passou os dedos pelo cabelo, que continuava cheio e cacheado, apesar de grisalho. Ele lhe conferia um ar exótico que certamente o distinguia dos outros escoceses.
- Tá, tá bom. Só que eu não sei lidar com este tipo de coisa.
- Você sempre foi o mais sensível.
Mondo dardejou um olhar de irritação para Alex.
- Só que eu acho que sensibilidade é uma qualidade, e não um defeito. E não vou ficar me desculpando por ser assim.
- Bom, então você deve estar sensível aos meus motivos para estar puto com você. Tudo bem, eu posso até tentar entender por que você nos evita como se nós tivéssemos uma doença contagiosa. Você quis ficar o mais longe possível de qualquer coisa ou pessoa que o lembrasse do assassinato de Rosie Duff e da morte de Barney Maclennan. Mas você deveria ter ido, Mondo. Deveria mesmo.
Mondo pegou o seu copo de vinho e o segurou firme, como se ele pudesse salvá-lo do desconforto.
- Você deve estar certo, Alex.
- Então, o que é que você veio fazer aqui agora?
Mondo desviou o olhar.
- Acho que esta revisão que a polícia de Fife está fazendo sobre o assassinato de Rosie Duff trouxe muita coisa à tona. E eu percebi que não podia ignorar isso. Precisava conversar com alguém que entendesse aquela época. E o que Ziggy significava para todos nós. - Para a surpresa de Alex, os olhos de Mondo ficaram subitamente cheios d’água. Ele piscou o máximo que pôde, mas as lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele apoiou o copo na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
Foi então que Alex percebeu que nem Mondo era imune àquela viagem no tempo. Quis levantar depressa e puxar o amigo em um abraço. Mondo estava soluçando, esforçando-se para controlar o seu sofrimento. Mas Alex se conteve, sentindo uma pontada da velha suspeita.
- Estou tão arrependido, Alex - soluçou Mondo. - Muito, muito mesmo.
- Arrependido pelo quê? - perguntou Alex gentilmente.
Mondo levantou o rosto, os olhos encharcados de lágrimas.
- Por tudo. Por tudo o que eu fiz de errado, de idiota.
- Bom, digamos que isso engloba praticamente tudo o que você já fez na vida - disse Alex, com um tom de voz mais delicado do que as palavras irônicas.
Mondo sobressaltou-se, com uma expressão de mágoa. Acostumara-se a pessoas que aceitavam as suas imperfeições sem comentários ou críticas.
- E, sobretudo, por Barney Maclennan. Você sabia que o irmão dele está trabalhando na revisão dos casos?
Alex negou com a cabeça.
- Como é que eu ia saber? Por sinal, como é que você sabe?
- Ele me ligou. Queria conversar sobre Barney. Eu desliguei na cara dele. - Mondo deu um longo suspiro. - Já passou, entende? Tudo bem, eu fiz uma coisa idiota, mas eu era um garoto. Caramba, mesmo que tivessem me acusado de homicídio, eu já estaria solto a essas alturas. Por que não deixam a gente em paz?
- Como assim, acusado de homicídio? - perguntou Alex.
Mondo agitou-se em sua cadeira.
- Modo de falar. Nada de mais. - Ele terminou o seu copo de vinho. - Olha, é melhor eu ir embora - disse ele, levantando-se. - Dou um tchau para Lynn no caminho. - Ele passou por Alex, que o contemplava atônito. Fosse lá o que Mondo tivesse vindo procurar, parecia que não havia encontrado.
28
Encontrar um ponto de observação que oferecesse uma boa vista da casa de Alex Gilbey não fora nada fácil. Mas Macfadyen insistira, escalando pedras e contornando as moitas de grama que cresciam selvagens por baixo das vigas de aço maciço da ponte. Finalmente encontrou um lugar perfeito, pelo menos para a vigilância noturna. No claro, ficaria terrivelmente exposto, mas Gilbey nunca estava em casa durante o dia, mesmo. Assim que escurecia, Macfadyen perdia-se nas imensidões negras das sombras da ponte, observando bem abaixo dele a estufa onde Gilbey e a mulher costumavam ficar à noite, aproveitando a vista espetacular que o cômodo oferecia.
Aquilo não estava certo. Se Gilbey tivesse respondido pelas suas ações, ainda estaria mofando atrás das grades ou sofrendo com o tipo de vida desgraçada que a maioria das pessoas que passou muito tempo na cadeia leva. Um quartinho imundo em um conjunto habitacional, cercado de viciados e ladrõezinhos de merda, com uma escadaria fedendo a mijo e vômito, isso era o melhor que ele poderia merecer. Não este imóvel valioso, com uma vista espetacular e com isolamento acústico, por causa do barulho dos trens que chacoalhavam sobre a ponte o dia inteiro e durante boa parte da noite também. Macfadyen queria tirar tudo aquilo dele, para que ele entendesse do que o privara ao tomar parte do assassinato de Rosie Duff.
Mas aquilo ficaria para depois. Naquela noite, estava apenas vigiando. Estivera em Glasgow mais cedo, esperando pacientemente que um carro liberasse a vaga que, já sabia por experiência própria, lhe oferecia a melhor localização para vigiar a vaga de Kerr, no estacionamento da universidade. Quando a sua presa surgiu, logo após as quatro da tarde, Macfadyen ficou surpreso ao ver que ele não foi direto para casa. Em vez disso, seguira-o pela autoestrada que serpenteava pelo centro de Glasgow, antes de desviar para fora da cidade, até Edimburgo. Quando Kerr pegou a saída para a Ponte Forth, Macfadyen sorriu por antecipação. Ao que parecia, os conspiradores iriam se encontrar afinal.
Sua previsão mostrou-se correta. Mas não imediatamente. Kerr saiu da estrada ao norte do estuário mas, em vez de descer para a North Queensferry, ele mudou o rumo e se dirigiu para um hotel moderno, que oferecia uma vista privilegiada do penhasco de arenito sobre o estuário. Estacionou o carro e correu para dentro do hotel. Quando Macfadyen chegou ao saguão, menos de um minuto depois de Kerr, não havia nem sombra de sua presa. Não estava no bar, nem no restaurante. Macfadyen correu para lá e para cá nas áreas públicas do hotel e o seu corre-corre aflito atraiu olhares de curiosidade tanto dos funcionários como dos hóspedes. Mas Kerr havia realmente desaparecido. Irado por tê-lo perdido de vista, Macfadyen correu para a rua novamente, dando uma pancada violenta no teto do carro com a mão. Droga, não era para ter acontecido isso. O que Kerr estava tramando? Será que ele percebeu que estava sendo seguido e tentou deliberadamente despistá-lo? Macfadyen olhou à sua volta depressa. Não, o carro de Kerr continuava no mesmo lugar.
O que estava acontecendo? Obviamente, Kerr estava encontrando alguém e não queria que o encontro fosse às claras. Mas quem? Será que Alex Gilbey voltara dos Estados Unidos e decidira encontrar o cúmplice em um lugar neutro, para que a sua mulher não participasse? Não tinha como descobrir. Xingando baixinho, Macfadyen entrou no seu carro novamente e fixou o seu olhar na entrada do hotel.
Não precisou esperar muito. Uns vinte minutos depois, Kerr voltou para o carro. Desta vez, seguiu direto para a North Queensferry. O que serviu para responder uma pergunta. Seja lá quem ele tenha encontrado no hotel, não fora Alex. Macfadyen esperou na esquina até Kerr estacionar o seu carro na porta da casa de Gilbey. Em dez minutos, já estava assumindo o seu posto debaixo da ponte, grato pela chuva ter parado. Levou os seus binóculos de última geração aos olhos e ajustou o foco na casa abaixo. Uma luz fraca invadiu a estufa, mas ele não conseguiu ver nada além disso. Moveu o seu campo de visão para a parede e distinguiu uma luz vindo da cozinha.
Viu Lynn Gilbey passar, com uma garrafa de vinho tinto na mão. Durante alguns minutos nada aconteceu, mas depois as luzes da estufa se acenderam. David Kerr seguiu a mulher e acomodou-se em uma cadeira, enquanto ela abria a garrafa de vinho e servia dois cálices. Eram irmãos, ele sabia disso. Gilbey casara-se com ela seis anos depois da morte de Rosie, quando ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e um. Macfadyen não sabia se ela estava a par do crime no qual o irmão e o marido haviam se envolvido. Tinha lá as suas dúvidas. Deve ter sido capturada em uma teia de mentiras e acreditado nelas porque assim lhe convinha. Como a polícia. Ficaram todos satisfeitos por terem encontrado um jeito de se livrar do problema. Bem, ele não deixaria que isso acontecesse pela segunda vez.
E agora ela estava grávida. Gilbey ia ser papai. Ficava furioso só de pensar que o filho deles ia ter o privilégio de conhecer os pais, de ser desejado e amado, ao invés de acusado e censurado. Kerr e os seus amigos roubaram esta oportunidade dele há anos.
Não estava rolando muita conversa lá embaixo. O que poderia significar duas coisas: ou eles eram tão íntimos que não precisavam jogar conversa fora para preencher o tempo, ou havia entre eles uma distância tão grande que nenhum papo furado conseguiria vencer. Macfadyen se perguntava qual das duas alternativas era a correta, estava longe demais para estimar. Passados mais ou menos uns dez minutos, a mulher deu uma olhadela no seu relógio e se levantou, uma das mãos apoiada nas costas e a outra na barriga. Em seguida, desapareceu para dentro da casa.
Como não reapareceu depois de dez minutos, Macfadyen começou a achar que ela havia saído de casa. É claro, faz sentido. Gilbey devia estar voltando do funeral. Para contar tudo o que se passara por lá para Kerr. Para analisarem as questões levantadas pela morte misteriosa de Malkiewicz. Os assassinos juntos novamente.
Agachou-se e apanhou uma garrafa térmica na mochila. Café doce e bem quente, para mantê-lo acordado e alerta. Não que ele precisasse. Desde que começara a perseguir os homens que julgava responsáveis pela morte da mãe, ele parecia ter recebido uma dose extra de vigor. E desde a infância ele não dormia tão profundamente quando caía na cama à noite. Era mais uma prova, se é que precisava de alguma, de que escolhera o caminho certo.
Mais de uma hora se passou. Kerr levantava, andava para um lado e para o outro, entrando ocasionalmente na casa e voltando quase imediatamente. Não estava à vontade, era óbvio. Então, de repente, Gilbey apareceu. Não trocaram um aperto de mão e logo ficou claro para Macfadyen que aquele não era um encontro tranquilo, relaxado. Mesmo pelo binóculo, dava para ver que aquela não era uma conversa agradável para nenhum dos dois.
Mas, mesmo assim, não esperava que Kerr fosse se descontrolar daquele jeito. Numa hora, estava bem, de repente, estava aos prantos. O diálogo seguinte pareceu intenso, mas não durou muito. Kerr levantou-se abruptamente e passou zunindo por Gilbey. Fosse lá o que tivesse acontecido entre eles, não deixara nenhum dos dois contente.
Macfadyen hesitou por um momento. Será que devia permanecer no seu posto? Ou seguir Kerr? Os seus pés começaram a se mover antes mesmo de perceber que já havia tomado uma decisão. Gilbey não ia a lugar algum. Mas David Kerr já quebrara o padrão uma vez. Podia ser que fizesse isso novamente.
Correu de volta para o carro, alcançando a esquina na hora em que Kerr deixou a pacata rua lateral. Xingando, Macfadyen mergulhou atrás do volante, acelerou e partiu cantando pneu. Mas não precisava ter se preocupado. O Audi prateado de Kerr ainda estava no cruzamento com a estrada principal, aguardando para virar à direita. Em vez de se dirigir para a ponte e voltar para casa, ele pegou a M90, em direção ao norte. Não tinha muito tráfego e Macfadyen não correu o risco de perdê-lo de vista. Uns vinte minutos depois, já sabia para onde a sua presa estava indo. Ele passou direto por Kirkcaldy e pela casa dos seus pais e dirigiu-se para a parte leste da Standing Stone. Tinha que ser para St. Andrews.
Quando alcançaram os arredores da cidade, Macfadyen chegou mais perto. Não queria perder Kerr justo agora. O Audi colocou a seta para a esquerda, indo em direção ao Jardim Botânico. "Você não conseguiu ficar longe, não é?", murmurou Macfadyen. "Não pôde deixá-la em paz."
Como ele esperava, o Audi fez a curva em Trinity Place. Macfadyen estacionou na rua principal e caminhou apressado pela rua pacata. Notou luzes acesas por trás das cortinas nas janelas mas, fora isso, não havia qualquer sinal de vida. O Audi estava estacionado no fim de um beco sem saída, com as luzes laterais ainda acesas. Macfadyen passou por ele, notando o assento do motorista vazio. Seguiu pelo caminho que contornava a parte inferior da colina, se perguntando quantas vezes os quatro estudantes não deviam ter pisado sobre aquela mesma lama antes da noite em que tomaram a sua decisão fatal. Olhando para cima, à sua esquerda, viu o que já esperava. No topo da colina, delineada contra a noite, estava a silhueta de Kerr, parado de cabeça baixa. Macfadyen diminuiu o passo. Era estranho como tudo não parava de se encaixar, confirmando a sua convicção de que os quatro homens que encontraram o corpo da sua mãe sabiam muito mais sobre a sua morte do que haviam sido pressionados a admitir. Não conseguia entender por que a polícia não resolvera tudo naquela época. Ter colocado tudo a perder em um caso tão simples era inacreditável. Ele fizera mais pela justiça em alguns meses do que a polícia fizera em vinte e cinco anos, com todos os seus recursos e seu pessoal. Exatamente por isso não ia ficar dependendo de Lawson e dos seus macacos amestrados para vingar a sua mãe.
Talvez o seu tio tivesse razão e eles fossem submissos à universidade. Ou talvez ele próprio estivera mais próximo da verdade quando acusara a polícia de corrupção. De qualquer maneira, eram outros tempos. A velha subserviência estava morta. Ninguém mais temia a universidade. E as pessoas já entendiam que um policial podia ser tão desonesto quanto qualquer outra pessoa. De modo que ainda sobrava para indivíduos como ele a tarefa de garantir que a justiça fosse feita.
Macfadyen ainda observou Kerr endireitando-se e partindo de volta para o carro. Mais uma anotação no caderninho da culpa, pensou. Mais um tijolo no muro.[8]
Alex mudou de posição e olhou a hora. Dez para as três. Desde a última vez que olhara, só haviam passado cinco minutos. Não tinha jeito. O seu corpo estava desorientado por causa do voo e da mudança de fuso horário. Se continuasse forçando o sono, o máximo que conseguiria seria acordar Lynn. E como o sono dela andava meio perturbado por causa da gravidez, ele não quis arriscar. Saiu com cuidado de debaixo do cobertor, tremendo um pouco ao sentir o ar gelado na sua pele. Pegou o seu quimono antes de sair do quarto e fechou a porta delicadamente.
Tinha tido um dia e tanto. Despedir-se de Paul no aeroporto parecera um abandono, e o seu desejo natural de estar em casa com Lynn, um egoísmo. Durante o primeiro voo, ficara entalado em um dos assentos centrais, longe das janelas, ao lado de uma mulher tão gorda que ele teve a nítida impressão de que, quando ela tentasse se levantar, a fileira inteira de assentos iria junto com ela. Fez uma viagem um pouquinho melhor no segundo voo, mas àquela altura já estava cansado demais para dormir. Estava sendo atormentado por lembranças de Ziggy, enchendo o seu coração de remorsos por todas as oportunidades que ele perdera ao longo dos últimos vinte anos. E, em vez de uma noite tranquila com Lynn, tivera que aguentar o colapso emocional de Mondo. Tinha que ir ao escritório no dia seguinte, mas já sabia de antemão que não conseguiria trabalhar. Suspirando, andou até a cozinha e colocou a chaleira no fogão. Talvez uma xícara de chá ajudasse a relaxar e ele pudesse recuperar o sono.
Perambulou pela casa com a xícara na mão, tocando objetos familiares, como se eles fossem talismãs que pudessem devolver a sua tranquilidade. Quando deu por si, estava parado no quarto do bebê, inclinado sobre o berço. Isso é o futuro, disse para si mesmo. Um futuro que vale a pena, um futuro que lhe oferecia a oportunidade de fazer algo mais da sua vida, além de ganhar e gastar dinheiro.
A porta se abriu e ele reconheceu a silhueta de Lynn sobre a luz suave do corredor.
- Eu não te acordei não, né? - perguntou ele.
- Não, eu acordei sozinha. Jet lag? - Ela entrou no quarto e colocou o braço em volta da cintura de Alex.
- Provavelmente.
- E Mondo não ajudou muito, né?
Alex concordou.
- Eu podia ter ido dormir sem essa.
- Tenho certeza de que ele nem parou para pensar nisso. O egoísta do meu irmão acha que todos nós viemos ao mundo para a sua conveniência. Eu bem que tentei dar uma desculpa, você sabe.
- Tenho certeza disso. Ele sempre teve o dom de não ouvir o que não quer. Mas ele não é má pessoa, Lynn. É fraco e egoísta, com certeza. Mas não é mau.
Lynn apoiou a cabeça no ombro de Alex.
- Acho que é porque ele é bonito demais. Ele foi uma criança linda, todo mundo sempre fazia todas as vontades dele, onde quer que ele fosse. Eu o odiava por causa disso quando éramos pequenos. Ele era um objeto de adoração, um anjinho de Donatello. As pessoas ficavam encantadas com ele. E aí olhavam para mim e nem disfarçavam a decepção. Como é que um príncipe daqueles podia ter uma irmã tão feia?
Alex riu.
- É, mas o patinho feio virou uma princesa.
Lynn deu um tapinha no marido.
- Uma das coisas que eu sempre apreciei em você é essa sua capacidade de mentir com a maior convicção sobre as coisas mais banais.
- Eu não estou mentindo. Lá pelos quatorze anos, você deixou de ser feia e ficou maravilhosa. Vai por mim, lembre-se que eu sou um artista.
- Vendedor de cartões, atualmente. Não, eu sempre fiquei à sombra de Mondo no quesito beleza. Andei pensando sobre isso ultimamente. Sobre as coisas que os meus pais fizeram e que eu não quero repetir. Se o nosso filho for bonito, eu jamais vou ficar chamando a atenção dele para isso. Quero que ele seja seguro, mas sem essa noção de que é melhor do que os outros, porque foi isso que envenenou o meu irmão.
- Pode ter certeza de que eu estou contigo nessa. - Ele pousou a mão na barriga dela. - Tá ouvindo, filho? Nada de ficar se achando, ouviu? - Alex se inclinou e beijou a cabeça de Lynn. - O modo como Ziggy morreu me deixou meio assustado. Tudo o que eu quero é ver o meu filho crescer, com você ao meu lado. Mas é tudo tão frágil. Num minuto você está aqui, no outro já não está mais. Fico pensando em todas as coisas que Ziggy deixou por fazer, e que jamais serão feitas. Eu não quero que isso aconteça comigo.
Lynn apanhou a xícara delicadamente e a colocou sobre a mesa. Envolveu Alex em seus braços.
- Não tenha medo - disse ela. - Vai dar tudo certo.
Ele queria acreditar. Mas ainda estava próximo demais da sua própria mortalidade para se convencer totalmente.
Um longo bocejo estalou a mandíbula de Karen Pirie enquanto ela esperava pela campainha que sinalizava a abertura da porta. Ao ouvi-la, empurrou a porta e cruzou o hall, cumprimentando o segurança ao passar pela sua cabine. Deus, como ela detestava o centro de armazenamento de provas. Véspera de Natal, o resto do mundo estava se preparando para as festas e ela estava onde? Parecia que a sua vida tinha se limitado àqueles corredores com caixas de arquivo e os seus conteúdos ensacados, que contavam histórias de cortar o coração sobre crimes perpetrados pelos idiotas, os inadequados e os invejosos. Mas, em algum lugar ali, tinha certeza de que estava a prova que poderia reabrir o seu caso.
Não era o único caminho que a sua investigação poderia tomar. Sabia que teria que entrevistar novamente as testemunhas em algum momento. Mas também estava ciente de que, em casos antigos como aquele, as provas eram fundamentais. Com as técnicas forenses modernas, era possível transformar as provas circunstanciais de um caso em provas concretas, que tornariam os depoimentos das testemunhas absolutamente redundantes.
Seria ótimo, pensou ela. Mas havia centenas de caixas no local. E ela precisava olhar uma por uma. Até agora, calculava ter examinado aproximadamente um quarto. O único resultado positivo disso tudo era que estava fortalecendo os músculos dos braços, carregando caixas para cima e para baixo em escadas dobradiças. Pelo menos teria dez gloriosos dias de folga, começando no dia seguinte, quando as únicas caixas que ela abriria teriam algo mais interessante do que vestígios de crime dentro.
Cumprimentou o oficial de plantão e esperou que ele abrisse a porta da gaiola de metal, onde as caixas ficavam armazenadas. O protocolo de segurança era a pior parte daquela tarefa. Para cada caixa, o procedimento era o mesmo. Tinha que apanhá-la da prateleira e colocá-la em cima da mesa, onde o oficial pudesse acompanhar a verificação. Tinha que anotar o número da caixa no registro principal, junto com o seu nome, número de identificação e a data. Só então podia abrir a caixa e verificar o seu conteúdo. Ao certificar-se de que o que ela estava procurando não estava na caixa, tinha que devolvê-la e repetir toda aquela chatice novamente. A única quebra na monotonia do seu serviço era quando um outro oficial aparecia para verificar alguma caixa. Mas aquela era uma alegria fugaz, já que a maioria invariavelmente tinha a sorte de saber a localização do que estava procurando.
Não havia uma maneira simples de facilitar a tarefa. No início, Karen achou que o caminho mais prático para fazer a busca ia ser vasculhar tudo o que tinha vindo de St. Andrews. As caixas eram arquivadas de acordo com os números dos casos, em ordem cronológica. Mas o processo de reunir todos os arquivos de provas de todas as delegacias da região espalhara as caixas de St. Andrews. De modo que ela teve de desistir dessa opção.
Então, ela começou a pesquisar em todas as caixas datadas de 1978. Mas não encontrou nada, a não ser um estilete que pertencia a um caso de 1987. Então, ela decidiu conferir os dois anos. Desta vez, o item trocado foi um tênis infantil, relíquia do desaparecimento nunca resolvido de um garotinho de dez anos em 1969. Estava chegando a ponto de achar que deixaria o que estava procurando passar, porque o seu cérebro estava exausto.
Abriu uma lata de refrigerante, tomou um gole que acionou as duas papilas gustativas e começou: 1980. Terceira prateleira. Arrastou o seu corpo cansado até a base da escada, retomando do ponto onde havia parado na véspera. Subiu na escada, puxou a caixa e desceu os degraus de alumínio com cuidado.
De volta à mesa, livrou-se da papelada e levantou a tampa. Maravilha. Parecia uma pilha rejeitada de velhas roupas de brechó. Ela removeu todos os sacos da caixa, um por um, verificando que o número do caso de Rosie não constava em nenhum deles. Um par de jeans. Uma camiseta imunda. Uma calcinha. Uma meia-calça. Um sutiã. Uma camisa xadrez. Nada disso a interessava. O último item parecia ser um cardigã feminino. Karen suspendeu o saco, sem esperanças.
Deu uma olhada no adesivo sobre o saco. Piscou, duvidando dos seus olhos. Verificou o número novamente. Sem conseguir acreditar, apanhou o caderno em sua bolsa e comparou o número do caso com o saco que estava segurando firme nas mãos.
Não havia dúvida. Karen encontrara o seu presente de Natal adiantado.
29
Janeiro de 2004; Escócia
Ele estava certo. Havia mesmo um padrão. Fora interrompido pelas festas de fim de ano e isso o deixara impaciente. Mas, agora que o Ano-Novo passara, a velha rotina havia sido retomada. A mulher saía todas as quintas-feiras, à noitinha. Ele observava a sua silhueta contra a luz quando a porta da frente se abria. Minutos depois, os faróis do seu carro se acendiam. Não sabia para onde ela ia, e pouco se lixava. O que importava é que ela havia se comportado de maneira previsível, deixando o seu marido sozinho em casa.
Calculou que teria umas boas quatro horas para executar o seu plano. Mas obrigou-se a ter mais paciência. Não fazia sentido se arriscar logo agora. Melhor esperar as pessoas se acomodarem para passar a noite, prostradas diante da tevê. Não queria dar de cara com algum vizinho levando o seu cachorro de rico para fazer xixi na hora da sua fuga. Bairro chique, previsível como um rádio-relógio. Acalentou este pensamento reconfortante, tentando abafar o tique-taque da sua ansiedade.
Desdobrou a gola do seu casaco para proteger-se do frio e preparou-se para esperar, o coração inquieto de tanta ansiedade. O que vinha a seguir não era agradável, apenas necessário. Não era nenhum psicopata, afinal de contas. Apenas um homem fazendo o que tinha de ser feito.
David Kerr trocou os DVDs e voltou para a poltrona. Costumava deleitar-se com o seu vício semissecreto nas noites de quinta-feira. Quando Hélène saía com as amigas, ele passava a noite diante da tevê, grudado no que ela julgava "lixo televisivo". Naquela noite, ele já havia assistido a dois episódios de Six Feet Under e agora estava com o dedo no controle remoto, buscando um dos seus episódios favoritos da primeira temporada de The West Wing. Acabara de cantarolar o grandioso tema de abertura, quando pensou ter ouvido um barulho de vidro se quebrando lá embaixo. Sem raciocinar de maneira consciente, o seu cérebro calculou as coordenadas e sinalizou que o barulho vinha dos fundos da casa. Provavelmente da cozinha.
Ele se levantou da poltrona e tirou o som da televisão pelo controle remoto. Ouviu novamente o som dos vidros e levantou-se num sobressalto. Que diabos era aquilo? Será que o gato derrubara alguma coisa na cozinha? Ou havia uma explicação mais sinistra?
Cuidadosamente, David se pôs a procurar uma arma em potencial à sua volta. Não havia muito para escolher, pois a decoração de Hélène era um tanto quanto minimalista. Apanhou uma jarra de cristal, fina o bastante para caber perfeitamente na sua mão. Atravessou o cômodo na ponta dos pés, esforçando-se para ouvir mais alguma coisa, o coração acelerado. Pensou ter ouvido um barulho de vidro sendo pisado. Junto com o medo, veio a raiva. Algum bêbado ou drogado, procurando dinheiro para uma garrafa de vinho ou uma dose de heroína. O seu instinto natural era chamar a polícia, e ficar esperando quietinho. Mas a polícia ia demorar muito para chegar até lá. Nenhum ladrão com um mínimo de amor-próprio ia se contentar só com a cozinha; ele certamente procuraria um lucro melhor no resto da casa e David seria obrigado a se confrontar com o invasor. Além do mais, sabia que, se apanhasse o telefone, a extensão na cozinha iria emitir um barulho, revelando a sua intenção. O que podia realmente irritar a pessoa que estava rondando a sua casa. Melhor tentar uma abordagem mais direta. Lera em algum lugar que a maioria dos ladrões é covarde. Bom, um covarde talvez conseguisse espantar o outro.
Respirando fundo para se acalmar, David abriu uma fresta na porta da sala de estar. Espiou o corredor, mas a porta da cozinha estava fechada e não dava nenhuma pista do que poderia estar acontecendo do outro lado. Mas agora podia ouvir os inconfundíveis barulhos de alguém se mexendo. O ruído dos talheres chocando-se uns contra os outros quando a gaveta era aberta. A porta do armário da cozinha se fechando com um estalo.
Seja o que Deus quiser. Ele não ia ficar parado enquanto alguém perambulava pela sua casa. Caminhou até o fim do corredor, inflado de coragem, e abriu a porta da cozinha num solavanco.
- Que diabos está acontecendo aqui? - gritou ele para a escuridão. Buscou o interruptor, mas quando tentou acender a luz, nada aconteceu. Com a luz fraca que vinha da rua, pôde ver cacos de vidro no chão ao lado da porta dos fundos, que estava aberta. Mas não havia ninguém por perto. Será que já tinham ido embora? O medo fez com que os pelos da sua nuca e dos seus braços ficassem arrepiados. Hesitante, ele deu um passo à frente na escuridão.
Foi quando percebeu algo se movendo atrás da porta. David virou-se no exato momento em que o invasor colidiu contra ele. Parecia de estatura mediana, não era nem gordo, nem magro, mas o rosto estava coberto por uma máscara de esqui. Sentiu um golpe no estômago; não forte o bastante para fazer com que ele se curvasse, mais um empurrão do que um soco. O assaltante deu um passo para trás, ofegante. Exatamente quando percebeu que ele segurava uma faca, David sentiu uma dor lancinante no abdômen. Colocou a mão na barriga e demorou alguns segundos tentando descobrir por que ela estava quente e úmida. Olhou para baixo e viu uma mancha negra alastrando-se pela sua camiseta branca.
- Você me esfaqueou - constatou ele, incrédulo.
O assaltante não respondeu. Afastou o braço para trás e desferiu outro golpe. Desta vez, David sentiu a lâmina perfurando o seu corpo profundamente. As suas pernas cederam e ele tossiu, caindo para a frente. A última coisa que viu foi um par de botas bem gastas. De longe, ouviu uma voz. Mas não podia mais compreender o que ela estava dizendo. Um conjunto de sílabas que não fazia sentido. Enquanto perdia a consciência, não conseguia parar de pensar que era uma pena morrer.
Quando o telefone tocou, às vinte para a meia-noite, Lynn esperou ouvir a voz de Alex do outro lado, pedindo desculpas pelo atraso, avisando que já estava saindo do restaurante onde estivera entretendo um possível cliente de Gothenburg. Não estava preparada para o lamento que a atingiu em cheio assim que suspendeu o telefone do gancho na sua cabeceira. Uma voz de mulher, irreconhecível, mas claramente angustiada. Foi tudo o que ela conseguiu distinguir.
Na primeira pausa, Lynn interrompeu.
- Quem está falando? - perguntou ela, aflita e assustada.
Mais soluços desesperados. Então, finalmente, algo que soava familiar.
- Sou eu, Hélène. Deus me ajude, Lynn, isso é horrível, horrível. - A voz dela falhou e Lynn ouviu um emaranhado de sons incoerentes em francês.
- Hélène? O que houve? O que aconteceu? - Lynn estava aos berros, tentando discernir os gemidos. Ouviu um longo suspiro.
- É o David. Acho que ele está morto.
Lynn compreendeu as palavras, mas não conseguiu captar o significado.
- Do que você está falando? O que aconteceu?
- Eu cheguei em casa e ele está aqui estirado no chão da cozinha, tem sangue para todo lado e ele não está respirando. Lynn, o que eu faço? Eu acho que ele morreu.
- Você ligou para a ambulância? Ou para a polícia? - Surreal. Aquilo era surreal. Lynn ficou boba ao perceber que conseguia raciocinar em um momento como aquele.
- Eu já chamei os dois. Estão a caminho. Mas eu precisava falar com alguém. Estou com medo, Lynn, estou com tanto medo. Eu não consigo entender. Isso é horrível, acho que vou enlouquecer. Ele está morto, o meu David está morto.
Desta vez, conseguiu absorver as palavras. Lynn sentia como se uma palma gelada estivesse apertando o seu peito, impedindo a sua respiração. As coisas não podiam acontecer daquela maneira. Ninguém atende ao telefone esperando ouvir a voz do marido e fica sabendo que o irmão morreu.
- Você não sabe direito ainda - disse ela, sem esperanças.
- Ele não está respirando. Não tem batimentos cardíacos. E tem tanto sangue aqui. Ele está morto, Lynn, eu tenho certeza. O que eu vou fazer sem ele?
- Todo esse sangue, será que alguém o atacou?
- O que mais pode ter acontecido?
O medo atingiu Lynn como uma ducha gelada.
- Saia dessa casa imediatamente, Hélène. Espera a polícia lá fora. Pode ser que ainda tenha alguém aí dentro...
Hélène gritou.
- Ai, meu Deus, será possível?
- Sai daí. Me liga depois, quando a polícia chegar. - A linha ficou muda. Lynn estava paralisada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer. Alex. Precisava de Alex. Mas Hélène precisava mais. Atordoada, ela ligou para o celular dele. Quando ele atendeu, os ruídos de um restaurante barulhento pareceram incongruentes e bizarros para Lynn. - Alex - disse ela. Por alguns segundos, não conseguia falar mais nada.
- Lynn? É você? Está tudo bem? Você está passando bem? - O nervosismo dele era palpável.
- Estou bem. Mas acabei de ter uma conversa horrível com Hélène. Alex, ela disse que Mondo morreu.
- Espera um segundo, não estou ouvindo nada.
Ela ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e alguns segundos depois o barulho desapareceu.
- Agora, sim - disse Alex. - Não entendi uma palavra do que você disse. Qual é o problema?
Lynn pôde sentir o seu autocontrole se esvair.
- Alex, você precisa ir até a casa de Mondo agora. Hélène acabou de me ligar, aconteceu uma coisa horrível. Ela disse que Mondo morreu.
- O quê!?
- Eu sei, é inacreditável. Ela disse que ele está estirado no chão da cozinha, com sangue pra todo lado. Por favor, preciso que você vá até lá, descubra o que está acontecendo. - As lágrimas escorriam pelo seu rosto.
- E Hélène está lá? Na casa? Disse que Mondo morreu? Meu Deus.
Lynn engasgou com um soluço.
- Eu também não consigo acreditar. Por favor, Alex, vai lá ver o que aconteceu.
- Tá bem, tá bem, estou indo agora. Escuta, vai ver que ele só está ferido. Vai ver que ela se confundiu.
- Do jeito que ela falou, tinha certeza absoluta.
- Bom, Hélène não é médica, é? Olha, fica tranquila, eu te ligo na hora que chegar lá.
- Eu não acredito nisso. - Lynn estava engasgada com as lágrimas e as suas palavras eram soluços.
- Lynn, você precisa tentar ficar calma. Por favor.
- Calma? Como é que eu posso ficar calma? O meu irmão morreu.
- Não temos certeza ainda. Lynn, pense no bebê. Você precisa se cuidar. Ficar nervosa desse jeito não vai ajudar Mondo, seja lá o que tiver acontecido com ele.
- Tá, vai pra lá logo, Alex - gritou ela.
- Estou indo. - Ela ouviu os passos de Alex antes de desligar. Nunca precisou tanto dele. E queria estar em Glasgow, ao lado do irmão. Independentemente do que se passara entre eles, ainda tinham o mesmo sangue. Alex não precisava ficar lembrando que ela estava com oito meses de gravidez. Ela não ia fazer nada que pudesse colocar o bebê em risco. Gemendo baixinho enquanto enxugava as lágrimas, Lynn tentou encontrar uma posição confortável na cama. Por favor, Deus, faça com que Hélène esteja errada.
Alex não se lembrava de já ter dirigido tão rápido. Chegar até Bearsden sem ter visto uma luz azul piscando pelo retrovisor foi um milagre. Durante todo o percurso, não parava de repetir para si mesmo que tudo aquilo não passava de um engano. Não podia levar em consideração a possibilidade da morte de Mondo. Ainda mais tão próxima da de Ziggy. É claro que coincidências horríveis acontecem. Era delas que os tabloides mais asquerosos e os programas sensacionalistas de tevê eram feitos. Mas aconteciam com os outros. Pelo menos, até agora.
As suas esperanças fervorosas começaram a se desintegrar assim que ele dobrou a esquina na rua pacata onde Mondo e Hélène moravam. Havia três carros de polícia na calçada, e uma ambulância na frente da casa. O que não era um bom sinal. Se Mondo estivesse vivo, já teria sido levado de lá há muito tempo e a ambulância teria partido às pressas para o hospital mais próximo.
Alex largou o seu carro atrás do primeiro carro de polícia e correu em direção à casa. Um corpulento policial uniformizado, usando uma jaqueta amarela fluorescente, interrompeu o seu trajeto.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele.
- Eu sou o cunhado - explicou Alex, tentando passar por ele. O policial o segurou pelos braços firmemente, impedindo a sua passagem. - Por favor, deixe-me passar. Eu sou casado com a irmã de David Kerr.
- Sinto muito, senhor. Ninguém pode entrar agora. Houve um crime no local.
- E Hélène? A mulher dele? Onde ela está? Ela ligou para a minha mulher.
- A senhora Kerr está lá dentro. Está sã e salva, senhor.
Alex parou de insistir. O policial soltou os seus braços.
- Olha, eu não faço a menor ideia do que aconteceu aqui, mas sei que Hélène precisa de apoio. Não dá para ligar para o seu chefe pelo rádio, ver se eu consigo entrar lá?
O policial fez uma expressão de dúvida.
- Como eu disse, senhor, houve um crime no local.
Alex sentiu a frustração latejando na sua cabeça.
- E é assim que vocês tratam as vítimas? Mantendo-as isoladas da família?
O policial levou o rádio à boca com um ar resignado. Virou-se de lado, certificando-se de manter o caminho para a casa bloqueado, e murmurou alguma coisa no rádio. Houve um estalo de resposta. Após uma breve e silenciosa conversa, ele virou-se para Alex.
- O senhor pode me apresentar alguma identidade? - pediu ele.
Impaciente, Alex pegou a carteira e retirou a carteira de motorista. Satisfeito por ter tirado uma das novas carteiras com fotografia, ele a entregou ao policial. O sujeito a examinou e a devolveu com um aceno educado.
- Se o senhor quiser subir, um dos meus colegas do DIC irá encontrá-lo na porta da casa.
Alex passou voando por ele. Estava com uma sensação estranha nas pernas, como se os seus joelhos pertencessem a alguém que não sabia andar direito. Quando alcançou a porta, ela se abriu e uma mulher na faixa dos trinta anos surgiu cansada, pousando os seus olhos cínicos sobre ele como se tentando memorizar todos os detalhes.
- Sr. Gilbey? - perguntou ela, dando um passo para trás para permitir que Alex entrasse no recinto.
- Isso mesmo. O que aconteceu? Hélène ligou para a minha mulher, parece que ela tinha a impressão de que Mondo estava morto.
- Mondo?
Alex suspirou, impaciente com a sua própria ignorância.
- Era o apelido dele. Somos amigos desde a escola. David, David Kerr. A esposa dele disse que ele estava morto.
A mulher assentiu com a cabeça.
- Lamento ter de lhe informar que o Sr. Kerr está morto.
Deus, pensou ele. Que maneira de dar as notícias.
- Não consigo entender, o que foi que aconteceu?
- Ainda é cedo para sabermos com certeza - disse ela. - Parece que ele foi esfaqueado. Existem sinais de arrombamento nos fundos da casa. Mas, espero que o senhor compreenda, não podemos entrar em detalhes por enquanto.
Alex esfregou as mãos no rosto.
- Mas isso é terrível. Meu Deus, pobre Mondo. Que coisa. - Ele balançou a cabeça, em choque e aturdido. - Mas que coisa surreal. Meu Deus. - Suspirou profundamente. Teria tempo de lidar com as suas reações depois. Não foi para isso que Lynn pediu que ele fosse até lá. - Onde está Hélène?
A mulher abriu uma porta para dentro da casa.
- Está na sala de estar. Se o senhor quiser ir até lá... - disse ela, afastando-se e observando Alex passar por ela e seguir direto para o quarto que dava para o jardim da frente. Hélène sempre se referira àquele cômodo como a sala de visitas e ele sentiu uma pontada de culpa ao se lembrar das vezes em que ele e Lynn a ridicularizaram pela sua pretensão. Alex abriu a porta e entrou na sala.
Hélène estava sentada no canto de um dos imensos sofás marfim, encurvada como uma senhora idosa. Quando ele entrou, ela suspendeu os olhos e eles eram duas poças inchadas de sofrimento. O seu longo cabelo negro estava desalinhado em volta do rosto, com algumas mechas grudadas no canto da boca. As roupas estavam amassadas em uma irônica paródia da sua habitual elegância parisiense. Ela estendeu os braços para ele, suplicante.
- Alex - disse ela, a voz embargada e aflita.
Ele foi até ela, sentando-se ao seu lado e a abraçando. Era a primeira vez que a abraçava daquela maneira. Normalmente, os cumprimentos consistiam em uma das mãos solta no braço do outro ou beijos que não tocavam as bochechas. Ficou surpreso ao perceber como Hélène era musculosa, e mais surpreso ainda por estar percebendo aquilo. Começou a constatar que o choque o transformara em um estranho de si mesmo.
- Sinto muito - disse ele, sabendo que as palavras eram inúteis, mas incapaz de evitá-las.
Hélène encostou-se nele, exausta em sua dor. Foi então que Alex notou que uma policial uniformizada estava discretamente sentada no canto da sala. Ela deve ter trazido uma cadeira da sala de jantar, pensou ele, irrelevante. De modo que não haviam concedido nenhuma privacidade a Hélène, apesar da sua perda estarrecedora. Não era preciso ser um gênio para prever que ela enfrentaria os mesmos olhares suspeitos que Paul enfrentara após a morte de Ziggy, ainda que tudo apontasse para um assalto malsucedido.
- Parece que estou presa em um pesadelo. E só quero acordar - disse Hélène, exausta.
- Você ainda está em choque.
- Eu não sei o que está acontecendo. Ou onde eu estou. Nada parece real.
- Eu também não consigo acreditar.
- Ele estava deitado lá - disse ela, baixinho. - Encharcado de sangue. Eu coloquei a mão no pescoço dele, para ver se conseguia verificar os batimentos. E você quer saber de uma coisa? Eu tomei cuidado para não me sujar com o sangue dele. Não é uma coisa horrível? Ele estava lá, morto, e tudo o que eu conseguia pensar era em como vocês quatro acabaram sendo suspeitos só porque tentaram ajudar uma garota que estava morrendo. Por isso, eu não queria me sujar com o sangue de David. - Os dedos de Hélène destruíam convulsivamente um lenço de papel. - Que coisa horrível. Eu não consegui sequer abraçá-lo, porque estava pensando só em mim.
Alex afagou o ombro dela.
- É compreensível, sabendo do que aconteceu conosco. Mas ninguém ia achar que você tem alguma coisa a ver com isso.
Hélène emitiu um som áspero, do fundo da garganta, e olhou de soslaio para a policial.
- On parle français, oui?
Que diabos era aquilo?
- Ça va - respondeu Alex, sem saber se o seu francês-para-viagens estava à altura do que Hélène queria compartilhar com ele. - Mais lentement.
- Eu não vou florear muito, não - disse ela em francês. - Preciso de seu conselho. Entendeu?
Alex fez um gesto positivo com a cabeça.
- Entendi.
Hélène estremeceu.
- Não acredito que estou pensando nisso agora. Mas não quero ser acusada por isso. - Ela apertou a mão dele. - Estou com medo, Alex. Eu sou a esposa estrangeira, vão suspeitar de mim.
- Não acho, não. - Tentou soar confiante, mas as suas palavras pareciam ter entrado por um ouvido dela e saído pelo outro, sem deixar rastros.
Ela insistiu, balançando a cabeça.
- Alex, tem uma coisa que vai me deixar muito mal. Muito mal mesmo. Uma vez por semana, eu saía sozinha. David achava que eu ia me encontrar com umas amigas francesas. - Hélène enrolou o lenço de papel, fazendo uma pequena bola. - Eu mentia para ele, Alex. Eu estava tendo um caso.
- Ah - disse ele. Aquilo era demais, junto com as notícias daquela noite. Não queria ser o confidente de Hélène. Jamais gostara dela e não achava necessário ficar sabendo dos seus segredos.
- David nem imaginava. Meu Deus, eu gostaria de jamais ter feito isso. Eu o amava, sabe? Mas ele era carente demais, era complicado. Então, uns meses atrás, eu conheci essa mulher, completamente diferente de David, em todos os sentidos. Eu não queria que a coisa evoluísse dessa maneira, mas nos tornamos amantes.
- Ah - repetiu Alex. O francês dele não era fluente o bastante para que ele perguntasse como é que ela pudera fazer isso com Mondo, como podia dizer que amava um homem que estava traindo. Além do mais, não seria nada oportuno começar uma discussão na frente da policial. Não era necessário conhecer uma língua para compreender tons de voz e linguagem corporal. E Hélène não era a única a se sentir no meio de um pesadelo. Um dos seus amigos mais antigos tinha sido assassinado e a sua esposa estava confessando um caso extraconjugal com outra mulher. Ele não conseguia assimilar tudo aquilo de uma só vez. Coisas daquele tipo não aconteciam com pessoas como ele.
- Eu estava com ela esta noite. Se a polícia descobrir, vão pensar: "Ah, ela tem uma amante, elas devem estar envolvidas." Mas não é verdade. Jackie nunca foi ameaça para o meu casamento. Eu não deixei de amar o meu marido só porque estava dormindo com outra pessoa. Então, eu devo confessar a verdade? Ou devo ficar calada e torcer para que eles não descubram? - Hélène afastou-se um pouco e lançou o seu olhar aflito para Alex. - Eu não sei o que fazer, estou morrendo de medo.
Alex sentia como se estivesse sendo transportado para uma dimensão paralela. Quais eram as suas reais intenções? Será que estava lançando mão de um duplo blefe e tentando convencê-lo a ficar do seu lado? Seria ela tão inocente quanto ele imaginara? Alex esforçou-se para encontrar o francês para dizer o que ele precisava dizer.
- Não sei, Hélène. Acho que não sou a pessoa mais indicada para responder.
- Mas eu preciso da sua ajuda. Você já passou por isso, você sabe como as coisas são.
Alex respirou fundo, desejando estar em qualquer outro lugar.
- E a sua amiga, essa Jackie? Ela mentiria por você?
- Ela não vai querer ser suspeita, assim como eu. Sim, ela mentiria, sim.
- Quem sabe?
- Sobre nós? - Ela deu de ombros. - Ninguém, eu acho.
- Mas não tem certeza?
- A gente nunca pode ter certeza.
- Nesse caso, eu acho que você deve contar a verdade. Porque se eles descobrirem mais tarde, vai ser pior ainda. - Alex passou as mãos no rosto e desviou o olhar. - Não acredito que Mondo mal morreu e nós estamos aqui tendo essa conversa.
Hélène afastou-se dele.
- Eu sei que provavelmente você está me achando fria, Alex. Mas eu tenho o resto da vida para chorar pelo homem que amava. E eu realmente amava David, de verdade. Mas agora, quero me certificar de que não vou ser acusada por algo que não fiz. E especialmente você deveria compreender isso.
- Tudo bem - respondeu Alex, voltando a falar na sua língua. - Você já avisou a Sheila e o Adam?
Ela fez um gesto negativo.
- A única pessoa com quem falei foi Lynn. Eu não sabia o que dizer para os pais dele.
- Você quer que eu ligue para eles? - Mas antes que Hélène pudesse responder, o celular de Alex cantarolou alegremente no seu bolso. - Deve ser Lynn - disse ele, apanhando o celular e conferindo o número do visor. - Alô?
- Alex? - A voz de Lynn soava aterrorizada.
- Estou aqui na casa - disse ele. - Não sei como te dizer isso. Lamento muito, muito mesmo. Hélène tinha razão. Mondo está morto. Parece que alguém invadiu a casa e...
- Alex - interrompeu Lynn. - Estou em trabalho de parto. As contrações começaram logo depois daquela hora em que falei com você. Pensei que fosse alarme falso, mas estão vindo a cada três minutos.
- Ah, meu Deus! - Alex levantou-se depressa, olhando ao redor, em pânico.
- Não fica desesperado. É normal. - Lynn gemeu de dor. - Ai, aí vem mais uma. Escuta, eu chamei um táxi, já deve estar chegando.
- O quê... o quê...
- Vai pro Hospital Simpson. Só isso. A gente se encontra na sala de parto.
- Mas Lynn, ainda é cedo para o bebê. - Alex finalmente conseguiu falar alguma coisa que fazia sentido.
- Foi o choque, Alex. Acontece. Eu estou bem, por favor, não fica apavorado, não. Preciso que você fique calmo, ouviu? Quero que você entre no carro e dirija com todo cuidado do mundo até Edimburgo. Ouviu?
- Amo você, Lynn. Amo vocês dois.
- Eu sei disso. Te vejo daqui a pouco.
Ela desligou e Alex olhou desamparado para Hélène.
- Ela está em trabalho de parto - disse ela, sem emoção na voz.
- Está em trabalho de parto - repetiu Alex.
- Então vai.
- Mas você não devia ficar sozinha.
- Posso ligar para uma amiga. Você precisa ficar com Lynn.
- Que hora mais imprópria - disse Alex. Guardou o telefone novamente no bolso. - Eu te ligo, ok? E volto assim que puder.
Hélène se levantou e deu um tapinha no braço dele.
- Vai logo, Alex. Depois me dá notícias. Obrigada por ter vindo.
Alex partiu, apressado.