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O ENIGMA DE CATALINA / Steven Saylor
O ENIGMA DE CATALINA / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENIGMA DE CATALINA

Primeira Parte

 

         NEMO

Segundo Catão... disse eu e fiz uma pausa, olhando de soslaio para o rolo que tinha na mão. A brilhante luz do Sol que entrava pela janela incidia no pergaminho, obscurecendo as desmaiadas letras pretas. Mas a verdade é que, aos quarenta e sete anos, os meus olhos já não são o que eram. Sou capaz de contar as folhas de uma oliveira a quinze metros de distância, mas a diferença entre um O e um U, ou mesmo entre um I e um L, já não é tão clara como antigamente.

 

Segundo Catão recomecei, segurando o pergaminho com os braços estendidos e lendo em silêncio. Bem, isto é ridículo! Catão diz claramente que, por esta altura, a colheita do feno já devia estar feita, e no entanto estamos nas Calendas de Junio e ainda nem sequer começámos!

 

Se me é permitido interromper, Senhor... Arato, de pé ao meu lado, pigarreou. Era um escravo que ainda não tinha cinquenta anos e que já era o encarregado da quinta muito tempo antes da minha chegada, no Outono anterior.

 

Sim?

 

Senhor, as flores ainda não saíram da erva. Não é raro as colheitas atrasarem-se. O ano passado foi a mesma coisa. Só colhemos o feno quase no final de Junius...

 

E eu bem vi a quantidade que se estragou no celeiro! Fardos e fardos apodrecidos durante o Inverno, de tal maneira que quase não havia com que alimentar os bois durante a lavoura, esta Primavera.

 

Mas isso foi porque a tempestade deu cabo do telhado do celeiro no Inverno passado, o que fez com que a chuva entrasse lá dentro, estragando a maior parte do feno. Não teve nada a ver com o facto de a colheita ter sido tardia no Verão passado. Arato baixou os olhos e comprimiu os lábios. A sua paciência estava quase a chegar ao fim, ainda que a sua subserviência fosse mais resistente.

 

Ainda assim, Catão é explícito: ”Faz a colheita da erva quando chegar o tempo, e tem cuidado para não a fazeres tarde de mais.” Ora, Marco Pórcio Catão pode estar morto há quase cem anos, mas não me parece que o comportamento da Natureza se tenha alterado entretanto. Ergui os olhos para Arato, que apertou fortemente os lábios. E há mais uma coisa... Passei os olhos rapidamente pelo rolo de pergaminho, à procura da passagem que me saltara à vista na noite anterior. Ah, aqui está: ”O grão-de-bico é venenoso para o gado, por isso deve ser cortado se por acaso crescer no meio dos cereais.” Mas ainda no outro dia eu vi um dos escravos levar as porções queimadas de grão-de-bico da cozinha e misturá-las na ração dos bois.

 

Terei apanhado Arato revirando os olhos, ou terá sido imaginação minha?

 

As ervas do grão-de-bico são venenosas para o gado, Senhor, mas os grãos não são. E também suspeito de que são venenosas para os homens acrescentou friamente.

 

Ah, muito bem, então está tudo explicado. Fechei os olhos e belisquei a cana do nariz. Se, como dizes, as flores ainda não saíram da erva, presumo que só nos reste esperar. As vinhas já começaram a deitar folhas?

 

Já, Senhor. Já começámos a podar as vinhas e a atá-las aos suportes como Catão diz que se deve fazer. E uma vez que, como Catão aconselha, só os escravos mais habilitados e experientes devem dedicar-se a essa tarefa, talvez seja melhor eu ir supervisionar o trabalho. Eu acenei com a cabeça e ele foi-se embora. Subitamente, o compartimento pareceu-me quente e abafado, embora ainda não fosse bem meio-día. Senti latejar as têmporas e disse a mim próprio que era do calor, mas o mais provável era que fosse de ter estado a tentar ler o pergaminho e a discutir com Arato. Saí para o jardim de ervas, onde o ar era mais fresco. De dentro de casa, chegou até mim um súbito guincho, Diana gritou, depois Meto bradou ”Eu não lhe toquei” e seguiu-se uma palmada maternal de Betesda. Suspirei e continuei a andar, atravessei o portão e segui pelo caminho que levava aos redis das cabras, onde dois escravos estavam ocupados a arranjar uma sebe partida. Mal ergueram os olhos quando eu passei.

 

O caminho rodeava a vinha, onde Arato já estava ocupado a supervisionar o atamento das jovens videiras. Continuei a andar até ao olival e parei numa sombra fresca. Uma abelha zuniu-me à volta da cabeça e fugiu rapidamente por entre os troncos das árvores. Segui-a ao longo da encosta da colina da extremidade do olival, até à cumeeira onde havia uma mancha de floresta virgem. Os cepos nus na sua periferia mostravam que alguém tinha feito uma tentativa para limpar a superfície, abandonando-a em seguida. Ainda bem que a cumeeira permanecera selvagem e arborizada, embora Catão tivesse certamente aconselhado que fosse limpa para ser semeada; Catão parecia preferir os lugares altos às terras baixas, onde a humidade poderia acumular-se e a mangra dar cabo das colheitas.

 

Sentei-me num dos cepos e recuperei o fôlego à sombra de um carvalho velho e rugoso. A abelha voltou a zumbir-me ao ouvido talvez se sentisse atraída pelo óleo com cheiro a amêndoa com que Betesda me esfregara o ouvido na noite anterior. Eu estava a ficar grisalho, já tinha metade do cabelo branco, ou mais, misturado com o preto. Agora que vivia no campo, não me incomodava a cortá-lo com tanta frequência como na cidade, pelo que os caracóis soltos se me enrolavam sobre o pescoço e por cima das orelhas, e pela primeira vez na vida tinha deixado crescer a barba também ela meia grisalha, principalmente à volta do queixo.

 

Mas Betesda também estava a ficar grisalha, até começar a pintar o cabelo com hena; escolhera uma tonalidade vermelha-escura e forte, parecida com a cor do sangue. O seu cabelo continuava a ser muito belo, espesso e luxuriante. À medida que eu me tornava mais descuidado com o meu, ela foi-se tornando mais cuidadosa com o seu. Não voltou a usá-lo caído, excepto na cama. Durante o dia, enrolava-o e prendia-o no alto da cabeça, com a altivez de uma matrona romana embora a sua pronúncia egípcia acabasse sempre por denunciá-la.

 

Essa ideia fez-me rir, e apercebi-me de que me tinha passado a dor de cabeça. Olhei para baixo, para o vale, e inspirei os cheiros do Verão no campo: o odor dos quadrúpedes vivos, da erva agitando-se na brisa suave, da própria terra dormitando debaixo daquele sol quente que cozia. Estudei o plano da quinta como se fosse um quadro colocado na minha frente: o telhado de telhas vermelhas da casa grande, que escondia no seu interior os quartos, a cozinha, o escritório e a sala de jantar; o telhado mais alto, no sítio onde estavam instalados os banhos; o pátio formal, logo à entrada da porta principal, com o tanque de peixes e as flores; o segundo pátio, onde era fermentado o vinho, com as vasilhas e as cubas; o terceiro pátio, com o chão de lajes para a debulha; o jardim de ervas apenso à biblioteca, de onde eu saíra. Junto da casa, viam-se os telheiros, os currais e o poço, e a casota onde estava instalado o lagar do azeite. A terra à volta era utilizada para diversos fins: havia campos para cereais e outras colheitas, vinhas, olivais. Os limites estavam marcados, à minha esquerda por um regato ladeado de árvores, à minha direita pela estrada que vinha de Roma a Via Cássia, uma via ampla e pavimentada e ao longe, mesmo à minha frente, depois de uma extensão de campos cultivados, por um baixo muro de pedra que ia desde o regato até a estrada. Regato à esquerda, estrada à direita, muro ao fundo; e o quarto limite era a cumeeira onde eu estava sentado. Tratava-se de um cenário idílico, digno de um poema ou mesmo dos louvores do velho e irritável Catão, pensei eu. O sonho de qualquer Romano, seja ele rico ou pobre, é ter uma quinta no campo para onde possa fugir da turbulência e da loucura da cidade. Contra todas as expectativas, eu tinha finalmente realizado esse sonho. Então, por que não me sentia feliz?

 

Este não é o teu lugar, Gordiano. Sobressaltei-me e virei-me.

 

Cláudia! Assustaste-me.

 

Óptimo! É preferível estares assustado do que aborrecido e infeliz. A minha vizinha colocou as mãos nas suas amplas coxas e olhou para mim de soslaio.

 

Pés e joelhos afastados observou ela. Cotovelos apoiados nos joelhos, mãos em concha, queixo apoiado nas mãos, cabeça inclinada para o lado, ombros descaídos. Se tivesses menos trinta anos, Gordiano, diria que estavas miseravelmente apaixonado. No teu caso, o que se passa é o que já te disse: muito simplesmente, o teu lugar não é no campo. Pronto, deixa-me sentar aqui neste cepo ao lado do teu e mostrar-te como é que uma pessoa que realmente ama o campo observa uma paisagem magnífica como esta.

 

Sentou-se no cepo, que aparentemente era um pouco mais baixo do que ela pensara, de maneira que bateu nele com o seu bem acolchoado traseiro, soltando uma gargalhada bem-humorada. Abriu as pernas, bateu com as palmas das mãos nos joelhos e sorriu à paisagem que se estendia na sua frente. Se estivéssemos sentados na vertente oposta da cumeeira, olhando para baixo para a sua quinta, ela não se mostraria mais satisfeita. Cláudia era prima do meu falecido amigo e benfeitor Lúcio Cláudio, cuja quinta eu herdara. Fisicamente, ela assemelhava-se a ele como se fossem irmãos; na realidade, ela parecia uma encarnação feminina de Lúcio, o que me predispôs a gostar dela desde o dia em que atravessou a colina para se apresentar. Tal como Lúcio, tinha os dedos grossos, as faces coradas e o nariz redondo. Tinha bastante mais cabelo do que Lúcio, que estava quase calvo antes de morrer, mas tal como ele tinha o cabelo ruivo (desmaiado com a idade, e misturado com fios de prata) e com a mesma textura delgada e puída; usava-o puxado para cima num rolo descuidado, de onde escapavam madeixas que flutuavam à volta do seu rosto amigável e redondo. Ao contrário de Lúcio, não se preocupava com ornamentos e a única jóia que alguma vez a vi usar foi uma simples corrente de ouro ao pescoço. Desdenhava as estolas femininas por considerá-las pouco práticas para a vida numa quinta, preferindo usar longas túnicas de lã de cores rústicas, de maneira que, à distância, dada a sua opulência e as suas vestes simples, era fácil confundi-la com um homem, ou mesmo com um escravo, uma circunstância irónica tendo em conta o seu digno sangue patrício.

 

A sua quinta ficava situada do outro lado da cumeeira; quando digo que a quinta era sua, estou a ser literal, porque a propriedade era inteiramente dela, sem passar por pai, irmão ou marido. Tal como Lúcio, Cláudia nunca se casara, mas conseguia viver de forma independente e à sua vontade. Isto já seria um feito razoável para uma matrona patrícia abastada da cidade, mas para uma mulher do campo, uma zona marcada pela tradição, era nada menos do que notável e sugeria uma força de carácter e uma determinação que os traços suaves e redondos de Cláudia não denunciavam.

 

Como conseguira ela arrancar o seu pedaço de terra pessoal à fortuna Cláudiana, é algo que eu desconheço. A sua quinta era apenas uma pequena parte das propriedades que a família possuía na região. Na realidade, eu estava rodeado por Cláudios de todos os lados. Do outro lado da cumeeira, para sul, localizava-se a pequena quinta de Cláudia, que era geralmente considerada uma das porções mais pobres, dada a natureza rochosa da encosta e a pouca altitude do vale, que no Inverno era atormentado por aquelas névoas tão temidas por Catão. Do outro lado do regato ladeado de árvores, para oeste, localizavam-se as propriedades do primo de Cláudia, Public Cláudio; a partir do ponto alto onde me encontrava, só vagamente conseguia avistar o telhado da sua maciça villa, erguendo-se acima dos topos das árvores. Para além do muro baixo, para norte, estava situada a propriedade de outro primo, Mamo Cláudio; a distância pouco me permitia ver das suas terras e nada da sua casa. Do outro lado da Via Cássia, para leste, a terra tornava-se escarpada e rochosa na base da montanha a que os locais chamavam monte Argênteo, cujas extensões superiores estavam engrinaldadas por uma floresta escura. Esta era a propriedade de outro primo de Cláudia, Gneu Cláudio, e dizia-se que era uma terra de primeira qualidade para a caça do javali e do veado. Havia ainda uma grande mina de prata, escavada algures no coração da montanha. Contudo, dizia-se que a mina tinha sido há muito exaurida. Avistava-se claramente o trilho sinuoso que conduzia ao lado da montanha e desaparecia para além de um rebordo guarnecido de pinheiros por onde no passado deviam ter circulado muitos escravos em trabalho contínuo; o caminho caíra em desuso e estava coberto de ervas, sendo actualmente um caminho de cabras.

 

Era opinião geral que, de todas estas propriedades, a de Lúcio Cláudio, o meu benfeitor, era de longe a melhor e Lúcio deixara-ma em testamento. Os Cláudios, em nome do jovem Gneu e representados por uma verdadeira legião de advogados, tinham contestado o testamento, mas em vão. Eu tivera de comparecer no tribunal romano, mas a quinta era minha. Por que razão não me sentia feliz?

 

Este é verdadeiramente um local muito belo dizia Cláudia, olhando para baixo, para o telhado vermelho e as terras cultivadas. Quando eu era novinha, estava praticamente vazio. O primo Lúcio não se interessava minimamente pela quinta e deixou-a arruinar-se. Depois, há cerca de quinze anos pouco antes de te conhecer e de vocês terem tido a vossa primeira aventura começou subitamente a interessar-se e a vir até aqui com alguma frequência. Comprou Arato e instalou-o como encarregado, plantou novas vinhas e olivais, trouxe mais escravos, renovou a casa. Transformou a quinta num empreendimento bastante lucrativo, para além de ser um retiro da cidade. Ficámos todos espantados com o êxito que ele teve. E lamentámos o seu falecimento súbito, o ano passado suspirou.

 

E ficaram desapontados com a escolha do seu herdeiro disse eu baixinho.

 

Vá lá, Gordiano, não deves ficar ressentido. Não podes censurar o meu primo Gneu por te ter posto aquele processo; Lúcio era seu primo, e todos esperávamos que Gneu fosse o herdeiro, porque a propriedade dele só serve para a caça e não para a agricultura, e a mina de prata há muito que foi exaurida. Bem, Cícero apresentou o teu caso de forma brilhante, como sempre tiveste muita sorte em ter acesso a esse homem importante, e todos te invejamos. Influenciado pelos argumentos de Cícero, o Tribunal de Roma declarou que o testamento de Lúcio era válido, e pronto. A fortuna de Lúcio não era pequena; ele tinha muitas outras propriedades maravilhosas, que dividiu pelos seus parentes de sangue. Eu própria herdei as jóias da sua mãe e a sua casa de cidade, no monte Palatino, em Roma. A ti, ele deixou a sua quinta etrusca. Já todos nos reconciliámos com esse facto.

 

Sei que tu te reconciliaste, Cláudia, mas não estou certo de que o mesmo se passe com os teus primos.

 

Porquê? Eles têm-te incomodado?

 

Não propriamente. Não vejo Gneu nem Mânio desde que nos encontrámos no tribunal, mas ambos enviaram um mensageiro ao meu encarregado, dizendo-lhe que prestasse atenção e não deixasse os meus escravos andarem pelas propriedades deles isto é, a não ser que eu quisesse que eles me devolvessem o escravo sem um membro.

 

Cláudia estremeceu e abanou a cabeça.

 

Lamentável. E Públio? Ele é o mais velho e sempre foi um homem sensato.

 

Bem, Públio e eu poderemos ir a tribunal em breve.

 

Não! Mas por quê?

 

Parece haver um desacordo acerca do regato que marca os limites das nossas quintas. A escritura que herdei de Lúcio indica claramente que eu tenho direito a usar como entender o regato e tudo o que nele existe, mas Públio enviou-me recentemente uma carta em que afirma que esse direito lhe pertence exclusivamente.

 

Oh, céus!

 

Os advogados acabarão por resolver a questão. Entretanto, ontem umas escravas minhas estavam a lavar roupa no regato e algumas escravas de Públio faziam o mesmo do outro lado; as outras agitaram deliberadamente as águas, que ficaram cheias de lama, o que levou as mulheres do meu lado a gritar insultos às mulheres da outra margem, que não se ficaram pelos insultos. Finalmente, chegaram os dois encarregados e puseram fim à altercação, mas só depois de uma das minhas mulheres ter sido atingida na cabeça por uma pedra lançada do outro lado.

 

Ela ficou muito magoada?

 

Não, mas a ferida sangrou muito e vai deixar uma cicatriz. Se eu fosse litigioso por natureza, exigia a Públio que me comprasse uma substituta.

 

Cláudia bateu com as mãos nos joelhos.

 

Intolerável! Não fazia ideia de que estavas a ser sujeito a estas provocações, Gordiano. Francamente, vou dar uma palavrinha aos meus queridos parentes e ver se consigo intervir a favor da promoção de boas relações de vizinhança, já para não falar do bom senso e da lei e da ordem!

 

Estava tão dramaticamente indignada, que me fez rir.

 

Uma intervenção tua a meu favor seria profundamente apreciada, Cláudia.

 

É   o mínimo que eu posso fazer. Francamente, litígios constantes e má vizinhança poderão ser a regra na cidade, mas aqui no campo não há lugar para essas coisas desagradáveis. Aqui, deve ser tudo tranquilidade, fertilidade e domesticidade, como dizia o próprio Lúcio.

 

Sim, recordo-me de ele ter utilizado precisamente essas palavras, certa vez em que se preparava para sair da cidade e vir para a quinta. Olhei para baixo, para o regato, depois para o telhado da casa de Públio que se erguia acima dos topos das árvores e senti uma vaga apreensão, mas afastei o olhar e decidi pensar noutra coisa. Costumavas estar com Lúcio quando ele vinha à quinta?

 

Oh, nunca deixava de me encontrar com ele. Era um homem tão agradável... mas isso tu já sabes. Vínhamos sentar-nos precisamente nesta cumeeira, nestes mesmos cepos, e olhávamos para baixo, para a quinta, fazendo planos para o futuro. Ele queria construir um pequeno moinho ao lado do regato. Sabias?

 

Não.

 

Era, com uma grande roda de água e uma série de rodas dentadas para moer cereais e outra série para moer pedras extraídas da mina de Gneu. Parecia tudo muito ambicioso e complexo, mas Lúcio achava que conseguiria fazer ele próprio o projecto. Foi uma pena ter morrido como morreu, tão de repente.

 

Acho que o melhor é morrer de repente. Conheço muitos homens que tiveram menos sorte.

 

Sim, suponho que é pior morrer lentamente, ou sozinho...

 

Mas Lúcio morreu muito rapidamente, com centenas de pessoas à sua volta... quando atravessava o Fórum, onde era conhecido e apreciado por quase toda a gente. Ia a rir-se e a dizer piadas com a sua comitiva segundo me contaram depois quando subitamente se agarrou ao peito e caiu. Morreu quase imediatamente; só sofreu um bocadinho. O funeral foi uma cerimónia e tanto... imensos amigos, de todas as camadas sociais. Sorri à memória. Tinha colocado o seu testamento à guarda das Virgens Vestais, como fazem muitos homens ricos. Antes de me terem chamado para o confirmar pessoalmente, eu não fazia a menor ideia de que ele me deixara o que quer que fosse. Mas ali estava ela, a escritura da sua quinta etrusca, juntamente com um exemplar já gasto do Sobre a Agricultura, de Catão. Suponho que me terá ouvido sonhar acordado, de vez em quando, com a possibilidade de me retirar para o campo, de fugir à loucura de Roma. Claro que se tratava apenas de sonhos ociosos um homem como eu nunca teria dinheiro para comprar uma quinta decente, com todos os escravos necessários à sua gestão.

 

E um ano mais tarde aqui estás tu, com o teu sonho realizado.

 

Sim, graças a Lúcio.

 

E, no entanto, encontro-te a cismar aqui no topo da colina, como Júpiter olhando para uma Tróia em chamas.

 

Podes atribuí-lo ao comportamento de alguns dos meus vizinhos disse eu lugubremente.

 

Está bem, mas estás preocupado com outra coisa qualquer. Encolhi os ombros.

 

Esta manhã, Arato e eu quase chegámos a vias de facto. Ele acha que eu sou um tolo citadino, insuportável e pomposo, que nada sabe sobre agricultura e só quer atrapalhá-lo. Suponho que devo parecer-lhe perfeitamente ridículo, preocupando-me com pormenores que mal compreendo e citando Catão.

 

E qual é a tua opinião sobre ele?

 

Sei que Lúcio o tinha em grande consideração, mas parece-me que a quinta não é, nem de longe, gerida com tanta eficácia como podia ser. Desperdiça-se demasiado.

 

Oh, eu detesto o desperdício! disse Cláudia. Nunca permito aos meus escravos que deitem fora seja o que for que ainda possa ser utilizado.

 

Pois bem, desde que eu aqui cheguei, no Outono passado, tem havido batalhas contínuas entre Arato e eu. Talvez eu seja de facto um tolo pomposo da cidade que nada sabe de agricultura, mas sei reconhecer quando há desperdício e sei ler Catão. E, para além disso, há em Arato qualquer coisa que me faz desconfiar. Talvez seja de não estar habituado a ter tantos escravos e a ter de lidar com todos eles, especialmente com um escravo tão voluntarioso e seguro de si próprio como Arato. Presumo que, em geral, Lúcio lhe confiasse a gestão da quinta, de maneira que a minha chegada foi para ele um grande inconveniente. Ele considera-me um espinho na ilharga. Olho para ele como um homem que olha para um cavalo no qual não confia; tem de ter o animal, para poder andar de um lado para o outro, mas no fundo suspeita de que ele vai deitá-lo ao chão. Dou por mim a censurá-lo constantemente. Ele reage mostrando-se grosseiro e impertinente.

 

Cláudia acenou solidariamente com a cabeça.

 

Ah, é sempre difícil encontrar um bom encarregado. Mas as alegrias da vida no campo ultrapassam em muito as dificuldades, pelo menos eu sempre achei que sim. Parece-me que não é apenas Arato que está a incomodar-te, Gordiano.

 

Eu olhei para ela de lado. A sua investigação começava a tocar pontos sensíveis.

 

Suponho que tenho de admitir que tenho saudades do meu filho mais velho.

 

Ah, o jovem Eco. Conheci-o quando ele te ajudou a fazer a mudança, no Outono passado. Um jovem com excelente aspecto. Por que não está ele aqui convosco?

 

Ficou com a minha casa no monte Esquilino, em Roma, e parece muito satisfeito. Bem, não podemos esperar que um jovem de vinte e sete anos prefira a tranquilidade da vida no campo às distracções da cidade. Além disso, casou-se há pouco tempo; e certamente que a rapariga prefere gerir a sua própria casa. Imaginas uma jovem recém-casada competindo com Betesda pela orientação do lar? Estremeço só de pensar nisso. Não teríamos um momento de tranquilidade! Por outro lado, ele trabalha na cidade. Faz o mesmo género de coisas que eu fazia... coisas perigosas, que me deixam preocupado. Roma transformou-se num lugar terrível...

 

Temos de acabar por deixá-los seguir o seu caminho. Pelo menos é o que me dizem. E tu ainda tens filhos em casa.

 

Sim, ainda há bocado estavam a atirar-se um ao outro. Meto já tem idade para se comportar de outra maneira. Faz dezasseis anos para o mês que vem e nessa altura vestirá a toga da masculinidade. Não devia andar à bulha com Diana. Ela só tem seis anos. Mas ele adora atormentá-la...

 

Diana? É esse o diminutivo dela?

 

Bem, Gordiana é um nome demasiadamente comprido para uma criança tão pequena, não achas? Além disso, o nome da deusa adequa-se a ela; a miúda adora coisas selvagens. Sente-se muito feliz aqui no campo. Tenho de ter cuidado para evitar que vá passear sozinha para longe.

 

Ah, a quinta deve parecer imensa a uma miúda de seis anos. Para ela, esta cumeeira é uma montanha, o muro é uma fortificação enorme e o regato um rio poderoso. E Meto, gosta do campo?

 

Ele cresceu no campo, em Baias, na costa. Cláudia olhou para mim com estranheza. Foi adoptado, tal como o irmão mais velho expliquei-lhe eu. Não acrescentei que Meto nascera escravo; os outros podiam vir a descobrir esse facto, mas não seria eu a revelar-lho. Por isso, o campo é uma coisa natural para ele. Sentia-se bastante feliz na cidade, mas também gosta de viver aqui.

 

E a tua mulher, Betesda?

 

Há mulheres que conseguem adaptar a si próprias o canto do mundo que ocupam, seja ele qual for; Betesda é uma delas. Além disso, todos os lugares empalidecem comparados com a sua Alexandria nativa. Se Roma não podia comparar-se-lhe, muito menos poderá o campo etrusco. Mas a verdade é que eu acho que ela sente a falta dos grandes mercados e da coscuvilhice, do cheiro a peixe junto ao rio, dos apertos no Fórum nos dias de festa, da confusão e da loucura da cidade.

 

E tu?

 

Eu o quê?

 

Tens saudades dessas coisas?

 

Nenhuma!

 

Ela olhou para mim com astúcia, mas não sem simpatia.

 

Gordiano, não sou há quarenta anos a única senhora e administradora de duas gerações de escravos conspirativos, além de cliente de todos os leiloeiros e de todos os comerciantes espertos daqui até Roma, que não saiba perceber quando um homem não está a ser completamente honesto comigo. Tu não és feliz aqui e isso nada tem a ver com as discussões com os teus vizinhos nem com a ausência do teu filho. Tens saudades de Roma.

 

Que tolice!

 

Estás entediado.

 

Com uma quinta para gerir?

 

E sentes-te sozinho.

 

Com a minha família à minha volta?

 

Não te sentes entediado por não teres que fazer; sentes-te entediado porque tens saudades das aventuras inesperadas que vivias na cidade. Não te sentes sozinho por te faltarem aqueles que amas, sentes-te sozinho porque não há pessoas novas na tua vida. Oh, os habitantes do campo estão familiarizados com a ausência de pessoas novas; toda a vida foi assim. Achas que eu não me farto do meu pequeno círculo do primo Públio e do primo Mânio e do primo Gneu e dos seus escravos, e não anseio por que apareça no meu mundo uma cara nova? É por isso que gosto de falar contigo, Gordiano. Mas eu fui educada no campo e tu foste educado na cidade, por isso para ti este tédio e esta solidão são muito piores.

 

Bem, talvez haja uma ponta de verdade no que afirmas, Cláudia, mas não se pode dizer que eu tenha saudades da cidade. Estava ansioso por sair de lá! Está muito bem para os jovens ou para aqueles que se sentem atraídos pelos seus vícios não há como Roma para um homem satisfazer as suas ambições de poder, ou a sua luxúria ou a sua ganância, ou para morrer a tentar. Não, eu voltei as costas a tudo isso. O facto de Lúcio ter morrido e me ter deixado esta quinta foi vontade dos deuses, que me sorriram, mostrando-me uma via de saída. Tornou-se impossível viver em Roma é uma cidade suja, ruidosa, violenta e com gente a mais. Só um louco continuaria a viver lá!

 

Mas o teu trabalho...

 

Isso é aquilo de que tenho menos saudades! Sabes como é que eu ganhava a vida? Autodenominava-me o Descobridor. Os advogados contratavam-me para eu descobrir provas dos crimes cometidos pelos seus inimigos. Os políticos oxalá nunca mais encontre nenhum! contratavam-me para descobrir escândalos relacionados com os seus adversários. Houve uma altura em que pensei que estava a servir a verdade e, através da verdade, a justiça, mas a verdade e a justiça são palavras sem sentido em Roma. Podem perfeitamente ser obliteradas da língua latina. Descubro que um homem é culpado de um crime hediondo, mas assisto à sua absolvição por um painel de juizes subornados! Descubro que um homem é inocente, e vejo-o ser condenado com base numa prova espúria e corrido da cidade! Descubro que o escândalo relacionado com um homem poderoso é verdadeiro, mas ele não deixa de ser um homem sério e honesto, que apenas tem os mesmos defeitos que os outros homens; apesar disso, aquilo que realmente preocupa as pessoas é o escândalo e ele é expulso do Senado, mas a verdadeira razão por que isso aconteceu foi uma manobra política dos seus inimigos, cujos verdadeiros objectivos eu apenas posso adivinhar. Entretanto, um perfeito canalha encanta a multidão e suborna os seus chefes, conseguindo ser eleito cônsul! Eu pensava que Roma estava a ficar cada vez pior, mas fui eu que mudei. Sinto-me demasiadamente velho e cansado para conseguir continuar a suportar tal bestialidade!

 

Cláudia não respondeu a esta tirada. Ergueu as sobrancelhas e moveu-se ligeiramente, pouco à vontade perante esta explosão de paixão, depois acompanhou-me numa contemplação silenciosa da paisagem. Um fio de fumo erguia-se da cozinha. Chegava até nós o bater abafado dos malhos utilizados pelos escravos que arranjavam o redil das cabras, juntamente com o balido de um cabrito que passara pela abertura e se perdera por entre a erva alta do campo de feno. Um jovem escravo fora procurá-lo, mas dirigia-se para o sítio errado. Pela Via Cássia, vinha do Norte um comboio de carroças, cujo carregamento estava preso e coberto com pesados lençóis de lona. A avaliar pela comitiva de guardas armados, a carga devia ser valiosa provavelmente uma remessa de vasos das famosas oficinas de Arretium, para Roma. Em direcção ao norte, e já muito perto das carroças, seguia pela estrada uma longa fila de escravos com cargas pesadas às costas, conduzidos por homens a cavalo. As suas cadeias eram novas e brilhavam ao sol do meio-dia. Para além da estrada, na encosta do monte Argênteo mesmo diante de nós, um rebanho de cabras sem pastor atravessava o caminho sinuoso que ia ter à mina de prata abandonada de Gneu. Os balidos longínquos, que mal se ouviam, atravessavam o ar quente e parado.

 

E, contudo... suspirei eu.

 

Sim, Gordiano?

 

E, contudo... sabes em que é que eu penso, aqui sentado a contemplar esta paisagem?

 

Em Roma?

 

Sim, Cláudia, em Roma! A cidade tem sete colinas e tem-se uma vista diferente de todas elas. Estava a pensar numa em particular, a Colina Quirinal, quem sobe da Porta Fontinal. Daí, avista-se todo o quadrante norte de Roma. Num dia claro de Verão como o de hoje, o Tibre cintila ao sol como se estivesse em fogo. A grande Via Flamínia está apinhada de carros e de homens a cavalo. O Circo Flamínio eleva-se a meia distância, enorme mas parecendo um brinquedo; à sua volta amontoam-se pequenas habitações e lojas cheias de gente, como crias à volta da mãe. Para além das muralhas da cidade, fica o Campo de Marte, enublado por causa do pó que os corredores de carros levantam. Os sons e os odores da cidade erguem-se no ar quente, que é como a respiração da própria cidade.

 

Estás com saudades da cidade, Gordiano.

 

Sim suspirei. Apesar dos perigos e da corrupção, apesar da maldade e da miséria apesar disso tudo, tenho saudades da cidade.

 

Voltámos a olhar para baixo, em silêncio. O escravo descobrira o cabritinho, que balia e esperneava ao ser arrastado pela erva alta. Uma rapariga das cozinhas levou uma talha de água aos escravos que trabalhavam no redil das cabras e os seus malhos calaram-se. No meio do silêncio, ouvi Arato gritar num tom agudo a um dos escravos que trabalhavam na vinha: ”Está malfeita, esta carreira está toda malfeita! Volta a fazê-la desde o princípio!” Depois, tudo ficou novamente em silêncio, à excepção do zumbido das abelhas nos bosques atrás de nós.

 

A verdade, Gordiano, é que eu esperava encontrar-te aqui na cumeeira hoje.

 

Sim, Cláudia?

 

Como sabes, as eleições estão à porta.

 

Nem me fales disso. Depois da farsa do Verão passado, não estou interessado a assistir a outro espectáculo repugnante como aquele.

 

Apesar disso, alguns de nós mantiveram o espírito cívico. No mês que vem, haverá eleições para os dois cônsules em Roma. Faz parte da tradição o nosso ramo dos Cláudios os primos do campo etrusco, como nos designamos a nós próprios reunir-se previamente para decidir que candidato vai apoiar, e escolher um representante para enviar a Roma a votar por nós. Este ano é a minha vez de acolher esta pequena reunião. É verdade que a minha casa é modesta e que eu não tenho escravos domésticos suficientes para acolher tal conclave; mas o dever é o dever. A reunião será no final do mês. Seria uma ajuda imensa se pudesses emprestar-me o teu cozinheiro e alguns escravos da cozinha para essa ocasião. Só vou precisar deles um par de dias antes, para ajudarem a preparar a festa, e depois no dia da reunião propriamente dita, para servirem à mesa. Serão, ao todo, três dias. Seria uma maçada muito grande, Gordiano?

 

Claro que não.

 

Hei-de arranjar maneira de te compensar. Quem sabe se virás a precisar de me pedir emprestado um boi ou uns feixes de feno. É assim que os vizinhos do campo se ajudam uns aos outros, não é?

 

É de facto.

 

E espero que não dês instruções aos teus escravos para deitarem veneno na comida da festa... seria uma solução excessivamente drástica para os problemas que os teus vizinhos te causam, eh?

 

Era uma piada, claro, mas de tão mau gosto que eu recuei em vez de sorrir. Conhecera em Roma mais casos de envenenamento do que gostava de me recordar.

 

Pronto, Gordiano, não te encolhas! Falando a sério, vou aproveitar a oportunidade para dar uma palavrinha aos meus parentes acerca da maneira pouco delicada como te têm tratado.

 

Era simpático da tua parte.

 

Tens algum conselho relativamente à lista de candidatos deste ano? O teu amigo Cícero parece ter tido um ano bastante bem sucedido como cônsul. Não temos ressentimentos contra ele, claro, por ele te ter representado no caso do testamento de Lúcio. Deves estar orgulhoso por ter um amigo assim. Como cônsul, saiu-se melhor do que qualquer de nós esperava é uma pena que não possa ser eleito dois anos seguidos. Pelo menos o ano passado manteve afastado aquele louco de olhos protuberantes, Catilina. Agora, Catilina voltou a concorrer, e parece imparável, pelo menos é o que diz.

 

Por favor, Cláudia... política não!

 

Claro, estás farto disso tudo.

 

Exacto. Tenho saudades de Roma, mas não tenho saudades...

 

Nesta altura, ouvi uma voz aguda chamar do vale. Era Diana, enviada pela mãe para me vir buscar para a refeição do meio-dia. Ouvi-à sair pela porta da biblioteca para o jardim de ervas. O seu cabelo comprido era extraordinariamente espesso e preto para uma rapariga e cintilava ao sol quase em tons de azul. Tinha vestida uma túnica leve amarela-clara, que lhe deixava nus os braços e as pernas. Da sua mãe egípcia herdara o tom de pele cor de bronze. Atravessou o portão a correr e percorreu rapidamente o caminho, passou pelo redil das cabras e pelas vinhas e desapareceu no olival situado na base da colina. Por entre a folhagem, consegui ver aproximar-se a túnica amarela, ao mesmo tempo que a ouvia gritar: ”Estou a ver-te, Papá! Estou a ver-te, Papá!”

 

Momentos depois, corria para os meus braços, a rir e sem fôlego.

 

Diana, lembras-te da nossa vizinha? Esta é a Cláudia.

 

Sim, lembro-me dela. Vives aqui nos bosques? disse Diana. Cláudia riu-se.

 

Não, minha querida, só venho aqui visitar o teu pai de vez em quando. Vivo lá em baixo no vale, do outro lado desta cumeeira, na minha quinta. Tens de ir visitar-me um dia destes.

 

Diana olhou gravemente para ela por momentos, depois voltou-se para mim.

 

A Mamã diz para vires imediatamente, senão ela atira a tua comida para o curral, para as cabras comerem!

 

Cláudia e eu desatámos a rir e levantámo-nos dos cepos. Ela disse adeus e desapareceu por entre os bosques. Diana envolveu-me o pescoço com os seus bracinhos e eu desci até casa com ela ao colo.

 

Depois da refeição do meio-dia, a tarde aqueceu ainda mais. Toda a gente animais, escravos e crianças procurou um lugar à sombra onde dormitar. Todos menos eu. Eu fui para a biblioteca e peguei num pergaminho e num estilete. Comecei a desenhar rodas, com entalhes que se ligavam a outras rodas, tentando imaginar o moinho de água que Lúcio Cláudio planeara construir no regato.

 

Tudo era paz e contentamento, mas eu não me sentia nada entediado. Fora a loucura, pensei, que me levara a dizer a Cláudia que tinha saudades das intrigas assassinas da cidade. Nada nem ninguém neste mundo, nem homem nem deus, me convenceria a regressar a essa vida.

 

Dez dias depois, estava eu novamente a pensar no problema do moinho de água quando Arato trouxe à biblioteca o cozinheiro e os seus dois jovens assistentes. Côngrio era um homem pesado; que bom cozinheiro o não seria? Como Lúcio Cláudio observara certa vez, não vale a pena ter um cozinheiro cujas criações não sejam suficientemente tentadoras para ele próprio se encher de iguarias roubadas. Côngrio não era o melhor cozinheiro de Lúcio esse posto fora reservado à casa que Lúcio tinha no monte Palatino, em Roma, onde recebia os seus amigos. Mas Lúcio não era homem para se privar de prazeres culinários, fosse para onde fosse, e o seu cozinheiro do campo era mais do que suficientemente competente para deliciar o meu palato.

 

Côngrio já estava a suar por causa do calor da manhã. Os seus assistentes perfilavam-se um de cada lado, ligeiramente recuados por respeito para com a sua autoridade.

 

Dispensei Arato e pedi a Côngrio e aos seus ajudantes que se aproximassem. Expliquei-lhes a minha intenção de os emprestar a Cláudia nos dois dias seguintes. Côngrio conhecia Cláudia, porque de vez em quando ela vinha jantar com o seu antigo senhor. Ela sempre apreciara o seu trabalho, garantiu-me ele, e estava certo de que voltaria a agradar-lhe e me daria razões para me orgulhar dele.

 

Óptimo disse eu, pensando que talvez este favor contribuísse para fazer melhorar as minhas relações com os Cláudios. Mais uma coisa...

 

Sim, Senhor.

 

Vão dar o vosso melhor em casa de Cláudia, evidentemente; e obedecer-lhe-ão e também ao seu cozinheiro, dado que estarão a servir em casa dela.

 

Claro, Senhor; compreendo.

 

Além disso, Côngrio...

 

Sim, Senhor? Ele enrugou a sua testa carnuda.

 

Nada dirás que possa envergonhar-me enquanto te encontrares ao serviço de Cláudia.

 

Claro que não, Senhor! Ele pareceu-me genuinamente ofendido.

 

Não vais trocar coscuvilhices com os outros escravos, nem opiniões acerca dos respectivos senhores, nem transmitir aquilo que te parecer serem as minhas opiniões.

 

Senhor, sei perfeitamente qual é o comportamento mais adequado a um escravo que é emprestado a uma amiga do seu Senhor.

 

Estou certo que sim. Simplesmente, enquanto manténs a boca fechada, mantém abertos os ouvidos.

 

Senhor? Ele inclinou a cabeça, a pedir-me que fosse mais claro.

 

Isto aplica-se mais aos teus assistentes do que a ti, porque presumo que não sairás da cozinha, enquanto eles poderão ajudar a servir a refeição aos Cláudios. A família vai sobretudo discutir política e as próximas eleições consulares; isso não me interessa, e podem ignorar o que for dito a esse respeito. Mas se por acaso ouvirem mencionar o meu nome, ou qualquer assunto relativo a esta quinta, abram os ouvidos. Não mostrem interesse, mas anotem o que for dito e quem o diz. Não discutam os pormenores uns com os outros, mas tentem não se esquecer deles. Quando regressarem, quero que mos relatem fielmente. Compreenderam todos bem?

 

Côngrio recuou com uma súbita expressão de importância e acenou gravemente com a cabeça. Os seus assistentes observaram o que ele fazia e seguiram o seu exemplo. Nada faz um escravo sentir-se tão agradavelmente perverso como ser-lhe confiada uma missão de espionagem.

 

Óptimo. Não digam nada acerca das instruções que acabo de dar-vos, nem sequer aos outros escravos. Nem sequer a Arato acrescentei. Eles voltaram a acenar com a cabeça.

 

Depois de os ter mandado embora, aproximei-me da janela e inclinei-me para fora, inspirando a fragância morna da erva ceifada. As flores tinham finalmente saído da erva, e os escravos começavam a juntar o feno. Também reparei na figura de Arato, que caminhava rapidamente ao longo da casa, de costas para mim, como se tivesse estado ao pé da janela a ouvir tudo o que eu dizia.

 

O forasteiro chegou dois dias depois, à tarde.

 

Eu levara um rolo de pergaminho para junto do regato e tinha-me sentado num talude coberto de erva, encostado ao tronco largo de um carvalho, com uma tabuinha de cera sobre os joelhos e um estilete na mão. O moinho da berma do regato começava a tomar forma na minha imaginação. Tentava desenhar aquilo que via na mente, mas os meus dedos eram desajeitados. Alisei a cera com a borda da mão e recomecei.

 

Papá! Papá! A voz de Diana surgiu de algures atrás de mim e fez eco na margem oposta. Não me mexi e continuei a desenhar. O resultado não foi mais satisfatório da segunda vez. Voltei a limpar a tabuinha.

 

Papá! Por que não me respondeste? Diana apareceu diante de mim, pondo as mãos nas ancas, a imitar a mãe.

 

Porque estava a esconder-me de ti disse eu, começando novamente a desenhar.

 

Que tolice. Sabes que eu consigo descobrir-te sempre.

 

Ai sim? Então não é preciso eu responder-te, pois não?

 

Papá! Ela revirou os olhos, novamente a imitar Betesda, e depois atirou-se para o chão ao meu lado como se subitamente se sentisse exausta. Enquanto eu desenhava, ela torceu-se formando uma roda com o corpo e puxando os dedos dos pés, depois voltou a estender-se e olhou de soslaio para o Sol, filtrado pelo dossel do carvalho. É verdade, consigo descobrir-te sempre, tu sabes que sim.

 

Consegues? E como é que fazes?

 

Foi Meto que me ensinou. Meto diz que foste tu que lhe ensinaste. Sigo as tuas pegadas na erva e descubro-te.

 

A sério? disse eu, impressionado. Não estou bem certo de gostar disso.

 

O que estás a desenhar?

 

Chama-se um moinho. É uma casinha com uma grande roda que entra dentro da água. O correr da água faz andar a roda, que faz andar outras rodas, que moem milho, ou pedras, ou os dedos das meninas descuidadas.

 

Papá!

 

Não te preocupes, é só uma ideia. É um problema, se preferires, e provavelmente complicado de mais para eu o resolver.

 

Meto diz que tu consegues resolver todos os problemas.

 

Ai diz? Pus a tabuinha de lado. Ela contorceu-se, rolou sobre a erva e pousou a cabeça no meu colo. A luz quebrada do sol enfeitava-lhe o cabelo, muito preto nas partes que ficavam à sombra e atravessado por lustrosos arco-íris, como azeite sobre a água, nos pontos em que a luz incidia nele. Nunca vira uma criança com um cabelo tão preto.

 

Também tinha os olhos pretos, profundos e límpidos como só os olhos de uma criança podem ser. Um pássaro passou por cima de nós. Eu observei Diana, que o seguia com o olhar, espantado com a beleza do seu mais leve movimento. Ela estendeu a mão para a tabuinha e o estilete, esticando o corpo desajeitadamente, e segurou-os ao alto.

 

Não vejo desenho nenhum disse.

 

Não está assim muito bem feito admiti eu.

 

Posso desenhar por cima?

 

Podes.

 

Ela obliterou por completo as minhas linhas tentativas com a sua mãozinha e depois começou a desenhar. Eu afaguei-lhe o cabelo, pensando no meu moinho imaginário junto ao ribeiro. A certa altura, duas mulheres emergiram do bosque na margem oposta. Eram escravas da cozinha e transportavam cântaros de barro. Quando me viram tiveram um sobressalto, conferenciaram por momentos com as cabeças juntas e depois voltaram a desaparecer no bosque. Pouco depois, avistei qualquer coisa noutro ponto do ribeiro e vi-as aproximarem-se da beira da água num local menos conveniente. Mergulharam os cântaros dentro de água, ergueram-nos aos ombros e regressaram com dificuldade ao bosque. Ter-lhes-ia Públio Cláudio dito que eu era um monstro capaz de as comer?

 

Este és tu! anunciou-me Diana, virando a tabuinha e empurrando-a na minha direcção. Distingui vagamente uma cara por entre os riscos e os floreados. Ela ainda desenhava pior do que eu, pensei, mas não muito pior.

 

Extraordinário! comentei. Temos entre nós outra laia Cizicena!

 

Quem é... Ela tropeçou no nome, que lhe era desconhecido.

 

laia, nascida na cidade de Císico, no Mar de Marmara, muito longe daqui. É uma grande pintora, uma das maiores da actualidade. Conheci-a em Baias, na mesma altura em que conheci o teu irmão Meto.

 

Meto conhecia-a?

 

Sim.

 

E eu, vou conhecê-la?

 

Há sempre essa possibilidade. Tinham passado nove anos desde os acontecimentos de Baias e laia não era assim tão velha. Talvez ainda vivesse o suficiente para Diana a conhecer. Talvez tu e laia possam encontrar-se um dia e comparar os respectivos desenhos.

 

Papá, o que é um Minotauro?

 

Um Minotauro? Ri-me da abrupta mudança de assunto. Tanto quanto sei, só existiu um, o Minotauro. Era uma criatura terrível, filho de uma mulher e de um touro; dizem que tinha cabeça de touro e corpo de homem. Vivia numa ilha distante, chamada Creta, onde um rei maldoso o mantinha fechado num lugar chamado Labirinto.

 

Num labirinto?

 

Sim, com paredes assim. Limpei a tabuinha e comecei a desenhar um labirinto. Todos os anos, o rei dava ao Minotauro rapariguinhas e rapazinhos para ele comer. Obrigavam as crianças a entrar aqui, estás a ver, e o Minotauro estava à espera delas aqui. Isto prolongou-se por muito tempo, até que um herói chamado Teseu entrou no Labirinto e matou o Minotauro.

 

Matou-o?

 

Sim.

 

Tens a certeza?

 

Tenho.

 

A certeza absoluta?

 

Sim.

 

Óptimo!

 

Por que estás a fazer estas perguntas sobre o Minotauro? disse eu, prevendo a resposta.

 

Porque Meto disse-me que, se eu não me portasse bem, tu me deitavas ao Minotauro. Mas tu acabas de dizer que ele está morto.

 

Ah, está mesmo.

 

Portanto, o Meto está enganado! Ela rolou para fora do meu colo. Oh, Papá, quase me esquecia! A Mamã mandou-me chamar-te. É uma coisa importante.

 

Sim? Ergui uma sobrancelha, imaginando uma discussão qualquer com os escravos não especializados que estavam a tomar conta da cozinha na ausência de Côngrio.

 

Sim! Está ali um homem que quer falar contigo, um homem que veio a cavalo de Roma e está coberto de pó.

 

Não era um homem, eram três homens. Dois deles eram escravos, ou mais precisamente guarda-costas, a avaliar pelo seu tamanho e pelos punhais que tinham à cintura. Os escravos não tinham entrado dentro de casa, estavam cá fora a segurar os cavalos, bebendo água de um cântaro. O seu senhor esperava por mim à entrada, no pequeno pátio formal com o seu tanque de peixes e as suas flores.

 

Era um jovem alto de olhos escuros, espantosamente belo. Tinha o cabelo preto e ondulado aparado curto por cima das orelhas mas comprido no alto da cabeça, de maneira que uma série de caracóis pretos lhe caía descuidadamente sobre a testa. A barba aparada era apenas uma tira preta à volta do queixo e do lábio superior, acentuando-lhe os malares e os lábios vermelhos. Tal como Diana dissera, estava coberto de pó por causa da viagem, mas o pó não escondia o aspecto moderno e dispendioso da sua túnica vermelha nem a qualidade dos sapatos de montar. O seu rosto era-me familiar, devia conhecê-lo do Fórum, pensei.

 

Um escravo trouxera-lhe uma cadeira desdobrável para se sentar. Ele levantou-se quando eu entrei e pousou o copo de vinho misturado com água que estava a beber.

 

Gordiano disse ele é agradável voltar a ver-te. A vida no campo faz-te bem. O seu tom era casual, mas revelava o polimento que o treino de oratória confere.

 

Eu conheço-te? perguntei-lhe. Os meus olhos já não são o que eram. Está uma luz tão forte lá fora, que não consigo ver-te bem aqui à sombra...

 

Perdoa-me! Sou Marco Célio. Já fomos apresentados, mas não há qualquer razão para que te lembres de mim.

 

Ah, sim disse eu. Já estou a ver-te melhor. És um protegido de Cícero... e também de Crasso, julgo eu. Tens razão, já nos tínhamos visto, certamente em casa de Cícero ou no Fórum. As memórias de Roma são de tal maneira irrelevantes aqui, que às vezes tenho dificuldade em me recordar. E a barba enganou-me. Não usavas essa barba.

 

Ele dobrou o braço e afagou-a com orgulho.

 

Sim, é provável que não a tivesse quando nos conhecemos. Tu também deixaste crescer a barba.

 

Mera preguiça... para não dizer cobardia. Na minha idade, um homem precisa de todas as gotas de sangue do seu corpo para manter os ossos aquecidos. Isso é moda em Roma? A barba assim aparada, quero eu dizer.

 

Sim. Entre um certo grupo. Havia na sua voz uns sinais de presunção que me desagradaram.

 

Estou a ver que a rapariga já te trouxe vinho.

 

Sim. E bastante bom.

 

É   uma colheita modesta. O meu falecido amigo Lúcio Cláudio sentia-se bastante orgulhoso dela. Estás de passagem para algum sítio mais para norte?

 

Não, o meu destino era este.

 

A sério? O meu coração ficou mais pequeno. Eu tivera esperanças de que ele estivesse apenas de passagem.

 

Venho tratar de negócios contigo, Gordiano, o Descobridor.

 

Agora sou Gordiano, o Agricultor, se não te importas.

 

Como quiseres. Ele encolheu os ombros. Talvez possamos retirar-nos para outra divisão.

 

A esta hora do dia, este pátio é o sítio mais fresco e confortável da casa.

 

Mas talvez disponhas de um sítio mais reservado, onde seja menos provável alguém ouvir-nos sugeriu ele. O meu coração voltou a ficar mais pequeno.

 

Marco Célio, tenho o maior prazer em voltar a ver-te, sinceramente. O dia está quente e a estrada é poeirenta. Sinto-me satisfeito por poder oferecer-te um copo de vinho morno e uma pausa na cavalgada. Talvez não te baste uma bebida e um curto descanso. Muito bem, a minha hospitalidade não termina aqui. Uma viagem de cavalo de Roma até à minha porta e novamente para Roma num único dia é um desafio, mesmo para um jovem em boa forma como tu pareces ser, por isso tenho todo o prazer em te oferecer alojamento para esta noite, se o desejares. Mas, a não ser que queiras falar da colheita do feno ou de prensas de azeitonas ou do cuidado das vinhas, tu e eu não temos negócio nenhum a discutir. Abandonei o meu antigo modo de vida.

 

Ouvi dizer que sim disse ele amavelmente, com um brilho de intrepidez no olhar. Mas não precisas de te preocupar. Não vim propor-te trabalho.

 

Não?

 

Não. Vim apenas pedir-te um favor. Não é para mim, como deves calcular, mas para o mais importante dos cidadãos desta terra.

 

Cícero suspirei. Devia ter calculado.

 

Quando um cônsul legalmente eleito solicita os seus serviços, um cidadão romano não pode recusar-se disse Célio. Especialmente tendo em conta os laços que vos ligam. Tens a certeza de que não tens outro compartimento mais adequado para a nossa discussão?

 

A minha biblioteca é mais reservada... embora não seja muito mais segura acrescentei entredentes, recordando-me de que avistara Arato afastando-se sub-repticiamente da janela dois dias antes.

 

Quando aí chegámos, fechei a porta e ofereci-lhe uma cadeira. Sentei-me junto da porta que dava para o jardim de ervas de forma a poder avistar qualquer pessoa que se aproximasse e, por cima do ombro de Célio, vigiar a janela onde apanhara Arato a escutar.

 

O que vieste fazer, Marco Célio? disse eu, abandonando por completo a aparência de uma conversa agradável. Digo-te desde já que não estou disposto a regressar à cidade. Se precisas de alguém que faça de espião e desenterre problemas, podes ir ter com o meu filho Eco, embora não seja coisa que eu lhe deseje.

 

Ninguém te pede que regresses a Roma disse Célio suavemente.

 

Não?

 

De maneira nenhuma. Pelo contrário. Na realidade, é o próprio facto de estares a viver no campo que faz de ti o homem indicado para aquilo que Cícero tem em mente.

 

Não estou a gostar nada disso. Célio sorriu ligeiramente.

 

Cícero disse-me que não gostarias.

 

Não sou um instrumento em que Cícero pode pegar quando quer, ou vergar à vontade aos seus desejos; nunca fui e nunca serei. Ainda que seja cônsul este ano, não é por isso que deixa de ser um mero cidadão. Tenho todo o direito de me recusar.

 

Mas ainda nem sequer sabes o que ele quer pedir-te. Célio parecia divertido.

 

Seja o que for, não me vai agradar.

 

Talvez não, mas poderás recusar uma oportunidade de servir o Estado?

 

Por favor, Célio, poupa-me esses apelos ocos ao meu patriotismo.

 

Não é um apelo oco. Ele ficou sério. Trata-se de uma ameaça bem real. Oh, compreendo o teu cinismo, Gordiano. Posso ter apenas metade da tua idade, mas já vi no Fórum traições e corrupção que cheguem para dez vidas!

 

Considerando que se formara politicamente ao lado de homens como Crasso e Cícero, era provável que ele estivesse a dizer a verdade. Cícero treinara-o pessoalmente no que à oratória dizia respeito e o aluno fazia jus ao seu mestre; as palavras que saíam dos seus lábios eram polidas como pedras preciosas. Poderia ser um actor ou um cantor. Dei por mim a escutá-lo apesar das minhas reservas.

 

O Estado está à beira de uma catástrofe terrível, Gordiano. Se avançar para ela ou se for empurrado, contra a vontade de todos os cidadãos honestos a queda será mais abrupta e devastadora do que qualquer outra que até agora tenhamos conhecido. Há pessoas decididas a destruir a República de uma vez por todas. Imagina o Senado afogado em sangue. Imagina um regresso às prescrições do ditador Sula, quando qualquer cidadão podia ser classificado como inimigo do Estado sem razão nenhuma deves recordar-te dos bandos que circulavam pelas ruas, levando cabeças cortadas ao Fórum e recebendo em troca uma gratificação retirada dos cofres de Sula. Simplesmente, agora a anarquia será muito mais generalizada, espalhando-se como as ondas provocadas por uma grande pedra lançada a um tanque de água. Desta vez, os inimigos do Estado estão decididos, não a reformá-lo, seja qual for o preço em sangue dessa reforma, mas a esmagá-lo por completo. És actualmente proprietário de uma quinta, Gordiano; queres que ta tirem à força? Será isso que acontecerá, não tenhas dúvidas; porque na nova ordem todas as coisas já estabelecidas serão usurpadas e derrubadas, reduzidas a pó. O facto de já não viveres em Roma não poderá proteger-te, nem a ti nem à tua família. Enterra a cabeça numa meda de feno, se quiseres, mas não te surpreendas se alguém vier por trás de ti e ta cortar.

 

Deixei-me ficar sentado em silêncio por momentos, sem pestanejar. Finalmente, consegui abanar a cabeça e inspirar.

 

Muito bem, Marco Célio! disse. Por momentos, conseguiste manter-me totalmente debaixo do teu encantamento! Cícero foi um excelente professor. Essa retórica faria arrepiar qualquer homem!

 

Ele ergueu as sobrancelhas, e depois semicerrou os olhos.

 

Cícero avisou-me de que não serias razoável. Eu bem lhe disse que ele devia enviar-te aquele escravo que ele tem, Tiro. Tu conheces Tiro e confias nele...

 

Gosto sinceramente de Tiro e respeito-o, porque ele é um homem de coração aberto, mas teria derrotado todos os seus argumentos e foi certamente por isso que Cícero não o mandou a ele. Não, ele fez muito bem em te mandar como seu representante, Marco Célio, mas não contou com a profundidade da minha aversão pela política romana, nem com a força da minha decisão de me manter afastado de qualquer envolvimento com o seu consulado.

 

Queres dizer que aquilo que te disse até agora nada significa para ti?

 

Significa apenas que dominas a técnica de fazer afirmações tolamente exageradas como se acreditasses sinceramente nelas.

 

Mas tudo o que eu disse é verdade. Não exagerei nada.

 

Célio, por favor! Estás a preparar-te para ser um político romano. Não te é permitido dizer a verdade, e é-te absolutamente solicitado que exageres em tudo.

 

Ele encostou-se, momentaneamente irritado, mas a recuperar as forças, como percebi pelo brilho dos seus olhos. Afagou a sua barba curta.

 

Muito bem, a República não te interessa. Mas certamente que ainda manténs alguns vestígios da tua honra pessoal como Romano.

 

Estás em minha casa, Célio. Não me insultes.

 

Muito bem, não o farei. Não vou continuar a argumentar contigo. Limitar-me-ei a recordar-te que deves um favor a Marco Túlio Cícero, e a pedir-te em seu nome que lhe pagues esse favor. Confiando na tua honra de cidadão romano, sei que não te recusarás.

 

Mexi-me na cadeira, pouco à-vontade. Olhei por cima do ombro, através da porta e para o jardim de ervas, onde uma vespa zunia no meio das folhas. Suspirei, sentindo aproximar-se a derrota.

 

Presumo que te refiras ao caso em que Cícero foi meu advogado de defesa, no Verão passado.

 

Refiro. Herdaste esta propriedade do falecido Lúcio Cláudio. A família dele, muito razoavelmente, contestou o testamento. Os Cláudios formam um clã de patrícios antigo e respeitado, enquanto tu és um plebeu sem antepassados, com uma carreira dúbia e uma família muito irregular. Podias perfeitamente ter perdido o caso, e com isso qualquer pretensão a esta quinta, para onde tão confortavelmente te retiraste da cidade que tanto afirmas desprezar. Podes agradecê-lo a Cícero e não o negues eu estava no tribunal naquele dia e ouvi a sua alocução. Raramente observei tal eloquência perdoa-me, mentiras e distorsões, se preferires. Foste tu que pediste a Cícero para te defender. Ele podia ter recusado. Tinha terminado uma desagradável campanha política e, como cônsul eleito, estava pressionado com obrigações e solicitações de todos os lados. Contudo, arranjou tempo para preparar o teu caso e para o apresentar pessoalmente. Não te pediu qualquer pagamento pelos seus serviços; defendeu-te para te honrar, em reconhecimento pelas muitas ocasiões em que tu o ajudaste desde o julgamento de Sexto Róscio, há dezassete anos. Cícero não esquece os seus amigos. E Gordiano?

 

Eu contemplei o jardim de ervas, evitando o seu olhar. Observei a vespa, invejando-lhe a liberdade.

 

Oh, Cícero foi um excelente mestre, disso não há dúvida! disse em voz baixa.

 

É   um facto reconheceu Célio calmamente, com um retorcido sorriso de triunfo a bailar-lhe nos lábios.

 

O que quer Cícero de mim? resmunguei.

 

Apenas um pequeno favor. Apertei os lábios.

 

Estás a abusar da minha paciência, Marco Célio.

 

Ele riu-se alegremente, como quem diz: Muito bem, venci-te e não vou continuar a brincar contigo.

 

Cícero deseja que recebas em tua casa determinado senador. Pede-te que abras a tua casa a esse senador sempre que ele o desejar e lhe ofereças um abrigo seguro longe da cidade. Deves compreender essa necessidade.

 

Quem é esse senador? É um amigo de Cícero ou alguém a quem ele deve um favor?

 

Não propriamente.

 

Então quem é?

 

Catilina.

 

O quê?

 

É Lúcio Sérgio Catilina.

 

Cícero deseja que eu ofereça abrigo seguro ao seu pior inimigo? Que conspiração é essa?

 

A conspiração é de Catilina. O objectivo é acabar com ela. Abanei vigorosamente a cabeça.

 

Não quero ter nada a ver com isso!

 

A tua honra, Gordiano...

 

Vai para o Hades! Ergui-me de forma tão abrupta, que deitei a cadeira ao chão. Saí para o jardim de ervas, atravessei-o até ao fundo afastando a vespa do meu caminho e transpus o portão sem olhar para trás. Instantes depois, avistei uma figura agachada por baixo da janela da biblioteca. Arato, pensei eu, novamente a espiar-me!

 

Abri a boca, mas a maldição morreu-me na garganta. A figura voltou-se para mim era Meto, e não Arato, que me olhava de frente. Pôs um dedo sobre os lábios e recuou cautelosamente, afastando-se da janela, e depois correu em direcção a mim, não parecendo sentir-se minimamente culpado por ser apanhado a escutar as conversas do próprio pai.

 

Um filho não deve espiar o seu pai disse eu, tentando parecer severo. Conheço pais romanos que espancariam os seus filhos por um crime como esse, ou até os mandariam estrangular.

 

No alto da cumeeira, Meto e eu sentámo-nos lado a lado nos cepos a olhar para baixo, para a quinta. Diante da casa, os guarda-costas de Célio estavam sentados à sombra de um teixo. O próprio Célio saíra para o jardim de ervas e olhava intensamente para o ribeiro com uma mão a sombrear-lhe a testa por causa do sol de oeste. Não fazia ideia onde eu me encontrava.

 

Não estava propriamente a espiar disse Meto mortificado.

 

Não? Não há mais nenhuma palavra que descreva o que tu estavas a fazer.

 

Bem, aprendi contigo. Deve estar-me no sangue.

 

Esta última afirmação era absurda, dado que Meto era filho de escravos e não corria nas suas veias uma única gota de sangue meu, mas eu senti-me comovido pela sua fantasia. Não consegui resistir a estender a mão para o despentear, mas não fui demasiadamente suave.

 

Suponho que também é a mim que deves a tua teimosia, não?

 

Devo-te todas as minhas qualidades mais notáveis, Papá. Ele riu-se com um ar malandro. O rapazinho esperto e encantador que eu adoptara transformara-se num jovem gracioso e bem-falante. Meto ficou pensativo. Papá, quem é Catilina? E porque é que tens tanto rancor a Cícero? Pensei que ele fosse teu amigo.

 

Suspirei.

 

Estas questões são muito complexas. Ou não são nada complexas, se um homem tomar a atitude mais sensata e lhes voltar definitivamente   as costas.

 

Mas isso é possível? Marco Célio disse que tu devias um favor pessoal a Cícero.

 

E devo.

 

Sem a ajuda de Cícero, não teríamos esta quinta.

 

Talvez não tivéssemos a quinta, corrigi-o, mas a sinceridade dos seus suaves olhos castanhos obrigou-me a reconhecer a verdade. Muito bem, sem a ajuda de Cícero não teríamos a quinta. Se ele não me tivesse representado, os Cláudios e os seus advogados ter-me-iam comido vivo no tribunal. Devo-lhe um grande favor, quer isso me agrade, quer não. Mas de que me vale esta quinta se tenho de a pagar permitindo que homens como Célio me tragam Roma para a entrada da porta?

 

Mas Roma é assim tão horrível? Eu gosto da quinta, Papá, mas às vezes tenho saudades da cidade. Os seus olhos iluminaram-se. Sabes do que tenho mais saudades? Dos dias de festa, das peças de teatro e das corridas de carros! Especialmente das corridas.

 

Claro que tens saudades disso, pensei eu. És jovem e a juventude anseia por distracções. Abanei a cabeça, sentindo-me velho e azedo.

 

Essas festas são apenas mais uma forma de corrupção, Meto. Quem é que financia as festas? Os diversos magistrados que são eleitos todos os anos. E para quê? Eles dir-te-ão que é para honrar os deuses e as tradições dos nossos antepassados, mas a verdade é que o fazem para impressionar a multidão, para seu engrandecimento pessoal. A multidão apoia o homem que conseguir organizar espectáculos e jogos mais esplendorosos. É um absurdo! Os espectáculos não passam de meios para um fim. Impressionam os eleitores, que por sua vez dão poder a um homem. Em última análise, o que conta é o poder o poder sobre o destino e a propriedade dos homens, sobre a vida a morte das nações. Uma vez e outra, vi as pessoas deixarem-se impressionar com os jogos e darem o seu voto a um homem que depois vai legislar contra os seus interesses. Estupidez, pura e simples! Aponta esta traição ao cidadão comum e ele responder-te-á: está bem, mas que esplêndido espectáculo o homem organizou para nós! Não importa que ele tenha emasculado a representação do povo no Fórum, ou feito aprovar uma lei odiosa sobre a propriedade, ele importou tigrezinhos da Líbia para apresentar no Circo Máximo e deu uma grande festa para inaugurar o Templo de Hércules! Quem é o maior culpado desta perversão o político cínico sem uma sombra de princípios ou os cidadãos romanos que se permitem ser tão facilmente enganados? Abanei a cabeça. Estás a ver como me afecta falar do assunto, Meto? O meu coração começa a bater mais depressa e fico com o rosto a arder. Antigamente, aceitava a loucura da cidade sem a questionar; a vida era assim e não tinha nada de particularmente desagradável afinal, há um certo fascínio nas relações entre os homens, por muito vis e corruptas que elas sejam. Mas o mais importante é que eu nada podia fazer, por isso limitava-me a aceitar a situação. O meu modo de vida levava-me a mergulhar profundamente nos concílios dos homens poderosos e mostrou-me a realidade com mais clareza do que aquela com que a maioria dos homens alguma vez a verá. Estava a tornar-me sábio nas vias do mundo, pensava eu com vaidade, mas para que serve uma sabedoria que apenas nos proporciona o conhecimento da nossa impotência para mudarmos o mundo? Agora que estou a envelhecer, Meto, sinto-me cada vez menos capaz de tolerar a estupidez das pessoas e a perversidade dos governantes. Já vi demasiado sofrimento, provocado por homens ambiciosos preocupados apenas consigo próprios. Incapaz de afectar o curso dos acontecimentos, voltei-lhes as costas! Agora, Cícero quer obrigar-me a regressar à arena, como um gladiador que é empurrado para o combate contra a sua vontade. Meto permaneceu silencioso por momentos, a pensar.

 

Cícero é um homem mau, Papá?

 

É melhor do que a maioria. E pior do que alguns.

 

E Catilina?

 

Recordei-me da minha recente conversa com Cláudia, que eu interrompera quando ela começava a falar da candidatura de Catilina ao consulado.

 

A nossa vizinha do outro lado da cumeeira diz que ele é um louco de olhos protuberantes.

 

E é?

 

Cícero diria que sim.

 

Mas o que é que tu pensas, Papá? Ele franziu o sobrolho. Ou será melhor não te obrigar a falar nisso?

 

Suspirei.

 

Não, Meto, obriga-me. Desde que te alforriei e te adoptei como filho, és um cidadão romano, nem mais nem menos do que qualquer outro, e em breve vestirás a toga da masculinidade. Quem deve educar um rapaz nos modos da política romana senão o seu pai, ainda que para isso eu tenha de morder a língua?

 

Fiz uma pausa para respirar e olhei para baixo, para a quinta. Os homens de Célio continuavam ociosos, enquanto o próprio Célio recuara do calor do jardim de ervas para o fresco da biblioteca; estaria provavelmente a investigar os poucos e modestos volumes que eu coleccionara ao longo dos anos, muitos deles oferecidos por Cícero, como forma de suavizar os seus pagamentos pelos meus serviços. Os escravos estavam ocupados nos seus diversos afazeres; os animais estavam a ser levados para os currais. Eu podia ficar na cumeeira toda a tarde, mas o Sol acabaria por se pôr e Betesda mandaria Diana chamar-nos para o jantar. Eu seria obrigado a oferecer a minha hospitalidade a Marco Célio. Ele voltaria a insistir comigo para que eu honrasse a minha dívida para com Cícero, e como poderia eu recusar?

 

Tenho pensado muitas vezes, Meto, que de certa maneira a morte do meu amigo Lúcio Cláudio foi providencial. Oh, não tenho a vaidade de pensar que os deuses destruíram um homem bom apenas para tornarem a minha vida mais suportável, mas as Parcas têm estranhas formas de orientar os pormenores das nossas vidas para fins imprevisíveis e, se tivermos sorte, para coincidências felizes. Precisamente quando me parecia que não conseguia viver na cidade nem mais um ano, o sonho da retirada da cidade tornou-se real. A campanha eleitoral do Verão passado foi a última palha. As campanhas consulares são geralmente duras e viciosas, mas eu nunca vi campanha tão feia como aquela.

 

”Os candidatos concorrem todos uns contra os outros expliquei-lhe eu e os dois que conseguirem reunir mais votos são eleitos cônsules durante esse ano. Se os dois cônsules tiverem as mesmas convicções políticas, poderão reforçar-se um ao outro e ser eficazes durante o ano de consulado. Se forem de opiniões diferentes, o Senado percebe claramente qual dos dois é dominante e qual é o mais facilmente influenciável. Em alguns anos, os eleitos são rivais e o beco sem saída que resulta de tentarem ultrapassar-se um ao outro é por vezes espectacular... literalmente. No ano em que vieste viver comigo, Crasso e Pompeu partilharam o consulado, e foram festas atrás de festas, festivais atrás de festivais, desde a inauguração, em Januarius, até aos discursos de despedida, em Dezembro. Nesse ano, os cidadãos engordaram e assistiram a excelentes corridas de cavalos!

 

Um senador pode concorrer a cônsul? perguntou Meto.

 

Não. Existe uma sequência prescrita de cargos que têm de ser previamente ocupados. Tem de se começar pelo pretorado, o questorado, etc., tudo cargos que duram um ano e têm as suas funções específicas. Os políticos sobem a escada degrau a degrau, ano após ano. Uma derrota eleitoral implica que fiquem suspensos um ano inteiro, e os homens apressados tornam-se rapidamente azedos.

 

Mas porque é que um homem não pode manter o mesmo cargo ano após ano?

 

Ninguém pode ter o mesmo cargo dois anos seguidos... de outro modo, haveria um grupo reduzido de homens muito poderosos, como Pompeu e Crasso, que seriam cônsules ano após ano. Além disso, o consulado é também um degrau. A vantagem do consulado é permitir a um homem ser governador de uma província estrangeira durante um ano. Um governador romano pode enriquecer fabulosamente sangrando os habitantes locais com impostos. Todo este processo é alimentado por uma corrupção e uma ganância intermináveis.

 

E quem é que vota?

 

Todos os cidadãos, excepto eu, que desisti de o fazer há anos. Nunca nada mudará em Roma através dos votos, porque os votos não são todos iguais.

 

O que queres dizer?

 

Eu abanei a cabeça. Tendo nascido escravo, Meto não tivera desde a infância conhecimento dos privilégios que se herdam com a cidadania; e tendo crescido em minha casa, a sua educação subsequente neste género de pormenores técnicos fora gravemente negligenciada devido à minha crescente apatia.

 

Os votos dos pobres contam menos que os dos ricos disse eu.

 

Mas como?

 

No dia das eleições, os cidadãos reúnem-se no Campo de Marte, entre as antigas muralhas da cidade e o Rio Tibre. Os eleitores qualificados são divididos em grupos chamados centúrias. Mas as centúrias nada têm a ver com o número de votantes que as constituem. Uma centúria pode ter cem homens e outra mil. Os ricos formam mais centúrias do que os pobres, embora haja menos homens ricos do que homens pobres. Por isso, quando um homem rico vota, o seu voto conta muito mais do que o de um homem pobre.

 

”Ainda assim, os votos dos pobres são muitas vezes necessários, dado que todos os candidatos são originários das classes ricas ou bem nascidas e dividem essas centúrias entre si. Por isso, os cidadãos comuns não são esquecidos; são cortejados, seduzidos, subornados e intimidados de todas as maneiras possíveis, legais e ilegais, desde promessas de favoritismo até corrupção pura e simples, com bandos à solta nas ruas espancando os apoiantes dos rivais. Durante a campanha, os candidatos dizem mentiras simpáticas sobre si próprios e lançam acusações hediondas aos seus rivais, enquanto os seus apoiantes cobrem a cidade com dizeres difamatórios.

 

”Lúcio Róscio Oto beija o traseiro dos guardas do bordel!” citou Meto, a rir.

 

Sim, uma das palavras de ordem mais memoráveis do ano passado disse eu sombriamente. Apesar disso, Oto foi eleitor pretor!

 

Mas o que é que a campanha do ano passado teve de tão estranho? perguntou Meto muito sério. Lembro-me de te ouvir bramar por causa dela e de te teres fechado na biblioteca com as tuas visitas, mas nunca percebi muito bem.

 

O facto de ter sido particularmente suja e repugnante. E o facto de ter sido Cícero a fazer descer o tom da campanha a tais profundezas. E as coisas que Cícero fez desde que foi eleito...

 

Abanei a cabeça e recomecei.

 

Havia três candidatos principais: Cícero, Catilina e António. António é uma não-entidade, um patife e um inútil, que não tinha qualquer programa político, mas apenas uma necessidade desesperada de pôr as mãos num governo provincial para poder sangrar os infelizes habitantes locais com impostos que lhe permitissem pagar as suas dívidas. Há quem diga o mesmo acerca de Catilina, mas ninguém nega que Catilina tem encanto e uma aguda percepção política. Pertence a uma antiga família de patrícios, mas não tem fortuna; é precisamente o género de aristocrata que apoia esquemas radicais de redistribuição da riqueza, cancelamento das dívidas, democratização dos cargos públicos e dos sacerdócios e a classe governante, que é conservadora, não gosta de ouvir falar desse género de coisas. Apesar disso, há no seio das velhas classes governantes muitos patrícios a quem a vida corre mal e que estão desesperados por que as coisas se alterem, e muitos homens ricos que acham que podem utilizar um demagogo para obter os seus próprios fins, por isso Catilina não estava desprovido de apoios substanciais, apesar das suas posições radicais. Crasso em pessoa, o homem mais rico de Roma, era o seu principal apoiante financeiro. Quem sabe o que estaria Crasso a preparar?

 

”Depois havia Cícero. Nenhum dos seus antepassados teve cargos electivos ele foi o primeiro membro da sua família a ter um cargo público, era aquilo a que se chama um Homem Novo. E não há memória de um Homem Novo conseguir ser eleito cônsul. A aristocracia torceu-lhe o nariz, desprezando a sua sagacidade política, a sua eloquência, o seu êxito junto das multidões. Cícero é um glorioso recém-chegado, um cometa que veio do nada, imodesto como um pavão. À sua maneira, devia parecer uma ameaça tão séria à ordem estabelecida como Catilina. E poderia tê-lo sido, se os seus princípios não fossem afinal tão flexíveis.

 

”Catilina e António formaram uma aliança. Desde muito cedo que eram os favoritos. Catilina não cessava de espicaçar a aristocracia com a evocação das origens comuns de Cícero (embora Cícero não tivesse propriamente nascido pobre!), mas aos seus apoiantes começou a falar do género de esquemas radicais que provocam insónias e cabelos brancos aos proprietários. Os ricos não sabiam o que fazer... não suportavam Cícero, mas era Catilina quem verdadeiramente temiam.

 

”Quanto a Cícero, a sua campanha foi organizada pelo seu irmão, Quinto. Depois das eleições, certo dia em que eu tive de ir resolver umas coisas a casa dele, Cícero insistiu comigo para que lesse uma série de cartas que trocara com Quinto, discutindo o progresso da campanha; estava tão orgulhoso delas que falava até em publicá-las sob a forma de panfleto, como uma espécie de guia para uma campanha eleitoral vitoriosa. Logo no princípio, Cícero e o seu irmão decidiram que fariam o que fosse necessário para destruir o carácter de Catilina. A calúnia é um estilo aceite em qualquer campanha eleitoral, mas Cícero estabeleceu novos padrões. Algumas acusações eram murmuradas individualmente; outras eram abertamente feitas por Cícero nos seus discursos. No auge da campanha, eu temia ter de ir ao Fórum, pois sabia que teria de ouvir Cícero arengar às multidões. Mesmo quando me era possível evitar o Fórum, viam-se pinturas nas paredes e ouviam-se coscuvilhices por toda a parte. Se metade do que era dito de Catilina fosse verdade, o homem devia ter sido estrangulado no ventre da sua mãe.

 

De que o acusavam?

 

De um catálogo completo de crimes. Havia as habituais acusações de corrupção, claro, de comprar votos e subornar funcionários eleitorais; é provável que essas acusações fossem verdadeiras, considerando o apoio financeiro que Catilina estava a receber de Crasso para que serve tanto dinheiro numa campanha eleitoral, a não ser para subornar pessoas? Quando os eleitores romanos sabem que um candidato tem dinheiro, correm para ele de mão estendida.

 

”Mas Cícero também desenterrou acusações antigas de corrupção, dos tempos em que Catilina era administrador em África. Há uns anos, Catilina foi julgado com base nessas acusações e Cícero considerou a possibilidade de ser ele a defendê-lo! Catilina foi ilibado, qualquer que seja o valor dessa sentença. Apresentar acusações criminais desse género é apenas outro instrumento de que os políticos romanos se servem para embaraçar um rival e desqualificá-lo como candidato a um cargo. Tanto a acusação como o veredicto são puramente políticos; qualquer relação com a verdade ou a justiça é pura coincidência.

 

”Havia depois as acusações ou insinuações mais sérias os rumores de escândalo sexual, de incesto, de assassínio... mas talvez esta conversa sobre política comece a enfastiar-te.

 

Não, nada! Os olhos muito abertos de Meto provaram-me que ele me escutava com toda a atenção.

 

Pigarreei.

 

Muito bem. Dizem que, nos terríveis dias de Sula, o ditador, Catilina foi um dos seus homens de mão, matando os inimigos de Sula e apresentando as suas cabeças para receber a respectiva gratificação. Dizem que chegou mesmo a matar o seu cunhado; a irmã de Catilina queria que o homem fosse morto e Catilina matou-o a sangue-frio e depois transformou o assassínio numa morte legal introduzindo o nome do homem nas listas dos inimigos de Sula.

 

Isso é verdade? Eu encolhi os ombros.

 

Faziam-se coisas terríveis nos tempos de Sula. Crasso enriqueceu comprando as propriedades de homens assassinados. E quando o assassínio se torna legal é que descobrimos a verdadeira capacidade dos homens para a maldade. Talvez a história acerca de Catilina seja verdade, ou talvez não. Ele foi levado a tribunal por causa de um certo assassínio, vinte anos depois do facto; e foi ilibado. Quem sabe? Mas estes foram apenas os primeiros assassínios que ele alegadamente cometeu.

 

”Há alguns anos, quando regressou de África, Catilina casou-se de novo. Dizem que a mulher se recusava a casar com Catilina se já houvesse um herdeiro em sua casa, por isso ele assassinou o próprio filho. Quanto à jovem noiva, acontece que é filha de uma das antigas amantes de Catilina... e há mesmo quem diga que se trata da filha de Catilina!

 

Incesto! murmurou Meto.

 

Cícero nunca pronunciou essa palavra em voz alta, limitou-se a fazer a insinuação. Mas isso é apenas o começo da lista de alegados crimes sexuais de Catilina. Diz-se que, há dez anos, ele corrompeu uma das Virgens Vestais, e foi um grande escândalo; por acaso sei alguma coisa acerca do caso, porque fui contratado para investigar o assunto em segredo. Foi a única vez em que tive relações pessoais com Catilina e achei que ele era um enigma profundamente encantador e profundamente equívoco. Cícero gosta de recordar o escândalo aos seus ouvintes, mas só até certo ponto, dado que a irmã da sua mulher era a Vestal acusada de ter fornicado com Catilina! Oh, Roma é uma cidade muito pequena.

 

E fornicaram mesmo? Catilina e a Vestal? Meto estava positivamente resplandecente de interesse.

 

Isso não sei, embora tenha as minhas suspeitas. Conto-te essa história noutra altura. Seja como for, tanto Catilina como a Vestal foram absolvidos coisa que, como já te disse, tem pouco a ver com a culpa ou a inocência.

 

Parece que Catilina passou a maior parte da sua carreira a defender-se em tribunal e a assassinar pessoas!

 

E durante o resto do tempo fornica, se as histórias forem verdadeiras. Diz-se que o seu círculo em Roma é totalmente dissoluto; ele seduz os jovens mais brilhantes de Roma funcionando como seu proxeneta, e seduz as matronas ricas que começam a envelhecer guiando esses mesmos jovens para os seus quartos; dizem que, ocasionalmente, guarda para si os rapazes mais bonitos e as matronas mais ricas. Não há dúvida de que é um contraste com Cícero! Queres ouvir uma piada acerca de Cícero que corria durante a campanha?

 

Sim.

 

Lembra-te de que o mais provável é ela ter tido origem em Catilina. Como sabes, Cícero tem uma filha com treze anos, Túlia, e um filho com pouco mais de dois, Marco. Pois bem, dizem que Cícero tem uma tal aversão ao sexo, que só teve relações duas vezes na sua vida. Túlia nasceu em consequência da primeira vez, mas ele detestou o acto, tal como previra. Onze anos mais tarde, a mulher importunou-o para voltar a tentar e ele concordou, mas apenas para se certificar de que era tão mau como se recordava... e o resultado foi Marco!

 

Meto estremeceu.

 

Bem, suponho que são raros os rapazes que se riem com as piadas dos pais. Mas havias de ter ouvido os homens rir nas tabernas quando contavam essa anedota no dia das eleições. Mas, depois de os votos terem sido contados, quem se riu foi Cícero.

 

Catilina limitou-se a contar anedotas sobre Cícero ou também tentou defender-se contra as acusações?

 

Por muito estranho que pareça, não, não tentou. Talvez os boatos sejam verdadeiros, ou estejam suficientemente próximos da verdade para ele se incomodar a desmenti-los ou mesmo a refutá-los. Além disso, Catilina é um patrício e Cícero é um Homem Novo julgo que Catilina é demasiadamente arrogante para descer à valeta, até junto de alguém que considera estar tão abaixo de si próprio. Isso é outra táctica dos políticos romanos, especialmente os que pertencem a famílias antigas agasalham-se na sua dignidade. Mas a arrogância de Catilina acabou por agasalhá-lo pouco. No dia das eleições, Cícero foi um claro vencedor, por uma maioria devastadora. Foi um imenso triunfo pessoal para um homem sem antepassados, que fez carreira política graças à sua própria sagacidade e perseverança. O consulado é um pináculo que poucos homens atingem. Cícero chegou lá. Este foi o seu ano de glória e ninguém poderá dizer que ele não o mereceu.

 

E Catilina?

 

António, a não-entidade, ficou em segundo lugar e Catilina ficou em terceiro; foi por muito poucos votos, mas o terceiro lugar nada significa numa corrida para o consulado. Nos anos anteriores, um processo judicial após outro tinham impedido Catilina de concorrer. Quando finalmente teve a sua oportunidade, Cícero infligiu-lhe uma pesada derrota. Este ano, Catilina voltou a concorrer. O ano passado, dizia-se que tinha dívidas pesadíssimas. Quantas dívidas mais gerará esta corrida? Deve ser um homem desesperado e, a acreditar nem que seja numa pequena parte dos boatos, é um homem facilmente disposto ao assassínio. Não é o tipo de homem que eu gostaria de ter como convidado sob o meu tecto.

 

Suponho que não disse Meto com gravidade mesmo que seja para pagar o favor a Cícero. Deixámo-nos ficar sentados em silêncio, olhando para a quinta que se estendia diante de nós. Subitamente, Meto emitiu um ruído estranho e começou a tremer. Agarrou-se a si próprio de forma tão violenta que eu me assustei... mas estava apenas a rir-se, tão ruidosamente que caiu do cepo e rolou para o chão, ainda com os braços à roda do corpo.

 

Em nome do Hades...

 

Só agora é que percebi! arquejou ele. Só duas vezes na vida... e tentou da segunda vez só para ter a certeza de que era tão mau como se recordava! Ria-se de tal maneira, que estava a ficar com a cara completamente vermelha.

 

Eu revirei os olhos, mas não pude evitar sorrir. A lei e a sociedade podiam afirmar que ele era quase um homem, mas muitas vezes eu tinha a impressão de que Meto não passava de uma criança.

 

Nessa noite, o jantar não foi um êxito. Betesda não cozinha mal, mas esse é um dos seus menores talentos; não fora certamente para cozinhar que eu a comprara no mercado de escravos de Alexandria, há já tantos anos. Agora que deixara de ser escrava quando engravidou de Diana, alforriei-a e casei-me com ela, era bastante capaz de orientar o trabalho dos outros e eu podia entregar-lhe a gestão da casa com toda a confiança... excepto no que dizia respeito à cozinha, onde o ego dos cozinheiros entrava constantemente em colisão com o seu. Dado que Côngrio fora emprestado a Cláudia, Betesda aproveitara a oportunidade para se apoderar por completo da cozinha.

 

Infelizmente, o seu génio era para refeições simples como aquelas que me servia nos meus anos mais magros (em todos os sentidos), particularmente para o peixe, que podia comprar em qualidade e abundância nos mercados de Roma, quer acabado de apanhar no Tibre, quer trazido do mar pelo rio. Na quinta era difícil encontrar peixe de qualidade, por isso, tendo de servir um convidado da cidade, Betesda decidira tentar uma extravagância com as provisões de que dispunha. Mas excedera-se. O aipo e os miolos de vitelo com molho de ovos não estavam à altura dos pergaminhos de Côngrio, e os espargos estufados em vinho poderiam ter resultado se ela tivesse escolhido uma colheita menos assertiva. (Foi o falecido Lúcio Cláudio que me ensinou a fazer este género de juízos pretensiosos acerca da comida.) As cenouras com coentros estavam aceitáveis e, por fim, os pêssegos em conserva estufados com cominhos foram um triunfo que eu pude elogiar com sinceridade o que foi um erro.

 

Foi Côngrio que fez a conserva dos pêssegos observou ela sombriamente. Eu limitei-me a dar instruções a um dos escravos para que os fervesse com azeite e cominhos.

 

Ah... mas as tuas instruções foram impecáveis disse eu, beijando-lhe as pontas dos dedos. Betesda ergueu uma sobrancelha duvidosa.

 

Como mais um bocadinho disse Meto, fazendo um gesto ao escravo que estava a servir.

 

Na verdade, a refeição estava deliciosa insistiu Marco Célio.

 

Não são muitas as matronas romanas capazes de supervisionar pessoalmente todos os pratos de uma refeição ambiciosa como esta na ausência do seu cozinheiro. É um prazer encontrar excelência culinária como esta aqui no campo. As palavras soaram-me a falso, mas Betesda iluminou-se; era a barbinha que a encantava, pensei eu. Mas não precisas de te esforçar por impressionar Catilina quando ele se alojar aqui acrescentou Célio. Ele é um homem de gostos adaptáveis. É capaz de distinguir de olhos fechados duas colheitas de Falerniano e de beber do cântaro dos escravos com igual prazer. Catilina afirma que ”o palato dos homens foi feito para eles provarem todos os sabores possíveis, de outra maneira a língua só serviria para falar”.

 

Isto pareceu-me vagamente obsceno; Betesda também deve ter percebido, porque me pareceu sentir-se cada vez mais seduzida pelo nosso convidado. Terá sido isso que me irritou, ou terá sido o facto de Célio tomar a minha aquiescência como certa?

 

Penso que devemos retirar-nos para a biblioteca disse eu

 

Ainda temos negócios a discutir, Marco Célio.

 

Meto ergueu os olhos na expectativa e começou a levantar-se do canapé.

 

Não disse eu fica aqui a acabar os pêssegos.

 

Tens na tua colecção algumas obras excelentes disse Célio, passando os olhos pelos rolos de pergaminho metidos nos respectivos compartimentos e tocando nas pequenas etiquetas penduradas. Vejo que gostas especialmente de coleccionar peças de teatro. Cícero também. Suponho que de vez em quando ele te dê algum exemplar que tenha em duplicado. Tive muito tempo para ver a tua biblioteca esta tarde e fiquei impressionado com a quantidade de volumes que tinham a inscrição ”De Marco Túlio Cícero para o seu amigo Gordiano, com todo o afecto...”.

 

Sim, Célio, eu conheço bem o conteúdo da minha própria biblioteca. Lembro-me de onde vieram todos os volumes.

 

Os livros são como os amigos, não achas? Constantes, imutáveis, fiáveis. É reconfortante. Pegamos num livro que pusemos de lado há um ano, e as palavras são as mesmas.

 

Percebo o que queres dizer, Célio. Mas será Cícero realmente o mesmo homem que era há um ano? Ou há dezassete anos, quando eu o conheci?

 

Não compreendo.

 

As novidades de Roma só esporadicamente cá chegam, e eu só as oiço com um ouvido, mas parece-me que o Cícero cônsul se mostrou bastante mais reaccionário do que era o Cícero aspirante a advogado. O homem do povo que teve a coragem de se erguer e de falar contra Sula parece-me sentir-se agora bastante à vontade servindo os interesses da mesma mão-cheia de famílias ricas que Sula servia.

 

Célio encolheu os ombros.

 

Tudo isso é irrelevante, não achas? Pensei que estavas farto de política. Foi por isso que preferi falar de amizade.

 

Célio, mesmo que eu estivesse ansioso por fazer o que me pedes, hesitaria? Que idade tens tu?

 

Vinte e cinco.

 

És bastante jovem. Presumo que ainda não tenhas mulher nem filhos.

 

Não.

 

Então talvez não compreendas por que razão hesito em permitir que um homem como Catilina entre em minha casa, quaisquer que sejam as circunstâncias ou o pretexto. Saí de Roma, em parte, porque estava farto da violência e do perigo constantes. Não porque temesse pela minha própria segurança, mas porque há outras pessoas que tenho de ter em conta e de proteger. Antes de eu o ter adoptado, Eco, o meu filho mais velho, era uma criança da rua; sempre soube defender-se e agora é um homem e vive a sua vida. Mas Meto, o meu filho mais novo, é muito diferente; é esperto e cheio de recursos, sim, mas não é, nem de longe, tão prudente nem tão resistente como Eco. Partilhei com ele o mínimo que me foi possível da parte perigosa da minha vida. E conheceste a mais nova, Diana. De todos, é a que mais precisa de protecção.

 

Mas nós não estamos a pedir-te que faças coisas perigosas, Gordiano, apenas que...

 

Pareces tão sincero neste momento como parecias quando elogiaste o jantar de Betesda.

 

Célio lançou-me o seu olhar de olhos semicerrados. Julgo que estava habituado a conseguir tudo o que desejava graças ao seu encanto e não conseguia compreender a minha obstinação.

 

Suspirei.

 

O que quer Cícero de mim, exactamente?

 

Tenho de admitir que Célio não exibiu qualquer sinal de enfatuamento perante esta concessão. O seu rosto assumiu uma expressão grave.

 

Falei-te esta tarde de uma ameaça indefinida contra o Estado. Ignoraste as minhas palavras, considerando-as mera retórica, Gordiano, mas os factos são bastante simples. A ameaça é Catilina. Podes desprezar a pompa e a corrupção daquilo que passa actualmente por ser política em Roma, mas acredita que a anarquia que Catilina traria consigo seria muito mais terrível.

 

Estás a começar a arengar adverti-o. Célio. Sorriu sem vontade.

 

Manda-me calar quando isso acontecer. Sejamos então claros: como sabes, Catilina é novamente candidato a cônsul. Não tem qualquer possibilidade de ganhar, mas isso não o impedirá de tentar e de provocar o máximo de problemas que puder, utilizando a campanha como veículo para fomentar a desordem e o descontentamento na cidade. Tem dois planos. O primeiro pressupõe a sua vitória. Se ele ganhar o consulado...

 

Acabas de dizer que isso é impossível.

 

Estava a arengar, Gordiano; bem te disse que me mandasses calar quando isso acontecesse. Na hipótese muito remota de Catilina ganhar as eleições, isso será considerado um sinal de que o eleitorado está irreparavelmente fragmentado. O consulado de Cícero terá sido uma pausa momentânea de equilíbrio antes da tempestade. O Senado entrará em erupção. Haverá tumultos e assassínios nas ruas. Muito provavelmente, haverá uma guerra civil; os diversos políticos e as grandes famílias já estão a alinhar-se. Num conflito assim, Catilina será inevitavelmente derrotado, se não muito rapidamente, pelo menos quando Pompeu trouxer as suas tropas do Oriente. E se Pompeu tiver de ser chamado a Roma para restabelecer a ordem, o que impedirá Pompeu de se tornar ditador? Considera essa possibilidade.

 

Contra a minha vontade, assim fiz. Depois de Catilina, a possibilidade de Pompeu ser ditador era o mais desagradável pesadelo da oligarquia reinante. Essa eventualidade significaria, ou o fim da República, ou outra guerra civil; homens como Crasso e o jovem Júlio César não permitiriam que o poder lhes fugisse das mãos sem ripostarem.

 

E se a única coisa possível acontecer e Catilina perder as eleições? disse eu, irritado por estar a ser arrastado para esta discussão.

 

Já começou a planear a sua revolta. Os seus apoiantes estão tão desesperados como ele próprio. Os que o apoiam militarmente são sobretudo os veteranos que se instalaram perto daqui, na extremidade norte da Etrúria. Dentro da cidade, ele está rodeado de uma pequena mas dedicada roda de homens poderosos, que não se deixarão deter por coisa alguma. Já há provas de que ele pretende assassinar Cícero antes das eleições.

 

Mas por quê?

 

Principalmente porque acusa Cícero de lhe ter roubado a vitória eleitoral no ano passado e deseja ardentemente vê-lo morto. De que forma isto se encaixa no esquema geral de Catilina, é algo de que não estou bem certo; talvez ele queira simplesmente espalhar o caos e o medo antes da votação ou cancelar por completo as eleições.

 

Como é que tu sabes isso tudo, Marco Célio?

 

Houve uma reunião dos conspiradores no princípio deste mês...

 

Como é que tu sabes isso?

 

Estou-te a dizer: houve uma reunião dos conspiradores no princípio deste mês e eu estive presente.

 

Fiz uma pausa para absorver esta informação. Se ao menos fosse Arato que estivesse sentado diante de mim, discutindo quantos bois devíamos comprar no mercado este ano, ou Côngrio, dizendo-me que precisava de mais provisões para o mês seguinte. Mas eu confrontava-me com um dos mais insinuantes protegidos de Cícero e ouvia-o pronunciar terríveis advertências de conspirações e revoluções.

 

Tudo isto é excessivo, Célio. Dizes que Catilina conspira para assassinar Cícero, e que tu próprio tens assento nas suas reuniões secretas?

 

Estou a dizer-te demasiado, Gordiano, mais do que tencionava, mas tu és um homem difícil de convencer.

 

Essa é a tua maneira de me convenceres a ajudar-te? Eu digo-te que não quero perigos no interior desta casa e tu contas-me histórias de assassínios e guerra civil!

 

Que poderão ser evitados, se trabalharmos juntos.

 

Por que razão apesar de todos os meus protestos, do meu claro discernimento, de todas as resoluções e promessas que fizera a mim próprio, da enorme satisfação que tinha diariamente por voltar as costas à loucura da cidade, por que razão tive nesse momento um arrepio de excitação? A intriga é mais embriagante do que o vinho mais capitoso. O secretismo lança um encantamento sobre a rotina e transforma a existência comum e monótona na matéria-prima das peças de teatro e da poesia épica. Quando a come, um homem fica ainda mais faminto.

 

Apesar disso, esta dieta fá-lo sentir-se vivo. Esse arrepio de excitação era uma coisa que eu não sentia desde que saíra da cidade.

 

Conta-me mais coisas acerca dessa reunião em que participaste com Catilina disse eu lentamente.

 

Teve lugar na casa de Catilina, no Palatino, uma mansão esplêndida e espalhafatosa construída pelo seu pai é a única coisa que ele lhe deixou em herança; para além do nome. Começou com um jantar, mas depois da refeição retirámo-nos para uma sala ao fundo da casa. Ele despediu os escravos e fechou a porta. Se eu te dissesse os nomes dos senadores e dos patrícios que estavam presentes...

 

Não digas.

 

Célio acenou com a cabeça.

 

Então digo-te apenas que os participantes iam do mais respeitável ao mais duvidoso...

 

”Provar todos os sabores”, diz então Catilina.

 

Exactamente. Ele cunhou uma frase memorável, como vês. Lisonjeias-me quando me consideras um discípulo inteligente de Cícero, mas devo dizer-te que Catilina nada fica a dever a Cícero quando se trata de fazer discursos apaixonados. Deteve-se nas dificuldades comuns aos homens ali reunidos e apontou os oligarcas abastados como causa das suas misérias; prometeu-lhes um novo Estado, consagrado pelo sangue do velho; falou do cancelamento das dívidas e da confiscação dos bens dos ricos. Quando terminou, apresentou uma taça de vinho e obrigou todos os homens a fazerem um corte no braço e a deitarem uma gota de sangue na taça.

 

E tu?

 

Célio estendeu o braço e mostrou-me a cicatriz.

 

A taça foi passada à volta. Todos os homens beberam dela. Todos jurámos guardar segredo...

 

Juramento que tu estás a quebrar neste momento.

 

Um juramento contra Roma não é juramento nenhum para um verdadeiro Romano. Apesar disso, baixou os olhos.

 

Quer dizer que Catilina te aceitou como um dos seus, apesar das tuas relações com Cícero?

 

Sim, porque durante algum tempo eu estive realmente enfeitiçado por ele. Convenci-o da minha lealdade porque nessa altura ela era real. Até que, subitamente, vi para além dele, até que soube que ele planeava assassinar Cícero. Então fui contar a Cícero tudo o que sabia.

 

Ele disse-me que me mantivesse no círculo de Catilina e explicou-me que podia ser mais valioso para ele como espião. E não sou o único que vigia Catilina.

 

E agora ele quer que eu também o vigie.

 

Não, Gordiano. Ele quer apenas que tu sejas um anfitrião passivo de Catilina. Os movimentos de Catilina estão vigiados, mas ele consegue sair da cidade sem ser observado. O seu principal aliado fora da cidade é Gaio Mânlio, um militar que está instalado em Faesulae. Catilina precisa de um lugar secreto onde possa refugiar-se, a meio caminho entre Faesulae e Roma, que não seja a quinta de um dos seus apoiantes conhecidos, mas seja um lugar onde os seus inimigos nunca pensem em ir procurá-lo.

 

E esse lugar é aqui? Se ele ainda não souber, qualquer pessoa poderá dizer a Catilina que eu fiz uma série de trabalhos para Cícero e que Cícero me ajudou a obter esta quinta.

 

Sim, mas eu disse a Catilina que tu tiveste um aborrecimento sério com Cícero é bastante credível, não é? que andas desgostoso com o que se passa em Roma e que simpatizas com ele. Que sabes ser discreto é algo que qualquer pessoa aceita sem discussão; a verdade é que tens fama disso, Gordiano. Catilina não acredita que tu sejas um apoiante fogoso, mas apenas que estás disposto a oferecer-lhe hospitalidade quando ele precisar de sair da cidade e um posto de paragem antes de Faesulae.

 

Como é que eu sei que não haverá reuniões secretas em minha casa, com taças de sangue humano a passarem à volta?

 

Célio abanou a cabeça.

 

Não é isso que ele quer de ti. Ele quer um refúgio, não quer um lugar de reuniões.

 

E o que quer Cícero?

 

Um relatório dos movimentos de Catilina, através de mim. Claro que, se Catilina por acaso te confidenciar alguma coisa importante, Cícero confia que usarás o teu discernimento para lhe transmitir qualquer informação que possa ser vital. Dizem que tu tens maneiras de arrancar a verdade aos homens, mesmo quando eles esperam conseguir escondê-la.

 

Voltei-lhe as costas e olhei pela janela virada a oeste, para além do jardim das ervas, para a terra inclinada que ia dar ao ribeiro. Os topos das árvores brilhavam ao luar. A noite estava calma e pacífica, agradavelmente quente. O ar tinha um odor rico e doce, que era uma mistura de estrume animal e de erva cortada. Roma parecia muito distante, mas inescapável.

 

Quer dizer então que apenas lidarei contigo e com Catilina? Com mais ninguém?

 

Sim. Cícero será apenas um fantasma, nunca será visto. Se precisares de enviar-lhe alguma mensagem, deverás enviá-la a mim, para a cidade. Catilina não verá nisso nada de suspeito.

 

Não pode ser tão simples como tu afirmas. É devido à tua juventude e à tua inexperiência que não consegues ver as coisas terríveis que podem correr mal? Ou estás intencionalmente a tentar iludir-me?

 

Ele sorriu.

 

O meu mestre Cícero diria que nunca se deve responder a uma pergunta de ”ou/ou” quando ambas as respostas são prejudiciais. Deve-se mudar de assunto.

 

Eu respondi-lhe com outro sorriso, mas de má vontade.

 

És positivamente perverso, Marco Célio; demasiadamente perverso para um homem da tua idade. Sim, julgo que conseguirás enganar o próprio Catilina, levando-o a acreditar em ti. Se eu concordar em fazer o que me pedes, tenho de ter alguma maneira de me proteger; não posso ser visto como um aliado de Catilina se ele vier a cair em desgraça, como provavelmente acontecerá. Uma carta de Cícero, reconhecendo antecipadamente o meu auxílio, será útil.

 

Célio fez uma careta.

 

Cícero previu essa exigência. Mas isso não é possível. Se uma comunicação desse género fosse interceptada, estragaria tudo e além disso colocar-te-ia imediatamente em perigo. Se houver uma crise, Cícero não se esquecerá de ti.

 

Apesar de tudo, gostaria de ter uma garantia pessoal de Cícero. Se eu for a Roma...

 

Ele não poderá encontrar-se contigo, pelo menos neste momento. Catilina seria informado disso e tudo estaria perdido. Não acreditas em mim, Gordiano?

 

Pensei durante um longo momento. Ao arrepio de excitação que sentira anteriormente, juntou-se um formigueiro de apreensão. Senti-me como um homem que não consegue controlar o que está a beber e portanto se abstém, mas que pega num copo servido para outra pessoa e engole acidentalmente um golo de vinho morno.

 

Acredito em ti disse por fim.

 

Contudo, mais tarde, deitado ao lado de Betesda nessa mesma noite, uma dúvida tomou forma, cresceu e pairou sobre mim como um nevoeiro cinzento na escuridão iluminada pela lua. Teria ele sido enviado por Catilina? Mesmo que tivesse vindo por indicação de Cícero, não teria Catilina adivinhado o plano de ambos? A quem seria Célio verdadeiramente leal? O mesmo jovem encantador que afirmava ter enganado Catilina poderia igualmente enganar Cícero, já para não falar de um intrigante não reformado chamado Gordiano, o Descobridor, que pensava que tinha jurado afastar-se para sempre da política.

 

Betesda moveu-se.

 

O que se passa, Senhor? murmurou ela. Tinha deixado de me tratar por Senhor no dia do nosso casamento, mas ocasionalmente distraía-se durante o sono; ouvi-la tratar-me assim fazia-me recordar dias muito recuados, antes de o mundo se ter tornado cansativo e complexo como agora. Estendi a mão e toquei-lhe. A familiaridade do seu corpo firme, quente e reactivo dissipou as dúvidas que pairavam sobre mim, como um nevoeiro esfarrapado pelo sol. Ela voltou-se para mim e envolvemos os nossos corpos um no outro. Durante algum tempo, todas as apreensões foram esquecidas no acto animal do amor, e em seguida eu dormi o sono de um agricultor, sonhando com campos intermináveis de feno e com o mugido musical dos bois.

 

Na manhã seguinte, Marco Célio levantou-se antes de mim. Fui descobri-lo diante do estábulo, completamente vestido e a preparar a sua montada para a viagem de regresso a Roma. Os seus guarda-costas emergiam do interior, esfregando os olhos e sacudindo a palha do cabelo. O Sol ainda não se erguera totalmente acima do monte Argênteo e o mundo era iluminado por uma suave luz azul. O ribeiro estava coberto por um rasto de nevoeiro que se agarrava aos sítios mais baixos. Para oeste, na quinta de Públio Cláudio, um galo distante começou a cantar.

 

Não conseguiste dormir, Célio?

 

Dormi bastante bem, obrigado.

 

A cama era demasiadamente dura, não era? Eu já sabia. E o quarto, demasiadamente abafado.

 

Não...

 

Infelizmente, como pudeste verificar, a minha casa é totalmente inadequada para convidados distintos.

 

Célio percebeu o que eu queria dizer e sorriu.

 

Dizem que Catilina é como um general; consegue comer e dormir em quaisquer condições. As tuas acomodações serão mais do que adequadas.

 

Eu ainda não disse que sim, Célio.

 

Julguei que tinhas.

 

Tenho de pensar no assunto.

 

O que é o mesmo que dizeres que não. O tempo urge, Gordiano.

 

Então é não atirei, subitamente cansado da brincadeira. Ele estalou a língua.

 

Mudarás de opinião logo que eu me for embora. Envia-me um mensageiro. Montou a cavalo e ordenou aos guarda-costas que se aprontassem.

 

Betesda emergiu da casa, vestindo uma estola de mangas compridas e com o cabelo solto. Os caracóis pretos e brancos caíam-lhe pelas costas em ondas esplêndidas e ela tinha nos olhos uma expressão sonhadora pela qual eu me sentia parcialmente responsável.

 

Não vais certamente deixar-nos antes de comeres, Marco Célio. Ela estava positivamente a ronronar. Tinha planeado uma coisa especial para o pequeno-almoço.

 

Prefiro começar uma longa viagem de estômago vazio. Fui à despensa roubar algum pão e fruta para o caminho. Fez rodar o corcel umas quantas vezes, enquanto os guarda-costas montavam.

 

Espera um momento disse eu. Vou convosco até à Via Cássia.

 

Quando partimos, o Sol ornamentava a crista das montanhas e começava a iluminar o mundo, lançando longas sombras para trás de nós. Os pássaros iniciavam os seus cantos. Passámos pelas vinhas, de um lado, e por um campo de feno ceifado, do outro. Célio inspirou profundamente.

 

Ah, Gordiano, o cheiro da manhã no campo! Percebo por que o preferes à cidade. Mas a cidade não deixa de existir só porque tu lhe viras as costas. Nem as obrigações de um homem.

 

Não há dúvida de que és persistente, Célio disse eu, abanando pesarosamente a cabeça. Aprendeste isso com Cícero ou com Catilina?

 

Um pouco com ambos, julgo eu. Mas há outra coisa que aprendi com Catilina: um enigma. Deves gostar de enigmas, Gordiano, dado que gostas tanto de desvendar mistérios. Queres ouvi-lo?

 

Encolhi os ombros.

 

Trata-se de um pequeno enigma que Catilina gosta de propor aos seus amigos. Também o fez na noite do juramento de sangue. ”Vejo dois corpos”, dizia ele. ”Um é magro e está enfraquecido mas tem uma grande cabeça. O outro corpo é grande e forte mas não tem cabeça!” Riu-se baixinho.

 

Eu mexi-me desconfortavelmente na minha montada.

 

Qual é a ideia?

 

Célio lançou-me o seu olhar de pálpebras semicerradas.

 

Trata-se de um enigma, Gordiano! Tens de ser tu a descobrir a resposta. Faz uma coisa: quando me enviares o teu mensageiro, utiliza um código. Se estiveres disposto a receber Catilina, se a tua resposta for sim, manda-me dizer: ”o corpo sem cabeça”. Se for não, então manda-me dizer: ”a cabeça sem corpo”. Mas não deixes passar muito tempo; quando as coisas começarem a acontecer, tudo se passará com grande rapidez.

 

É sempre assim disse eu, puxando as rédeas do meu cavalo. Tínhamos chegado à Via Cássia. Célio acenou-me com a mão, depois virou com os seus homens para a superfície pavimentada de pedras e ganhou velocidade. Por momentos, fiquei a observar as capas dos três cavaleiros, flutuando atrás deles como galhardetes, depois voltei-me para regressar a casa, mais hesitante e apreensivo do que nunca.

 

Nessa tarde, estava eu na biblioteca esboçando planos fantasistas para o moinho de água, quando Arato me anunciou que Côngrio e os seus assistentes tinham regressado.

 

Óptimo, manda-os entrar. Quero vê-los. A sós.

 

Arato estreitou os olhos e retirou-se. Momentos depois, entravam Côngrio e os escravos da cozinha. Pus de lado a tabuinha e fiz-lhes sinal para que fechassem a porta.

 

Bem, Côngrio, como correram as coisas com os Cláudios?

 

Bastante bem, Senhor. Estou certo de que não receberás queixas relativamente ao nosso desempenho. Cláudia deu-me esta nota para te entregar. Entregou-me um fragmento de pergaminho enrolado, selado com cera na qual Cláudia imprimira o seu anel. Reparei que o selo era uma abreviatura do seu nome, com a letra C rodeando um A mais pequeno. Tratava-se claramente de um selo próprio, não de um selo herdado do pai ou do marido, mas inventado por ela. Isto era invulgar numa matrona romana, mas Cláudia era uma mulher invulgarmente independente. Quebrei o selo e desenrolei a carta.

 

Para Gordiano:

 

Saudações, vizinho, e a minha gratidão pelo empréstimo dos teus escravos. Comportaram-se admiravelmente, em especial o teu chefe de cozinha, Côngrio, que nada perdeu da sua destreza desde os dias em que servia o meu primo Lúcio. Sinto-me duplamente grata porque o meu cozinheiro adoeceu no meio dos preparativos, pelo que Côngrio acabou por ser, não apenas uma grande ajuda, mas totalmente essencial; ter-me-ia sentido muito perturbada e desesperada sem ele. Recordar-me-ei disso quando fizer o cálculo do favor que te devo.

 

Mudando de assunto, e confidencialmente, quero que saibas que fiz os possíveis por falar a teu favor no conselho familiar. Nós, os Cláudios, somos uma cepa teimosa e aferrada à sua opinião, e não posso dizer que tenha conseguido que algum deles passasse desde já a ter uma atitude mais moderada, mas penso que marquei posição. Seja como for, fiz o que pude. Foi um começo.

 

Mais uma vez, obrigada pelo generoso empréstimo. Considera isto uma nota promissória, e solicita-me o seu pagamento um dia destes. A tua vizinha agradecida

 

Cláudia

 

Enrolei a carta e amarrei-a com uma fita, depois vi que Côngrio me observava com a cabeça inclinada numa interrogação.

 

Ela ficou muito impressionada contigo disse eu, e Côngrio expirou de alívio e sorriu com doçura.

 

É uma boa mulher disse ele. Uma senhora exigente, mas que aprecia genuinamente os talentos das pessoas.

 

Obedeceste às minhas ordens, relativamente à descrição?

 

Fomos discretos, Senhor. Lamento não poder dizer o mesmo acerca dos escravos de outros homens.

 

O que queres dizer?

 

Os Cláudios que visitaram a casa levaram consigo os seus escravos, e o sítio mais óbvio para as reuniões de escravos é a cozinha. Fiz o possível por enxotá-los quando ficava excessivamente cheia, mas havia sempre uma aglomeração e a orgia de coscuvilhice não teve fim. Eu não participei nela, evidentemente, mas mantive os ouvidos abertos por cima do som dos potes e das panelas, como me indicaste.

 

E o que é que ouviste?

 

A maior parte do que ouvi não tinha qualquer interesse que escravos tinham subido ou descido no favor dos seus senhores... histórias fingidas acerca de aventuras amorosas, quando viajam com os seus senhores para Roma... mexericos obscenos acerca de uniões ilícitas entre escravos dos campos e raparigas das cozinhas por trás da prensa do vinho... comentários grosseiros acerca da anatomia uns dos outros o tipo de lixo trivial que seria de esperar e com que eu nunca sonharia em poluir os ouvidos do meu Senhor.

 

Ouviste alguma coisa com interesse?

 

Talvez. Ouvi alguns insultos grosseiros que de uma forma geral me visavam. É frequente os escravos tomarem o partido dos seus senhores, como certamente terás reparado, e quando há hostilidade entre senhores, por vezes ela tem eco entre os respectivos escravos. Alguns dos escravos, sabendo que eu servira fiel e longamente Lúcio Cláudio, lançaram-me piadas indelicadas, que assumiram a forma de críticas àquilo que consideravam ser o meu triste declínio social, dado que sirvo agora um senhor perdoa-me, Senhor, estas foram as suas palavras, e custa-me muito repeti-las que agora sirvo um senhor ”tão inferior” ao anterior. Eu respondi-lhes com o silêncio absoluto, claro, que eles se limitaram a considerar divertido. O que é importante é que estas frases dificilmente poderiam ter tido origem nos lábios dos escravos; os escravos ouvem essas frases aos seus senhores.

 

Estou a ver. Ouviste alguma coisa tão directa dos lábios dos próprios Cláudios?

 

Não, Senhor, eu não. Acontece que estive quase exclusivamente confinado à cozinha, e mal tive tempo para ir apanhar ar. O principal cozinheiro de Cláudia adoeceu...

 

Ela diz-me isso na carta.

 

Como podes imaginar, estive sempre bastante ocupado. Quase não vi os convidados, mas apenas os seus escravos, que invadiam a minha cozinha... quer dizer, a cozinha de Cláudia.

 

E vocês os dois? perguntei eu, acenando para os seus assistentes. Eles aproximaram-se nervosamente, olhando um para o outro. Então?

 

Estivemos quase sempre na cozinha a ajudar Côngrio disse um deles. Foi como ele disse; ouvimos piadas grosseiras de alguns dos escravos visitantes, insultos velados ao nosso novo senhor ou seja, tu próprio, Senhor. Mas não estivemos sempre na cozinha. Também nos indicaram que servíssemos à mesa durante o famoso concílio familiar e o jantar que se seguiu. O teu nome foi mencionado...

 

Sim?

 

Eles davam provas de grande desconforto. Um deles tinha uma compleição bastante defeituosa, com a cara coberta de borbulhas. Fiquei surpreendido por Cláudia o ter escolhido para servir, dado que a maioria dos romanos prefere olhar para coisas agradáveis à vista enquanto come. Atribuí-o à sua excentricidade geral; Cláudia parecia decidida a fazer sempre o que entendia.

 

Tu, disse eu ao rapaz das borbulhas. Fala! Nada do que possas dizer me surpreenderá.

 

Ele pigarreou.

 

Eles não gostam de ti, Senhor.

 

Eu sei. Aquilo que quero saber é o que pretendem fazer.

 

Bem, não ouvimos nada de específico. Chamaram-te muitos nomes.

 

Tais como?

 

Ele fez uma careta, como se eu lhe tivesse colocado debaixo do nariz uma coisa malcheirosa, pedindo-lhe que a provasse. ”Estúpido peidinho da cidade” disse ele por fim, estremecendo.

 

Quem me chamou isso?

 

Acho que foi Públio Cláudio, o velho que vive do outro lado do ribeiro. Na verdade, esse afirmou uma intenção específica, por assim dizer. Disse que tu devias ser mergulhado de cabeça para baixo no ribeiro, e obrigado a apanhar um peixe com os dentes. Voltou a estremecer.

 

Isso é bastante inofensivo disse eu. E que mais?

 

O companheiro mordeu o lábio inferior, e depois ergueu timidamente a mão, pedindo licença para falar. ”Estúpido zé-ninguém sem antepassados, que devia ser metido numa gaiola e reenviado para Roma”. disse ele. Isso foi Mânio Cláudio, o homem que vive a norte, do outro lado do muro.

 

Estou a ver. Mas isso continua a não passar de resmungos ociosos.

 

O jovem que tinha as borbulhas pigarreou.

 

Sim? incitei-o.

 

O mais jovem, aquele que se chama Gneu...

 

Era o Cláudio cuja propriedade rochosa e montanhosa não permitia o cultivo e que devia, de acordo com as expectativas, ter herdado a quinta de Lúcio, pensei eu.

 

Diz.

 

Ele disse que a família devia contratar assassinos na cidade, para virem cá numa noite escura e derramarem um pouco de sangue no chão.

 

Isto era mais grave, embora pudesse continuar a ser apenas conversa ociosa.

 

Disse alguma coisa mais específica?

 

Não, foram essas exactamente as suas palavras: ”Derramarem um pouco de sangue no chão.”

 

E percebeu que tu estavas a ouvir?

 

Não me parece que ele soubesse a que casa eu pertencia. Não me parece que algum deles soubesse, excepto Cláudia. Na verdade, eles não pareciam reparar em nós. Além disso, bebeu-se muito vinho nessa noite e Gneu bebeu a sua parte.

 

Mas deves saber, Senhor disse o outro escravo que Cláudia saiu em tua defesa. Respondeu a todos estes insultos e ameaças e disse aos outros que não lhes valia de nada alimentar aquela animosidade, porque o assunto tinha sido resolvido em tribunal.

 

E como é que os primos reagiram?

 

Não muito bem, mas ela mandou-os calar. As suas maneiras são

 

por vezes um pouco...

 

Bruscas concluiu Côngrio. E lembra-te de que o conclave familiar estava a ter lugar em sua casa; ela é realmente a senhora debaixo do seu tecto. Acho que Cláudia não está disposta a ver a sua autoridade posta em causa dentro da sua propriedade, nem sequer por parentes seus.

 

Eu sorri e acenei com a cabeça.

 

É uma mulher que tem de ser tida em conta. Uma mulher que exige respeito. Os escravos dela respeitam-na?

 

Claro que sim. Côngrio encolheu os ombros. Embora...

 

Sim? fala!

 

Ele enrugou a sua testa carnuda.

 

Não estou certo de que sintam grande afecto por ela, como alguns escravos sentem pelos seus senhores. Ela é bastante exigente, como eu próprio tive ocasião de perceber. Não se pode desperdiçar nada! Todas as partes de todos os animais têm de ser aproveitadas; todas as sementes têm de ser apanhadas do chão. Alguns escravos mais velhos juram que, se têm as costas curvadas, a ela o devem, e não à sua idade.

 

O próprio facto de ela ter escravos suficientemente idosos para terem as costas curvadas é uma prova da sua natureza compassiva disse eu, pensando em todas as quintas em que os escravos são pior tratados do que os animais de carga. Ao contrário do couro de uma vaca, a pele de um escravo não tem qualquer utilidade depois de ele ter morrido, pelo que há muitos senhores que não vêem motivo para evitar cobri-la de cicatrizes; e, ao contrário da carne dos animais, a carne dos escravos não se pode comer, por isso há muitos senhores que não vêem necessidade de que eles se alimentem para além de um mínimo estrito. Certamente que o velho e sábio Catão não consentiria em ter escravos mirrados na sua quinta; o seu conselho seria eliminar os doentes e os fracos, e deixar de alimentar aqueles cuja idade os impede de continuarem a trabalhar.

 

Obtidas todas as informações, mandei os escravos embora mas, quando Côngrio passava pela porta (reparei que tinha de atravessá-la de lado, para conseguir fazer passar o seu enorme volume), voltei a chamá-lo.

 

Sim, Senhor?

 

Esse conclave familiar dos Cláudios foi sobretudo acerca das próximas eleições, segundo sei.

 

Julgo que sim, Senhor, embora imagine que eles também discutiram outros assuntos, de interesse mais imediato para a família.

 

Tal como o seu vizinho indesejado e o que fazer com ele disse eu sombriamente. Ouviste alguns rumores acerca do candidato em que os Cláudios tencionam votar? Nas eleições consulares, quero eu dizer.

 

Oh, nisso foram unânimes. Vão apoiar Silano, embora não me pareça que tenham grande respeito por ele. ”Seja quem for, desde que não seja Catilina”, foi uma frase que ouvi vezes sem conta. Até os escravos a repetiam.

 

Estou a ver. ”Seja quem for, desde que não seja Catilina”. Podes ir, Côngrio. Betesda quer dar-te alguns conselhos para a refeição da noite. Depois de ele ter saído, deixei-me estar sentado durante muito tempo, olhando fixamente para a parede com as pontas dos dedos juntas, perdido nos meus pensamentos.

 

Durante os dias que se seguiram, expulsei do meu pensamento a política e Roma e o grande mundo que existia fora da quinta. Consegui mesmo afastar do espírito os incómodos Cláudios. Não chegaram novos mensageiros da cidade; não voltei a ouvir insultos, berrados do outro lado do ribeiro que limitava a minha propriedade. Os habitantes da cidade andavam ocupados com as eleições e os meus vizinhos andariam certamente atarefados com a colheita do feno, tal como eu. O Sol brilhava, quente e forte, os escravos parecia desempenharem as suas tarefas com satisfação, os animais dormitavam nos currais. Meto e Diana pareciam ter feito as pazes um com o outro, pelo menos durante algum tempo, e Betesda, cuja natureza maternal despertava com o desabrochar da Primavera, ia com eles colher flores do campo. Nos meus momentos de ócio, eu brincava com o projecto do moinho de água que fora o sonho de Lúcio Cláudio.

 

As noites estavam quentes mas agradáveis. Eu deitava-me cedo e Betesda e eu fizemos amor três noites seguidas. (A visita inesperada de um jovem atraente como Marco Célio parecia ter muitas vezes este efeito estimulante, mas eu não fazia perguntas nem levantava objecções.) Dormia bem e profundamente. Parecia-me que uma grande paz descera sobre a minha pequena leira de terra da Etrúria, fossem quais fossem as perversidades que se preparavam no mundo que ficava para além dela. E assim que os deuses por vezes nos enganam, mandando-nos uma trégua antes da tempestade.

 

As más notícias começaram a meio do mês, nos Idos de Junius. Nessa manhã, um escravo entrou a correr na biblioteca, dizendo-me que Arato solicitava a minha presença nos campos. Pela expressão ansiosa do rapaz, percebi que havia problemas.

 

Segui-o até um lugar situado na extremidade norte da quinta, junto do muro que separava a minha terra da de Mânio Cláudio. Dado que era o mais afastado da casa e dos celeiros, esse campo de erva fora o último a ser ceifado pelos escravos. A erva estava toda cortada, mas só tinham sido feitos alguns molhes. Os escravos andavam por ali ociosos e ficaram nervosos com a minha chegada. Arato avançou na minha direcção com uma expressão carregada.

 

Queria que visses com os teus próprios olhos, Senhor disse ele para que depois não houvesse equívocos.

 

Que eu visse o quê?

 

Ele indicou um molhe de erva seca. Tinha os dentes cerrados e eu detectei um esgar no canto da sua boca.

 

Não estou a ver nada de especial disse eu a não ser que este fardo de feno foi aberto ao meio, e que estes homens estão aqui de pé a olhar para ele quando deviam estar a atar os restantes.

 

Se olhares mais de perto, Senhor disse Arato, inclinando-se sobre o fardo aberto e indicando-me que fizesse o mesmo.

 

Eu agachei-me e espreitei para o feno ceifado. A minha visão ao perto já não é o que era. A princípio, não vi o pó cinzento, semelhante a uma fina fuligem, espalhado pelo feno. Depois, tendo-me apercebido dele, vi manchas do mesmo pó em todo o molhe.

 

O que é isto, Arato?

 

É um míldio chamado cinza do feno, Senhor. Aparece aproximadamente de sete em sete anos; pelo menos é o que me diz a minha experiência. Só se manifesta depois de a erva ter sido cortada, e por vezes só muito mais tarde, quando se abre uma meda no Inverno e se descobre que no interior o feno está escuro e podre.

 

O que significa isto?

 

Esta doença torna o feno incomestível. Os animais não lhe tocam, e se tocarem ficam doentes.

 

Qual é a extensão dos danos?

 

No mínimo dos mínimos, tenho quase a certeza de que todo o feno deste campo está estragado.

 

Mesmo que as folhas não tenham sido atingidas pela doença? Olhei à volta para a erva ceifada e não vi sinais das manchas de fuligem.

 

A doença há-de aparecer dentro de um dia ou dois. É por isso que muitas vezes só se detecta no Inverno. O feno já está enfardado quando a doença aparece. Ela vem de dentro para fora.

 

É insidiosa disse eu. É o inimigo que se esconde no interior. E os outros campos? O feno que já está enfardado e armazenado?

 

Arato mostrou-se lúgubre.

 

Mandei um dos escravos ir abrir um dos fardos mais antigos, do campo ao pé da casa. Estendeu-me uma folha de feno coberta com a mesma fuligem cinzenta.

 

Eu rangi os dentes.

 

Por outras palavras, Arato, estás a dizer que o feno está todo estragado. Toda a colheita que devia sustentar-nos durante o Inverno! E suponho que isto nada tem a ver com o facto de teres esperado tanto tempo para cortar a erva?

 

Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Senhor...

 

Quer dizer que, se o feno tivesse sido cortado mais cedo, como eu queria, apesar de tudo, esta doença ter-se-ia instalado no feno?

 

A doença já lá estava antes da ceifa, mas não se via. O tempo da ceifa e o aparecimento da doença não têm qualquer relação...

 

Não estou certo de acreditar em ti, Arato.

 

Ele nada disse, limitando-se a olhar para meia distância, de dentes cerrados.

 

É   possível salvar algum feno? perguntei eu.

 

Talvez. Podemos tentar separar aquele que está bom e queimar o que está doente, embora a doença possa voltar a aparecer, independentemente do que nós fizermos.

 

Então faz o que puderes! Deixo isso ao teu cuidado, Arato, dado que me parece que achas que controlas a situação. Deixo isso ao teu cuidado! Voltei-me e deixei-o ali, junto dos outros escravos, enquanto atravessava a passos largos os campos ceifados, tentando não fazer contas ao desperdício de tempo e de trabalho que advinha de campos e campos de feno que só prestava para queimar.

 

Nessa tarde, ergueram-se no ar parado, grandes colunas de fumo, provenientes das fogueiras que Arato organizara nos campos. Eu próprio fui verificar se todo o feno visivelmente doente estava a ser destruído e descobri medas que parecia não terem sido afectadas misturadas no meio da queima. Quando chamei a atenção de Arato para esse facto, ele admitiu o erro, mas disse que salvar algum feno era apenas um adiamento. Achei que isto era uma fraca desculpa para queimar feno que, tanto quanto eu sabia, podia estar em óptimas condições. Apenas contava com a palavra de Arato e o seu parecer de que o feno que estava em boas condições não tardaria a ficar doente. E se ele estivesse enganado, ou mesmo a mentir? Seria lindo, ser levado a destruir uma colheita inteira de feno em boas condições com base no conselho de um escravo em quem eu começava a perder a confiança.

 

Na manhã seguinte, continuaram a erguer-se no ar colunas de fumo, enquanto Arato separava novas medas de feno doente e as lançava às fogueiras. Não fiquei surpreendido quando soube que Cláudia me enviara um mensageiro. O escravo foi conduzido à biblioteca, trazendo na mão um cesto de figos frescos.

 

Um presente da minha senhora explicou-me ele. Ela tem muito orgulho nos seus figos e gostaria de os partilhar contigo. Sorria, mas eu vi-o olhar de lado pela janela para as colunas de fumo.

 

Diz-lhe que lhe agradeço. Mandei um dos escravos da casa ir chamar Côngrio, que pareceu um pouco surpreendido por ser convocado àquela hora da manhã. Lançou um olhar estranho ao mensageiro de Cláudia, o que me fez pensar que devia ter havido qualquer cena desagradável entre eles durante a estada de Côngrio em casa de Cláudia; os escravos estão sempre em guerra uns com os outros. Côngrio disse eu olha os excelentes figos que Cláudia me enviou. O que podemos mandar-lhe nós em troca?

 

Côngrio pareceu confuso, mas acabou por sugerir um cesto de ovos.

 

Ultimamente, as galinhas têm produzido uma quantidade excepcional garantiu-me ele. Com gemas que parecem manteiga e claras que se agitam como natas. Os ovos frescos são sempre um tesouro, Senhor.

 

Muito bem. Leva este homem para as cozinhas e abastece-o. Quando eles estavam a sair da sala, eu voltei a chamar o escravo. E, no caso de a tua senhora perguntar disse-lhe em tom confidencial as colunas de fumo que ela vê por cima da cumeeira provêm de uma colheita de feno estragada. Cinza do feno, chama-lhe o meu encarregado. Ela pode dizer isso aos outros Cláudios, se eles lhe perguntarem, porque duvido de que enviem mensageiros à minha propriedade para investigar. Ele acenou com a cabeça no mesmo tom de confidência e retirou-se com Côngrio. O abastecimento de ovos não era coisa para demorar muito tempo mas, apesar disso, tinha passado pelo menos uma hora quando eu o vi sair pela porta da cozinha, com um cesto cheio de ovos na mão e murmurando qualquer coisa a Côngrio por cima do ombro. Quando se voltou na minha direcção, percebi a razão do atraso, pois o escravo levantou a mão para limpar um pouco de creme de ovos que tinha nos lábios. Quem poderia resistir a demorar-se algum tempo para provar os cozinhados de Côngrio? Ele viu-me e teve um sobressalto de culpa, depois recuperou a compostura e partiu com um sorriso malandro.

 

No dia seguinte, tive mais uma prova da incompetência de Arato. Perto do fim do dia, quando me escapei para a cumeeira para matutar sozinho acerca da perda do feno, vi uma carroça puxada por dois cavalos atravessar a Via Cássia. O veículo, pesadamente carregado, arrastava-se penosamente pela estrada levantando uma pequena nuvem de pó e finalmente parou ao lado da casa, junto das cozinhas. Côngrio emergiu do interior e começou a superintender ao descarregamento.

 

Mas onde estava Arato? Era a ele que competia superintender a esse trabalho. Desci a colina e aproximei-me de Côngrio, que soprava e arquejava enquanto ajudava o seu assistente a descarregar pesados sacos de milhete e grades de madeira cheias de potes de barro para a cozinha. A tarde arrefecera um pouco, mas Côngrio estava afogado em suor.

 

Côngrio! Tu devias estar lá dentro a tratar das cozinhas. Este trabalho compete a Arato.

 

Ele encolheu os ombros e fez uma careta.

 

Quem me dera que assim fosse, Senhor. Ele falava com um gaguejar ansioso, e percebi que estava tão incomodado como eu próprio. Pedi a Arato, uma vez e outra, que me mandasse vir certas provisões de Roma... do lado de cá de Cumas, é impossível arranjar estes potes de barro. Ele prometeu-me que o faria, mas estava sempre a adiar, até que eu acabei por encomendar directamente as coisas. Havia prata suficiente nas contas da cozinha. Por favor, não te aborreças comigo, Senhor, mas pensei que era melhor eu tomar a iniciativa e evitei acareá-lo na tua presença.

 

Apesar disso, é Arato que deve supervisionar este descarregamento. Olha para ti, estás vermelho como um pote de barro e a suar como um cavalo depois de uma corrida. Francamente, Côngrio, não podes cansar-te assim. Devias estar lá dentro.

 

E permitir que Arato deixe cair uma grade e dê cabo dos meus potes por despeito? Por favor, Senhor, eu posso supervisionar este trabalho. Prefiro assim. O suor é apenas o preço que pago por levar um pouco de peso a mais; sinto-me perfeitamente.

 

Pensei por um momento, depois cedi com um aceno de cabeça.

 

Obrigado, Senhor disse ele, aliviado. É preferível assim. Se chamares Arato por causa disto, ele nunca mais se cala com o assunto. Ele já se atravessa suficientemente no meu caminho.

 

E no meu também murmurei eu.

 

Primeiro fora a trégua, depois viera a tempestade; pelo menos foi isso que eu pensei, convencido de que a queima do feno tinha sido desastre suficiente para uma estação.

 

Na manhã seguinte, levantei-me cedo, bem-disposto apesar dos problemas. Peguei num bocado de pão e dirigi-me para o local do meu moinho de água imaginário. Fiz alguns desenhos, mas o dia começou a aquecer e eu comecei a sentir-me sonolento. Deitei-me no meio da erva crescida da margem inclinada. A água corria e gorgolejava. Os pássaros cantavam lá no alto. A luz do Sol sarapintada brincava por cima das minhas pálpebras fechadas e o mesmo jogo de sombra fresca e luz morna acariciava-me delicadamente as mãos e o rosto. Apesar das preocupações com a gestão da quinta, apesar de ter de lidar com querelas entre escravos, apesar da má vontade dos Cláudios, a vida era bela, era boa. No fundo, de que podia eu queixar-me? Havia homens que tinham vivido vidas bem mais difíceis do que a minha e que nada tinham alcançado. Outros tinham alcançado alguma coisa, mas em troca de que sofrimentos? Eu era um homem honesto em paz com os deuses, dizia a mim próprio, e em paz com os outros homens, na medida em que um homem livre pode esperar estar em paz com os outros em tempos como estes.

 

O calor do final da manhã era delicioso. Eu sentia-me totalmente descontraído, como se o meu corpo emitisse contentamento. Os meus pensamentos desviaram-se para Betesda. Três noites seguidas de amor? Há anos que não tínhamos tal apetite um pelo outro. Talvez fosse mais um benefício da vida no campo. Certamente que, na minha nova habitação, eu nunca me sentira tentado a desviar-me dela. Não havia sequer uma escravazinha bonita na quinta Betesda tivera o cuidado de evitar que isso acontecesse e os meus vizinhos não me ofereciam distracções dessas. Que género de vida erótica teria Cláudia, perguntei a mim próprio ociosamente, e depois matei o pensamento à nascença, porque não estava realmente interessado. Ah, Betesda...

 

Recordei determinado instante do nosso amor, uma sensação específica, e sorri, detendo-me nessa memória. O que reacendera a chama entre nós? Ah, sim, fora a visita do jovem Marco Célio, com a sua barba estilizada e a sua língua elegante. Dei por mim a contemplar o seu rosto, e descobri que a imagem não era desagradável. Afinal, ele era bastante belo, ainda que de uma forma matreira. Demasiadamente matreira para um homem tão jovem. Toda a gente sabia que Catilina gostava de se rodear de jovens bonitos; um espírito lascivo poderia imaginar quão jovem teria Célio conseguido insinuar-se de maneira tão firme na confiança de Catilina. O que aconteceria se eu permitisse ao próprio Catilina visitar a quinta, como Célio pretendia? Que género de efeito teria isso sobre Betesda? Catilina já ia bem nos quarenta, era pouco mais novo do que eu, mas tinha fama de ter a energia de um homem com metade da sua idade. E, apesar de todos os insultos de que fora objecto, nunca ninguém lhe chamara feio. À sua maneira, era tão bem parecido como Marco Célio, ou fora, pois há muitos anos que eu não o via de perto. A beleza é sempre bela, seja qual for o género. A beleza traz prazer universal aos olhos...

 

Estes pensamentos foram-se desenvolvendo e a minha imaginação vogou para um mundo de pura carne, como por vezes me acontece antes de adormecer. Todas as palavras fluíam da minha cabeça como água por entre mãos abertas. Deixei-me estar deitado na erva, satisfeito por ser um animal aquecido pelo sol, com a cabeça cheia de pensamentos animais.

 

Foi então que ouvi a minha filha chamar-me.

 

Sentei-me com um sobressalto, porque não havia alegria na sua voz, mas antes uma urgência que me era estranha.

 

Ela voltou a chamar-me, de bastante perto, e depois apareceu no alto da colina e desceu-a a correr até junto de mim, com as suas pequenas sandálias a escorregar na erva fresca. Pestanejei e abanei a cabeça, ainda não completamente desperto.

 

Diana, o que se passa?

 

Ela deslizou para o chão ao meu lado, arquejante.

 

Papá, tens de vir!

 

O que foi? O que aconteceu?

 

É   um homem, Papá!

 

Um homem? Onde?

 

Está no estábulo.

 

Oh, não é outra visita! gemi eu.

 

Não, não é uma visita disse ela, inspirando profundamente e depois franzindo as sobrancelhas pensativa. Mais tarde, eu perguntaria a mim próprio como conseguira ela permanecer tão calma e tão séria. Por que razão correra para mim, e não para a sua mãe? Como conseguira deixar de gritar, depois do que tinha visto? Era o meu sangue que corria nas suas veias, decidi eu, o sangue do sempre curioso, sempre ponderado e desapaixonado Descobridor.

 

Muito bem, quem é esse homem?

 

Não sei, Papá!

 

É   um estrangeiro?

 

Ela encolheu elaboradamente os ombros e estendeu os braços.

 

Não tenho a certeza.

 

O que queres dizer com isso? Ou conheces o homem ou não conheces.

 

Mas, Papá, não posso dizer se o conheço ou não!

 

Porquê? perguntei eu exasperado.

 

Porque o pobre homem não tem cabeça, Papá!

 

O corpo estava deitado de costas numa divisória vazia. Não era possível perceber como tinha chegado ali se fora atirado, arrastado ou rolado porque a palha a toda a volta fora deliberadamente remexida e depois pisada; percebi-o pelos pedaços de palha que havia espalhados sobre o próprio corpo, o que indicava que a palha fora remexida depois da chegada do cadáver. Também não havia pegadas nem outras marcas que indicassem como é que o corpo tinha ido parar aos estábulos. Tanto quanto era possível dizer, até podia ter nascido do chão, como um cogumelo.

 

Tal como Diana observara, não tinha cabeça, mas todos os seus membros e dedos estavam intactos, o mesmo acontecendo com as suas partes íntimas. Isto percebia-se com um simples olhar, porque o corpo estava nu.

 

Olhei para Diana, que fixava o cadáver com a boca ligeiramente aberta. Julgo que já teria visto algum morto, talvez numa procissão funerária em Roma, mas com certeza que nunca vira um morto sem cabeça. Pus a minha mão sobre a sua cabeça e voltei-a suavemente para mim. Agachei-me segurei-a pelos ombros. Ela tremia ligeiramente.

 

Como é que o descobriste, Diana? disse eu, falando em voz baixa e calma.

 

Estava a esconder-me de Meto. Mas Meto não queria brincar comigo, por isso eu peguei num dos estúpidos soldadinhos dele e fui escondê-lo.

 

Soldadinhos?

 

Ela voltou-se e correu para um canto da divisória. Meteu a mão por entre a palha à procura de qualquer coisa, lançou um olhar cauteloso ao cadáver, depois voltou a correr para junto de mim. Estendeu a mão, onde segurava uma figurinha de bronze de um guerreiro cartaginês com um arco e uma seta. Pertencia a um jogo de sala chamado Elefantes e Archeiros. Depois de ter sido eleito cônsul, Cícero oferecera exemplares deste jogo, mandados fazer especialmente para a ocasião, a dezenas de convidados presentes numa das suas celebrações. Eu passara o presente a Meto, que gostava imenso dele.

 

Podia ter trazido um elefante, mas sabia que isso o irritaria ainda mais disse ela, como se a distinção fosse importante para a sua defesa.

 

Peguei no archeiro de bronze e passei os dedos por ele, nervosamente.

 

Então vieste sozinha ao estábulo?

 

Sim, Papá.

 

Recordei-me de que os rapazes dos estábulos estavam na extremidade norte da quinta, a ajudar Arato a reparar uma parte do muro, que se tinha desmoronado. Na noite anterior, Arato pedira-me especificamente licença para os desviar das suas tarefas habituais. Eles tinham dado comida e água aos cavalos ao nascer do dia e tinham partido antes de o tempo aquecer excessivamente. Se tivessem visto o corpo, certamente que me teriam informado. Quer dizer que o corpo tinha aparecido depois de o dia nascer mas isso parecia impossível. Quem poderia ter metido um corpo nos estábulos às escondidas, em plena luz do dia? Talvez eles não tivessem reparado nele, por estar deitado no meio da palha, numa divisória vazia.

 

Mas eu estava a andar depressa de mais. Ainda nem sequer sabia quem era o homem, ou quem tinha sido, ou como tinha morrido.

 

Contaste a mais alguém, Diana?

 

Fui directamente ter contigo, Papá.

 

Óptimo. Anda, vamos recuar até à porta.

 

Não seria melhor cobri-lo? disse Diana, olhando por cima do ombro.

 

Nesse momento, Meto entrou a correr pela porta aberta.

 

Então estás aqui! disse ele. Onde é que o escondeste, minha harpiazinha?

 

Subitamente, Diana desatou a chorar e escondeu a cara entre as mãos. Eu agachei-me e abracei-a. Meto pareceu envergonhado. Eu entreguei-lhe o soldadinho de bronze.

 

Ela roubou-mo disse ele, sem grande convicção. Não fui eu que comecei. Lá porque eu tenho coisas melhores para fazer do que brincar às escondidas com ela a manhã toda, isso não é razão para ela me roubar as minhas coisas.

 

Diana disse eu, pondo-lhe as mãos nos ombros e falando suavemente quero que me faças uma coisa. É muito simples, mas é importante. Quero que vás chamar a mãe. Não lhe digas para que é, especialmente se houver algum escravo ao pé. Diz-lhe apenas que eu quero que ela venha imediatamente aos estábulos, sozinha. És capaz de fazer isso?

 

Ela parou de chorar tão abruptamente como começara.

 

Acho que sim.

 

Óptimo. Então, vai. Não demores! Meto olhou para mim consternado.

 

Mas eu não fiz nada! Está bem, chamei-lhe harpia mas ela é um bebé chorão! Pegou no meu soldadinho, e sabe perfeitamente que não deve fazer isso.

 

Meto, cala-te. Aconteceu uma coisa horrível.

 

Ele inspirou exasperadamente, pensando que eu ia pregar-lhe um sermão; depois viu a minha expressão séria e franziu a testa.

 

Meto, já tens visto homens mortos. Pois vais ver mais um. Conduzi-o à divisória vazia.

 

Convém termos cuidado com as exclamações grosseiras que escolhemos, porque os nossos filhos hão-de repeti-las.

 

Pelas bolas de Numa! murmurou ele com voz rouca, num tom subitamente quebrado.

 

Não me parece que seja o velho rei Numa. O melhor é chamar-lhe Nemo Ninguém enquanto não encontrarmos um nome melhor.

 

Mas o que está ele a fazer aqui? De onde veio? É um dos escravos?

 

Não é nenhum dos nossos escravos, tenho a certeza disso. Repara na constituição e na coloração, Meto. Conheces os escravos tão bem como eu. Parece-te que este corpo é de algum deles?

 

Ele mordeu o lábio inferior.

 

Percebo o que queres dizer, Papá. Este homem era alto, tinha uma cintura bastante larga e era peludo.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Estás a ver os pêlos nas costas das mãos, que espessos são? Dos nossos escravos, Remo é o único que tem as mãos assim, e Remo é muito mais baixo. E também é mais novo; estás a ver os pêlos cinzentos misturados com os pretos, especialmente no peito de Nemot

 

Mas então como é que ele veio aqui parar? E quem é que lhe fez aquilo?

 

Quem o matou, queres tu dizer? Ou quem lhe cortou a cabeça?

 

-É a mesma coisa, não é?

 

Não necessariamente. Não temos a certeza de que ele tenha morrido por lhe terem cortado a cabeça.

 

Papá, na minha opinião qualquer pessoa morria se lhe cortassem a cabeça!

 

Estás a brincar com o teu pai, Meto, ou estás apenas a ser obtuso? suspirei eu. Não vejo nenhuma ferida na parte da frente do corpo, e tu? Achas que consegues ajudar-me a voltá-lo ao contrário?

 

Claro que sim disse ele, mas vi que engolia em seco quando se baixou para pegar numa das pernas, enquanto eu punha os braços por baixo dos ombros do cadáver. Teve um arrepio quando as suas mãos tocaram a carne pegajosa. Eu também.

 

Eu gemi e recuei, sacudindo a palha das mãos.

 

Aparentemente, também não tem feridas nas costas. E, no entanto, não é fácil assassinar um homem cortando-lhe a cabeça pensa lá. É necessário arranjar maneira de o manter imóvel. Talvez tenham começado por lhe cortar o pescoço ou por estrangulá-lo. É difícil perceber, porque não será fácil encontrar-lhe marcas no pescoço, no meio do sangue coagulado.

 

Enquanto eu me ajoelhava para observar melhor, Meto recuou discretamente e cobriu a boca com uma mão. Estava consideravelmente pálido, embora estivesse ainda bastante mais escuro do que o cadáver, que estava branco como a barriga de um peixe.

 

Não foi morto essa manhã, isso é certo disse eu.

 

Como é que sabes?

 

O corpo está frio e rígido, e a cor desapareceu por completo. Isso demora algum tempo a acontecer. Os médicos dizem que os pulmões são uma espécie de foles, que aquecem o sangue. Mesmo depois de eles terem deixado de funcionar, o corpo ainda permanece quente durante algum tempo, como um carvão que vai arrefecendo lentamente. Além disso, olha para a ferida. Vês que o sangue já está coagulado e que a ferida secou? Quanto mais fresca é a ferida, mais sangue corre. Este corte foi feito há pelo menos um dia, para ter secado tão completamente. Estás a ver, nem sequer há sangue na palha que estava por baixo. E, contudo, não pode estar morto há muito tempo porque, mesmo com este calor, o corpo ainda não cheira excessivamente mal. Chega aqui, Meto. Observa a ferida comigo.

 

Ele obedeceu, mas com hesitação considerável.

 

Que mais podemos observar a partir da ferida propriamente dita? disse eu.

 

Ele encolheu os ombros e fez uma careta.

 

Observa com que limpeza foi feito o corte. Eu diria que foi feito com uma lâmina muito larga e afiada e, aparentemente, de um só golpe, como se decapita uma galinha em cima de uma pedra. Não há sinais de entalhes nem de serras. Até se conseguem detectar vestígios do grão da lâmina, como a serra de uma faca na carne acabada de cortar. O subsequente derramamento de sangue devia ter obscurecido todos esses pormenores, não achas? Pergunto a mim próprio se o corte não terá sido feito depois de o sangue já ter secado dentro do corpo. Se assim foi, a decapitação nada teve a ver com a causa da morte. Mas por que havia alguém de decapitar um corpo morto, para depois o esconder à vista de todos, dentro do meu estábulo?

 

Tive um momento de irritação, de fúria por ter sido violado, mas engoli-o e suprimi-o. Sabia que, enquanto conseguisse desempenhar um velho papel conhecido examinar um cadáver à procura de pistas, estudando desapaixonadamente a situação, manteria a cabeça fria. Sentia-me incrivelmente atento e alerta, e tudo aquilo que me rodeava assumira uma claridade preternatural o cheiro a palha e a estrume de cavalo, o calor do dia, os grãos de poeira que se agitavam no ar, iluminados por raios de sol. Contudo, ao mesmo tempo, uma parte de mim ficara entorpecida.

 

Recuei.

 

Que mais podemos dizer acerca dele? Dizes que parece ter uma cintura bastante larga, Meto, mas também me parece que era um bocado magro no peito, nos membros e nas nádegas, como se fosse um homem pesado que tivesse começado subitamente a perder peso. Tem um ar doente.

 

Papá... o homem está morto! Meto revirou os olhos.

 

Eu suspirei e percebi que tinha saudades do meu filho mais velho, que já se teria apercebido de tudo o que eu observara e iria muito adiante de mim. Mas a verdade é que Eco começara a sua vida como um rapaz da rua e tivera necessidade de aprender a usar a sua argúcia muito antes de eu o ter adoptado. Meto nascera como escravo na villa de um homem rico, e sempre fora mais recompensado pela sua inteligência do que pela sua esperteza. Eu só esperava que ele se transformasse num camponês honesto, porque nunca seria um Descobridor.

 

Contudo, não desisti.

 

O que podemos dizer acerca do lugar que ocupava no mundo, Meto? Era um escravo ou um homem livre?

 

Meto estudou o corpo da cabeça aos pés.

 

Não usa um anel de ferro sugeriu.

 

De facto, não. Mas a verdade é que isso nada nos diz. É fácil tirar um anel de ferro a um cidadão, e o contrário colocar um anel desses no dedo de um escravo seria igualmente fácil. Tanto quanto sabemos, Nemo pode ser um patrício, cujo anel de ferro foi surripiado. Contudo, por vezes um anel de ferro deixa uma mancha ou uma marca de pele mais clara no dedo de quem o usa. Não estou a ver marca nenhuma, e tu?

 

Meto abanou a cabeça.

 

Ainda assim, isso é inconclusive. Certamente que não era um escravo de campo de um senhor cruel não tem marcas de algemas nos pulsos nem nos calcanhares, não tem cicatrizes de chicotadas nas costas, nem tem nenhuma marca de propriedade na carne. De uma forma geral, parece bem tratado e pouco utilizado para trabalhos duros. Estás a ver, não tem grandes calos nas mãos nem nos pés, e tem as unhas dos pés e das mãos bem cuidadas. E também não passava muito tempo ao ar livre não tem a pele muito escurecida pelo sol. Se ao menos ele tivesse cabeça, poderíamos deduzir muito mais coisas...

 

Ouvi um súbito restolhar atrás de nós. Tive um sobressalto, mas tratava-se apenas de Diana, que corria para nós por cima da palha. Momentos depois, Betesda apareceu à porta. A luz do Sol iluminava as madeixas soltas do seu cabelo apanhado e a sua estola comprida e larga, cingida por baixo dos seios e novamente na cintura. Ela parou à entrada e depois avançou resolutamente em direcção a nós, como uma mulher à espera do pior. Quando viu o corpo, as narinas dilataram-se-lhe, abriu muito os olhos e fechou os lábios com tanta força, que eles ficaram sem cor. Agarrou a estola e bateu com o pé no chão. As maneiras de Betesda são muitas vezes imperiosas ou bruscas, mas raras vezes a vi realmente zangada. Era uma visão capaz de transformar em geleia o mais forte dos romanos.

 

Estás a ver! gritou ela. Até aqui! Disseste que a nossa vida no campo seria diferente. Que deixaria de haver multidões e assassínios e insónias a pensar se os meus filhos estariam a salvo! Ah! Era tudo mentira! Cuspiu sobre o cadáver, depois voltou-se e saiu rapidamente do estábulo, erguendo a estola para protegê-la dos excrementos.

 

Meto recuou, na expectativa. Diana começou a chorar. Na entrada iluminada pelo sol, remoinhavam os grãos de poeira levantados pela passagem de Betesda. Então, eu voltei o olhar para o cadáver, cerrei os punhos e murmurei uma maldição contra os deuses. Meto deve ter-me ouvido porque, quando olhei para cima, estava tão pálido como o corpo sem cabeça que eu tinha aos pés.

 

Mais tarde, diria a mim próprio que deveria ter ocultado a Betesda a descoberta do corpo. A vida teria sido muito mais simples. Mas isso nunca fora uma alternativa, evidentemente; mais cedo ou mais tarde, Diana ter-lhe-ia contado, e por que não? Depois de um choque como aquele, a criança precisava de ser tranquilizada e consolada pela sua mãe. Não era de esperar que Diana guardasse para si uma descoberta tão importante e terrível.

 

Pareceu-me preferível, se fosse possível, evitar que os escravos tivessem conhecimento do caso. Um incidente como este excitaria a sua natureza supersticiosa e minaria a minha autoridade, tornando-os difíceis de manejar, na melhor das hipóteses, e na pior pouco fiáveis ou mesmo perigosos. Catão ter-se-ia provavelmente visto livre de todos eles, vendendo os que pudesse e despedindo os restantes, que morreriam de fome à beira da estrada. A mim, essas medidas drásticas pareciam-me cruéis e pouco práticas, além de que os escravos podiam saber coisas que eu não sabia. Se algum deles me tivesse traído, eles poderiam ter visto mais do que sabiam. Eu podia vir a ter necessidade dos seus conhecimentos e da sua ajuda. Algo terrível andava à solta, e eu não sabia, nem de onde vinha, nem onde conduziria.

 

Tinha de confiar em alguém e escolhi Arato. Afinal, ele era o meu encarregado. Engoli a minha desconfiança, dizendo a mim próprio que tinha provavelmente sido injusto com ele. Além disso, se ele era de alguma maneira cúmplice do aparecimento de Nemo, talvez eu pudesse percebê-lo nos seus olhos. Quando Meto trouxe Arato aos estábulos, o choque manifesto no seu rosto era perfeitamente genuíno.

 

Arato não sabia nada, nem tinha visto nada; assim me garantiu. Nada diria aos outros escravos; assim me jurou. Eu disse-lhe que fosse chamar alguns dos escravos que estavam a trabalhar no muro na zona norte e que os mandasse cavar um buraco para colocar o corpo entre os espinheiros que havia num campo isolado, a sudoeste da quinta, onde o ribeiro atravessava a cumeeira.

 

Mas que desculpa hei-de dar-lhes? perguntou ele.

 

Inventa uma! disse-lhe eu. Ou então não lhes dês desculpa nenhuma. És o encarregado, não és? Compete-te lidar com os escravos. Mas nenhum deles pode ter conhecimento disto, compreendes?

 

E se te parecer que algum deles sabe alguma coisa, comunica-me imediatamente!

 

Nessa tarde, depois de aberta a vala, dei instruções a Arato para que mandasse os escravos desempenhar uma tarefa qualquer na extremidade mais longínqua da quinta. Meto, Arato e eu envolvemos o cadáver num lençol e atámo-lo a uma carroça, depois empurrámos a carroça pelo solo rochoso até ao sítio onde fora aberto o buraco. Não demorámos muito a cobrir o corpo com terra húmida, e depois rochas soltas e espinheiros desenraizados, para tapar o buraco. Teria sido indecoroso consignar um cadáver à terra sem erguer um monumento, ainda que fosse um cadáver nu, anónimo e sem cabeça, e insensato enterrar um homem sem propiciar adequadamente a sua sombra, pois seria o mesmo que convidar a sua lémure a assombrar a quinta para sempre. Por isso, mandei enterrar feijões pretos com o cadáver e, como chefe da família, lancei uma mão-cheia dos mesmos feijões por cima do ombro sobre a sepultura.

 

Muitos dias depois, regressei ao local e coloquei sobre o túmulo uma fina esteia de mármore, que ficou quase escondida pelos espinhos. Na esteia, estavam gravadas as letras: N E M O

 

O artesão da aldeia queixara-se de que se tratava de um pedido estranho, gravar uma esteia para Ninguém, mas não tivera dificuldades em aceitar a minha prata.

 

Nessa noite, descobri que o febril período de amor que eu vivera com Betesda tinha acabado definitivamente. Ela virou-me as costas quando eu cheguei à cama e, quando tentei falar com ela sobre o corpo do estábulo, tapou a cabeça com uma almofada.

 

Eu queixei-me de que a circunstância não tivera origem em mim; de que sabia tanto como ela acerca do corpo e do modo como ali aparecera; de que faria tudo o que pudesse para protegê-la e às crianças. Ela não respondeu. Finalmente, ouví-a ressonar. Insultado e irritado, saí do quarto.

 

Andei de um lado para o outro durante muito tempo no pátio formal, dando voltas e mais voltas ao tanque. Andei por ali durante tanto tempo, que vi a sombra do telhado provocada pela lua avançar lentamente sobre as pedras do chão. Metade do mundo estava mergulhado numa sombra escura e a outra metade numa luz de prata, suave e indistinta, e eu andava de um lado para a outro, entre as duas.

 

Finalmente, saí do pátio e fui aos quartinhos de Diana e de Meto, encontrando-os a dormir profundamente, num sono aparentemente desprovido de sonhos.

 

Segui para a biblioteca, que era ao lado. Acendi uma lamparina e pendurei-a por cima da minha secretária. Abri um pedaço de pergaminho e aproximei o tinteiro. Mergulhei um junco na tinta e comecei a escrever. Arato escrevia quase todas as minhas cartas; a minha mão era desajeitada e eu fiz uma série de manchas no pergaminho antes de conseguir que o junco avançasse como devia ser. Então escrevi:

 

Ao meu amado filho Eco, na sua casa em Roma, saudações do seu amado pai, na sua quinta da Etrúria.

 

A vida aqui no campo continua cheia de surpresas. Não é, nem de longe, tão aborrecida como tu imaginas. Sei que adoras a animação de Roma, mas penso que ficarias surpreendido com a quantidade de coisas que aqui se passam.

 

Não te esqueças de que celebramos o décimo sexto aniversário de Meto para o mês que vem, e que nessa altura ele vestirá a toga da masculinidade. A casa de Roma terá de estar no seu melhor para receber uma série de visitantes distintos (e outros menos distintos). Será necessário impressionar os visitantes distintos com os melhores ornamentos e a melhor louça da família; e evitar que os menos distintos os roubem. Estou certo de que a tua mulher estará à altura da tarefa de organizar e supervisionar a um evento como esse. De qualquer maneira, o mais provável é Betesda assumir o comando.

 

A propósito, tenho um pequeno favor a pedir-te. Agradecia que fosses discreto. Conheces um jovem chamado Marco Célio, protegido de Cícero e de Crasso? Gostaria que lhe enviasses uma mensagem minha, dizendo: ”O corpo sem cabeça”. Percebo que isto não faça sentido; trata-se de uma piada particular. Ele compreenderá.

 

Penso muitas vezes em ti. Todos têm saudades tuas. Sei que estás muito ocupado aí na cidade. Espero que estejas a ser cuidadoso e te mantenhas a salvo, como faz o teu pai que te ama.

 

Fiquei sentado durante algum tempo para deixar secar a tinta, depois enrolei o pergaminho e meti-o numa caixa cilíndrica, atei-o e selei-o, e carreguei com o meu anel na cera mole. Na manhã seguinte, mandaria um escravo levá-lo a Roma.

 

Saí para o jardim das ervas. As abelhas tinham-se retirado para as colmeias para passar a noite, mas um par de grandes e luminosas traças esvoaçava por entre as vinhas. Era muito tarde, mas eu não tinha sono. Sentia-me como me sentira nos estábulos, ao princípio do dia preternaturalmente alerta, vendo e ouvindo tudo o que me rodeava com uma clareza fantástica. Estava lua cheia e o luar era tão forte, que se via quase como se fosse de dia, como se o Sol se tivesse simplesmente transformado num fogo azul. Tudo era normal, mas não era nada normal. Como acontecera ao princípio do dia, senti um estranho entorpecimento no meio da percepção aguda.

 

Passei pelo portão e dirigi-me para a colina, até que dei por mim no canto sudoeste da propriedade, não por ser o local onde o forasteiro tinha sido enterrado, mas por se tratar do lugar mais recolhido da quinta.

 

Tentara fugir de Roma, mas Roma era demasiadamente grande. Neste mundo, não havia maneira de lhe escapar. Roma é como uma rede e os homens são os peixes que ela apanha. Mesmo que um homem pudesse tornar-se tão pequeno que conseguisse passar pelas malhas da rede, seria presa de homens maiores; e mesmo que fosse tão esperto e tão rápido que escapasse a esses homens, continuaria a estar à mercê da Fortuna, que é o mar onde nadamos, e à mercê das Parcas, que são as rochas contra as quais somos esmagados. Não há fuga possível.

 

E assim, sentei-me numa pedra, peguei na ponta da minha túnica e fiz com ela uma bola, que meti na boca para poder gritar. Gritei com quanta força tinha, e ninguém me ouviu nem Betesda, que ressonava suavemente, nem os escravos, nem Meto, nem Diana, que dormiam profundamente nas suas camas. Todo o dia guardara aquele grito dentro de mim. Acontecera uma coisa inesperada e terrível. Eu examinara a situação, retirara dela o que podia, tentara controlá-la. Mas, desde o momento em que o vira o cadáver sem cabeça, aquilo que realmente desejara fazer fora gritar emitir o grito furioso e angustiado do lobo apanhado numa armadilha, da águia fechada numa gaiola.

 

 

         CANDIDATUS

Durante os dias seguintes, esperei um visitante que nunca chegou.

 

Entretanto, a vida retomava o seu ritmo normal. O trabalho da quinta prosseguia. Arato supervisionava os escravos que trabalhavam nos campos e fazia-me a contabilidade, Côngrio cozinhava, os escravos domésticos desempenhavam as suas tarefas.

 

Os dias estavam maiores e mais ardentes, e as noites estavam mais quentes, excepto dentro da minha cama, onde as coisas estavam um tanto geladas. Betesda não me fez uma única pergunta acerca do cadáver; há muito que decidira, e fizera bem, porque nessa altura eu era o seu senhor, que se o meu trabalho trazia perigo à nossa vida, era a mim que competia lidar com isso, e não a ela. A explosão que tivera no estábulo fora uma ocorrência rara, e era óbvio que ela não tencionava repeti-la, e que preferia morder a língua a voltar a falar no assunto. A sua atitude silenciosa anunciava que, muito simplesmente, ela não via utilidade em gastar saliva a interrogar-me ou a castigar-me; eu sabia que, no fundo, ela estava profundamente preocupada.

 

A sua atitude era fria e distante, assemelhando-se à das mulheres dos soldados, que têm de viver com a terrível perspectiva de perder os seus maridos, que no entanto são, pelo menos em parte, os primeiros que elas censuram por essa possibilidade, sentindo assim um misto de ansiedade, cólera e impotência. A apatia fingida é uma protecção, um endurecimento da vontade contra as implacáveis Parcas. Eu já experimentara o distanciamento de Betesda noutras ocasiões e estava habituado, mas apercebia-me agora de que ele se combinava com um novo e desagradável matiz de suspeita e de escrutínio rigoroso, como se eu fosse culpado de uma quebra deliberada de confiança e directamente responsável por tê-la submetido ao choque da chegada de Nemo.

 

Ela jogava um jogo de paciência, pensei eu, esperando que eu quebrasse e lhe dissesse tudo o que sabia acerca do cadáver e do seu aparecimento. Eu cedi mais do que uma vez e, com referências oblíquas ao que se passara no estábulo, dei-lhe a entender que estava disposto a fazer-lhe confidências, mas sempre que isso acontecia ela reagia mudando ruidosamente de assunto, batendo com a porta, saindo imponentemente da sala e, de uma forma geral, tornando miserável a vida de todas as pessoas que viviam sob o nosso tecto. ”Isto não aconteceria se eu te tivesse mantido na condição de escrava, em vez de me casar contigo”, murmurava eu meio irritado, mas é óbvio que ninguém me podia ouvir e que nem eu próprio acreditava completamente naquelas palavras.

 

Meto não parecia ter ficado particularmente afectado pelo inexplicável aparecimento do corpo. O facto de ter chegado à maturidade em minha casa, em Roma, parecia tê-lo habituado de tal maneira a este género de loucuras, que ele tomava a sua existência como certa. Tal como Betesda, achava que o assunto não lhe dizia respeito; à sua maneira espontânea e silenciosa, fez-me saber que confiava inteiramente na capacidade do seu pai para resolver aquele problema, por muito ameaçador ou terrível que fosse. A sua confiança em mim era tocante, tanto mais quanto era consideravelmente mais profunda do que a minha confiança em mim próprio.

 

Por seu lado, Diana foi-se tornando taciturna e maldisposta, embora me parecesse que a sua infelicidade devia ser atribuída mais à discórdia entre os seus pais do que ao choque de ter descoberto Nemo. Ou estaria a enganar-me a mim próprio, minimizando o carácter terrível do choque de ter assistido a uma tão grotesca intrusão no seu pequeno e seguro mundo, porque considerar uma tal fealdade perpetrada a uma criança, a minha própria filha, era suficiente para me fazer regressar aos espinheiros que rugiam dentro da minha túnica? Eu tentava prestar-lhe toda a atenção possível, abraçando-a e penteando-a, tratando-a a natas coaguladas e a mel, mas ela contorcia-se no meu colo, atirava os doces ao chão e manifestava uma insatisfação quezilenta com o mundo inteiro. Eu suspirava e pensava que, afinal, ela era filha da sua mãe.

 

Entretanto, com a subtileza possível, ia fazendo perguntas aos escravos para descobrir se eles sabiam alguma coisa sobre Nemo. Nada obtive. Arato, que jurara guardar silêncio e manter-se atento, não foi melhor sucedido. Era como se nós os cinco fôssemos os únicos a tê-lo visto, e de outra maneira Nemo nunca tivesse existido.

 

O mês de Junius declinava. Aproximava-se o mês de Quinctilis, com ele o pico do Verão. O mundo estava a ficar enublado com o calor.

 

Para leste, o monte Argênteo brilhava como um reflexo vacilante num tanque de água. O ribeiro diminuiu de tamanho e a sua voz gorgolejante transformou-se num pequeno murmúrio. Mesmo à sombra, estava quase demasiado calor para se conseguir dormir a meio do dia.

 

Finalmente, chegou um visitante.

 

Não entrou pelo portão, mas saiu da Via Cássia no ponto onde ela mudava de direcção junto da cumeeira, no canto sudeste da quinta, e abriu caminho por entre os espinheiros e os bosques de carvalhos. Não estava sozinho; vinha acompanhado por um imenso gigante de cabelo cor de palha, que quase parecia demasiadamente grande para o cavalo que montava. Os dois aproximaram-se lenta e cautelosamente, examinando à distância e de forma sub-reptícia a casa principal e os campos adjacentes, antes de se aproximarem.

 

Por acaso, eu vi-os antes de eles me verem a mim, porque nessa tarde me encontrava sentado na cumeeira, a olhar para baixo. Por vezes, chega uma brisa suave àquela cumeeira, mesmo quando lá em baixo o ar está parado; por isso, aquele é um sítio onde se pode passar com certo conforto o fim de um dia quente e sem nuvens, na companhia de um odre de vinho fresco.

 

Cláudia juntara-se a mim momentos antes, vinda do seu lado da colina. Tinha vestida uma túnica castanha, larga e comprida, e um chapéu de palha de agricultor como uma aba quase tão larga como a sua altura, de tal maneira que mais parecia um cogumelo gigante. Estávamos sentados à sombra, falando ociosamente sobre doenças de animais, sobre escravos temperamentais e sobre o tempo não falávamos de Nemo, nem de política, nem da hostilidade dos seus primos, porque estava demasiado calor para fazer confidências ou suscitar controvérsias. Cláudia foi a primeira a avistar os meus visitantes.

 

Oh, Gordiano, aqueles não são dois escravos teus, pois não?

 

Onde?

 

Aqueles dois homens a cavalo, lá em baixo na base da cumeeira. Não, agora não consegues vê-los por causa dos topos das árvores... mas olha agora, ali disse ela, apontando com o dedo voltado para baixo.

 

O que te leva a pensar que não são homens meus? perguntei eu, inclinando-me mas sem conseguir ainda avistá-los.

 

É   que, enquanto subia o outro lado da cumeeira, sentei-me a descansar por momentos e vi-os na Via Cássia, vindos do sul.

 

Eram os mesmos homens? Tens a certeza?

 

Só porque um deles vinha num cavalo branco e outro num cavalo preto, e aquele que vem no cavalo preto é positivamente enorme. Não me parece que tenhas escravos daquele tamanho na tua propriedade.

 

Por fim, avistei-os lá em baixo, descansando à sombra das oliveiras. Estavam de costas voltadas para nós e parecia estarem a observar a casa da quinta.

 

Ah, sim disse eu pouco à-vontade suspeito que são visitantes de Roma. Catilina chegou finalmente, pensei.

 

Alguém que eu conheça?

 

Eu pigarreei, tentando pensar numa resposta, e entretanto espreitei para baixo, para os dois homens montados nos seus cavalos. Só conseguia ver-lhes as costas e os chapéus de abas redondas.

 

Cláudia riu-se.

 

Perdoa-me a impertinência. São hábitos do campo; suponho que, se tivesse sido educada na cidade, teria aprendido a meter-me na minha vida. Ou talvez não. Bem, deixo-te para ires receber os teus visitantes. Ergueu-se e pôs o chapéu. Embora seja estranho que se aproximem da tua casa por entre os bosques como um par de bandidos, em vez de utilizarem a estrada. Sabes quem eles são, não sabes, Gordiano?

 

Oh, sim garanti-lhe, perguntando a mim próprio se saberia. Esperei que ela partisse, depois ergui-me e tomei um golo de vinho.

 

Lá em baixo, os dois homens fizeram o mesmo, passando um odre entre eles. Aparentemente sentiam-se satisfeitos em observar a quinta daquela posição de vantagem por trás das sombrias oliveiras, por isso eu sentei-me e observei-os também. Isto prolongou-se durante algum tempo, até que eu comecei a ficar impaciente e um pouco irritado. Afinal, convidados ou não, não tinham nada que estar na minha propriedade sem meu conhecimento, e estarem a espiar a minha casa, fosse qual fosse a sua justificação ou o seu objectivo, era indesculpável.

 

Decidira que já aturara suficientemente a sua impertinência e estava a preparar-me para descer a colina e ir falar com eles, armado apenas com a minha dignidade de cidadão e proprietário de uma quinta, quando o mais forte se voltou subitamente e olhou na minha direcção por cima do ombro. Não consegui ver-lhe a cara por causa da sombra do chapéu, mas ele deve ter-me visto, porque disse qualquer coisa ao seu companheiro, que também voltou a cabeça para olhar para mim. O homem mais pequeno fez sinal ao outro para que ficasse ali, depois desmontou e começou a subir a colina.

 

Nessa altura, devia ter percebido de quem se tratava, porque ele parecia saber perfeitamente que caminho tomar e nenhum forasteiro poderia sabê-lo. Além disso, havia qualquer coisa imediatamente familiar no seu porte e na sua maneira de andar, embora o rosto continuasse escondido pela aba do chapéu. Mas só quando ele chegou ao alto da cumeeira e se aproximou de mim é que eu o reconheci e disse o seu nome com um sobressalto.

 

Eco!

 

Papá! Ele tirou o chapéu e abraçou-me com toda a força, impedindo-me de respirar.

 

Espero que não apertes a tua noiva dessa maneira.

 

Claro que sim! Ele apertou-me ainda mais, e finalmente libertou-me. Menénia é um jovem salgueiro e verga-se.

 

Mas eu sou um velho teixo que pode quebrar-se disse eu, arqueando as costas.

 

Ele recuou.

 

Desculpa, Papá. É que estou tão contente por te ver. A sua voz ainda tinha o mesmo tom rouco e rude que a marcara desde que ele a recuperara dez anos antes, em Baias, depois de muitos anos de mudez. Ouvi-lo falar é sempre um milagre para mim, e uma lembrança de que, por vezes, os deuses são generosos para além de todas as nossas expectativas.

 

Mas o que fazes tu aqui? E por que estás com esse aspecto? perguntei-lhe eu, percebendo subitamente que ele tinha o cabelo e a barba aparados exactamente da mesma maneira que Marco Célio o cabelo curto dos lados, mas comprido e

rebelde no alto da cabeça e a barba aparada, formando uma espécie de correia à volta do maxilar e por cima dos lábios. O estilo parecerá excêntrico a qualquer pessoa, pensei eu, mas pelo menos ficava bem a Célio, que tinha os malares altos e os lábios vermelhos; mas não ficava bem a Eco.

 

Eco ergueu uma sobrancelha espantado, depois tocou no queixo.

 

Oh, o meu aspecto! Gostas?

 

Não. Ele riu-se.

 

Menénia gosta.

 

O chefe da casa não deve ter determinada aparência com o simples objectivo de agradar à sua mulher disse eu e pensei imediatamente, bolas de Numa, pareces mesmo um peido velho de um pai romano que não viveu a vida. Deixa lá disse eu rapidamente, depois estremeci. Desde que isso não signifique que aderiste a uma claque estranha qualquer.

 

O que estás tu para aí a dizer?

 

Isto é, desde que a barba e o cabelo não signifiquem que te juntaste a um certo grupo político...

 

Ele riu-se e abanou a cabeça.

 

Trata-se apenas de uma moda, Papá. De qualquer maneira, vim logo que pude. Estava fora de Roma quando a tua carta chegou, tive de ir a Baias em negócios por causa de um cliente um dos Cornélios, sabes como eles pagam bem. Só ontem regressei. Quando li a tua carta, arrumei as coisas o mais depressa que pude, naturalmente quer dizer, depois de ter estado ausente de casa tanto tempo, não podia abandonar Menénia sem pelo menos passar lá a noite. Trouxe Belbo comigo, para o caso de os problemas serem graves. Oh, e fiz como me dizias, enviei aquela mensagem críptica a Marco Célio antes de partir.

 

Mas, Eco, eu não te pedi que viesses.

 

Oh, não pediste, Papá? Ele olhou para mim com astúcia e tirou do cinto um pedaço de pergaminho enrolado. ”Ao meu amado filho Eco”, ”o teu pai que te ama.” Francamente, todo este sentimentalismo alarmou-me imediatamente. E depois, estas peculiares referências a surpresas no campo e as sugestões de qualquer coisa interessante que está a acontecer como se estivesses a escrever com alguém a espreitar por cima do ombro e não pudesses dizer o que realmente querias. E depois vem o objectivo principal da carta, pelo menos ostensivamente, recordar-me a festa da masculinidade de Meto francamente, como se eu pudesse esquecer-me, ou como se não tivéssemos discutido todos os pormenores na Primavera! E depois, como se fosse uma coisa de que te ias esquecendo, o pedido de que eu transmitisse uma mensagem que só pode ser uma espécie de código uma piada particular, está bem! seguido do pedido de que eu fosse cauteloso e me mantivesse a salvo. Bem, teria sido preferível que te tivesses sentado e escrito uma carta a dizer: ”Socorro, Eco, vem logo que possas!”

 

Deixa-me ver essa carta disse eu, e arranquei-lha das mãos.

 

Costumas examinar minuciosamente a tua correspondência, à procura de mensagens escondidas nas entrelinhas?

 

Ele encolheu os ombros.

 

Papá, eu sou teu filho. Não estás contente por eu ter vindo? Não era isso que querias

 

Sim. Sim, estou contente por estares aqui. Realmente preciso de alguém com quem falar. Sentei-me no cepo e peguei no odre.

 

Eco atirou o chapéu ao chão e sentou-se ao meu lado.

 

Interessante disse ele, fazendo deslizar a palma da mão por baixo das nádegas este cepo está quente, apesar de estar à sombra. Esteve alguém aqui sentado antes de mim?

 

Eu abanei a cabeça e suspirei.

 

Oh, para melhor ou para pior, tu és filho do Descobridor!

 

Não é de estranhar que estivesses com essa cara, disse Eco. Estava sentado na erva, descalço, aquecendo as pernas ao sol do fim da tarde. Enquanto falávamos, o Sol e as sombras tinham-se deslocado à nossa volta. Eu contara-lhe tudo aquilo de que me lembrava acerca do que acontecera no mês passado, bem como diversas coisas de que já me tinha esquecido, graças às suas persistentes perguntas. O odre estava pousado no chão entre nós, achatado e vazio. Na base da colina, os cavalos estavam presos a uma rocha e Belbo dormitava encostado ao tronco de uma árvore.

 

Estás então convencido de que foi Marco Célio que colocou no estábulo o corpo sem cabeça? disse Eco, olhando pensativamente para baixo, para a quinta.

 

Quem mais poderia tê-lo feito?

 

Talvez alguém do outro lado sugeriu ele.

 

Que outro lado? O problema é esse.

 

Então não te parece que Célio seja realmente um representante de Cícero?

 

Quem sabe? Quando lhe disse que teria necessidade de garantias pessoais de Cícero, ele recusou liminarmente, embora apresentando-me razões. Não quer que haja qualquer ligação entre Cícero e eu.

 

Podemos dar a volta a isso disse Eco. Não precisas de ser tu a fazê-lo. Cícero pode entregar-me uma mensagem de maneira que ninguém saiba, e eu trago-ta.

 

E depois? Suponhamos que Cícero nos garante que Célio é de facto um espião seu no campo de Catilina... ainda assim, poderá Cícero saber o que se passa na cabeça do jovem? Célio afirma estar apenas a fingir que é aliado de Catilina, enquanto trabalha secretamente a favor de Cícero. Mas, e se a sua traição for dupla? Se ele de facto estiver do lado de Catilina? Se assim for, e se eu aceitar o que ele me pede, continuarei a não ter maneira de saber que interesses estou a ser levado a servir. Oh, é como estar a ser lançado para um poço de víboras algumas são mais venenosas do que outras, mas todas mordem. Que decisão, escolher a víbora que morda menos! E justamente quando eu pensava que tinha saído para sempre do poço...

 

Mas o corpo disse Eco, insistindo. Tens a certeza de que foi uma mensagem, de um lado ou de outro?

 

Isso pelo menos parece claro. O enigma de Catilina... uma cabeça sem corpo ou um corpo sem cabeça, foi o que Célio disse, e que se eu aceitasse pedia que lhe enviasse uma mensagem: ”O corpo sem cabeça”. Hesitei... e a própria coisa aparece-me no estábulo! Isso aconteceu apenas cinco dias depois de Célio ter regressado a Roma. Não me concedeu muito tempo antes de tentar forçar-me, pois não?

 

A não ser que, como tu dizes, a mensagem tivesse uma origem diferente.

 

Mas a mensagem significa a mesma coisa, independentemente de quem a tenha enviado. Eu tenho de fazer o que me disseram, de receber Catilina em minha casa. Adiei a resposta e fui intimidado, a minha filha apanhou um susto, a minha casa foi voltada de pernas para o ar.

 

Achas que foi Catilina quem fez isso?

 

Não acredito que Cícero se rebaixasse a uma táctica como essa.

 

Célio poderia tê-lo feito sem o conhecimento de Cícero.

 

Que interessa quem o fez? Alguém se deu a um trabalho considerável para me mostrar que eu estou à sua mercê.

 

E por isso tu cedeste e enviaste a tua resposta a Célio.

 

Não vi alternativa. Enviei-a através de ti porque sabia que podia confiar em ti, e porque me pareceu mais sensato fazer uma abordagem indirecta... e, está bem, talvez porque, no fundo, queria que viesses para poder fazer-te estas confidências. Não contei que a minha mensagem para Célio se atrasasse por causa da tua ausência de Roma. É estranho que não tenha havido mais repercussões. Mal tinham passado cinco dias da visita de Célio quando o corpo apareceu. Agora passou o dobro do tempo; tu só ontem enviaste a minha mensagem a Célio, mas entretanto não houve mais incidentes.

 

A eleição consular aproxima-se. Os políticos e as suas cortes andam numa roda-viva, a angariar eleitores. Talvez se tenham, muito simplesmente, esquecido de ti por momentos.

 

Se ao menos se esquecessem de mim para sempre!

 

Ou então...

 

Sim, Eco?

 

Talvez a mensagem ou o corpo tivesse uma origem completamente diferente.

 

Eu acenei lentamente com a cabeça.

 

Sim. Já pensei nisso. Os Cláudios, talvez.

 

Por aquilo que dizes, eles andam a conspirar contra ti, e são desprovidos de escrúpulos. O que foi que Gneu Cláudio disse acerca dos assassinos?

 

Qualquer coisa sobre contratar homens de Roma para ”derramarem um pouco de sangue no chão”, pelo menos foi o que me contaram. Mas imagino que, tal como outros jovens excitados, ele fale muito mas faça pouco.

 

E se não for assim? Ele parece ser mesmo do tipo de quem deixa um cadáver no estábulo para te assustar.

 

Mas por quê um cadáver sem cabeça? Não, seria demasiada coincidência. E, se ele quisesse assassinar alguém para marcar posição, porquê Nemo, uma pessoa que eu nem sequer consigo identificar? Porque não um dos meus escravos, ou mesmo eu próprio? Não, pensei na possibilidade de um ou mais Cláudios estarem por trás do incidente, mas não há qualquer evidência disso.

 

Eco ficou pensativo por momentos.

 

Interrogaste os teus escravos?

 

Indirectamente. Prefiro que eles não saibam o que aconteceu a Nemo. É desastroso para a disciplina.

 

Por que és tão discreto? A maioria dos homens não se preocuparia com a possibilidade de os escravos saberem. A maioria dos homens torturava todos os escravos da sua quinta até saber a verdade.

 

Então talvez a maioria dos homens tenha dinheiro para substituir todos os escravos da sua quinta; eu não tenho. Além disso, sabes perfeitamente que o terror não é o método que eu uso para descobrir a verdade. Fiz as perguntas que tinha de fazer. Nenhum deles viu ou ouviu o que quer que fosse que eu pudesse relacionar com o aparecimento do corpo.

 

Como é que isso pode ser? Para colocar o corpo no estábulo sem ninguém ver, uma pessoa teria de saber quando e onde estariam os escravos a dormir ou a trabalhar, e só para saber isso teria de estar conluiado com algum dos teus escravos, pelo menos aparentemente. Terás sido atraiçoado?

 

Encolhi os ombros.

 

Já te falei dos meus desentendimentos com Arato. Eco abanou a cabeça.

 

Já assististe a mais julgamentos do que eu, Papá. Imagina Cícero fazendo em farrapos as tuas suspeitas de Arato. Não têm qualquer fundamento. Acontece simplesmente que não gostas dele.

 

Não estou a acusá-lo disse eu. Não estou a acusar nenhum dos escravos. Os escravos romanos não se voltam contra os seus senhores, pelo menos desde que Espártaco foi reprimido.

 

Deixámo-nos ficar sentados em silêncio durante algum tempo, passando o odre de vinho entre nós. Finalmente, Eco cerrou os maxilares e franziu o sobrolho, um gesto que eu sabia ser um presságio de uma decisão.

 

Não gosto nada disto, Papá. Acho que devias deixar a quinta e vir para a cidade. Aqui, corres perigo.

 

Ah! Deixar o campo e ir para Roma por razões de segurança? Aconselharias um nadador a trocar as águas calmas pelos rápidos?

 

Pode haver correntes subterrâneas perigosas nas águas calmas.

 

E rochas pontiagudas escondidas nos rápidos. E remoinhos que nos puxam para baixo, para a escuridão, e nos fazem rodopiar sem parar.

 

Estou a falar a sério, papá.

 

Olhei para baixo, para a quinta. O Sol afundava-se rapidamente, lançando sobre os campos uma neblina alaranjada. Os escravos conduziam as cabras para os redis. Diana e Meto emergiram das profundas sombras verdes das árvores que se alinhavam ao longo da margem do ribeiro, dirigindo-se para casa.

 

Mas o Verão é uma época de grande actividade na quinta. Tenho planos para construir um moinho de água...

 

Arato pode ficar a gerir a quinta, Papá. Não é para isso que ele serve? Oh, sei que não gostas dele, mas nada daquilo que me disseste te dá razões para suspeitar dele. Vem para a cidade com Betesda e as crianças. Ficas em minha casa.

 

Na casa do Esquilino? Não cabemos lá todos.

 

Cabemos perfeitamente.

 

Não há espaço suficiente para Betesda e Menénia gerirem cada uma a sua família.

 

Papá...

 

Não. Estamos em época eleitoral, como acabas de me recordar, e eu não tenho estômago para estar em Roma numa altura em que os candidatos e as suas comitivas enxameiam os mercados e qualquer peixeiro proclama as suas opiniões acerca do Estado e da República. Não, obrigado. Além disso, o mês de Quinctilis é demasiadamente quente na cidade. Quando tiveres a minha idade, compreenderás os ossos aprendem a odiar o frio e o coração não consegue tolerar o calor.

 

Papá...

 

Levantei a mão e fiz uma expressão severa para o silenciar, depois suavizei a expressão e pus-lhe a mão no joelho.

 

És um excelente filho, Eco; vieste de tão longe por estares preocupado comigo, e cumpriste o teu dever filial oferecendo-me alojamento na casa que eu te dei. Mas não irei para Roma. Não te preocupes... parece inevitável que Roma venha ter comigo.

 

Descemos a colina, acordámos Belbo e levámos os cavalos para o estábulo. Sentia que me tinha saído um grande peso de cima. Disse a mim próprio que era do vinho, que pesa menos no estômago do que num odre, mas a verdade é que o sentimento de leveza e de alívio resultava de ter desabafado com a única pessoa que podia compreender aquilo que eu sentia. Talvez devesse ter seguido o conselho de Eco; quem pode dizer que outro caminho teriam as Parcas tecido se eu tivesse decidido passar o Verão e o Outono em Roma, em vez de ficar na Etrúria? Mas eu não sou o género de homem que rumina sobre o que poderia ou não ter acontecido, especialmente tratando-se de uma escolha que acabou por se revelar pouco importante, face às escolhas bem mais importantes e às perplexidades bem mais graves que estavam para vir.

 

A chegada de Eco foi acolhida com grande alegria pela família; eu só me apercebi da profundidade da tensão provocado pela descoberta de Nemo quando Eco veio aliviá-la. Diana sentou-se alegremente no seu colo e ele obsequiou-a com um baloiço. (Com uma mistura de sentimentos, eu percebi que, aos vinte e sete anos, ele próprio já tinha idade suficiente para ter uma filha da idade de Diana e que, agora que tinha Menénia, poderia anunciar a qualquer momento o nascimento do meu primeiro neto.) Meto exibia a mistura de curiosidade, deferência e inveja de um jovem em presença de um irmão mais de dez anos mais velho que ele, especialmente quando um deles ainda é um rapaz e o outro é definitivamente já um homem; apesar da diferença de idades e de origens, eles sempre se tinham dado muito bem. Betesda

cumprimentou o corte de cabelo e a barba estilizada de Eco e namoriscou com ele desavergonhadamente.

 

Pareceu-me que Belbo, que há muitos anos protegia a casa do Esquilino e os seus ocupantes, começava a ter um ar um pouco pesado e grisalho, embora continuasse a ter os ombros largos como sempre e braços como os de um ferreiro. Para grande consternação sua, Diana divertiu-se a puxar-lhe os bigodes ruivos e grisalhos, até que Betesda a ameaçou de que não provaria a confecção de mel e amêndoas de Côngrio.

 

Eco queria voltar a Roma na manhã seguinte, mas eu convenci-o a ficar mais um dia. Pedi-lhe para dar uma vista de olhos à contabilidade de Arato, coisa que ele fez superficialmente, tendo declarado que estava acima de qualquer censura. Mostrei-lhe os meus planos para o moinho de água, que estava decidido a iniciar o mais depressa possível, e ele deu-me pequenas sugestões para o seu melhoramento. Enquanto vagueávamos pela quinta, mostrei-lhe algumas modificações que tinha introduzido desde a sua última visita e falei-lhe dos melhoramentos que estava a pensar fazer.

 

Nessa noite, Betesda encarregou-se pessoalmente da cozinha e fez exactamente o tipo de refeição simples com que Eco crescera. O seu paladar tinha-se tornado mais sofisticado desde então, mas ele pareceu apreciar os pratos de lentilhas e cevada, quanto mais não fosse por razões sentimentais. Depois, os escravos levaram os canapés para o átrio, e a família reuniu-se em círculo para observar as estrelas. Betesda deixou-se convencer a cantar uma canção egípcia da sua infância e, ao som da sua voz, Meto e Diana adormeceram rapidamente. Por baixo daquele céu sem lua, e por sugestão de Betesda, Eco falou-nos dos pequenos pormenores da sua vida doméstica na cidade. Eu deixei-me ficar sentado em silêncio, satisfeito por poder ouvi-lo.

 

Mais tarde, Betesda acordou Meto e mandou-o para o quarto e pegou em Diana para levá-la para a cama, deixando-me sozinho com Eco.

 

Papá disse ele quando regressar à cidade, verei o que consigo descobrir acerca de Catilina e de Célio e daquilo que eles poderão estar a tramar. Discretamente, claro.

 

Não corras riscos.

 

Ele encolheu os ombros e eu vi nesse gesto um reflexo de mim próprio.

 

Sabes perfeitamente que um homem curioso que viva em Roma corre sempre riscos, Papá.

 

Ainda assim...

 

Não posso ficar a olhar sem fazer nada enquanto alguém tece uma teia à tua volta e tenta atrair-te lá para dentro. Essas pessoas que deixaram um cadáver como sinal... é óbvio que não se deixarão deter por coisa nenhuma.

 

É   precisamente por isso que eu não tenho alternativa senão ceder e avançar. Um homem rodeado por um anel de fogo que fica quieto a choramingar é consumido com toda a certeza. A única maneira de escapar é atravessar o fogo e emergir do outro lado.

 

E onde irás ter?

 

Eu inspirei profundamente e estudei as estrelas, lá no alto. Não respondi e Eco não insistiu.

 

Assim se passou o último dia de Junius. Ao princípio da manhã das Calendas de Quinctilis, Eco e Belbo partiram para Roma. Eu fui com eles até à Via Cássia, e fiquei observá-los durante muito tempo, até conseguir apenas avistar os dois pontos vacilantes, um preto e um branco, que marcavam os cavalos de ambos no horizonte, já trémulo de calor.

 

Na tarde em que Eco partiu, comecei a trabalhar a sério no moinho de água. Arato, que tinha muito mais conhecimentos práticos de engenharia do que eu, reviu os meus planos e declarou que eram realizáveis; na realidade, felicitei-me secretamente pelo facto de ele ter ficado bastante bem impressionado. Chamou os escravos que tinham mais experiência de trabalhos com madeira para começarem a dar forma às diversas peças.

 

Entretanto, Arato e eu fizemos um exame superficial ao sítio que eu escolhera, marcando as elevações e a largura do ribeiro. Eu tinha pensado que talvez precisasse de represar uma pequena secção, mas descobri uma maneira de desviar o fluxo de água abrindo um canal na margem do meu lado. A única inconveniência para o meu vizinho Públio seria as águas ficarem ligeiramente barrentas. Apesar disso, certamente que as suas lavadeiras se queixariam do facto, e eu não tinha qualquer vontade de provocar novas altercações entre os escravos. Além de que havia ainda o pequeno litígio entre nós acerca dos meus direitos ao ribeiro. Isso poderia demorar meses ou anos a resolver, e eu não tinha intenções de esperar tanto tempo para começar a construir o moinho. Talvez que, se eu oferecesse a Públio a possibilidade de usar o moinho de água, ele se mostrasse mais aberto ao projecto, pensei; certamente perceberia que era também para seu benefício. Cerrei os dentes e decidi tomar a atitude mais sensata e honesta: ir falar com Públio Cláudio.

 

Não havia nenhuma estrada de comunicação entre as nossas propriedades. Para chegar a sua casa por estrada, eu teria de ir até à Via Cássia, fazer um grande desvio pelo norte da quinta de Mânio Cláudio e depois voltar para sul. Dada a frieza que reinava entre nós, parecia um pouco ousado limitar-me a cruzar o ribeiro e atravessar os seus campos a cavalo até sua casa, mas não havia outro caminho que fosse praticável. Decidi levar Arato comigo, juntamente com um dos mais encorpados escravos do campo, para o caso de haver problemas. A fim de evitar que Meto corresse perigo, mandei-o substituir Arato na supervisão do trabalho de um grupo de escravos, no muro do norte. Ele ficou irritado por ter de ficar em casa, mas percebi que o facto de eu lhe ter atribuído alguma responsabilidade lhe agradava.

 

Partimos ao princípio da tarde. No Verão, a maioria dos agricultores faz um longo intervalo a meio do dia para evitar o calor e eu esperava que Públio estivesse a descansar, com o estômago cheio da refeição do meio-dia e a cabeça um pouco tonta por causa do vinho. Poderia assim abordá-lo de mãos abertas, de vizinho para vizinho. Os nossos escravos tinham tido as suas altercações no ribeiro mas, que Côngrio e os seus ajudantes me tivessem contado, Públio não fizera pessoalmente qualquer ameaça contra mim na reunião familiar. Talvez pudéssemos chegar a acordo e evitar desentendimentos futuros.

 

O efeito calmante da breve visita de Eco tinha desterrado o pessimismo e tinha-me colocado numa disposição de boa vontade relativamente aos outros homens.

 

Atravessámos o ribeiro a cavalo e subimos a colina. Os escravos dos campos estavam a fazer um intervalo por causa do calor, descansando à sombra das oliveiras e das figueiras. Olharam para mim com uma expressão de estranheza, mas nenhum deles se opôs à nossa passagem.

 

A quinta estava menos cuidada do que eu imaginara. Vista da cumeeira, parecia idílica, mas a distância oculta um celeiro feito de madeira apodrecida ou um pomar cujas árvores têm manchas de míldio. O feno estava alto, e há muito que devia ter sido cortado. Sibilava à nossa volta enquanto atravessávamos os campos a cavalo, pondo em fuga os gafanhotos e as cigarras que cantavam. Arato dava estalidos desaprovadores com a língua à medida que ia observando as condições do gado e dos currais.

 

Uma coisa é ver esta porcaria na cidade, onde se amontoa um milhão de pessoas e não é possível fazer de outra maneira. Mas no campo as coisas devem estar limpas. Quando um homem tem escravos suficientes, não há desculpa para uma porcaria como esta.

 

Olhando à nossa volta para as sebes demasiadamente crescidas, as vedações mal remendadas, as ferramentas espalhadas e as pilhas de lixo, eu tive de concordar com ele. Eu pensava que Públio Cláudio era um homem rico. Como podia ele permitir que a sua propriedade chegasse àquele estado de ruína?

 

Desmontámos e prendemos os cavalos. A casa estava em melhores condições do que os alpendres e os celeiros que a rodeavam, mas as telhas precisavam de ser reparadas. Quando me encaminhava para a porta, tropecei numa pedra partida do pavimento e quase caí. Arato agarrou-me no braço e ajudou-me a equilibrar.

 

Ele bateu à porta, primeiro suavemente, depois com mais força. Mesmo que a família estivesse a fazer a sesta, devia haver algum escravo que atendesse à porta. Arato olhou para mim apertando os lábios. Eu fiz-lhe sinal para que batesse com mais força.

 

Lá de dentro veio o som de um cão a ladrar, e depois a voz de um homem mandando calar o cão. Esperei que a porta se abrisse, mas só ouvi o silêncio.

 

Arato olhou para mim.

 

Bem, vá lá disse eu. Bate outra vez.

 

Arato bateu. O cão voltou a ladrar. O homem gritou e amaldiçoou-nos, a nós e não ao cão.

 

Vão-se embora, senão ainda são mordidos! gritou ele.

 

Isto é ridículo disse eu. Arato afastou-se para me deixar bater à porta. O teu senhor tem visitas! disse eu. Abre a porta imediatamente, senão quem apanha és tu!

 

O cão ladrava sem parar. A voz por trás da porta amaldiçoou-nos e blasfemou contra metade dos deuses do Olimpo. Ouviu-se um ganido violento e depois os ladridos cessaram. Finalmente, a porta rangeu e abriu-se para trás. Eu franzi o nariz por causa do cheiro que vinha do interior uma mistura de cheiro a cão, a suor bolorento e a couves cozidas.

 

Para além da entrada, havia um átrio onde incidia a luz do Sol, por isso eu vi o homem em silhueta e, por momentos, só vagamente consegui distinguir-lhe as feições. Reparei primeiro no cabelo, comprido e despenteado como uma juba desgrenhada, e listado de cinzento. Tinha a postura de um velho, vergado e com os ombros curvos, mas não parecia pequeno nem fraco. A túnica, amarrotada e com um aspecto gasto, estava toda torcida, como se ele tivesse acabado de a vestir. Quando consegui vê-lo mais claramente, reparei no queixo grisalho, coberto com uma barba de vários dias, e no nariz grande e carnudo. Tinha os olhos injectados de sangue e pestanejava como se a luz o incomodasse.

 

Quem és tu e o que queres? resmungou ele, com a voz enrolada por causa do vinho.

 

Pelas bolas de Numa, pensei eu, que escravo para atender à porta! Era óbvio que Públio Cláudio não prestava mais atenção à gestão da sua casa do que à gestão da sua quinta.

 

O meu nome é Gordiano disse eu. Sou o dono da quinta que pertencia a Lúcio Cláudio, do outro lado do ribeiro. Vim falar com o teu senhor.

 

O homem riu-se.

 

O meu senhor... fah!

 

Atrás de mim, Arato inspirou audivelmente.

 

Que insolência! murmurou.

 

O homem voltou a rir-se. Por trás dele, houve um súbito movimento no átrio iluminado pelo sol. Uma rapariga, completamente nua à excepção da veste enrugada que levava na mão, passou para a luz e olhou para a porta com os olhos muito abertos e assustados. Era jovem tão jovem que eu a teria tomado por um rapaz se não fossem os seus longos cabelos, pretos e emaranhados.

 

Apertei os lábios.

 

É óbvio que Públio Cláudio deve estar ausente da quinta, para que este comportamento tenha lugar dentro da sua casa disse eu secamente.

 

O homem voltou-se e viu a rapariga, depois precipitou-se para ela e bateu as palmas.

 

Fora daqui, Libelinha! Veste-te e desaparece da minha vista, senão dou-te uma tareia. Ah! Que falta de educação... a mostrares o traseiro nu às visitas! Não voltes cá, senão acrescentarei uns açoites às marcas das minhas mãos, minha harpiazinha!

 

Voltou-se novamente para nós, exibindo um sorriso de auto-satisfação. Com um baque no coração, eu olhei para a sua mão direita e vi que ele tinha um anel no dedo e não era apenas o anel de ferro de um vulgar cidadão, era uma tira de patrício, cujo ouro brilhava à luz suave do princípio da tarde.

 

Deves ser Públio Cláudio disse eu lentamente. Tendo-se os meus olhos adaptado à luz, estudei-lhe a expressão e percebi que era verdade. Vira-o no tribunal, em Roma, mas apenas à distância, com o cabelo bem cortado e a barba aparada, e vestindo uma toga de excelente qualidade. Parecia tão grave e sóbrio como um candidato eleitoral. Em sua casa, tinha um aspecto bastante diferente.

 

Ele olhou para mim de cima abaixo.

 

Ah, sim, estou a lembrar-me de ti. És o homem que conseguiu ficar com a propriedade do Primo Lúcio. No tribunal, parecias muito cheio de ti próprio, tolo e estúpido como a maioria dos rapazes da cidade. Continuas a parecer um rapaz da cidade.

 

Endireitei-me. Não é agradável um homem ser insultado diante dos seus   escravos.

 

Públio Cláudio, vim falar contigo como teu vizinho, para discutir uma pequena questão relativa ao ribeiro que marca a nossa fronteira comum.

 

Fah! Ele frisou os lábios. Resolveremos essa questão em tribunal. E desta vez esse Cícero saco de vento não virá em teu auxílio, agitando a sua língua de prata no meio das nádegas dos juizes. Segundo ouvi dizer, manter o Senado bem-disposto já lhe dá trabalho suficiente.

 

Tens uma língua suja, Públio Cláudio.

 

Pelo menos não a ponho onde a põe Cícero. Inspirei profundamente.

 

Tal como dizes, Públio, a questão dos direitos da água será resolvida em tribunal. Até então, não tenciono deixar de utilizar o ribeiro...

 

Já percebi. Oh, se foi a rixa entre as lavadeiras que aqui te trouxe, deixa lá! Sim, sim, uma das tuas escravas apanhou com uma pedra. O meu encarregado contou-me. Bem, ela consegue trabalhar ou não? Se não, eu troco-a por uma das minhas. Mas não estou disposto a indemnizar-te só porque uma lavadeira deitou um bocado de sangue ela não era propriamente uma escrava de prazer, por isso uma cicatriz não lhe fará grande diferença. Que mais queres de mim? Dei a todos os escravos que participaram no incidente uma bela tareia e um castigo especial à bruxazinha que atirou a pedra tão cedo não repetirá a graça. Espero que tenhas feito o mesmo aos teus escravos esse é o meu conselho, e se não o fizeste na altura, fá-lo agora. Nunca é tarde de mais. Já devem ter-se esquecido do mal que fizeram, mas hão-de lembrar-se da tareia, se ela for bem dada. Às vezes, é boa ideia espancá-los mesmo que eles não tenham nada de mal. Só para lhes recordar quem manda.

 

Públio Cláudio, a questão que eu vim discutir...

 

Oh, Rómulo e Remo, está demasiado calor para estarmos aqui à porta, de pé, a discutir. Entra. Quem é esse aí, atrás de ti, é o teu encarregado? Sim, ele que entre também mas o grande fica lá fora. Não precisas de guarda-costas para entrar em minha casa. Que género de homem pensas tu que eu sou? Tu, escravo, fecha a porta atrás de ti. Ah, óptimo, o meu canapé ainda está à sombra.

 

Havia uma fonte no pátio, mas não tinha água; a bacia estava cheia de galhos e de palha. Públio deitou-se no seu canapé. Havia apenas um tamborete para eu me sentar. Depois de fechar a porta, Arato postou-se atrás de mim e manteve-se de pé.

 

Perdoarás a falta de equipamentos macios e outras coisas assim disse Públio. Apareceu um cão, que se esquivou a ganir para baixo do canapé do dono. Nunca apreciei os luxos. Além disso, é preciso uma mulher para criar uma casa macia e confortável para as visitas e a única mulher que eu tive morreu um ano depois de eu me ter casado com ela. E levou consigo o único herdeiro que eu fiz, ou foi o bebé que a levou a ela, não sei. Suponho que tenham partido juntos para o Hades, de mãos dadas. Estendeu a mão para baixo do canapé e tirou de lá um odre de vinho. Levou-o à boca e espremeu-o, mas o odre limitou-se a deitar perdigotos. Libelinha trauteou ele. Oh, Libelinha, traz mais um bocadinho de vinho ao Papá.

 

Vim aqui, Públio, porque me proponho construir um moinho de água no ribeiro. Não será necessário alterar o fluxo de água, porque tenciono desviar o canal para uma vala acima do local...

 

Um moinho? Queres dizer, uma espécie de máquina com rodas movidas pela água? Mas para que queres tu uma coisa dessas?

 

Pode servir para muitas coisas. Para moer cereais, e até pedras.

 

Mas não tens escravos para fazerem isso?

 

Tenho, mas...

 

Libelinha! Traz-me mais vinho imediatamente, se não dou-te outra tareia, mesmo em frente das visitas!

 

Momentos depois, a rapariga apareceu, vestindo uma túnica coberta de nódoas que lhe deixava os braços e as pernas à mostra, e trazendo um odre cheio. Públio tirou-lho da mão e deu-lhe uma palmada no traseiro. A rapariga começou a retirar-se, mas Públio agarrou-lhe uma nádega com uma mão e puxou-a para si, segurando o odre na outra e desarrolhando-o com os dentes. Enquanto bebia avidamente o vinho, meteu-lhe a mão por baixo da túnica e afagou-lhe o traseiro. A rapariga manteve-se quieta, muito corada e de olhos desviados.

 

Eu pigarreei.

 

Talvez te interesse saber que foi Cláudia quem me deu a ideia de construir o moinho. Ela disse-me que o teu primo Lúcio sempre tinha tido a ambição de construir um moinho de água. Portanto, como vês, de certa maneira, eu estou a realizar os seus desejos.

 

Públio encolheu os ombros.

 

Lúcio tinha muitas ideias estúpidas, como a de te deixar a quinta. Tal como tu, era um rapaz da cidade. É daí que vêm as ideias estúpidas, da cidade. Reúne uma série de loucos no mesmo sítio e terás aquilo a que se chama uma cidade, eh? E depois as ideias estúpidas propagam-se de uma cabeça para a outra como a sífilis. Fez qualquer coisa com a mão que levou a rapariga a dar um salto e a abrir a boca. Públio riu-se. Eu levantei-me.

 

Pensei que, se isso te interessasse, poderia permitir-te ter acesso ao moinho quando estivesse pronto. Talvez possa ser-te útil.

 

Para quê? Tenho escravos para me moerem os cereais.

 

A água poderia substituir os escravos.

 

E o que fariam os escravos? Os escravos ociosos acabam por arranjar sarilhos.

 

Estou certo de que os escravos teriam muitas outras coisas para fazer por aqui disse eu secamente. Pretendia ser insultuoso, mas Públio não parece ter reparado.

 

Um moinho é uma máquina disse ele. As máquinas estragam-se e têm de ser arranjadas. Não haverá água suficiente para fazer andar uma coisa dessas, especialmente nos meses mais secos. E, quando uma máquina está parada, não tem utilidade para ninguém enquanto uma escrava pode ser útil, mesmo quando está a descansar. Públio fez qualquer coisa que levou a rapariga a arfar. Ela tentou afastar-se, depois contorceu-se e ficou muito direita. Vi uma veia inchar na testa de Públio, que estreitou os olhos. O ombro e o cotovelo moveram-se-lhe num estranho movimento circular. A rapariga mostrou-se desagradada e mordeu os lábios. Públio levou o odre à boca. Sugou o gargalo, deixando escorrer o vinho pelo queixo.

 

Vou-me embora disse eu. Arato apressou-se a adiantar-se-me para abrir a porta.

 

Oh, eu sou um dono de casa miserável! gritou Públio, enrolando as palavras. Estou para aqui sentado, e não ofereci nada ao meu convidado. Qual preferes, Gordiano, o odre... ou a rapariga?

 

Começo a construir o moinho de água amanhã disse eu, sem olhar para trás. Espero que não haja interferências tuas. Obrigado pela tua cooperação.

 

Depois de eu sair, Públio veio apressadamente ter comigo. Pousou a mão sobre o meu braço, mas eu sacudi-o. Tinha o hálito a cheirar a vinho e a mão a cheirar à rapariga.

 

Mais uma coisa, Gordiano... para construíres um moinho, primeiro tens de fazer um plano. Mas um escravo... podes fazer os teus próprios escravos! Olha, metade dos escravos desta quinta foram plantados por mim no ventre das suas mães. Não precisei de os comprar, estás a ver, fi-los eu próprio... assim é mais divertido, não é? E não custa um tostão. Estás a ver aquele grandalhão ali ao fundo, à sombra das oliveiras, a acordar os outros da sesta e a mandá-los trabalhar... é um dos meus bastardos. Oh, fiz alguns bastante grandes, rapazes fortes que mantêm os outros na linha. Alimento-os bem e deixo-os brincar com a Libelinha de vez em quando, para os manter satisfeitos. Pouco importa que os outros se sintam miseráveis, desde que tenhas alguns fortes para os manter na linha. Alimenta os mais fracos apenas o suficiente para que possam trabalhar, mas não tanto que eles fiquem mais fortes do que devem ser...

 

Montei o cavalo. Arato e o escravo do campo que trouxera comigo fizeram o mesmo.

 

Mas o que é isto, Gordiano, não gostas de discutir filosofia agrária? Pensei que todos vocês, os rapazes da cidade, os amigos de sacos de vento como Cícero, adoravam uma boa discussão... Ele cambaleou atrás de mim, tropeçando nas pedras do pavimento.

 

Não devias beber tanto com este calor, Públio Cláudio. Acabarás por cair e por te magoar disse eu, rangendo os dentes.

 

Ainda estás aborrecido com o que aconteceu no ribeiro, não estás? Fah! Isso não foi nada. Foram discussões de mulheres. Se eu quisesse realmente fazer alguma coisa, tinha mandado um dos meus bastardos. Oh, sim, és exactamente como os meus primos diziam. És mais um rapaz da cidade que subiu muito acima do que devia ser a sua posição na vida. Roma tornou-se um Estado lamentável, em que um zé-ninguém como tu pode apoderar-se da quinta de um patrício e dar-se ares de nobre do campo... e em que um zé-ninguém como o teu amigo Cícero pode rastejar até ao consulado. Tens a cabeça inchada, Gordiano... talvez alguém devesse furar-ta! Bateu com o punho contra a mão, dando um estalido.

 

Eu voltei-me. Públio recuou sobressaltado, a tossir por causa da poeira provocada pelos cascos do cavalo a bater no chão. Os seus capatazes que estavam no olival fitaram as orelhas e começaram a dirigir-se rapidamente para nós.

 

O que foi que disseste sobre cabeças, Públio? perguntei eu.

 

O quê? Ele olhava para cima na minha direcção com uma expressão de espanto, abanando os braços por causa do pó.

 

Costumas andar por aí a abrir as cabeças dos outros homens, Públio Cláudio?

 

Não sei a que te referes. Trata-se de uma figura de estilo...

 

E se furasses a cabeça inchada de um homem, Públio... o que farias com o corpo?

 

Os capatazes chegaram e rodearam o seu senhor. A atrapalhação momentânea passou-lhe e Públio olhou para mim de olhos semicerrados, numa atitude de desafio.

 

Acho que é melhor saíres das minhas terras. Se a minha hospitalidade não te agrada, vai-te embora! E não penses que me esqueço da questão dos direitos da água. O ribeiro é meu, não é teu!

 

Eu voltei-me e disse a Arato e ao escravo do campo que me seguissem. Lancei o cavalo a trote, depois a galope, atravessando a erva alta e assustando os gafanhotos e as cigarras que cantavam à minha passagem. O calor dos campos subia-me ao rosto e o vento ressoava-me nos ouvidos. O bater dos cascos dos cavalos contra a terra dura vibrava-me pelo corpo. Os escravos, que regressavam às suas tarefas, recuaram assustados. Nem diante do ribeiro desacelerei a corrida, antes incitei o cavalo para dentro de água. Quando cheguei à outra margem, puxei as rédeas e inclinei-me para a frente para lhe afagar o pescoço. Parei à sombra, ouvindo o ar passar-lhe pelas narinas e o bater do meu coração nos meus ouvidos.

 

Arato e o escravo do campo regressaram às suas tarefas. Eu deixei-me estar durante algum tempo junto do ribeiro, permitindo que o cavalo bebesse a água fresca e comesse a erva tenra. Quando ele acabou, levei-o para o estábulo. Ia desmontar quando um movimento ao longe, na estrada, me chamou a atenção. Franzi o sobrolho e fixei o horizonte sobre os campos. Dois homens saíam da Via Cássia e entravam na estrada que ia ter a minha casa. Um deles montava um cavalo preto, o outro um cavalo branco.

 

Eco outra vez? Isso só podia querer dizer que havia problemas. Dirigi-me apressadamente para a estrada, ao encontro deles.

 

À medida que me aproximava, pareceu-me reconhecer Eco pela barba e o corte de cabelo, mas o outro cavaleiro, o que vinha no cavalo branco, não era, nem de longe, tão grande como Belbo. Segurei as rédeas do meu cavalo e esperei que os homens se aproximassem. Eles mantinham um passo lento e constante, até que o do cavalo preto passou a trote e se adiantou para vir ao meu encontro. Parecia absurdamente satisfeito; na verdade, parecia-me que se aproximava de mim um grande sorriso, acompanhado por um cavalo e por um cavaleiro.

 

Quando ele se aproximou o suficiente para eu poder vê-lo mais claramente, percebi que estava a olhar para o primeiro e o principal rosto a usar a moda que tão popular se tornara entre os jovens de Roma, porque ela não poderia adequar-se a nenhum outro rosto, nem sequer ao do belo Marco Célio, com a perfeição com que se adequava a este. A tira de barba que lhe atravessava o maxilar tinha a forma ideal para o seu queixo forte e o seu nariz perfeitamente cinzelado. O corte do cabelo, comprido em cima e aparado sobre as orelhas, deixando ver salpicos de prata a brilhar por entre o preto, adaptava-se de forma ideal às suas sobrancelhas pretas e direitas e à testa majestosa. Os seus olhos eram de um azul penetrante, que parecia espetar-me e prender-me ao chão à medida que se aproximava.

 

Lindo! disse ele, enquanto segurava as rédeas da sua montada, desviando os olhos de mim para os fixar nos campos à sua volta. Ainda melhor do que Marco Célio me prometeu. Não podia ser mais perfeito, pois não, Tongílio? disse ele, voltando-se para trás para falar com o seu jovem companheiro. Inspirou profundamente, saboreando os doces odores do feno e das flores silvestres. Um belo pedaço de terra. Quase podemos imaginar o próprio Pan esvoaçando por estes campos. É o tipo de quinta com que todos os Romanos sonham. Com um grande sorriso no rosto, ele estendeu-me a mão. Relutantemente, eu tomei-a. O seu aperto de mão era quente e forte. Deves ser um homem muito orgulhoso e feliz, Gordiano!

 

Eu acenei com a cabeça e suspirei.

 

- Oh sim, Catilina. Sou com certeza.

 

Tínhamo-nos conhecido dez anos antes mas, depois do escândalo das Virgens Vestais, eu nada mais tivera a ver com Catilina e praticamente não voltara a vê-lo, mesmo quando ele andava pelo Fórum a fazer campanha eleitoral especialmente nessa altura, porque a visão de um político aproximando-se com a sua comitiva era suficiente para me pôr a fugir. (Os políticos romanos são capazes de perseguir obstinadamente um homem para o interior de lojas ou de tabernas, ou mesmo de bordéis, para lhe pedir o seu voto; a única hipótese de os evitar é seguir apressadamente na direcção oposta.)

 

Voltar a ver Catilina trouxe-me imediatamente à memória o nosso encontro anterior, e consegui recordar-me com grande clareza de como ele era então um homem na casa dos trinta anos, de cabelo preto e barba (nessa altura com um formato mais convencional), com feições tão regulares, tão harmoniosamente equilibradas, que era difícil considerá-lo belo. Mais do que belo, ele era excepcionalmente atraente, com um encanto que parecia emanar do interior de uma forma invisível, manifestada exteriormente pela jovialidade que iluminava os seus olhos e pelo sorriso que lhe subia prontamente aos lábios.

 

Ao contrário da maré dos assuntos humanos, o tempo fora amável com Catilina; como os homens costumam dizer acerca das mulheres e do vinho, ele envelhecera bem. Tinha rugas nos cantos dos olhos e da boca, mas era o tipo de vincos que resultam de a pessoa sorrir em excesso. Havia uma sugestão de cansaço nos seus olhos brilhantes e no seu sorriso, mas isso conferia-lhes uma maturidade que era tanto mais atraente. Era difícil não gostar dele à primeira vista. Não era de admirar que fosse considerado tão perigoso.

 

Gordiano disse ele, continuando a apertar-me a mão. Há tantos anos. Recordas-te?

 

Recordo-me.

 

Marco Célio disse-me que sim. Então não te importas que venha visitar-te?

 

Não, claro disse eu. Se reparou na minha hesitação antes de responder, Catilina ignorou-a.

 

Marco Célio garantiu-me que não. Preciso de um lugar para onde possa ocasionalmente desaparecer por completo do mundo e Célio disse-me que conhecia o sítio ideal. És muito amável em me receber.

 

Subitamente, percebi que eu ainda tinha a minha mão entre as suas. Fazia-o de uma forma tão natural e despretensiosa, que eu nem sequer tinha reparado no facto. Suavemente, retirei a mão. Catilina libertou-ma, mas continuou a olhar-me fixamente, como se ainda não estivesse disposto a largar-me.

 

Este é Tongílio. Apontou para o seu companheiro, um jovem de aspecto atlético, de cabelo castanho ondulado e maxilar pronunciado, sem barba, o que permitia ver a covinha do seu queixo. Perguntei a mim próprio se o encanto de Catilina poderia ser de alguma maneira ensinado ou adquirido por contacto, porque Tongílio, com os seus olhos verdes e o seu sorriso subtil, parecia possuí-lo em miniatura. Ele inclinou a cabeça e disse com uma voz profunda.

 

É   uma honra conhecer um velho amigo de Catilina.

 

Eu respondi-lhe com outra inclinação de cabeça. Por longos e embaraçosos momentos, mantivemo-nos os três parados. Competia-me fazer um gesto de hospitalidade, fingido ou não, mas sentia-me confuso e pouco disposto a falar. Chegara o momento. Tinha diante de mim o favor que Marco Célio me solicitara. Eu resistira a esta eventualidade, temera-a, preparara-me para ela e, agora que a crise estava a ter lugar, sentia-me estranhamente vazio, quase desiludido. A presença de Catilina não me comunicava qualquer sentimento de ameaça. Na verdade, sentia-me bastante à-vontade com ele, e isso preocupava-me tanto mais quanto perguntava a mim próprio se a minha perspicácia estaria a ficar embotada, se me teria tornado incapaz de sentir o perigo e a fraude quando eles estavam, com toda a certeza, tão próximos de mim.

 

Foi Catilina quem finalmente falou.

 

E esse que aí vem será o teu filho?

 

Olhei por cima do ombro e vi Meto aproximar-se a cavalo vindo do muro norte, onde Arato devia tê-lo substituído na tarefa de supervisionar os escravos.

 

Sim, é o mais novo dos meus dois filhos, Meto. Recordando-me das crianças e da sua vulnerabilidade, senti um baque de inquietação, que me provou que afinal a minha perspicácia não me abandonara.

 

Meto, temos visitas. Este é Lúcio Sérgio Catilina. E este é o seu companheiro, Tongílio.

 

Meto aproximou-se com um sorriso de viés, um pouco enervado com a possibilidade de conhecer uma personagem tão famosa. Catilina estendeu a mão e Meto aceitou-a, pareceu-me que com alguma avidez. Em voz baixa, perguntou:

 

É   verdade que dormiste com uma Virgem Vestal? Eu fiquei de boca aberta.

 

Meto!

 

Catilina lançou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, tão ruidosa que o meu cavalo relinchou assustado. Tongílio riu-se com a boca fechada. Meto ficou cor-de-rosa, mas parecia mais intrigado do que embaraçado. Eu levei a mão à testa e gemi.

 

Bem, disse Catilina já sei que história vou contar esta noite, depois do jantar! Estendeu a mão e despenteou o cabelo de Meto, que pareceu encantado.

 

Se eu esperava afastar Catilina com uma culinária deficiente, Côngrio tornou essa hipótese impossível. Acicatado por Betesda, nessa noite, ele superou-se. Ela sempre julgara os estranhos exclusivamente pela sua aparência, e gostou muito do aspecto de Catilina e de Tongílio. Consequentemente, o jantar foi soberbo: guisado de porco com favas, acompanhado por um fricassé de damasco.

 

Depois do jantar, tal como acontecera na noite anterior, eu disse aos escravos que levassem os canapés para o átrio, mas Betesda não se juntou a nós. Desde que eu me casei com ela, Betesda está perfeitamente consciente do seu estatuto de liberta e de matrona da família de um cidadão, mas não adere à prática comum das modernas matronas romanas, que no fim do jantar se deixam ficar a conversar com homens que não pertencem à sua família. Retirou-se, levando Diana consigo. Meto ficou connosco. A sua presença deixava-me pouco à-vontade, mas não vi maneira de o mandar embora. Afinal, o nosso convidado prometera contar-lhe uma história.

 

Foi uma excelente refeição disse Catilina. Agradeço-te uma vez mais por me teres recebido.

 

Admito que, a princípio, hesitei em te convidar para minha casa, Catilina disse eu, lenta e deliberadamente. És uma figura consideravelmente controversa, e eu cheguei a uma fase da minha vida e do meu destino em que deixei de procurar a controvérsia, antes pelo contrário. Mas Marco Célio defendeu... muito convincentemente a necessidade de eu alargar a minha hospitalidade.

 

Sim, ele é um jovem persuasivo, talentoso e cheio de iniciativa.

 

Não havia nenhuma sugestão de ironia na voz de Catilina e o brilho dos seus olhos não parecia esconder ameaças, mas apenas a jovialidade de sempre.

 

É   verdade, é eloquente e persistente. Além disso, parece estar consciente de que um gesto forte pode falar mais alto do que meras palavras.

 

Catilina acenou com a cabeça. Uma vez mais, não vi indicações de que ele percebesse o duplo sentido das minhas palavras.

 

Tu gostas muito de enigmas disse eu.

 

Catilina sorriu. Tongílio riu-se. Entre eles, passou o olhar de dois íntimos que partilham uma piada.

 

Confesso que sim disse Catilina.

 

É o seu único vício disse Tongílio. Pelo menos é o que ele gosta de dizer às pessoas. A piada era então essa, um homem com a reputação de depravação que ele tinha admitir como sua característica mais viciosa uma fraqueza pelos jogos de palavras.

 

E tu Gordiano... presumo que te sintas mais inclinado a resolver enigmas do que a propô-los.

 

Antigamente, sim.

 

Bem, então um fácil. Pensou por momentos, e depois disse.

 

Um legume comestível sem uma linhagem distinta, transportado de solo rústico para um lugar pedregoso, onde prospera contra todas as expectativas e lança as suas gavinhas para bem longe.

 

Esse é fácil disse Meto.

 

É? disse Catilina. Acabei de inventá-lo.

 

O legume é um grão-de-bico. O lugar pedregoso é o Fórum, em Roma.

 

Continua.

 

Por isso, a resposta do enigma é Marco Túlio Cícero.

 

Porquê?

 

Meto encolheu os ombros.

 

Toda a gente sabe que o nome de família de Cícero tem origem num antepassado que tinha uma greta no nariz e que parecia um grão-de-bico, um feijão cicer. Cícero nasceu em Arpinum o solo rústico e fez fortuna no Fórum, que está todo pavimentado com pedras. Aí prosperou, embora ninguém esperasse que um homem que não pertencia a uma família conhecida pudesse ir tão longe.

 

Muito bem! disse Catilina. E as gavinhas? perguntou ele, olhando para mim, e não para Meto.

 

São a sua influência, que é muito alargada concluiu Meto.

 

Tens razão, é fácil concedeu Catilina. Da próxima vez que o contar, terei de torná-lo mais difícil. Não achas, Gordiano?

 

Sim disse eu. É demasiadamente óbvio.

 

O enigma ou o seu objecto? disse Tongílio. Por momentos, pensei que ele estivesse a falar a sério, e pareceu-me que as nossas máscaras estavam a ponto de cair. Mas, quando ele se riu suavemente e fez uma careta na direcção de Catilina, percebi que estava apenas a zombar do seu mentor por causa do jogo de palavras.

 

Sei que tu e Cícero se conhecem há muito tempo disse Catilina. Há quinze ou vinte anos.

 

Há dezassete. Conhecemo-nos no último ano da ditadura de Sula.

 

Oh, sim, Célio recordou-mo. O julgamento de Sexto Róscio.

 

Assististe ao julgamento?

 

Não, mas claro que na altura se ouviu falar muito do assunto. Falava-se sobretudo acerca de Cícero, mas recordo-me de ouvir mencionar o teu nome em relação com o caso, depois de ele ter terminado. Foi um caso importante, uma espécie de marco. Suponho que podemos dizer que tu e Cícero contribuíram para a reputação um do outro.

 

Estás a atribuir-me demasiada importância. É como honrar a colher com que Côngrio fez o molho.

 

Estás certamente a ser modesto, Gordiano.

 

Não mereço honras nem censuras pelos feitos de Cícero. Sim, trabalhei para Cícero algumas vezes ao longo dos anos, como trabalhei para Crasso e para Hortênsio e para muitos outros.

 

Então também não tenho razão quando digo que Cícero contribuiu para a tua reputação?

 

O julgamento de Sexto Róscio foi uma linha divisória para todos os implicados.

 

Catalina acenou com a cabeça. Levou a taça aos lábios e bebeu todo o seu conteúdo, estendendo-a em seguida para ser novamente cheia. Olhei à volta e apercebi-me de que não havia ali nenhum escravo para nos servir.

 

Meto, vai à cozinha chamar uma das raparigas disse eu.

 

Não vale a pena. Catilina ergueu-se e dirigiu-se à mesa onde Betesda deixara a garrafa de vinho de argila. Observei um patrício romano servir-se pessoalmente de vinho e senti um frémito de surpresa, mas Catilina regressou ao canapé e voltou a reclinar-se, como se estivesse totalmente inconsciente de ter feito uma coisa extraordinária.

 

É   uma produção tua? disse ele.

 

É do tempo de Lúcio Cláudio, que era o anterior proprietário da quinta. Julgo ser de um dos melhores anos.

 

Penso que tens razão. Tem um sabor escuro e rico, mas muito suave. Aquece a garganta e o estômago, mas sem ser irritante. Acho que te vou pedir uma garrafa antes de me ir embora.

 

Tencionas ficar muito tempo?

 

Apenas um dia ou dois, com a tua indulgência.

 

Pensei que as eleições consulares exigiam a tua presença em Roma.

 

A campanha está perfeitamente sob controlo disse ele. Mas, por favor, vim para aqui para escapar à política durante algum tempo. Falemos de outra coisa.

 

Meto pigarreou. Tongílio riu-se.

 

Julgo que prometeste uma história a este jovem.

 

Oh, sim, a lenda das Vestais disse Catilina.

 

Não precisas de falar no assunto, se preferires não o fazer disse eu.

 

O quê, e deixar que outros poluam a mente deste jovem com as suas próprias versões do caso? A única maneira de subvertermos as injúrias dos nossos inimigos é contarmos as histórias acerca de nós próprios antes de outros terem a possibilidade de o fazer. O que é que sabes acerca da lenda, Meto?

 

Não sabe nada respondi eu. Apenas a mencionei de passagem.

 

Mas sabe que eu fui acusado de ter dormido com uma Virgem Vestal.

 

E que foste ilibado disse eu.

 

Com a tua ajuda, Gordiano.

 

Até certo ponto.

 

O teu pai é um homem modesto disse Catilina a Meto. A modéstia é uma excelente virtude romana, embora me pareça que é mais louvada do que praticada.

 

Um pouco como a virgindade entre as Vestais? sugeriu Tongílio.

 

Silêncio, Tongílio. Gordiano não é um homem particularmente religioso, tanto quanto me lembro, mas a impiedade não é bem acolhida em sua casa. Nem é necessário manchar a virtude das Vestais ao contar a história, pois todos estavam inocentes, incluindo eu próprio. Ah, Meto, há muito que eu não encontrava uma pessoa que não soubesse ou pensasse saber tudo acerca do escândalo das Vestais. Esta é uma rara oportunidade para eu apresentar a minha própria versão da história.

 

Como fizeste em tribunal.

 

- Shiu, Tongílio! Não, não vou repetir tudo o que disse no tribunal, porque não há necessidade de divulgar todos os factos para contar a verdade. A privacidade e a dignidade das Vestais devem ser honradas. Contarei apenas aquilo que tem de ser contado.

 

Pigarreou e terminou o vinho.

 

Muito bem. O incidente ocorreu há dez anos, imediatamente antes da irupção da revolta dos escravos de Espártaco. Eu tinha feito amizade com uma certa Vestal chamada Fábia, que encontrava em corridas de carros, no teatro e em festas.

 

Pensei que as Vestais não tinham contacto com homens disse Meto.

 

Não é verdade embora, desde o escândalo de que estou a falar, a sua vida social e os seus aparecimentos em público tenham sido circunscritos para evitar a recorrência de episódios embaraçosos. Mas nessa altura as Vestais moviam-se com relativa liberdade pelo mundo, desde que andassem acompanhadas e se comportassem com dignidade. Elas fazem voto de castidade, não de isolamento.

 

”Certa noite, Fábia mandou-me chamar com urgência, pedindo-me que fosse ter com ela à Casa das Vestais, e dizendo-me que estavam em causa a sua vida e a sua honra. Bem, eu não podia recusar.

 

Mas não se pode entrar na Casa das Vestais depois de escurecer, sob pena de morte disse Meto.

 

Que melhor desculpa para desafiar a morte do que responder a uma convocatória desesperada de uma jovem e bela virgem? Já te disse que Fábia era muito bela? Muito bela... não era, Gordiano?

 

Suponho que sim, não me lembro.

 

Ha! O teu pai é tão reservado como modesto, Meto. Não acredito no que ele diz. Ninguém poderia esquecer o rosto de Fábia. Eu nunca o esqueci. Não faças caretas, Tongílio! Não tens nada de que ter ciúmes. As minhas relações com a rapariga foram puras e inocentes e acima de qualquer censura. Ah, vejo que Gordiano parece céptico. Também na altura se mostrou céptico, mas as suas dúvidas não o impediram de salvar Fábia, e a mim próprio, de um destino cruel. Mas estou a adiantar-me na história.

 

”Em resposta à convocatória, dirigi-me à Casa das Vestais. As portas estavam abertas, como sempre acontece; é a lei, e não as portas de madeira, que impede os homens de lá entrar à noite. Eu já estivera no quarto de Fábia, sempre acompanhado e durante o dia, claro, por isso não tive dificuldade em encontrá-lo. Ela ficou bastante surpreendida por me ver, porque afinal não me tinha mandado mensagem nenhuma! Era uma partida, pregada por um amigo duvidoso, pensei eu até que Fábia e eu fomos sobressaltados por um grito.

 

Um grito? disse Meto.

 

Vindo de trás de uma cortina. Depois percebemos que se tratava do grito de um homem moribundo. Eu afastei a cortina e vi-o no chão, contorcendo-se, com o pescoço cortado, e tendo ao lado uma faca ensanguentada. Toda a casa despertou. Antes de eu conseguir fugir, a própria Virgo Maxima entrou no quarto. Eu estava numa situação difícil.

 

Tongílio deu uma gargalhada.

 

Lúcio, tu tens um dom para atenuar as circunstâncias! Catilina ergueu uma sobrancelha. Era um gesto tipicamente patrício

 

mas que, em conjunção com a tira de barba e o cabelo em desalinho, deu ao seu rosto a aparência de sagacidade de um sátiro contemplando uma ovelha desprotegida.

 

A situação não era comprometedora tanto Fábia como eu estávamos completamente vestidos mas, apesar disso, eu encontrava-me em terreno proibido e, claro, havia a presença de um cadáver num lugar sagrado. Conheces o castigo previsto para esses crimes, Meto?

 

Meto abanou vigorosamente a cabeça.

 

Francamente, Gordiano, não cuidaste da educação deste rapaz. Não o delicias com histórias das tuas aventuras passadas, detendo-te nos pormenores sumarentos? Quando uma Vestal é considerada culpada de um namorico impróprio com um homem, Meto, o homem é morto por flagelação pública. É uma morte dolorosa e humilhante, mas não é o mais terrível dos destinos... afinal, a morte é a morte. Mas para a Vestal... oh, o seu destino é bem mais terrível.

 

Eu lancei um olhar a Meto, que contemplava Catilina, extasiado. Tongílio, que já devia ter ouvido aquela história muitas vezes, encontrou uma fonte de divertimento no fascínio de Meto.

 

Queres que te conte qual é o castigo de uma Vestal acusada de impiedade? disse Catilina.

 

Meto acenou com a cabeça.

 

Francamente, Catilina protestei eu o rapaz não vai dormir toda a noite.

 

Que disparate! Um jovem com a idade dele adora imagens de horror e depravação. Um rapaz de quinze anos até dorme melhor se tiverem acabado de lhe encher a cabeça de atrocidades.

 

Faço dezasseis anos para o mês que vem disse Meto, desejoso de nos recordar que era quase um homem.

 

Estás a ver? disse Catilina. Francamente, és um pai excessivamente protector, Gordiano. Pois muito bem; primeiro, a Vestal é despojada do diadema e do manto de linho. Em seguida, é chicoteada pelo Pontifex Maximus, o chefe da religião estatal, de quem todas as Vestais dependem directamente. Depois de ter sido chicoteada, a Vestal condenada é vestida como se fosse um cadáver, é colocada numa caixa fechada e é transportada através do Fórum, acompanhada pelos seus parentes enlutados, numa paródia horrenda do seu próprio funeral. É levada para um sítio perto da Porta Colina, onde foi preparada uma pequena cave contendo uma tocha, uma lamparina, uma mesa e alguma comida. Um executante ajuda-a a descer a escada e leva-a até à cela, mas não lhe faz mal, porque a sua pessoa continua a ser sagrada para a deusa Vesta e ninguém pode matá-la directamente. Depois a escada é retirada, a cave fechada e a terra alisada. Nenhum homem terá responsabilidades directas na sua morte, estás a perceber? E a deusa Vesta quem a reclama.

 

Queres dizer que ela é enterrada viva? disse Meto.

 

Exacto! Teoricamente, se o tribunal tiver cometido algum erro e a Vestal estiver inocente, a deusa Vesta recusar-se-á a tomar-lhe a vida e ela continuará viva no seu túmulo por tempo indefinido. Mas, dado que a cave é selada, a oportunidade de ela se redimir é um mero pormenor técnico. E certamente que Vesta preferirá apiedar-se da rapariga e extinguir-lhe a vida, quer ela seja inocente, quer não, do que deixá-la viver eternamente numa sepultura fria, solitária e miserável.

 

Meto considerou a ideia com repulsa assustada.

 

Felizmente disse Catilina não foi isso que aconteceu à encantadora Fábia. Está perfeitamente viva e continua a ser Vestal, embora eu não fale com ela há anos. Podemos agradecer ao teu pai por tê-la salvo. Francamente, Gordiano, nunca contaste esta história ao teu filho? Contar a verdade não é gabarolice. Mas se Gordiano é demasiadamente modesto, eu conto a história por ele.

 

”Onde ia eu? Ah, sim, estava na Casa das Vestais, a meio da noite, sozinho com Fábia e um cadáver recente. A Virgo Maxima, que foi quem nos descobriu, já estava implicada num escândalo e queria desesperadamente evitar outro. Mandou chamar o cunhado de Fábia, um jovem advogado em ascensão, famoso pela sua esperteza... Marco Túlio Cícero. Sim, o próprio cônsul, embora nessa altura ninguém pudesse prever o seu destino. Por sua vez, Cícero mandou chamar Gordiano. E foi Gordiano quem descobriu o assassino, que ainda estava escondido na Casa das Vestais, e que mais ninguém teria conseguido descobrir. A verdade é que ele tinha calculado mal a sua oportunidade de fugir e ficou preso no pátio quando os portões se fecharam. Estava escondido não vais acreditar na piscina, no meio dos lírios, e respirava por um junco oco. Foi o teu pai quem reparou que o junco andava de um lado para o outro. Gordiano meteu-se dentro da piscina e tirou de lá um homem, que fazia um grande alarido. O assassino sacou de um punhal. Eu saltei sobre ele. Momentos depois, o homem fora empalado com a sua própria lâmina. Mas, antes de morrer, confessou tudo nomeadamente, que o meu inimigo Clódio o tinha obrigado a organizar aquilo; a enviar-me o recado falso, atraindo-me para a Casa das Vestais, a seguir-me quando lá entrei e a matar o seu confederado, para que eu fosse descoberto, não apenas numa situação dúbia, mas com sangue nas mãos num lugar sagrado.

 

Mas houve um julgamento? disse Meto.

 

Mais ou menos. O assassino estava morto, por isso não era possível provar o que quer que fosse contra Clódio. Apesar disso, com o homem mais recatado de Roma a defender a sua honra estou a falar do jovem Marco Catão, claro Fábia foi ilibada, e eu também. Clódio caiu de tal maneira em desgraça que fugiu para Baias, à espera que o escândalo amainasse. Não teve de esperar muito tempo. Foi nesse ano que o gladiador Espártaco deu início ao grande levantamento de escravos e a pequena questão das Vestais foi rapidamente esquecida com o surgimento de eventos mais graves.

 

”Ai de mim, Meto, receio ter-te desiludido. O escândalo acabou por não ser escândalo nenhum, como vês, foi apenas um dispositivo concebido pelos meus inimigos para me desonrar, na melhor das hipóteses, ou para me levar à morte, na pior. Não posso gabar-me de ter sido o homem que desflorou impunemente uma Vestal, porque não fiz tal coisa. Limitei-me a ser ilibado de uma acusação muito badalada, graças ao auxílio de advogados espertos e de um homem ainda mais esperto que chamava a si próprio o Descobridor. E irónico, não é, Gordiano, que Cícero te tenha chamado para resolveres o mistério? Claro que era a meia-irmã da sua mulher, Fábia, quem ele queria salvar da ruína, e não eu. Apesar disso, naquela altura Cícero e eu não éramos inimigos.

 

Seguiu-se um longo silêncio. Tongílio começou a cabecear. Tal como Meto, apesar do seu entusiasmo pela história.

 

Os jovens precisam de dormir mais horas do que as pessoas mais velhas disse Catilina.

 

Exacto, para a cama, Meto.

 

Ele não se queixou, levantou-se e inclinou-se respeitosamente diante dos nossos convidados antes de sair da sala. Tongílio seguiu atrás dele pouco depois, retirando-se para o quarto que partilharia com Catilina.

 

Nós os dois deixámo-nos estar sentados em silêncio por momentos. A noite estava quente e calma. As lamparinas começavam a estalar e a afundar-se. Não havia luar, mas o céu estava pejado de estrelas brilhantes.

 

Então, Gordiano, fiz justiça à história e ao papel que tu desempenhaste?

 

Eu fiz uma longa pausa antes de falar. Olhei para as estrelas, em vez de olhar para Catilina.

 

Diria que apresentaste os factos com grande clareza.

 

Pareces pouco satisfeito.

 

Suponho que continuo a ter as minhas dúvidas sobre o assunto.

 

Dúvidas? Por favor, Gordiano, sê franco comigo.

 

Sempre me pareceu estranho que um homem gastasse tanto tempo e empregasse tantos esforços a cortejar uma jovem que jurou castidade, a não ser que tivesse outras motivações.

 

Mal-entendidos, uma vez mais... os deuses lançaram sobre mim uma maldição que faz com que o rosto que o mundo vê raramente seja o meu verdadeiro rosto, mas antes o seu oposto. Quando as minhas motivações são inteiramente puras, os outros homens duvidam de mim, e quando as minhas intenções se afastam do caminho da virtude, os outros homens juntam-se à minha volta entoando cantos de louvor.

 

Mas como é que Clódio sabia que tu reagirias à carta forjada de Flávia, a não ser que tivesse provas de que vocês eram mais do que amigos?

 

Outra ironia... é frequente os nossos inimigos serem os melhores e mais verdadeiros juizes do nosso carácter. Clódio sabe que eu sou um sentimental e que tenho um espírito aventureiro. Ele concebeu o engodo mais proibido que conseguiu imaginar e apresentou-mo. Se eu de facto fosse amante de Flávia, teria percebido que o recado era falso.

 

E recordo também que, no discurso que fez em defesa de Fábia, Catão insistiu repetidamente no facto de a Virgo Maxima vos ter encontrado completamente vestidos quando entrou de rompante no quarto da Vestal...

 

E não te esqueças de que o assassino disse o mesmo antes de expirar. Ele recebera instruções de Clódio para não matar o seu companheiro enquanto Fábia e eu não estivéssemos despidos, para que nos descobrissem nus. Mas, como ele próprio declarou, ”eles nunca mais tiravam a roupa!” Disse-o mais do que uma vez, não te lembras?

 

Lembro-me, e isso não deixou de me espantar; em primeiro lugar, por que havia Clódio de pensar que vocês se despiriam, e em segundo lugar ocorreu-me que, para terem relações, um homem e uma mulher não precisam de tirar a roupa, bastando que a disponham de outra maneira. Desviei os olhos das estrelas para Catilina, mas as lamparinas estavam quase apagadas, de maneira que os seus olhos estavam mergulhados na sombra e eu não consegui avistar-lhe o rosto. Os seus lábios parecia estarem curvados num sorriso, mas talvez tenha sido imaginação minha.

 

Francamente, Gordiano, és retorcido como um advogado. Ainda bem que foi aquele idiota do Clódio que falou contra mim no tribunal, e não tu, senão a defesa teria sido completamente desmantelada. Suspirou. Seja como for, tudo isso são histórias antigas, mortas como Espártaco, e não passam de uma lenda ligeiramente lúrida, capaz de fazer acelerar o pulso de um jovem como o teu filho.

 

Sim, e sobre Meto...

 

Estarei a detectar outra nota de insatisfação na tua voz, Gordiano?

 

Se vais ficar alojado em minha casa, preferia que respeitasses a minha autoridade como chefe desta família.

 

Ofendi-te de alguma maneira?

 

Mais do que uma vez lançaste dúvidas sobre a minha capacidade de avaliação do que diz respeito ao meu filho, e fizeste-o diante do próprio Meto. Percebo que a tua atitude é de ironia, Catilina, mas é provável que Meto leve os teus comentários a sério. Peço-te que evites ridicularizar-me, ainda que o faças sem maldade. Não gostaria que a minha autoridade fosse posta em causa.

 

Mantive um tom homogéneo e tentei falar sem uma paixão despropositada. Seguiu-se um longo silêncio. Percebi que Catilina voltara o rosto para as estrelas e tinha os maxilares cerrados. O facto de não me responder parecia indicar que estava irritado e a morder a língua. Se o tinha ofendido, não lamentava.

 

Depois riu-se. Foi uma gargalhada baixa e tranquila, suave e sem aspereza. O riso desvaneceu-se e, momentos depois, ele disse:

 

Gordiano... mas não, vais pensar que estou outra vez a ridicularizar-te. Ainda assim, tenho de o dizer. Como posso eu pôr em causa a tua autoridade junto do rapaz? Qualquer louco perceberia que ele te venera. Uma devoção desse género é como uma rocha, e as minhas zombarias são como pequenos seixos lançados contra ela. Apesar disso, peço desculpa e que me perdoes. Sou um hóspede nesta casa, estou aqui porque tu o consentiste, e comportei-me como se estivesse em minha casa, sem ter em consideração a tua sensibilidade. Foi indelicado da minha parte, e foi uma falta de sensatez. Não pretendi ofender-te. Estás a ver, falava a sério quando dizia que os homens se enganam sobre as minhas intenções. Se eu pudesse aprender a fazer o contrário do que tenciono, todos se sentiriam finalmente satisfeitos comigo.

 

Eu olhei para ele na escuridão, não sabendo se havia de me sentir encantado ou ofendido, se havia de me rir da sua graça ou de temê-lo.

 

Se eu desconfio de ti, Catilina, talvez seja porque tu falas por enigmas.

 

Os homens propõem enigmas quando não sabem propor soluções, Gordiano.

 

- És um cínico, Catilina.

 

Ele riu-se suavemente, desta vez com um toque de amargura.

 

Contra a insolúvel fealdade da vida, há homens que se refugiam no cinismo irreverente e outros numa segurança enfatuada. Qual destas atitudes é a de Cícero e qual é a minha? Não, não respondas. Deixou-se ficar em silêncio por momentos, e depois disse: Ouvi dizer que tiveste um desentendimento com Cícero.

 

Sempre tive as minhas divergências com ele. Não estou interessado em voltar a trabalhar para ele. Não era propriamente uma mentira.

 

Não és o único a sentir-se desiludido com o nosso cônsul. Durante anos, Cícero apresentou-se como o campeão das reformas, um homem ferozmente independente, um lutador contra o statu quo, o forasteiro de Arpinum. Mas, quando chegou a altura de se candidatar a cônsul, percebeu que eu já tinha na mão o eleitorado reformista, pelo que passou sem um segundo de hesitação para o outro campo, transformando-se numa marioneta dos elementos mais reaccionários de Roma. Foi uma transformação de fazer andar a cabeça à roda, mas ele alterou a sua retórica sem gaguejar, sem fazer uma pausa para respirar! Oh, os outros ficaram surpreendidos, mas eu percebi o que ia acontecer desde o primeiro dia da campanha. Um homem que faz o que quer que seja para ser eleito é um homem sem princípios, e Cícero é o pior deles. Todos os seus apoiantes que tinham alguma integridade incluindo Marco Célio o abandonaram, tal como ele os abandonou para se ir sentar ao colo da oligarquia. Aqueles que ficaram do lado de Cícero têm tantos princípios como ele. Limitam-se a virar-se para o poder como as flores se viram para a luz. Este último ano foi uma farsa...

 

Estive longe de Roma todo esse tempo.

 

Mas certamente que vais à cidade.

 

Não, não vou.

 

Não te censuro. Roma está cheia de víboras e, pior do que isso, transformou-se numa cidade sem esperança. Os oligarcas venceram. Lê-se a resignação no rosto das pessoas. Há um pequeno grupo de famílias que controla tudo e que fará seja o que for para não ter de partilhar a sua riqueza. Houve algumas hipóteses de reforma com a legislação de Rulo, mas naturalmente Cícero encarregou-se de fazer com que essas reformas se gorassem...

 

Por favor, Catilina! Certamente que Célio te disse que falar de política é para mim como um ferrão de uma abelha... começo a inchar e fico cheio de vergões quando sou exposto a isso.

 

Embora os seus olhos estivessem mergulhados na escuridão, percebi que Catilina me olhava com firmeza.

 

És um homem estranho, Gordiano. Convidas-me para tua casa, a mim, um candidato a cônsul, mas não suportas falar do destino de Roma.

 

Tu próprio disseste que vieste para aqui para escapar à política, Catilina.

 

Pois disse. Mas parece-me que não sou o único a propor enigmas nesta casa. Deixou-se estar sentado, imóvel, na escuridão, a observar-me.

 

Talvez Catilina tivesse tanta confiança em mim como que eu tinha nele, mas qual de nós tinha mais razões para ser desconfiado? Eu podia ter-lhe perguntado directamente o que sabia ele acerca do corpo sem cabeça que fora deixado no meu celeiro, mas se ele fosse o responsável dificilmente o teria admitido, e se nada soubesse acerca do assunto e mo declarasse, eu não acreditaria nele. Apesar disso, achei que podia apanhá-lo se dispusesse as minhas palavras em círculo à sua volta e depois puxasse com força.

 

O enigma que propuseste há bocado era fácil, Catilina. Mas eu ainda me sinto intrigado com aquele que Marco Célio me propôs quando veio visitar-me, o mês passado. Disse-me ele que tinhas sido tu a inventá-lo, por isso estou certo de que poderás dar-me a solução.

 

Que enigma era?

 

Foi-me apresentado assim: ”Vejo dois corpos. Um é magro e está enfraquecido, mas tem uma grande cabeça. O outro corpo é grande e forte mas não tem cabeça!”

 

Catilina não reagiu imediatamente. Pelo movimento das sombras na sua testa e à volta da sua boca, pensei que franzira o sobrolho.

 

Célio contou-te esse enigma?

 

Sim. As tentativas que fiz para a resolver provocaram-me alguma perturbação. Estava apenas a dizer a verdade.

 

É estranho que Célio to tenha contado.

 

Porquê? É um segredo? Pensei em encontros clandestinos, em mensagens codificadas, em juramentos selados por taças de sangue.

 

Não propriamente. Mas os enigmas têm tempos e lugares próprios e o tempo de propor esse enigma ainda não chegou. É estranho... Ergueu-se. Sinto-me subitamente muito cansado, Gordiano. O peso da viagem começa a impôr-se e acho que comi demasiado.

 

Eu também me levantei para lhe indicar o caminho, mas ele já ia a sair do pátio.

 

Não te incomodes a acordar-me amanhã disse ele por cima do ombro. Costumo levantar-me cedo. Estarei a pé antes dos escravos.

 

Momentos depois de ele ter partido, a última lamparina crepitou e apagou-se. Eu reclinei-me no meu canapé, no escuro, perguntando a mim próprio por que razão Catilina me não fornecera a resposta ao seu próprio enigma.

 

Mais tarde, já deitado ao lado de Betesda, acordei. A natureza chamava por mim.

 

Levantei-me. Não me preocupei em vestir a capa. A noite estava quente.

 

Saí para o corredor e dirigi-me à latrina. Lúcio Cláudio, que não era homem para poupar nos luxos, beneficiara a casa com uma canalização interior, como qualquer casa de cidade. O corredor era paralelo a um dos muros do pátio. Olhando por uma das janelinhas, apercebi-me de que havia uma forma escura reclinada sobre um dos canapés e tive um sobressalto.

 

Tratava-se de um corpo. Tive instantaneamente a certeza disso, embora pouco mais pudesse dizer, dada a luz sombria das estrelas. Senti um baque de medo, e a seguir um acesso de irritação pelo facto de ter de sentir esse género de baque na minha própria casa.

 

Depois o corpo agitou-se. Tratava-se de um homem vivo.

 

Voltou ligeiramente a cabeça e, à luz difusa das estrelas, discerni o perfil de Catilina. Estava sentado no canapé, com as mãos cruzadas em cima do estômago, em silêncio. Eu teria julgado que ele estava a dormir, se não tivesse os olhos abertos. Parecia perdido nos seus pensamentos.

 

Observei-o por algum tempo, depois prossegui silenciosamente o meu caminho. Entrei na latrina e fiz o que tinha a fazer tão silenciosamente quanto pude. Ao regressar ao quarto, parei e voltei a observá-lo. Não se tinha mexido.

 

Subitamente, ergueu-se do canapé. Pensei que me tivesse visto ou ouvido, mas ele não reparara em mim. Começou a andar silenciosamente pelo pátio, à volta da piscina, com os braços cruzados e a cabeça inclinada. Passado algum tempo, voltou a deixar-se cair no canapé e cobriu o rosto com uma mão, deixando cair a outra para o chão. A sua postura sugeria exaustão profunda ou desespero, mas dos seus lábios não saía o som de um homem que ressona nem de um homem que chora, nem sequer saía um suspiro, mas apenas a respiração compassada de um homem desperto. Catilina reflectia.

 

Voltei ao meu quarto e encostei-me a Betesda, que se agitou mas não acordou. Temi ficar a matutar e a afligir-me como Catilina, mas Morfeu chegou rapidamente e empurrou-me para os profundos recessos do sono e do esquecimento.

 

Na manhã seguinte, quando me levantei, esperava encontrar Catilina ainda na cama, apesar de ele ter afirmado que se levantaria cedo, mas quando olhei para o interior do quarto que ele partilhava com Tongílio vi duas camas vazias, com as coberturas cuidadosamente dobradas. Quando é que ele tinha dormido se é que tinha dormido de todo?

 

Talvez, pensei eu com um lampejo de esperança, ele se tivesse sentido inquieto e tivesse partido de vez. Mas uma das escravas da cozinha informou-me de que ele e Tongílio tinham tomado muito cedo um pequeno-almoço de pão e tâmaras, tendo saído em seguida e deixando dito que só regressariam à tarde.

 

Muito bem, pensei eu, quanto menos tiver de me ocupar dele, e quanto menos perturbações na rotina da quinta, melhor. Pelo menos, era bem-educado, como devia ser um verdadeiro patrício. Como convidado, poderia ter-se comportado muito pior.

 

Peguei em Arato e em Meto e fui para junto do ribeiro, a fim de prosseguir os cálculos para a construção do moinho de água. Durante algum tempo, entretido no trabalho, esqueci-me completamente de Catilina, mas depois comecei a ficar apreensivo. Partira com Tongílio, dissera ele, mas para onde e com que objectivo? Como meu convidado, tinha liberdade para andar por onde lhe apetecesse, no interior da quinta, mas eles tinham levado os cavalos, e a escrava da cozinha disse-me que os tinha visto dirigirem-se para a Via Cássia. Catilina dissera que estaria de volta ao princípio da tarde, e portanto não podia ter ido para longe; que género de negócios poderia ele ter por ali, e com quem? Não me agradava a ideia de ele usar a minha casa como base para os assuntos que tivesse de resolver naquela zona. Marco Célio não mencionara essa possibilidade, prometendo-me que Catilina me visitaria apenas para se retirar da cidade ou descansar quando fosse a caminho do norte. Pensei na possibilidade de pedir explicações a Catilina. Pareceu-me uma atitude razoável, mas a verdade é que não conseguia esquecer-me de Nemo.

 

Tentei afastar esses pensamentos do espírito e concentrar-me no trabalho que tinha entre mãos, mas estava distraído e a ficar cada vez mais irritado. O óbvio desinteresse de Meto também não ajudava. Eu esperara que o moinho de água o entusiasmasse, e uma das razões por que queria avançar com o projecto era para lhe dar uma lição prática de construção, mas ele não tinha cabeça para os números nem para a geometria e estava a ficar aborrecido e irrequieto com o facto de eu lhe pedir que segurasse em bocados de corda e desse uns passos numa direcção e depois noutra. Mais tarde, pediu-me que o dispensasse e o deixasse regressar a casa, dizendo que estava a ficar tonto por causa do calor, e eu acedi, embora suspeitasse de que ele se sentia mais entediado do que enfraquecido.

 

Eu também não tinha muito jeito para os instrumentos de medição e estava constantemente a dizer números errados a Arato, corrigindo-os em seguida. De cada vez que ele tinha de limpar a tabuinha de cera com as costas da mão, fazia-o com um gesto mais seco. Eu estava quase a repreendê-lo, mas depois vi-o fechar os olhos e usar o outro lado da mão para limpar o suor da testa. O Sol estava a pique. Talvez fosse apenas o calor que estava a pôr-nos os nervos em franja.

 

Ficamos por aqui, até ficar mais fresco disse-lhe eu. Arato acenou com a cabeça e juntou apressadamente os instrumentos, partindo em seguida em direcção à casa. Era óbvio que estava tão farto de mim como eu dele, e satisfeito por fazer uma pausa. Eu suspirei, perguntando a mim próprio se algum agricultor poderia ser bem sucedido dando-se tão mal com o seu encarregado. Por instantes, pensei se deveria substituir Arato, mas isso implicava demasiadas coisas e eu não queria estar a pensar em todas elas neste momento. Agarrei na minha taça de estanho e dirigi-me ao ribeiro para a encher de água fresca. Bebi devagar, depois enchi-a novamente e deitei a água sobre o rosto. Ia ser um dia intoleravelmente quente.

 

Ouvi um barulho, voltei-me e vi Meto emergir de trás de um carvalho. Pelo sorriso que trazia no rosto, a folga na geometria tinha-o animado consideravelmente. Depois vi o homem que o seguia e tive um sobressalto, pensando que aparecera na quinta mais um forasteiro. Olhei-o fixamente, intrigado, e depois percebi o que tinha mudado.

 

A tua barba, Catilina!

 

Ele estendeu a mão e deu umas pancadinhas no maxilar nu, rindo suavemente.

 

Não te importas de partilhar a tua taça? Só de vir a pé desde os estábulos, já estou cheio de sede.

 

Eu estendi-lhe a taça. Enquanto ele se ajoelhava ao lado do ribeiro, eu sentei-me numa rocha grande e lisa, à sombra. Ele bebeu a água e depois sentou-se na rocha, ao meu lado. Meto tirou as sandálias e foi patinhar nas águas baixas para refrescar os pés.

 

Tongílio barbeou-me esta manhã disse Catilina, voltando a dar uma pancadinha no maxilar. Não foi um mau trabalho, considerando que a luz era fraca.

 

Barbeou-te antes de saírem?

 

Ele acenou com a cabeça. Quando teria ele dormido?

 

Mas ficavas com um aspecto tão distinto, Catilina. A minha intenção era ser irónico, considerando que vira a mesma barba em todos os visitantes recentes da cidade.

 

O primeiro a adoptar esta moda deve ser o primeiro a abandonar disse Catilina suavemente.

 

Os eleitores vão pensar que és volúvel e frívolo.

 

Os eleitores que me conhecem sabem que não é assim. Os eleitores que me desprezam gostariam de pensar que eu posso mudar, e portanto devem sentir-se consolados, ou pelo menos desarmados. E não estou preocupado com a possibilidade de alguém, seja amigo ou inimigo, me considerar frívolo. Franziu as sobrancelhas por momentos, depois ergueu o queixo e olhou de viés para o brilhante e frondoso dossel que nos cobria. A culpa é desta viagem ao campo. É como um mergulho em água fria. Um novo ambiente dá inspiração a um homem para adoptar uma cara nova. Sinto-me dez anos mais novo e a milhares de quilómetros de Roma. Devias experimentar, Gordiano.

 

Mudar-me para uma distância de mil quilómetros de Roma?

 

Não riu-se ele cortar a barba. Meto chapinhava no ribeiro e não estava a prestar atenção à nossa conversa. Apesar disso, Catilina inclinou-se na minha direcção e baixou a voz. As mulheres gostam que um homem deixe crescer a barba, ou que a rape. É a mudança que as excita, compreendes? Imagina a reacção de Betesda se lhe aparecesses subitamente na cama com a cara limpa. Estás a ver, estás a sorrir. Sabes que eu tenho razão.

 

Sorri de facto, e cheguei mesmo a rir um pouco, pela primeira vez nesse dia. Apercebi-me com surpresa de que subitamente me sentia à vontade. Disse a mim próprio que a mudança na minha disposição se devia à frescura da sombra e à água que corria, ao intervalo no olhar carrancudo de Arato e à visão de Meto deliciando-se no ribeiro. Que nada tinha a ver com o sorriso de Catilina.

 

Meto saiu do ribeiro e juntou-se a nós. Apoiou-se, ora numa perna, ora noutra, para secar os pés, calçando as sandálias em seguida. Com o ribeiro por trás dele e a luz do Sol incidindo no cabelo que lhe caía sobre o rosto, parecia uma daquelas estátuas de jovens sem ponta de constrangimento que os Gregos tanto admiram. Era impossível, pensei eu, que fosse quase um homem. Ainda era demasiadamente belo, demasiadamente infantil. Dado que eu próprio crescera sem o benefício da beleza, nunca tinha bem a certeza se a sua seria benéfica ou prejudicial. Certamente que havia homens, como Pompeu, já para não falar de Catilina, que tinham utilizado a sua beleza para promover as suas carreiras; Marco Célio pertencia à mesma classe. Por outro lado, Cícero era uma prova de que a falta de beleza não era uma desvantagem. E, para um homem sem grandes meios nem grandes ambições, como para uma mulher na mesma situação, a beleza tanto podia ser uma desvantagem como uma bênção, atraindo patronos inconvenientes e levando um jovem a confiar demasiadamente no seu encanto. Quem me dera que Meto tivesse um lado mais sério e um pouco mais de bom senso.

 

Meto acabou de apertar as sandálias e sentou-se ao meu lado. O seu sorriso era tão aberto e sincero que eu me senti um tolo por me preocupar com ele. A luz quente do sol atravessava o dossel frondoso em certos pontos e incidia-me na pele. Uma brisa agitava ligeiramente a erva da margem do ribeiro. O mundo estava em silêncio, à excepção do ruído da água, do canto dos pássaros e do suave e longínquo balido de uma cabra, que ecoou na encosta da colina. Meto estava tão bem equipado para encontrar o seu caminho no mundo como eu próprio estivera, se não mais. Que portas não teria eu aberto com a sua beleza e o seu encanto, e que importava que ele não tivesse cabeça para fazer somas? Suspirei. Não haveria nada que fosse tão simples que eu não conseguisse arranjar desculpas para me preocupar?

 

Então? disse Meto, olhando para mim na expectativa.

 

Então o quê?

 

Catilina recuou um pouco, apertando os lábios.

 

Suspeito que o teu filho pensa que nós temos estado a discutir outro assunto. É que, no estábulo, eu disse-lhe que se tu não pusesses objecções...

 

A mina, Papá, aquela mina de prata abandonada no alto do monte Argênteo disse Meto, subitamente excitado.

 

De que é que vocês estão a falar? Eu olhava de um para o outro.

 

Catilina pigarreou.

 

Ontem, quando vínhamos pela Via Cássia, apercebi-me do caminho que há na encosta da montanha, para leste. Mais tarde, interroguei o teu encarregado. Arato disse-me que a montanha pertence ao teu vizinho e que o caminho vai dar a uma velha mina de prata. Esta manhã, Tongílio e eu fomos até lá dar uma vista de olhos. É que eu tenho um amigo na cidade que acha que descobriu uma maneira de extrair minério de minas que as pessoas consideram exauridas. Anda sempre à procura de oportunidades dessas.

 

E viste a mina?

 

Só vi a casa dos cabreiros, que não fica longe da estrada. Passámos uma hora muito agradável a conversar com o chefe dos cabreiros, que parece estar encarregado do lugar. Tinha todo o gosto em nos mostrar a mina, mas pediu-nos que voltássemos mais tarde, depois do pico do calor. Aparentemente, o caminho é muito duro. Tongílio e eu estávamos a falar sobre isso quando voltámos a pôr os cavalos no estábulo, e Meto ouviu-nos. Pediu-nos para ir connosco; a ideia não foi minha. Eu disse-lhe que ele teria de te pedir autorização.

 

Posso, Papá? disse Meto.

 

Meto, sabes como estão as coisas entre Gneu Cláudio e eu. Está fora de questão que vás explorar a sua propriedade.

 

Ah, sim, Gneu Cláudio, o dono da propriedade disse Catilina. Mas por causa disso não há problema, porque Gneu não está cá. O cabreiro diz que ele partiu para o Norte para ir observar outra propriedade, um lugar mais adequado à agricultura. Parece que ele está interessado em alugar ou em vender esta propriedade, porque acha que a mina não vale nada e não gosta de cabras. O que ele quer é uma quinta, por isso a montanha está disponível. E o cabreiro tem todo o gosto em ma mostrar. Estou certo de que não poria objecções se Meto viesse connosco.

 

E o cabreiro sabe quem vocês são? Catilina ergueu uma sobrancelha.

 

Não propriamente. Eu apresentei Tongílio e apresentei-me como Lúcio Sérgio. Afinal, há vários Lúcios Sérgios...

 

Embora não haja muitos com o apelido de Catilina.

 

Julgo que não.

 

E só há um com o apelido Catilina que também use uma barba de tira.

 

E já nem esse existe disse Catilina, dando uma palmadinha no queixo. Muito bem, Gordiano, não fui completamente honesto com o homem, mas afinal é apenas um escravo. Certamente não te surpreende que eu deseje andar incógnito aqui no campo. Marco Célio não te disse que eu prefiro o anonimato enquanto aqui estou? Julgo que tu próprio preferes que assim seja.

 

Os meus vizinhos não são teus apoiantes, Catilina. Pelo contrário. Na verdade, duvido muito de que Gneu Cláudio negociasse contigo se soubesse quem tu és, por isso estarás a perder o teu tempo com a visita à mina.

 

Ora, Gordiano, não é preciso gostar de um homem para se ter relações comerciais com ele; é para isso que servem os advogados. Além disso, não serei eu a fazer uma oferta à sua propriedade. Não tenho absolutamente dinheiro nenhum, apenas dívidas. Estou interessado na mina para o meu amigo e será Tongílio a fazer o negócio. Mas agora a sério, Gordiano, estamos a andar demasiadamente depressa. O que está em causa é muito simples. Tenciono ir dar uma vista de olhos à velha mina e Meto gostaria muito de vir comigo. Disse-me ele que nunca viu uma mina. Eu sei que a sua formação é uma questão vital para ti e, a não ser que sejam incrivelmente ricos ou escravos miseráveis, quantos homens têm oportunidade de conhecer um local como aquele? Será uma experiência enriquecedora.

 

Eu pensei no assunto, sombriamente. Meto sorria para mim, na expectativa, e depois franziu o sobrolho. Tê-lo-ia eu mimado tão desavergonhadamente, que ele tentasse seduzir o seu próprio pai para fazê-lo mudar de opinião? Que género de pai romano era eu? A pergunta fez-me arrepiar, mas apenas por um momento. Eu era um pai romano tão atípico como atípica era a minha família romana. A convenção e a piedade eram um vestuário que servia aos outros homens, mas ao qual eu nunca me adaptara. Suspirei e abanei a cabeça e estava a ponto de ceder quando a visão de Nemo se avultou diante de mim.

 

Está fora de questão disse eu.

 

Mas, Papá...

 

Meto, sabes perfeitamente que não deves contradizer-me, especialmente diante de um convidado.

 

O teu pai tem razão disse Catilina. É a sua decisão que conta. Eu é que tenho a culpa, por não ter ponderado cuidadosamente o assunto e não ter apresentado adequadamente a questão. O que eu devia ter dito era: Gostarias de me acompanhar, Gordiano, e de trazer o teu filho contigo?

 

Eu abri imediatamente a boca para responder, mas tive a intuição de que, por muito energicamente que objectasse e por muitos argumentos que apresentasse, a minha resposta seria sempre a mesma, por isso de que valia gastar saliva? Fechei a boca, pensei por um momento e, sentindo os olhos de Meto pousados sobre mim, disse apenas:

 

- Por que não?

 

Um homem da minha idade torna-se naturalmente cauteloso e sóbrio, disse eu a mim próprio, mas até as virtudes podem transformar-se em vícios quando são vividas com demasiada rigidez. Ocasionalmente, um homem deve tomar atitudes inesperadas, imprevistas, despropositadas. E assim, já mais para o fim dessa mesma tarde, depois de o calor ter começado a passar, dei por mim subindo a cavalo a Via Cássia até ao portão que dava entrada na propriedade do meu vizinho Gneu Cláudio. O portão era uma coisa simples, que se destinava apenas a impedir que as cabras saíssem para a estrada. Tongílio desmontou, correu a lingueta e abriu-o para trás.

 

Tu nem sequer precisas de te apresentar disse-me Catilina quando entrámos no caminho irregular que ficava para lá do portão. Eu direi apenas que estás comigo. O cabreiro ficará satisfeito.

 

Talvez disse eu. Apesar disso, parece-me muito pouco honesto ir espiar em terras de Cláudios sem me fazer anunciar.

 

Eles fariam a mesma coisa disse Catilina simplesmente. Já alguém o tinha feito, pensei eu, recordando-me de Nemo.

 

As encostas do monte Argênteo avolumaram-se subitamente diante de nós. O caminho tornou-se progressivamente mais inclinado, a terra mais rochosa e as árvores mais densas, até que nos encontrámos no meio de uma floresta, semeada aqui e ali de seixos. Pequenos animais agitavam-se por baixo dos arbustos, perturbados com a nossa passagem, mas não vimos ninguém. Depois de uma curva do caminho, na crista de uma aresta escarpada, chegámos à casa dos cabreiros.

 

Era uma casa rústica, de pedras talhadas e com um telhado de colmo sem ornamentos. O interior era constituído por um único compartimento, partilhado, se o meu nariz me não enganava, por todos os cabreiros, dez ou mais, a julgar pelos cobertores empilhados contra as paredes nos sítios onde eles dormiam. Estavam todos ausentes, à excepção do chefe, reclinado num canapé com as pernas estaladas e as almofadas coçadas. O canapé era de estilo e fabrico gregos, finamente talhado, mas demasiadamente gasto para valer o restauro. Pertencia àquele género de objectos dispendiosos que os senhores dão aos escravos quando a sua beleza desaparece, mas continuam a ser úteis. O cabreiro parecia muito satisfeito com ele. Ressonava suavemente e enxotou uma mosca do nariz. Catilina acordou-o abanando-lhe suavemente o ombro. O homem pestanejou para afastar o sono e sentou-se. Estendeu a mão para um odre de vinho, tomou um grande golo, e pigarreou.

 

Então sempre voltaste, Lúcio Sérgio disse ele. Só para veres um velho buraco no chão. Não há muito que ver, como já te disse. Ainda assim, por três sestércios... Ele ergueu os olhos para Catilina e inclinou a cabeça.

 

Julgo recordar-me de que te prometi dois sestércios disse Catilina. Mas tanto faz. Receberás o teu dinheiro.

 

E quem são estes? O cabreiro deu uma pancadinha no queixo grisalho e olhou de lado para as nossas silhuetas, recortadas na porta. Conheci o teu amigo Tongílio hoje de manhã, mas não conheci aquele homem, nem o rapaz que está por trás dele.

 

São meus amigos disse Catilina. Moveu-se por forma a fazer ressoar a bolsinha para as moedas que tinha dentro da túnica.

 

Oh, os teus amigos meus amigos são! disse o cabreiro cordialmente. Ergueu o odre de vinho e bebeu um longo golo, depois levantou-se e limpou a boca. Bem, de que estamos à espera? Deixem-me ir buscar a minha mula, e podemos partir.

 

O nome do cabreiro era Fórfex, imagino que por causa da sua destreza na tosquia do seu rebanho. Tinha o cabelo e a barba grisalhos e a pele castanha e dura como couro velho. Apesar da sua idade, movia-se com a agilidade nervosa de um escravo que viveu toda a sua vida em colinas rochosas e aprendeu a caminhar com tanta firmeza como as cabras que tem ao seu cuidado. Pareceu-me ser um tipo naturalmente alegre, que ia murmurando uma cantiga sentado em cima da sua mulazita. As moedas que tinha na saca e o vinho que tinha no estômago tornavam-no especialmente bem-disposto.

 

O caminho passava primeiro por um alto dossel de árvores que cresciam ao longo do leito fundo e escarpado de um ribeiro, do nosso lado esquerdo. O ribeiro estava seco, ou quase; aqui e ali, por entre os seixos, viam-se pequenas poças de água estagnada. Avançámos para sul, e pouco depois chegámos a um cruzamento onde uma pontezinha atravessava a ravina, conduzindo à casa principal. Por entre as árvores e as rochas, captei vislumbres de uma estrutura rústica com dois andares, encostada à vertente escarpada. A casa estava rodeada de galinhas e de cães. Os cães, sentindo o nosso cheiro do outro lado da ravina, levantaram-se e começaram a ladrar. Os mais enérgicos andavam de um lado para o outro, erguendo nuvens de pó e levando as galinhas a bater as asas e a cacarejar. Fórfex gritou aos cães que se calassem. Para minha surpresa, eles obedeceram.

 

Prosseguimos pela estrada sem atravessar a ponte, deixando a casa para trás de nós. O caminho era cada vez mais íngreme e a floresta cada vez mais densa. Finalmente, chegámos àquilo que parecia ser um beco sem saída. Só quando entrámos na pequena clareira é que eu descobri a passagem estreita que voltava para a esquerda, passando sob um caramanchão de ramos baixos.

 

Temos de desmontar aqui disse Fórfex.

 

Este é o caminho que vai dar à mina? perguntou Catilina.

 

É.

 

Mas como é que o caminho pode ser tão estreito? Com certeza que a certa altura haveria aqui muito tráfego de homens e de animais de carga.

 

A certa altura sim, mas não durou muito tempo disse Fórfex. Isto já foi quase uma estrada, suficientemente larga para dois homens caminharem a par. Mas, quando a mina deixou de dar, já não havia razões para usar o caminho, excepto para levar as cabras a pastar. Quando um caminho deixa de ser usado, é isto que acontece a vegetação toma conta dele. Continua a ser transitável, mas não a cavalo. Têm de desmontar e de deixar aqui os cavalos.

 

Enquanto prendia as rédeas a um ramo, reparei noutro caminho que entrava pelos bosques. Estava ainda mais coberto de vegetação, de tal maneira que seria fácil não reparar nele. Olhei com atenção para os arbustos sombrios, tentando ver onde iriam dar, e depois apercebi-me de que Catilina estava atrás de mim, olhando por cima do meu ombro.

 

Outro carreiro disse-me ele em voz baixa. Onde é que achas que vai dar? Depois chamou Fórfex. Isto é outro caminho?

 

O velho cabreiro acenou com a cabeça.

 

Era. Que eu saiba, já ninguém o usa, excepto talvez para ir à procura de uma cria perdida.

 

Onde é que vai dar?

 

À Via Cássia, tanto quanto me recordo. Sim, desce praticamente a direito, em direcção a sul e a oeste. Ia dar à estrada, junto ao portão da quinta de Cláudia. Assim, podia-se mandar um escravo da casa de Cláudia até esta clareira e depois até às minas sem ter de ir até lá cima, como vocês fizeram, e entrar pelo portão principal. Mas o caminho não é limpo há anos e anos. Tanto quanto sei, está bloqueado por ramos caídos e por pedras; no Inverno, costuma haver tempestades fortes aqui na montanha, que derrubam árvores e fazem deslizar terras. São necessários muitos escravos para manter limpos os caminhos.

 

Quer dizer que se passa por este caminho quando se vem de Roma, antes de se chegar à entrada principal? disse Catilina.

 

Oh, com certeza. Eu diria que também foi construído por outra razão, para que os escravos comprados no mercado da cidade pudessem ser levados para a mina o mais directamente possível. Trata-se de um caminho muito inclinado, como vês, e muito irregular recordo-me de o ter subido uma vez quando era novo. E uma estrada feita para escravos de minas, é demasiadamente íngreme para os cavalos; ninguém a tomaria voluntariamente havendo outro caminho mais fácil. Mas, como vos disse, há muitos anos que não é usada. Duvido que, hoje em dia, se consiga ver bem o sítio de onde sai da Via Cássia.

 

Catilina acenou com a cabeça. Fórfex voltou-se, para tratar da sua mula. Pareceu-me ouvir Catilina murmurar: Óptimo, ainda bem.

 

Prosseguimos a pé. O caminho estreito era tão íngreme que em alguns pontos as pedras tinham sido cortadas, formando degraus. Dentro dos bosques, o ar era parado e quente, mas pelo menos a sombra proporcionava protecção contra o Sol inclinado. Eu arfava, esforçando-me por manter o passo. Meto parecia não sofrer com o calor e a inclinação do terreno; corria à frente do grupo, voltava para trás e corria novamente para diante. Tongílio também não mostrava qualquer desconforto. Mas eles eram ambos jovens, pensei eu, enquanto Catilina era quase da minha idade. Contudo, ele não parecia estar a sofrer. Apanhou numa pernada de árvore para usá-la como bengala, cantava baixinho uma marcha e mantinha um ritmo constante. Onde é que ele ia buscar tanta energia, especialmente depois de ter dormido tão poucas horas?

 

Enquanto avançávamos pelo caminho principal, tínhamo-nos afastado do ribeiro, que ficara para a nossa esquerda, mas agora parecia estarmos novamente a convergir com ele, porque eu comecei a ouvir o som da água a correr. Se subíssemos muito mais, teríamos de voltar a atravessar o ribeiro. Perguntei a mim próprio em que estado estaria a ponte. Dada a condição geral do carreiro, temi que não fosse mais do que uma corda enrolada à volta de troncos de árvores nas margens opostas. O som da água gotejante tornou-se mais forte e mais insistente.

 

Mas não havia ponte nenhuma. Em vez disso, deparámos com uma escadaria vertical de rocha, com cerca de trinta ou quarenta degraus recortados na pedra sólida. Meto foi o primeiro a trepar, subindo os degraus com a segurança de uma cabra. Tongílio seguiu-o, e atrás dele foi Catilina, colocando a sua bengala nas rachas entre cada degrau e erguendo-se apoiado nela. O nosso guia, sem fôlego, permitiu-me que eu o ultrapassasse. Na altura em que chegámos ao topo, o meu coração batia com toda a força e eu tinha a testa coberta de suor.

 

Os degraus iam dar a uma clareira, no alto de uma grande queda de água. Aqui, o ribeiro corria sobre um leito de rocha amplo e liso, talhado com arroios semelhantes a dedos. Quase não molhámos as sandálias ao atravessar para o outro lado. Com as mãos em concha, tirei água do ribeiro para refrescar o rosto e os lábios, enquanto Meto corria até à beira do precipício, onde a água se acumulava num lábio de rocha, antes de cair. Passou pelo meio de pedras cobertas de um musgo traiçoeiro e espreitou por cima do abismo. Parecia tão franzino, ali recortado contra o céu vazio, que eu imaginei que um sopro de ar poderia lançá-lo pela borda. Fui atrás dele e agarrei-lhe a túnica.

 

Mas, Papá, olha!

 

Os cumes das árvores mais altas abanavam diante de nós. À nossa direita, erguia-se a encosta da montanha, mas para norte a vista era aberta. Via-se a Via Cássia desaparecendo no horizonte poeirento, com as pedras do pavimento a brilhar como uma fita branca. Ao longe, para oeste, o Sol era um globo vermelho que pairava sobre os campos escuros. As árvores altas impediam-me de ver a minha quinta, mas consegui avistar distintamente a cumeeira onde por vezes me sentava a conversar com Cláudia.

 

Sim disse eu é uma paisagem linda.

 

Não, Papá, na base da cascata!

 

O lábio de rocha não permitia olhar para baixo sem a pessoa se inclinar por cima da borda. Avancei cautelosamente e espreitei para baixo. As alturas nunca me incomodaram especialmente, mas a queda abrupta fez-me suster a respiração. A cascata terminava cerca de nove metros mais abaixo, onde o fio de água se derramava num lago pouco profundo, coberto de espuma verde. O lago era contornado por seixos recortados, e os seixos por árvores altas, com raízes espessas cobertas de casca, que se enrolavam à volta dos seixos e desapareciam dentro de água. Mas não foram as pedras nem as árvores que me causaram arrepios. Foram os esqueletos.

 

Alguns estavam em pedaços, espalhados por entre as rochas uma armação de costelas estilhaçadas aqui, um crânio partido ali, e mais adiante um osso de perna ou um bocado de coluna vertebral. Outros estavam praticamente intactos, e eram imediatamente reconhecíveis como restos de um corpo inteiro, como se um homem tivesse sido lançado para as rochas e depois destruído pelos deuses, até restarem apenas os seus ossos. Não era possível contar todos os ossos espalhados por entre as raízes e as pedras.

 

Tendo finalmente chegado ao topo das escadas, Fórfex dirigiu-se a nós, arquejando e soprando. Debruçou-se sobre a cascata a fim de ver para onde estávamos nós a olhar.

 

Oh, sim disse ele. Hão-de ver muitos mais como esses antes de terminarmos.

 

O que queres dizer?

 

Muitos mais ossos.

 

Ossos de homens?

 

Quem é que o dono de uma mina usa para trabalhar nos poços? Ele encolheu os ombros. Suponho que também vereis uns restos de cabras aqui e ali, mas em geral as cabras têm passos mais seguros e se uma delas cair e partir o pescoço, vamos atrás dela e trazemos a carcaça para comer, não é? Mas não vale muito a pena ir atrás do corpo de um escravo morto, pois não? Vocês ainda partem o pescoço andando por aí de rocha em rocha, e acabam como eles riu-se ele. Desarrolhou o odre de vinho que lançara por cima do ombro e sugou no gargalo.

 

Queres dizer que todos estes homens caíram? Ele encolheu os ombros.

 

Alguns, provavelmente sim. Os homens vêm das minas com grandes cargas de prata, descem a colina, chegam aqui e têm de atravessar a água... que é mais alta do que isto a maior parte do ano. Estás a ver como é fácil tropeçarem e perderem o equilíbrio. E depois, evidentemente, este ribeiro corre por toda a encosta, para além daquele trilho. Um homem cai pela encosta, parte o pescoço, os abutres apanham-no primeiro, mas depois é arrastado pelas chuvas. Alguns anos mais tarde, depois de uma grande tempestade, o seu crânio é apanhado pelas águas e lançado por cima da cascata. Voltou a rir-se.

 

Olhei para o seu rosto de couro coberto de cicatrizes. Faltavam-lhe pelo menos metade dos dentes. Não era de espantar que fosse capaz de se rir perante uma imagem como esta. O próprio Fórfex era um escravo, que estava à mercê do seu senhor e não tinha maneira de escapar ao seu destino. Para um homem assim, as desventuras de outro escravo mais não são do que uma medida da sua boa fortuna.

 

Alguns deles foram empurrados, claro disse ele.

 

Deliberadamente?

 

Ele imitou um empurrão, abrindo as palmas das mãos contra um fantasma invisível postado na borda do penhasco.

 

Assassinados? disse eu.

 

Executados. Lembro-me de assistir a isso certa vez, quando era muito novo e vim para aqui com o meu rebanho, por acaso. Foi nos tempos em que o avô do jovem senhor Gneu ainda era vivo e exploravaa mina, mesmo antes de ela ter sido definitivamente fechada. Era a maneira que ele tinha de castigar os desordeiros, estás a minas são geralmente assassinos e ladrões, não são? São a escumalha da terra, não têm nada a perder... as minas são a sua sentença de morte, toda a gente sabe. Por isso, o senhor tem de ter mão pesada, para os manter na linha. Os chicotes e as algemas têm um alcance limitado. Os mais selvagens, pura e simplesmente não se comportam bem, e os preguiçosos não estão dispostos a carregar os fardos. Por isso, o velho senhor dava-lhes castigos públicos. Os capatazes alinhavam os desordeiros aqui mesmo e empurravam-nos por cima da borda, enquanto os outros assistiam. Era uma espécie de exemplo, para mostrar aos restantes que as coisas podiam ser muito piores se eles não fizessem o que lhes diziam.

 

Bebeu outro golo de vinho e abanou a cabeça.

 

E depois, já para o fim da vida, o velho senhor enlouqueceu um bocado. É de família, sabes? A mina estava esgotada, mas ele continuava a culpar os escravos por não cavarem o suficiente. Do que ele precisava era de um feiticeiro que pudesse transformar em prata rochas sem valor e não de um bando de escravos de costas quebradas. Mas eram os escravos que tinham a culpa, e os castigos eram cada vez mais frequentes, até se transformarem num evento regular. Nos últimos anos, muitos escravos foram empurrados por cima desta borda. Depois, o velho senhor adoeceu. A mina acabou por ser fechada. Bem, graças aos deuses que eu nasci para cabreiro e não para mineiro, eh?

 

Ficámos por ali durante momentos, olhando para baixo, para os ossos espalhados. Fórfex voltou-se para se ir embora, mas Meto agarrou-lhe na manga.

 

E as lémures?

 

O velho escravo libertou a manga com um safanão.

 

O que é que têm?

 

Os espíritos dos mortos... com tantos corpos por purificar, nem queimados nem enterrados, certamente que as suas lémures nunca repousaram. Devem andar por aqui, à nossa volta.

 

Claro que andam. Mas eles eram escravos em vida, rebentados e fracos. Por que haveriam de ser mais poderosos na morte?

 

Mas em vida foram assassinos e...

 

Tu és um cidadão, rapazinho, e além disso és esperto e forte. Não tens nada a temer de lémures cansadas e rebentadas de escravos mortos.

 

Além disso, ainda é dia. À noite é que elas se mostram, erguendo-se da terra como nevoeiro. Vêm até aqui e brincam com os seus velhos ossos, atirando os crâneos umas às outras como bolas e utilizando os ossos dos dedos como dados.

 

Já as viste? disse Meto.

 

Bem, eu nunca vi. Um dos outros cabreiros, que é louco e não consegue dormir, às vezes vem até aqui e faz companhia às lémures, pelo menos é o que ele diz. Oh, não, ninguém me apanha a andar pela montanha depois de escurecer. Olhou de lado para o Sol descendente. Vamos rapidamente até à mina, que foi para isso que viemos.

 

Para além da queda de água, o caminho tornava-se ainda mais árduo. O trilho afastava-se das árvores, entrando numa ladeira nua e rochosa, sem sombras. Como Fórfex dissera, avistavam-se na vertente, aqui e ali, ossos humanos, como se estivéssemos a atravessar um antigo campo de batalha. O caminho estreito fazia uma série de curvas, como uma cobra. E assim continuámos a subir, até cada passo se transformar numa luta mais árdua que o anterior. No pico do calor, esta viagem seria suficiente para rebentar com o coração de um homem.

 

Fomos recompensados com uma vista verdadeiramente espectacular, ao lado da qual a vista que eu tanto apreciava da minha cumeeira perdia o interesse. Lá ao fundo, avistei a minha quinta, estendida como um quadro, rodeada pelas quintas de Cláudia e dos seus primos, e pelas quintas, as colinas e as florestas que há para além delas. A cumeeira que separava as minhas terras das de Cláudia parecia muito pequena, como a dobra de uma manta. O ribeiro que passava entre a minha terra e a terra de Públio era uma estreita fita verde, com reflexos de prata aqui e ali, nos pontos em que a água surgia por entre as densas árvores. A Via Cássia estendia-se para fora de vista, para norte e para sul. Ocorreu-me que, tal como nós podíamos ver todos estes locais, também podíamos ser vistos por qualquer pessoa que tivesse uma vista apurada.

 

Atravessámos um ângulo descoberto da montanha e mergulhámos num côncavo, finalmente resguardados do sol e invisíveis a qualquer habitante do mundo lá em baixo. À nossa volta cresciam árvores nodosas, e pedras caídas bloqueavam a passagem. O caminho avançava cada vez mais para o interior do côncavo, para o coração das montanhas. Finalmente, contornámos uma pedra e avistámos a abertura do poço negro da mina.

 

A entrada era mais pequena do que eu esperava, pouco mais alta que um homem e tão estreita que não poderiam passar por ela mais do que dois homens ao mesmo tempo. O andaime que a rodeara estava em ruínas e havia bocados de madeira partida espalhados por ali. Viam-se picaretas enferrujadas, cinzéis e martelos espalhados pelo chão, juntamente com algemas abandonadas. Aqui e ali, cresciam flores por entre as cadeias enferrujadas.

 

Atrás de nós, o terreno caía abruptamente na direcção do ribeiro que ziguezagueava ao fundo. Ao longo da ladeira rugosa estava espalhada uma enorme quantidade de ossos, misturados com a escória da mina, formando um talude de pedras e ossos esmagados. Mesmo aqui, tinham sido preservados esqueletos completos, e os crânios olhavam espantados de fendas entalhadas na rocha.

 

Já viste uma mina a operar? perguntou Catilina, tão perto de mim que eu dei um salto.

 

Não.

 

Eu já. A luz era suave e seu rosto sombrio, sem a sugestão de um sorriso. Ninguém pode compreender verdadeiramente o valor de um metal precioso enquanto não tiver visto o seu valor real na fonte, a agonia e a morte que são necessárias para extraí-lo da terra. Diz-me, Gordiano, quando é que o peso de cem homens é inferior a quinhentas gramas?

 

Oh, Catilina, outro enigma não...

 

Quando eles são despidos da sua carne e o seu peso é comparado com o de uma única taça feita de prata pura. Imagina todos aqueles ossos reunidos e amontoados numa grande balança. Que quantidade de prata seria necessária para equilibrar a balança? Não mais do que uma mão-cheia. Pensa nisso da próxima vez que levares aos lábios uma taça de prata.

 

Voltou-se para Fórfex.

 

Pelo menos deve estar mais fresco dentro da mina. Tongílio, trouxeste as tochas? Óptimo. Vens connosco, Gordiano?

 

Eu não tinha qualquer interesse particular em ver um buraco no chão e teria preferido deixar-me estar ali sentado durante algum tempo a recuperar o fôlego, mas ocorreu-me que uma mina abandonada poderia ser um lugar perigoso, especialmente para um rapaz de quinze anos.

 

Sim disse eu fatigadamente vou também.

 

Logo à entrada, deparámos com uma parede de pedra que nos dava pelos ombros.

 

É para não deixar entrar as cabras explicou Fórfex. E homens adultos, pensei eu, mas quando chegou a minha vez de me apoiar no estribo das suas mãos e trepar para o alto da parede, fi-lo sem me queixar, seguindo o exemplo de Catilina e de Tongílio. Meto impulsionou Fórfex, e depois seguiu-o, subindo sem precisar de ajuda.

 

Passava muito pouca luz por cima da parede, apenas o suficiente para nos iluminar com uma vaga penumbra. Tongílio ajoelhou-se e acendeu uma das tochas, depois acendeu a outra e entregou-ma. As chamas iluminaram um compartimento baixo e estreito, que se inclinava abruptamente para baixo, para a escuridão. Num lugar apertado como aquele, a resina queimada deitava um cheiro fortíssimo.

 

Catilina pegou na tocha de Tongílio e foi à frente. Meto foi atrás, seguido de Fórfex, comigo na retaguarda.

 

Isto é absurdo murmurei eu, pensando que fácil seria um de nós tropeçar e cair no vazio. Imaginei Meto a quebrar o pescoço e amaldiçoei-me por lhe ter permitido participar naquela loucura.

 

Não precisamos de avançar muito disse Catilina. Só quero dar uma vista de olhos ao estado geral da mina. Qual é a profundidade?

 

É razoável disse Fórfex. Pensa que costumavam trabalhar aqui até duzentos escravos simultaneamente.

 

Duzentos! disse Meto.

 

Foi o que sempre me disseram. Oh, era uma operação e tanto, naqueles tempos. Foi assim que os antepassados do jovem Senhor Gneu fizeram fortuna, com esta mina de prata. Foi assim que chegaram a comprar todas estas terras em volta. Agora, claro, elas foram divididas pelos primos Cláudios, mas antigamente a montanha e todas as terras que se avistavam daqui eram uma única propriedade, pelo menos é o que dizem. Cuidado com a cabeça, jovem!

 

Meto, afastando-se um pouco da orientação de Catilina, quase colidira com um punho entalhado na rocha, suspenso do tecto. Fórfex riu-se.

 

Devia ter-vos avisado. Chamamos a isso os miolos do mineiro, em parte porque é um bocado parecido com uns miolos, todo nodoso e redondo, mas ainda mais porque muitos mineiros descuidados perderam os miolos batendo contra aquela pedra! É feita de uma coisa qualquer tão dura, que eles nunca conseguiram cinzelá-la, por isso está ali, à espera de rachar o crânio de qualquer homem que se aproxime demasiadamente. Se olhares de perto, ainda consegues ver a camada de sangue seco que o cobre.

 

Isto não tem piada nenhuma comentei eu. Hás-de concordar disse para diante, para Catilina, que não é sítio para se trazer um rapaz. Este lugar é perigoso.

 

O riso de Catilina ecoou lá à frente, distorcido e cavado como se ele estivesse metido dentro de um poço.

 

Começo a desejar que não tivesses vindo, Gordiano! És sempre assim tão complicado e exigente? Não tens sentido de aventura?

 

Olhei por cima do ombro e vi que a abertura estava reduzida a um orifício assustadoramente pequeno de luz cinzenta. Subitamente, o orifício desapareceu. Abri a boca e quase gritei, pensando que alguém o tinha tapado. Mas, ao mover a cabeça, consegui captar vislumbres de luz e percebi que, devido a uma ligeira curva no caminho, a rocha que dava pelo nome de ”miolos do mineiro” se colocara entre nós e a entrada, bloqueando a luz. Alguns passos adiante, perdi completamente de vista a entrada.

 

Ainda vamos avançar muito?

 

Oh, acho que deve bastar disse Catilina.

 

O caminho ficou subitamente plano, e demos por nós no que parecia ser um compartimento pequeno e oval, escavado na rocha. O ar cheirava a mofo mas era seco, fresco mas não gelado. Aos nossos pés, o chão era liso. Tinham sido abertas entradas baixas na rocha, que davam para diferentes direcções.

 

É como uma salinha debaixo do chão disse Tongílio.

 

É como uma entrada para um labirinto disse Meto ou para o Labirinto do Minotauro!

 

Este é apenas um de vários compartimentos do género que há aqui na mina explicou Fórfex. Sem um guia, vocês precisariam de um mapa para descobrirem o caminho, ou então de estarem dispostos a passar um dia inteiro a girar por aqui. Para isso, precisavam de mais do que um par de tochas.

 

Para onde dá esta passagem? disse Catilina, acocorando-se ao lado de um dos lintéis de rocha.

 

Cuidado aí disse Fórfex. É mais baixo: Sabes que, de todas as passagens, ele escolheu a mais perigosa? Cuidado, por favor! Desde pequeno que me dizem para não ir por aí. Tem uma inclinação muito grande, que dá para um poço. É uma das partes mais antigas da mina. Ainda cais!

 

Do outro lado da estreita entrada, iluminada pelas sombras trémulas provenientes da tocha de Catilina, chegou até nós um distinto ruído de alarme. Tongílio correu atrás dele.

 

Depressa, Gordiano! Chega aqui a tua tocha!

 

Juntos, introduzimo-nos pela estreita passagem. Meto empurrou-me pelas costas, espreitando por cima do meu ombro, e atrás de mim ouvi o cabreiro estalar a língua.

 

Lúcio, o que foi? disse Tongílio.

 

Vem cá ver disse Catilina.

 

O poço era rodeado por um rebordo apenas com largura suficiente para um homem se apoiar. Empurrámo-nos os cinco uns contra os outros, olhando para baixo. Fórfex, que durante todo o dia parecera perfeitamente habituado à visão de ossos humanos, teve um sobressalto de choque.

 

Catilina olhou para ele de lado.

 

Pensei que conhecias estas minas.

 

Não conhecia esta câmara. Já te disse que desde miúdo me avisaram de que não devia aproximar-me desta parte da mina. Sempre pensei que não passasse de uma queda no escuro.

 

E assim seria, se eles não enchessem o abismo. Catilina segurava a sua tocha ao alto. À luz trémula que dela emanava, os crânios dos mortos olhavam para nós com os seus olhos vazios estranhamente animados pelo movimento vacilante de luz e sombras.

 

Tantos! murmurou Tongílio.

 

Nunca vi nada assim disse eu.

 

Nem eu disse Catilina.

 

Tínhamos visto muitos ossos nesse dia no sopé da cascata, ao longo da encosta, no talude à saída da mina. Mas essas visões não nos tinham preparado para este enorme poço cheio até cima de esqueletos. Eram centenas, talvez muitas centenas, porque não era possível saber que profundidade tinha o poço. O que quer que habitasse na gruta tinha-os limpo na perfeição, porque eles estavam tão brancos como se tivessem sido descorados no leito de um ribeiro. O número era, só por si, espantoso e um pouco irreal, porque sem carne os ossos dos mortos perdem por completo a identidade e os crânios passam a ser todos iguais, de maneira que ver tantos crânios juntos no mesmo sítio entorpece os sentidos. O significado de uma coisa destas não pode ser compreendido imediatamente, mas apenas de forma retrospectiva, porque a mente não consegue explicar aquilo que submerge o olhar.

 

A caverna parecia muito escura e as nossas luzes muito pequenas. A tocha que eu tinha na mão começou a crepitar e a estalar, lançando um forte odor a resina queimada.

 

De onde vieram eles? perguntei eu.

 

Deve ter sido... Fórfex franziu o sobrolho e esfregou o queixo. Sempre houve boatos de uma coisa destas, mas eu nunca pensei que tivesse acontecido aqui na mina. Pensei que, se fosse verdade, o resultado fossem os esqueletos que estão no meio da escória, lá fora.

 

Se fosse verdade o quê? perguntou Catilina.

 

Sempre ouvi dizer que, quando a mina foi encerrada, o senhor vendeu os escravos que não queria a outros proprietários de minas e a donos de galeras de Óstia. Não se espera que um escravo saia vivo de uma mina, por isso não há mercado para escravos de minas usado. Mas lembro-me de ter ouvido dizer a alguns dos cabreiros mais antigos que o velho senhor não se incomodou a tentar vender os escravos e preferiu eliminá-los a todos. Não sabia que isso tinha acontecido aqui na mina. Devem ter tapado este rebordo estreito de um dos lados da passagem e tê-los empurrado pela porta...

 

Nesse momento, algo se agitou entre os ossos. Houve um sussurro e depois um som profundo, seguido de um ruído arrepiante, semelhante a um gemido. À luz incerta das nossas tochas, a massa de ossos pareceu agitar-se. Um rato, pensei eu, e uma lufada de ar de um poço subterrâneo. Mas Fórfex tinha outra opinião.

 

As lémures! guinchou ele. As lémures! Voltou-se e empurrou-nos com tal falta de cuidado, que Meto se desequilibrou e podia ter caído dentro do poço se eu não lhe tivesse agarrado no braço.

 

As lémures! voltou a guinchar Fórfex, e a sua voz fez eco na câmara de pedra. Pelo terror imediato que se ouvia na sua voz, era impossível dizer se se referia às coisas que havia no poço ou se teria encontrado novas lémures na câmara exterior.

 

À pressa, recuámos da estreita prateleira de pedra, empurrando-nos uns aos outros pela passagem estreita e emergindo na antecâmara. Catilina e eu erguemos as tochas ao alto, mas o compartimento estava deserto. Fórfex, que fugira a correr, ia muito adiante de nós. Vindo do poço pelo qual tínhamos descido, ouvimos o eco dos seus gritos ”Lémures!”, juntamente com o ruído do cascalho solto. ”Lémures!” ouvimos novamente, e depois um baque longínquo e estranho, seguido de mais cascalho solto, e depois o silêncio.

 

Deixámo-nos ficar imóveis e olhámos uns para os outros, pensando o que teria acontecido a Fórfex. À luz desmaiada das tochas, todos os rostos pareciam brancos e pálidos. Tongílio mordeu os lábios.

 

Não acham que eram realmente...

 

Os ”miolos do mineiro”! disse Meto. Catilina sorriu debilmente e ergueu uma sobrancelha.

 

Sem sombra de dúvida. Levantou a tocha e seguiu à frente, em direcção à saída. Eu suspirei de alívio ao primeiro vislumbre de luz do dia. Um pouco mais adiante, encontrámos Fórfex, não muito longe da saliência de rocha a que ele chamara os ”miolos do mineiro”. Estava deitado de costas, tentando em vão levantar-se.

 

Tongílio e Meto puseram-no de pé e ajudaram-no a cambalear pelo declive acima. Ele tinha o cabelo manchado de sangue e a cara coberta de sangue e porcaria. À lúrida luz das tochas, parecia uma espécie de demónio, tropeçando cegamente com as mãos estendidas e os olhos fechados por causa da pancada.

 

Estava completamente desamparado, confuso e enfraquecido pela ferida e tremendo de medo por causa do choque. Finalmente, conseguimos fazê-lo atravessar o muro. Tongílio ajudou-o a passar por cima e foi atrás dele.

 

Foi Tongílio quem tratou da ferida do cabreiro, regando-a com vinho do odre do homem, acalmando-o quando ele guinchava de dor e rasgando uma tira de pano da túnica dele para lhe atar a cabeça. O homem que nos conduzira até à mina numa atitude de fanforronice tinha uma aparência consideravelmente diferente na descida. Nós amparávamo-lo à vez, segurando-o pelos ombros; ele conseguia pôr um pé diante do outro, mas parecia incapaz de se manter direito.

 

As sombras começaram a ficar mais longas. Os grilos e as cigarras iniciaram os seus cantos do entardecer. Fórfex devia estar um pouco delirante, para além de ébrio, porque recuava constantemente das sombras, gemendo ”Lémures!”. Talvez ele visse coisas que não existiam ou talvez o facto de estar perto de Plutão fizesse com que os seus sentidos se apercebessem dos espíritos que por ali vagueavam e que nós não conseguíamos ver. Dizem que aqueles que estão mais perto da morte têm os olhos e os ouvidos abertos àqueles que já morreram.

 

Chegámos finalmente ao local onde os cavalos tinham ficado presos. Deixámos para trás a mula de Fórfex, considerando que seria demasiadamente lenta. Catilina partilhou a sua montada com Fórfex, mantendo-o direito à sua frente. O homem queixava-se alto da dor de cabeça quando se aproximava um galope, depois acalmava-se, choramingando a palavra ”lémures!” ao passar diante de um charco de sombras ou de um maciço de rochas.

 

A porta aberta da casa dos cabreiros deixava ver a luz amarela que brilhava no interior e dos redis ao lado vinha o balido das cabras ali reunidas para passar a noite. Catilina e Tongílio desmontaram e ajudaram Fórfex a descer do cavalo. Um escravo de olhos muito abertos meteu a cabeça pela abertura da porta olhando para nós inquisitivamente mas, em vez de sair para nos receber ou para ajudar Fórfex, escondeu-se rapidamente. Momentos depois, a razão para esta timidez emergiu da entrada.

 

Eu vira Gneu Cláudio muitas vezes no Fórum durante o nosso litígio. Era difícil não o reconhecer imediatamente, com a sua coroa esfiapada de cabelo vermelho e o seu pescoço sem queixo. Era um tipo alto de ombros largos e, embora tivesse evidentemente herdado os músculos da família, não possuía nenhum dos encantos da juventude. Tinha uma expressão facial perpetuamente azeda, como se censurasse as Parcas por lhe não terem atribuído qualidades atraentes e estivesse decidido a tirar o maior partido das qualidades não atraentes que possuía, entre elas a sua voz alta e roufenha.

 

Fórfex! gritou ele. Em nome do Hades, onde é que estiveste?

 

O cabreiro libertou-se do apoio de Tongílio e cambaleou para diante, indo ao encontro do seu senhor com a cabeça humildemente inclinada, como que para mostrar a ferida que fizera na mina.

 

Senhor, pensei que só regressasses...

 

E quem são vocês? disse Gneu, olhando atentamente para Catilina. Tinha no rosto uma expressão que indicava que estava quase a identificar Catilina, mas não estava bem certo.

 

O meu nome é Lúcio Sérgio disse Catilina. Venho da cidade...

 

Sérgio, eh? disse Gneu com azedume. Cuspiu para o chão e acenou carrancudo, reconhecendo a presença de um patrício como ele. E o que é que andaram a fazer com o meu escravo, invadindo a minha propriedade na minha ausência?

 

O cabreiro foi apenas mostrar-nos a mina abandonada que há na encosta. E que eu...

 

A mina? Em nome do Hades, o que é que andaram a bisbilhotar na minha mina?

 

Pensei que talvez a propriedade estivesse à venda.

 

Ai sim? E tens algum interesse particular em minas de prata?

 

Um sócio meu tem.

 

Gneu voltou a cuspir para o chão.

 

Bem, não tinham nada que invadir a minha propriedade.

 

Fórfex garantiu-me que, na tua ausência, estava autorizado...

 

Fórfex é tão inútil e malcheiroso como as suas cabras. ”Estava autorizado” as minhas bolas! Ninguém anda a bisbilhotar nas minhas terras quando eu estou ausente. E ele sabe que não... não sabes, Fórfex? Não te encolhas quando eu te levanto a mão! Que tinidos são esses que eu estou a ouvir? Deu ao velho cabreiro um grande empurrão. Fórfex cambaleou para trás, protegendo a cabeça com as mãos.

 

Estou a ouvir uns tinidos! gritou Gneu. Arrancou a túnica ao escravo e descobriu a saquinha de moedas, olhou lá para dentro e atirou os três sestércios aos pés de Catilina. Agradecia-te que não subornasses os meus escravos! Eles já são suficientemente rebeldes.

 

Deu uma bofetada a Fórfex, suficientemente forte para fazer o velho cabreiro cambalear e cair.

 

Gneu Cláudio! disse Tongílio. Não vês que o escravo está ferido? Ele está a sangrar!

 

E tu quem és, meu rapazinho? disse Gneu em tom trocista.

 

Quem são todos estes forasteiros com quem vieste invadir as minhas terras, Lúcio Sérgio? Pela primeira vez, Gneu pareceu-me olhar para mim e para Meto, mas sem qualquer sugestão de reconhecimento. Nas sombras que se avolumavam, não conseguia ver-me bem.

 

Gneu Cláudio disse Catilina o meu interesse é completamente legítimo. O meu sócio da cidade procura activamente minas em qualquer situação, e paga bem por propriedades onde que lhe pareça que vale a pena investir. Eu pretendia apenas dar uma vista de olhos à tua mina. Se soubesse que o escravo estava proibido de agir em teu nome, nunca teria pisado a tua propriedade.

 

Este discurso pareceu acalmar Gneu, que sugou as faces como se estivesse a mastigá-las. Momentos depois, disse:

 

Então e que tal te pareceu a mina? Catilina sorriu.

 

Sinto-me encorajado.

 

Sim?

 

Julgo que o meu sócio estará interessado.

 

Há anos que está encerrada.

 

Eu sei. Mas o meu sócio tem engenheiros que por vezes conseguem extrair um pouco mais da terra, mesmo quando um veio parece esgotado. O preço que ele te oferecer terá em conta o estado da mina. Ele enviar-te-á alguns escravos seus para a observarem melhor antes de decidir... se eu lhe disser que a mina vale o esforço, claro.

 

Então achas que a terra pode valer...

 

Infelizmente, Gneu Cláudio, aproxima-se a noite. Eu tive uma tarde longa e cansativa. A viagem até à mina é esgotante, como deves saber. Preciso de ir comer e descansar. Talvez possamos discutir o assunto noutra altura. Catilina montou o seu cavalo e o mesmo fez Tongílio.

 

Tens onde te alojar? Se não... disse Gneu.

 

Sim, estou alojado num sítio excelente, não muito longe daqui.

 

Talvez eu devesse ir contigo...

 

Não é necessário. Nós conhecemos o caminho. Entretanto, sugiro que mandes alguém tratar da cabeça do cabreiro. Ele teve um acidente desagradável... e não teve culpa nenhuma. Estava apenas a fazer o possível por me satisfazer. A sua preocupação com os teus interesses é muito louvável. Seria uma pena perder um escravo assim por não tratar adequadamente uma ferida feita ao serviço do seu senhor.

 

Quando partimos, Gneu ficou a olhar para nós como um misto de ganância e incerteza no rosto. Imediatamente antes de uma curva da estrada, voltei-me e vi-o erguer a mão e atingir em cheio na cabeça o cabreiro que se encolhia.

 

Gneu Cláudio... que homem horrível! disse Catilina. Os teus vizinhos são todos assim horríveis?

 

Estou a descobrir que sim. Mas nem todos disse eu, pensando em Cláudia. A água está a boa temperatura?

 

Está.

 

E para ti, Tongílio?

 

Está perfeita.

 

- Posso chamar um escravo para pôr mais lenha na fornalha...

 

Oh, não, se estivesse mais quente do que isto, eu derretia suspirou Catilina, deixando-se afundar na banheira e mantendo apenas a cabeça de fora da água fumegante.

 

O meu velho amigo Lúcio Cláudio equipara a sua casa de campo com diversos luxos citadinos, entre os quais três compartimentos para banhos, um para a imersão morna, outro para a imersão quente e o terceiro para a imersão fria. De uma maneira geral, o Verão era demasiadamente quente para eu desejar, sequer, o banho em água morna; preferia lavar-me no ribeiro, com uma esponja e um estrigil. Fora Catilina a sugerir que os escravos carregassem a fornalha que havia entre as cozinhas e os banhos e enchessem as banheiras de mármore de água quente. As minhas pernas entorpecidas e os meus pés doloridos tinham concordado, e assim, depois de um jantar ligeiro, retirámo-nos, não para o átrio, mas para os banhos. Despimos as túnicas sujas e começámos pela banheira de água morna, depois passámos ao compartimento seguinte e mergulhámos na banheira de água quente. Catilina e Tongílio esfregaram as costas um do outro com um estrigil de mármore, para limpar o   suor.

 

Meto não se juntara a nós, embora me parecesse que ele tinha vontade de ficar acordado a ouvir as conversas dos adultos. Mas os saltos de pedra em pedra e as corridas para trás e para diante no caminho começaram finalmente a pesar-lhe ao jantar, e ele já bocejava e dormitava no canapé antes de chegar o último prato, cebolas cortadas aos cubos. Quando a refeição terminou, Betesda acordou-o e mandou-o para a cama.

 

Ainda bem, porque eu não estava certo de querer que Meto se despisse na presença de Catilina. Dizia-se que, nas questões da carne, os apetites de Catilina eram vorazes e o seu autocontrolo inexistente, apesar da sua versão da história da Vestal. Pelo menos os seus padrões eram rigorosos, a avaliar pela visão de Tongílio nu. O físico lustroso e atlético do jovem era de causar inveja a qualquer rapaz e nostalgia ou desejo a homens mais velhos. Como descobri nos banhos, ele era um daqueles jovens belos e encantadores que se mostram mais altivos quando se despem do que quando estão vestidos. Havia um traço de vaidade autoconsciente na forma como ele tirava da água os seus braços bem musculados e afastava da testa o cabelo brilhante, como um escultor alisando e moldando a sua própria perfeição.

 

Catilina parecia aprovar estes gestos, porque o observava intensamente. Embora os olhos de ambos se não encontrassem, eles sorriram ao mesmo tempo, de tal maneira que eu suspeitei que se tivessem tocado em segredo debaixo de água.

 

Talvez isso fosse um sinal porque, momentos depois, Tongílio levantou-se e saiu da banheira. Enrolou-se na toalha e sacudiu a água do cabelo.

 

Não vais à água fria? perguntei eu.

 

Prefiro arrefecer na cama. O vapor que se eleva do corpo enquanto ele seca distende os músculos tão bem como qualquer massagista. É uma forma deliciosa de adormecer. Sorriu-me e depois inclinou-se até a sua face quase tocar a de Catilina. Disseram algumas palavras em voz baixa e depois Tongílio foi-se embora.

 

Conhece-lo há muito tempo? disse eu.

 

Tongílio? Há uns cinco anos. Desde que ele tinha a idade de Meto, imagino eu. É um jovem encantador, não achas?

 

Eu acenei com a cabeça. A única luz que iluminava o compartimento provinha de uma lamparina suspensa do tecto por uma corrente. O seu brilho era obscurecido pelo vapor de água que subia, de maneira que o compartimento estava cheio de uma suave bruma cor de laranja. O leve gorgolejar dos canos e os ligeiros salpicos da água contra os lados da banheira eram os únicos ruídos que se ouviam. A água quente remoinhava à volta da minha carne nua, fazendo-me sentir mergulhado em conforto. O que dissera Catilina, que se a água estivesse mais quente ele derretia? Eu já me sentia derretido.

 

Durante muito tempo, deixámo-nos estar em extremidades opostas da enorme banheira de mármore. Catilina fechou os olhos. Eu olhava para os desenhos efémeros feitos pelo vapor de água que subia, semelhantes a uma série de véus suspensos na escuridão, que logo se dissolviam.

 

O que é curioso é que provavelmente valerá a pena comprar a mina de prata.

 

Estás a falar a sério? disse eu.

 

Eu falo sempre a sério, Gordiano. Claro que seria necessário retirar todos aqueles ossos... seriam desencorajadores para os novos trabalhadores. ”Não convém minar o moral, nem sequer dos escravos”.

 

Estás a citar alguém.

 

Estou. O meu sócio da cidade, aquele que compra minas abandonadas e retira delas grandes lucros.

 

Então essa pessoa existe realmente?

 

Claro. Pensaste que eu estava a mentir ao bom Fórfex?

 

O teu amigo da cidade parece-me alguém conhecido.

 

Não é certamente obscuro.

 

É Marco Crasso?

 

Catilina abriu muito ligeiramente os olhos e ergueu uma sobrancelha.

 

É sim. Resolveste um enigma, Gordiano: quem é o comprador secreto de Roma? Mas as pistas talvez fossem demasiadamente fáceis. Um homem muito conhecido de outra forma, por que haveria eu de ocultar o seu nome? com experiência de minas, sempre ocupado a maximizar a produtividade dos seus escravos. Quem mais poderia ser, senão o homem mais rico de Roma?

 

O enigma é o facto de tu estares suficientemente ligado a um homem como ele para andares a observar propriedades em seu nome disse eu.

 

O que é que há de estranho nisso?

 

És conhecido por ser um político radical, Catilina. Porque havia o homem mais rico do mundo de se aliar a um ferrabrás que advoga a redistribuição forçada da riqueza e o total cancelamento de todas as dívidas?

 

Pensei que não tinhas vontade de discutir política, Gordiano.

 

É da água, põe-me tonto. Não estou em mim. Faz-me a vontade.

 

Como quiseres. É verdade que Crasso e eu discordamos em algumas coisas, mas temos um inimigo comum... a oligarquia reinante em Roma. Sabes a quem me refiro àquele pequeno círculo de famílias incestuosas que seguram ciosamente as rédeas do poder, e que não se detêm perante coisa alguma quando se trata de destruir a sua oposição. Sabes como eles se autodenominam, não sabes? Os Melhores, os Optimates. Referem-se a si próprios dessa maneira sem a mínima sugestão de embaraço, como se a sua superioridade fosse de tal forma evidente, que a modéstia apenas pudesse ser uma afectação. Consideram que todos aqueles que estão fora do seu círculo são mera gentalha. O Estado, argumentam, deve ser exclusivamente governado pelos Optimates, sem concessões a outros partidos, porque não há melhor maneira de governar o Estado do que colocá-lo nas mãos daqueles que são inegável e demonstravelmente os Melhores, de todos os pontos de vista. Oh, eles incham de auto-satisfação, e são insuportáveis! E Cícero foi totalmente comprado por eles. Cícero, o zé-ninguém de Arpinum, sem antepassados que sustentem o seu nome. Se ele soubesse o que dizem dele...

 

Estávamos a falar de Crasso, e não de Cícero. Catilina suspirou e instalou-se melhor dentro de água.

 

Marco Crasso é uma força demasiadamente grande para pertencer seja a que partido for, mesmo aos Optimates. Crasso é o seu próprio partido, por isso, de vez em quando, entra em conflito com os Optimates. Tens razão, Crasso não simpatiza com os meus planos para a restruturação da economia do Estado, que têm de ser aplicados para que a República sobreviva. Mas a verdade é que Crasso pouco se importa com a sobrevivência da República. Não o incomodaria vê-la murchar e morrer, desde que o ditador que inevitavelmente se seguirá se chamasse Marco Crasso. Entretanto, nós os dois temos tido algumas ocasiões de nos aliar contra os Optimates. E, claro, Marco Crasso e eu conhecemo-nos há muito tempo, desde os dias em que ambos servíamos Sula.

 

Queres dizer que, tal como Crasso, também tu te aproveitaste das prescrições que tiveram lugar durante a ditadura de Sula, em que as propriedades dos seus inimigos foram confiscadas e vendidas em leilão?

 

Muitos outros fizeram o mesmo. Mas eu nunca cometi assassínios com fins lucrativos nem usei as prescrições para matar impunemente fosse quem fosse oh, sim, conheço os boatos. De acordo com um deles, eu coloquei o meu velho cunhado nas listas porque a minha irmã não o suportava e queria que lhe cortassem a cabeça. Outros dizem que o matei pessoalmente e depois mandei pôr o nome dele nas listas para legalizar esse crime. Como se eu estivesse interessado em que a minha própria irmã fosse desonrada e deserdada!

 

A sua voz assumiu um tom irritado.

 

E há ainda essa miserável mentira lançada o ano passado durante a campanha consular pelo irmão de Cícero, Quinto, segundo a qual eu participei no assassínio do pretor Gratidiano durante esses anos. Pobre Gratidiano, chacinado pela multidão. Partiram-lhe as duas pernas, cortaram-lhe as mãos, arrancaram-lhe os olhos, e depois decapitaram-no. Foi uma selvajaria hedionda! Eu assisti a essa atrocidade, é um facto, mas não a instiguei, como Quinto Cícero afirmou, nem andei a pavonear-me por Roma transportando a cabeça de Gratidiano como um trofeu. Apesar disso, ainda o ano passado alguns dos Optimates conseguiram levar-me a tribunal por esse assassínio mas fui ilibado, como fui ilibado de todas as acusações que eles apresentaram contra mim ao longo dos anos.

 

Por falar em cabeças, a tua está a ficar vermelha como uma beterraba, Catilina. A água deve estar demasiadamente quente.

 

Catilina, que na sua paixão se erguera até ficar com o peito fora de água, inspirou profundamente e voltou a afundar-se na banheira.

 

Mas nós estávamos a falar de Crasso... Ele sorriu e eu fiquei maravilhado com a facilidade com que ele abandonava o tom amargo e recuperava o seu bom humor. Sabes o que realmente cimentou a nossa amizade? Foi o escândalo da Virgem Vestal! Fábia e eu não fomos os únicos a ser levados a tribunal nessa Primavera Crasso foi acusado de poluir a própria Virgo Maxima. Lembras-te dos pormenores? Ela fora vista na sua companhia com tanta frequência, que o ardiloso Clódio não teve dificuldade em convencer meia Roma a acreditar no pior. Mas a defesa de Crasso era inatacável: o milionário andava apenas a incomodar a Virgo Maxima por causa de uma propriedade que queria comprar-lhe por baixo preço era uma história tão típica de Crasso, que ninguém podia deixar de acreditar nela! Ele escapou com vida, e eu também, mas ambos fomos afectados na nossa reputação Crasso, porque toda a gente achava que ele estava inocente mas que era ganancioso, e eu, porque toda a gente pensou que eu era culpado mas tinha escapado impune. Depois do julgamento, celebrámos juntos com algumas garrafas de vinho falerniano. As alianças políticas nem sempre assentam na pura lógica, Gordiano. Por vezes, resultam de sofrimentos partilhados. Olhou para mim intensamente, como que para enfatizar as suas palavras. Mas sei que tu também tiveste relações com Crasso.

 

Ele contratou-me para resolver o caso do assassínio do seu primo, em Baias disse eu. Foi há nove anos. As circunstâncias eram perfeitamente extraordinárias, mas não posso discutir os pormenores. Basta que te diga que Crasso e eu não nos separámos muito amigos. Catilina sorriu.

 

Na verdade, Crasso contou-me a maior parte da história, ou da sua versão da história. Ele queria que determinados escravos fossem considerados culpados do crime, mas tu só estavas disposto a aceitar a verdade, por muito embaraçosa ou pouco interessante que ela fosse para os esquemas de Crasso. Quer acredites, quer não, eu acho que, no fundo, ele admira a tua integridade, embora se queixe do teu carácter, digamos assim, inflexível. Suponho que o próprio Crasso é um tanto inflexível, o que explica a vossa antipatia mútua. Mas o trabalho que fizeste para ele em Baias teve pelo menos um resultado positivo. Sei que foi aí que conheceste o teu filho Meto. Oh, não baixes os olhos, Gordiano, acho que foi uma coisa maravilhosa teres alforriado um jovem escravo, adoptando-o depois como teu filho. Percebo que não seja uma coisa que gostes de publicitar, para bem do rapaz. Mas eu conheço a história, por isso podes ser franco comigo.

 

Preferia esquecer-me de que Marco Crasso foi alguma vez senhor de Meto. Se Crasso tivesse levado a sua avante, há muito que Meto estaria morto. Crasso vendeu-o a um agricultor da Sicília, só para me impedir de ficar com ele. O facto de ele ter sido descoberto e de eu o ter alforriado e adoptado é apenas uma prova de que até o homem mais rico do mundo pode ser impedido de exercer as suas vinganças mesquinhas.

 

Catilina apertou os lábios.

 

É evidente que Crasso não me contou a história toda.

 

Porque Crasso não conhece a história toda. Mas não será de mim que a ouvirás.

 

Agora foste tu que ficaste vermelho como uma beterraba, Gordiano! Estás pronto para a água fria?

 

Tal como Catilina na sua agitação, também eu me erguera e tinha metade do corpo fora da água. Suspirei e recuei para o calor calmante.

 

Tens um forte sentimento de protecção em relação ao rapaz, e fazes muito bem disse Catilina. Vivemos tempos perigosos, cheios de armadilhas. Eu também sou pai. Estou constantemente preocupado com o futuro da minha mulher e da sua filha. Por vezes, penso que seria preferível seguir o teu exemplo e retirar-me completamente do mundo, ou pelo menos o máximo que pudesse. Viver numa obscuridade simples, como Cincinato. Conheces a velha história quando a República estava em perigo, o povo apelou a Cincinato, o agricultor, que pousou o arado, assumiu o cargo de ditador e salvou o Estado.

 

E, quando o perigo passou, abandonou o cargo de ditador e regressou ao arado.

 

Sim, mas o que é importante é que ele agiu quando a ocasião o exigiu. Voltar completamente as costas ao mundo é perder a oportunidade de dar forma ao futuro do mundo. Quem pode passar ao lado dessa possibilidade, ainda que os seus esforços acabem por ser fracassados?

 

Ou totalmente desastrosos?

 

Não, Gordiano, quando considero o mundo em que os meus descendentes viverão, é-me impossível transformar-me num eremita, apático e ineficaz. E quando penso que as sombras dos meus antepassados me observam, não consigo manter-me ocioso. O fundador da minha família acompanhava Eneias quando ele chegou a solo italiano. Talvez seja o meu sangue patrício que me leva a querer tomar as rédeas do poder... arrancando-as às mãos dos Optimates se tiver de ser!

 

Ele estendeu o braço e agarrou um punhado de espuma, depois soltou-a e mergulhou lentamente as mãos abertas na água turva. O movimento assumiu um aspecto vago e irreal na bruma cor de laranja, como o gesto de um actor visto ao longe.

 

Durante algum tempo, ficámos ambos em silêncio. Um escravo entrou discretamente no compartimento e perguntou se queríamos que abrisse a válvula da fornalha para deixar entrar mais água quente. Eu acenei que sim e o escravo retirou-se. Momentos depois, os canos gorgolejaram e a banheira remoinhou. O nevoeiro tornou-se mais espesso e a luz da lamparina diminuiu. Na densa neblina cor de laranja, o rosto de Catilina não era mais do que um suave borrão.

 

Queres saber um segredo, Gordiano?

 

Ó, Catilina, pensei eu, há muitos segredos que eu gostaria de saber, o primeiro dos quais é a identidade de Nemo e a maneira como o seu corpo sem cabeça foi parar ao meu estábulo!

 

Por que não?

 

Na verdade, trata-se de um enigma...

 

Contar um segredo e propor um enigma são coisas completamente diferentes, Catilina. Gostaria de ouvir um segredo. Mas esta noite não estou muito interessado em enigmas.

 

Faz-me a vontade. Muito bem, como pode um homem perder duas vezes a cabeça?

 

A água rodopiava. A névoa era tão intensa como um nevoeiro marítimo.

 

Não sei, Catilina. Como pode um homem perder duas vezes a cabeça?

 

Primeiro, com uma bela mulher e depois pela lâmina do executor.

 

Compreendo a resposta, mas não compreendo o enigma.

 

Eu perdi a cabeça por causa da Vestal Fábia, e depois quase perdi a cabeça por causa desse crime. Estás a perceber? Acho que é um enigma bastante bom. Nessa altura, era um jovem. Que figura de tolo eu fiz...

 

O que estás tu a dizer, Catilina?

 

Estou a dizer-te que aquilo de que sempre suspeitaste era verdade. Houve entre mim e Fábia mais do que um gosto comum pelos vasos arretinos.

 

E naquela noite, na Casa das Vestais...

 

Foi a primeira vez. Antes disso, ela sempre me resistira. Mas nessa noite acedeu. Quando o homem que estava por trás da cortina gritou, estávamos precisamente a fazer amor. Fábia estava vestida e eu também, e estivemos sempre de pé. Eu queria que ela se despisse, queria tocar todas as partes do seu corpo, queria levá-la para o canapé. Mas ela insistiu em que ficássemos vestidos e nos mantivéssemos de pé. Apesar disso, foi um dos momentos mais excitantes e requintados da minha vida. Quando o homem gritou, com o calor da paixão, eu quase não o ouvi. Podia ser eu a gritar, de puro êxtase. Fábia entrou em pânico, evidentemente. Empurrou-me, tentando obrigar-me a sair, mas eu disse-lhe que seria uma loucura. Eu ainda não tinha acabado, estás a ver, e se ela me empurrasse para fora dela, eu deixaria no chão uma prova em forma de poça, ou então exibiria um inchaço denunciador dentro da túnica. Consumámos o acto e afastámo-nos momentos antes de a Virgo Maxima entrar no quarto. Fábia estava corada como uma maçã. Tinha os seios a palpitar, estava coberta de gotas de suor. Eu ainda estava excitado...

 

Catilina, por que estás a contar-me isto?

 

Porque tu aprecias a verdade, Gordiano; és dos poucos homens que eu conheço que realmente a aprecia. Porque nunca estiveste bem certo do que de facto aconteceu, c agora podes estar.

 

Mas porque estás a contar-me agora?

 

Catilina deixou-se ficar em silêncio por longos momentos. Para além do sombrio nevoeiro cor de laranja, eu tentei entrever a sua expressão, mas não consegui perceber se ele sorrira ou franzira o sobrolho, ou sequer se tinha os olhos abertos. Por fim, ele respondeu:

 

Dizem que tu és um ouvinte dotado, Gordiano. Todos os políticos gostam de ter quem os oiça. Dizem que consegues arrancar a verdade às pessoas, mesmo que elas não tivessem intenção de a contar.

 

”Dizem?”

 

Foi Crasso que me disse. Passados tantos anos, ele não se esqueceu das vossas conversas nocturnas em Baias. Diz ele que não se lembra de alguma vez ter falado com tanta franqueza a outro homem, ainda por cima um assalariado. Diz ele que tu tens um misterioso poder de arrancar a verdade aos corações dos homens.

 

Só se eles tiverem os corações pesados com alguma coisa que tenham necessidade de deixar sair.

 

Que género de peso?

 

Varia de homem para homem, de mulher para mulher. Alguns sentem-se compelidos a confessar o receio do fracasso, outros o remorso por alguma maldade cometida contra os mortos. Alguns confessam que têm vergonha por se submeterem à crueldade de outros, outros confessam que têm vergonha por infligirem essa crueldade. Alguns cometeram crimes terríveis que não foram punidos pelos homens nem pelos deuses, mas sentem que devem contá-los a alguém. Outros limitaram-se a imaginar esses crimes, mas sentem um peso tão grande como se os tivessem cometido.

 

E aqueles que não cometeram crime nenhum quando deviam tê-lo feito?

 

Não compreendo.

 

Aqueles que deviam ter agido, mas hesitaram e não agiram? Alguma vez encontraste algum homem assim, Gordiano, cuja confissão foi não ter cometido um crime quando devia tê-lo feito?

 

Isso é mais um enigma, Catilina? Apesar da obscuridade, vi-o sorrir.

 

Talvez. Mas, tal como acontece com o enigma que Célio te contou, ainda não chegou o momento de o propor. Talvez nunca chegue.

 

Julgo que tu tens suficientes crimes que confessar, para teres de te afligir com aqueles que poderás não ter oportunidade de cometer, Catilina.

 

Pensei que a minha sinceridade o ofendesse. Mas ele riu-se, primeiro vivamente, depois com um cacarejo abafado, que se misturou com o gorgolejar dos canos e o silvo das águas.

 

Temo que a minha reputação ultrapasse em muito a realidade, Gordiano. E, se observares a realidade, verás que fui vítima da incansável perseguição dos meus inimigos. Sim, há três anos fui levado a tribunal, acusado de praticar extorsões contra os habitantes locais quando era pró-pretor em África. Essas acusações foram feitas em consequência de malfeitorias reais? Não, foi o meu velho inimigo Clódio que montou a acusação a mando dos Optimates, sem outro propósito que não fosse arruinar a minha carreira política. Eles atingiram o seu objectivo e, no curto prazo, graças à forma como geriram as coisas, fui impedido de me candidatar ao consulado durante dois anos! Mas acabei por ser ilibado, um facto de que ninguém parece recordar-se. Sabias que, antes do julgamento, o próprio Cícero se ofereceu para me defender? Sim, o mesmo oportunista mentiroso que agora me retrata como o mais criminoso dos homens de Roma. Penso que isto é mais revelador do carácter de Cícero que do meu.

 

”No ano passado, pude finalmente candidatar-me a cônsul e os Optimates nada puderam fazer para me impedir. Para me contrariar, os Optimates fizeram de Cícero o seu candidato e lançaram a sua língua venenosa contra mim. Perdi. Ainda assim, temiam que eu voltasse a concorrer e que vencesse, por isso montaram outra acusação contra mim, por ter assassinado Gratidiano nos tempos de Sula! Podes ter a certeza de que, desta vez, Cícero não se ofereceu para me defender! Ainda assim, fui novamente ilibado e a tentativa dos Optimates de me manter fora da corrida fracassou. Fiquei livre dessa nuvem muito a tempo de voltar a candidatar-me a cônsul este ano.

 

”Então, Gordiano, que crimes são esses pelos quais eu sou assim tão conhecido, para além de alguma poeira lançada à cara dos eleitores pelos meus inimigos, que eram capazes de destruir a reputação de um homem sem pensarem mais nisso do que em sacudir uma mosca? Quando um homem é levado a tribunal uma vez e outra, isso deixa nele uma mancha, eu sei, mas que crime devo eu confessar, excepto o de ser uma mosca no unguento dos Optimates.

 

Olhei de lado para Catilina, mas apenas avistei uma cabeça indistinta por cima de uns ombros semi-submersos, uma ilha obscura flutuando no nevoeiro.

 

Estava a pensar noutros crimes, Catilina, em ofensas de um género completamente diferente.

 

És demasiadamente sensato para acreditar em metade daquilo que ouves dizer, Gordiano, especialmente se isso provier dos lábios venenosos de Cícero ou do seu irmão Quinto. Não fingirei que sou humilde ou manso, mas dificilmente serei o monstro que os meus inimigos retratam... que homem poderia sê-lo? Oh, conheço os boatos e as insinuações. Muito bem, comecemos pelo pior: quando há alguns anos quis tomar Aurélia Orestila como minha segunda mulher, ela recusou porque não queria entrar para uma família onde já houvesse um herdeiro, e por isso, para lhe agradar, eu assassinei o meu filho. Tu és pai, Gordiano. Consegues imaginar a angústia que essa mentira me provocou? Todos os dias eu choro a morte do meu filho. Se fosse vivo, hoje seria um homem e combateria ao meu lado, seria um consolo e uma fonte de inspiração para mim. Morreu de uma febre a que os meus inimigos chamam veneno, utilizando a tragédia que foi a sua morte como arma sórdida contra mim.

 

”Também dizem que me casei com Aurélia por causa do seu dinheiro, para poder pagar as minhas dívidas. Ah! Subestimar dessa maneira as minhas dívidas apenas mostra a profundidade da sua ignorância. Também subestimam a ligação que existe entre Aurélia e eu próprio, mas isso não lhes diz respeito, nem a ti, se é que posso dizê-lo sem ser indelicado.

 

”E depois há as lendas das minhas façanhas sexuais, algumas das quais são verdadeiras, mas outras totalmente fantásticas francamente, só lhes falta dizer que violei a minha mãe e fui o meu próprio pai! De qualquer maneira, que importa que essas lendas sejam verdadeiras? Ninguém se incomoda com essas coisas, à excepção de moralistas secos como Catão e Cícero, que têm o coração e a língua negros. Sinceramente, nunca fui capaz de compreender por que razão homens que não têm apetite hão-de sentir tanto despeito por homens que comem com prazer?

 

Essa frase é bonita, Catilina, mas comer com apetite é uma coisa e tirar a virgindade a uma rapariga, pondo em causa as suas possibilidades de fazer um bom casamento, é outra coisa completamente diferente, como o é convencer jovens a destruírem a sua credibilidade em teu nome, destruindo a sua carreira pelo caminho.

 

A lamparina estava quase a apagar-se. Do outro lado do nevoeiro, ouvi um suspiro.

 

Infelizmente, Gordiano, já não consigo ver o teu rosto, senão dar-te-ia o benefício da dúvida e presumiria que sorris quando falas desses ultrajes, pois sabes perfeitamente que não passam de calúnias inventadas pelos meus inimigos. Oh, sim, confesso que tenho uma fraqueza por jovens inocentes. Que homem com um apetite saudável não aprecia um fruto maduro acabado de colher? E, num mundo tão corrompido com maquinações e mentiras, que homem poderá deixar de encontrar um atractivo especial naqueles cujo carácter não é mundano? Onde é possível encontrar doçura neste mundo de frieza, excepto entre os jovens? Mas eu não me imponho aos outros. Tenho sido acusado de assassínios e de roubos, mas nunca fui acusado de violação até os meus inimigos sabem que eu sou capaz de atrair os meus parceiros sem os coagir. E também não me limito a tomar, sem nada dar em troca. Eles dão-me a sua inocência e em troca eu dou-lhes a minha mundaneidade, que é o bem que possuo em maior abundância; cada um de nós dá ao outro aquilo que lhe falta e que ele deseja.

 

E o que deste tu à Vestal Fábia?

 

Aventura! Prazer, excitação, perigo... todas as coisas que a sua existência monótona lhe recusa.

 

E terá isso valido a possibilidade de ela ser completamente soprada para a inexistência? E se o caso tivesse terminado com Fábia a ser enterrada viva? Podia muito bem ter acontecido.

 

A responsabilidade seria de Clódio, e não minha.

 

Sacodes as tuas responsabilidades com demasiada facilidade, Catilina.

 

Ele deixou-se ficar calado por momentos e depois agitou-se dentro de água. Levantou-se, fazendo com que a água batesse contra as bordas da banheira e que o vapor se erguesse em espirais e se abrisse diante dele. Tinha a pele vermelha por causa do calor. Gotas de humidade ligavam os pêlos pretos salpicados de prata que lhe cobriam o peito e escorriam para o sexo, que flutuava pesadamente, metade dentro e metade fora de água. Tinha os ombros e o peito largos, o estômago liso. Era um homem com um aspecto extraordinariamente viril. Não era de espantar que as suas amantes o apreciassem, pensei; não era de espantar que homens com cara de obstipação, de braços finos e rostos desinteressantes, como Cícero e Catão, tivessem tanto desprezo pelas suas proezas físicas e sexuais.

 

Ele pareceu ler os meus pensamentos.

 

Tu próprio és bastante agradável à vista, Gordiano. É óbvio que a vida activa do campo combina contigo. Na cidade, os homens tornam-se moles e gordos ... uma coisa é envelhecer e outra coisa completamente diferente é amolecer, não te parece? Acho que tu também és um homem de apetites fortes. Manteve-se de pé, olhando-me de cima com um ligeiro sorriso, como se esperasse qualquer coisa de mim. O seu olhar fixo fez-me sentir pouco à vontade. Bem disse ele por fim estou farto deste calor! Queres juntar-te a mim na banheira de água fria, Gordiano?

 

Não, acho que vou ficar por aqui mais um bocadinho. Talvez siga o exemplo de Tongílio, secando-me e indo para a cama.

 

Catilina saiu da banheira. Tirou uma toalha do nicho da parede, mas não se incomodou a cobrir-se. Fez uma pausa à entrada do compartimento de arrefecimento.

 

Queres que chame um escravo para te trazer outra lamparina?

 

Não disse eu. A escuridão adequa-se ao meu estado de espírito.

 

Catilina acenou com a cabeça e fechou a porta atrás de si. Momentos depois, a luz diminuiu e extinguiu-se. Eu deixei-me estar deitado no escuro, ruminando em Catilina e nos seus crimes.

 

Devo ter dormitado por instantes, porque fui subitamente despertado por um ligeiro rangido, que não vinha da porta por onde Catilina acabara de sair, mas da porta que dava para o compartimento de água morna, e daí para o resto da casa. Era o género de ruído que poderia ter sido feito por alguém que se tivesse involuntariamente encostado à porta. Nesse momento, avistei uma pequena fenda de luz no alto da armação.

 

Talvez a porta se tivesse movido sozinha, dilatada pela humidade e pelo calor. Apesar disso, o meu coração começou a bater mais depressa e a lânguida sonolência do banho quente dissipou-se instantaneamente. Talvez fosse Tongílio, disse a mim próprio mas por que se ocultaria ele? Talvez fosse um escravo, que tivesse vindo encher a lamparina extinta mas, nesse caso, por que razão não entrava?

 

Fiquei à escuta e nada mais ouvi do lado de lá da porta, mas convenci-me de que estava ali alguém à espera.

 

Ergui-me o mais silenciosamente que consegui e saí da banheira. Estendi a mão para a minha toalha, mas não foi para me cobrir. Uma toalha simples, enrolada com força como uma corda, pode servir para muita coisa como um escudo contra punhais, como meio para prender um inimigo, como arma para estrangular ou partir um pescoço. Fui nas pontas dos pés até à porta. Estendi a mão para a maçaneta de madeira, hesitei durante um curto momento e puxei-a subitamente, abrindo a porta por completo.

 

Ele cambaleou e caiu para cima de mim. Eu apanhei-o com o pano enrolado, imobilizei-lhe os braços ao longo do corpo e virei-o ao contrário. Ele guinou e esperneou, mas não se debateu. Voltou o rosto para mim.

 

Eu murmurei uma praga e libertei-o. O meu prisioneiro soltou-se, inspirou rapidamente e depois, como se o que acabara de acontecer não passasse de uma brincadeira, sussurrou:

 

Então Catilina sempre dormiu com a Vestal!

 

Meto!

 

Desculpa, Papá, mas não tinha sono. Doíam-me os pés, de andar a trepar a montanha! Quando cheguei à porta, ouvi-vos a conversar. Não me pareceu correcto entrar, mas não pude deixar de ouvir. Não terias dito coisas diferentes se soubesses que eu estava a ouvir, pois não? E Catilina poderia ter dito muito menos se eu estivesse presente. Estive incrivelmente calado, não estive? A sério que só agora é que percebeste que eu estava aqui? Foi um erro, encostar-me à porta daquela maneira...

 

Meto, quando aprenderás a ter respeito?

 

Meto levou os dedos aos lábios e acenou para a porta que ia dar ao compartimento da água fria. Eu baixei a voz.

 

Este teu hábito de te esconderes e de espiolhares, onde é que terás aprendido... Suspirei. Não, é verdade que não fazia ideia de que estavas aqui até a porta estalar. O que significa que és jovem e ágil, e que eu estou a ficar velho e pesado e possivelmente um pouco surdo. Pergunto a mim próprio qual de nós precisará mais de uma boa noite de sono.

 

Meto sorriu-me, e eu não pude deixar de lhe sorrir também. Agarrei-lhe a parte de trás do pescoço e dei-lhe um abanão forte. Eram horas de nos deitarmos mas, antes de nos irmos embora, olhei para a fina barra de luz que provinha do lado de lá da outra porta. Ouvi um suave esparrinhar, vindo da piscina de água fria situada no compartimento do outro lado dessa porta. Tal como na noite anterior, em breve todos os habitantes da casa estariam deitados a dormir, à excepção de Catilina, que continuaria a pé, desafiando Morfeu, e quem sabe que outros deuses, a virem buscá-lo.

 

Morfeu deve ter vindo finalmente buscar Catilina e reclamou-o até muito depois de o Sol se erguer, pois só a meio da manhã Catilina e Tongílio foram à cozinha procurar comida. Ambos pareciam ter os olhos um pouco inchados pelo excesso de sono, mas estavam bastante bem-dispostos na verdade, estavam mesmo muito bem-dispostos, pensei eu desconfiado. Trocavam piadas um com o outro, riam-se muito e sorriam sem razão aparente. Estavam cheios de apetite e devoraram tudo aquilo que Côngrio lhes pôs à frente.

 

Quando terminaram o pequeno-almoço, Catilina anunciou que partiriam antes do meio-dia. Vestiram ambos túnicas azuis de montar, juntaram as suas coisas, despediram-se de Betesda, cumprimentaram Côngrio pelos seus cozinhados e carregaram os cavalos no estábulo.

 

Eu perguntei a Catilina para onde ia. Para norte, disse-me ele, observando que tinha de fazer outras visitas na Etrúria, pois estava a fazer campanha entre os veteranos de Sula, que o ditador instalara em terras que tomara aos seus inimigos. Eu fiquei a vê-los afastarem-se. Apesar de ter receado imenso a sua visita, não me sentia tão feliz por vê-lo partir como pensei que me sentiria.

 

Curiosamente, quando chegaram à Via Cássia, Tongílio e Catilina não viraram para norte, mas para sul, em direcção a Roma. Nunca teria reparado nisso, porque já não estava a observá-los, se Meto não me tivesse chamado a atenção. Ele veio a correr ter comigo aos chiqueiros e apontou para as duas figuras ao longe.

 

Como explicas aquilo, Papá?

 

É   estranho disse eu. Catilina disse que ia para norte. Pergunto a mim próprio...

 

Vou à cumeeira ver o que eles fazem gritou Meto por cima do ombro, desatando a correr. Pouco depois, eu chegava junto dele, ofegante. Ele já descobrira o ponto de vigia ideal, entre dois enormes carvalhos, resguardado da vista por trás de um maciço de espinheiros. Não era possível verem-nos da estrada, mas nós víamos claramente tudo o que se passava na Via Cássia.

 

Não foi difícil descobrir Catilina e Tongílio, já que eles eram os únicos cavaleiros que seguiam pela estrada. Parecia terem parado num ponto não muito distante da passagem entre a cumeeira e o sopé do monte Argênteo. Não era óbvio por que razão hesitavam, até que percebi que estavam à espera que passasse uma manada de vacas que se dirigia para norte. Uma vez ultrapassada a subida, as vacas deviam ter ficado fora do alcance da vista de ambos tal como Catilina e Tongílio terão ficado fora do alcance dos boieiros. Olharam furtivamente para um lado e para o outro, depois desmontaram e conduziram os cavalos para baixo de uns arbustos, na berma oriental da estrada.

 

Com as montadas presas algures fora da vista, os dois homens reapareceram, mas apenas por momentos, antes de passarem por baixo dos ramos de uma árvore frondosa e desaparecerem. Voltei a vê-los mais adiante, recuando para a estrada, mas apenas por momentos. E a cena prosseguiu, com Catilina e Tongílio aparecendo e desaparecendo, andando de um lado para o outro ao longo da estrada, como se estivessem à procura de qualquer coisa que tivessem perdido.

 

De que estão eles à procura? perguntou Meto.

 

Do trilho disse eu.

 

Qual trilho?

 

Devias ir mais adiante quando Fórfex ontem nos explicou que havia outro caminho que ia dar à mina e que partia algures da Via Cássia. Não é usado há muito tempo e deve estar coberto pelo mato. Catilina está a ver se encontra o trilho.

 

Mas porquê? Ele já foi à mina.

 

Não respondi. Pelo canto do olho, vi Meto franzir o sobrolho, não por se sentir perplexo, mas por achar que eu estava a esconder-lhe os meus pensamentos. Juntos, observámos Catilina e Tongílio andarem de um lado para o outro por entre os arbustos densos, ao longo da estrada. A certa altura, surgiu um grupo de escravos vindos do sul, ligados uns aos outros com correntes presas ao pescoço e conduzidos por libertos que empunhavam chicotes. Catilina e Tongílio desapareceram enquanto os escravos passavam, reaparecendo quando o caminho ficou livre.

 

Finalmente, desapareceram no interior de um arbusto e não voltaram a aparecer durante tanto tempo, que eu comecei a pensar que tinham descoberto aquilo que procuravam. Subitamente, Meto puxou-me pela manga. Nesse momento, ouvi um restolhar nos arbustos por baixo de nós, seguido por uma voz conhecida.

 

Não estás no teu lugar habitual oh, por favor, não pretendia assustar-te! Oh, que falta de cortesia da minha parte aparecer assim. Gordiano, perdoa-me, não me devia rir, mas tu deste cá um salto!

 

Cláudia disse eu.

 

Sim, sou apenas eu. E aqui está o jovem Meto há tanto tempo que não via este rapaz. Oh, mas não devia chamar-te rapaz, não o serás por muito mais tempo, pois não, jovem? Fazes dezasseis anos este mês, não fazes?

 

Faço disse Meto, lançando um olhar para a estrada, por cima do ombro.

 

É uma vista linda deste lado, não é? Consegue-se ver a montanha toda erguendo-se ao lado da estrada.

 

Sim, é impressionante disse eu.

 

Mas este lugar entre os espinheiros é tão pouco confortável. Venham, há um sítio aqui perto de onde se tem a mesma vista, e onde poderemos sentar-nos os três num cepo.

 

Eu encolhi os ombros, tentando não olhar para a estrada. Os meus olhos caíram sobre o cesto que Cláudia trazia na mão.

 

Oh, tens receio de te intrometer no meu almoço? De maneira nenhuma, Gordiano. Tenho pão, queijo e azeitonas suficientes para todos. Venham, não permitirei que recusem a minha hospitalidade.

 

Seguimo-la até uma clareira a alguns passos de distância. Tal como ela prometera, a paisagem era exactamente a mesma, com a diferença de que podíamos ser vistos por qualquer pessoa que passasse na estrada e olhasse para cima.

 

Pronto, não acham que é melhor? disse Cláudia, assentando o seu traseiro roliço num cepo e colocando o cesto à sua frente.

 

Muito melhor disse eu. Reparei que Meto não conseguia impedir-se de lançar olhares furtivos, mas perfeitamente óbvios, para o ponto onde tínhamos avistado Catilina e Tongílio pela última vez. Ele podia ser um bom observador, mas como actor era um desastre. Mas Meto tem de voltar para casa.

 

Oh, Gordiano, vocês, os pais romanos! Sempre tão rigorosos e exigentes. O meu pai era exactamente a mesma coisa e eu era uma rapariga! Este é um dos últimos dias de Verão da infância de Meto, e tu queres mandá-lo fazer recados ao meio-dia. Dentro de muito pouco tempo, ele será um homem, e depois disso os dias poderão voltar a ser quentes como os deste Verão, mas nunca mais serão longos e encantadores e cheios de flores e de abelhas como são para ele neste preciso momento. Por favor, permite que Meto se junte a nós.

 

Por insistência dela, Meto sentou-se à esquerda de Cláudia e eu à sua direita. Ela passou-nos a comida e esperou que começássemos antes de ela própria se servir. Tenho de admitir que, uma vez instalado em cima do tronco e com a boca cheia de queijo, Meto conseguiu fingir um interesse apenas casual pelo que se passava no sopé da montanha. O tráfego continuava a passar pela Via Cássia rebanhos de ovelhas, escravos carregando molhes de lenha às costas, um longo comboio de carroças rodeadas de homens armados que se dirigiam para sul, em direcção a Roma.

 

Vasos de Arretium declarou Cláudia.

 

Como é que sabes? disse Meto.

 

Porque consigo ver através das grades empilhadas no interior das carroças como se elas fossem invisíveis! disse Cláudia, e depois riu-se ao ver que Meto parecia levá-la a sério. Sei, Meto, porque aquelas carroças descem a Via Cássia desde a minha infância, transportando os vasos arretinos para Roma. São incrivelmente valiosos daí a guarda armada e a lenta procissão. Se levassem qualquer outra coisa suficientemente valiosa para justificar os guardas, as carroças iriam com o dobro da velocidade. O ouro e a prata não se partem, ao contrário dos finos vasos de argila.

 

O progresso das carroças ao longo da estrada parecia de facto ser muito lento. Não havia sinais de Catilina.

 

Depois, Meto emitiu um ruído estranho e, quando eu olhei para ele, fez um movimento quase imperceptível com a cabeça. Segui o seu olhar para um ponto da montanha pelo menos sessenta metros acima da estrada, onde uma mancha de azul do tom da túnica de Catilina luziu numa clareira por entre as folhas de um dossel verde. A mancha azul moveu-se e juntou-se-lhe outra; eu olhei de esguelha e as manchas azuis transformaram-se com razoável clareza em dois homens subindo a encosta da montanha.

 

Cláudia, ocupada com o cesto, não os viu.

 

Na verdade, Gordiano, eu esperava encontrar-te aqui na cumeeira, de outra maneira teria de ir fazer-te uma visita oficial e isso não teria piada nenhuma. E estou satisfeita por também te encontrar aqui, Meto, porque penso que isto também te diz respeito. Encostou-se e apertou os lábios. Por momentos, pensei que ela estava a olhar directamente para o outro lado do vale, para Catilina e Tongílio, mas ela estava apenas a olhar distraidamente para meia distância, pensando naquilo que queria dizer.

 

O que é, Cláudia?

 

Oh, isto é muito difícil...

 

Sim?

 

Esta manhã recebi uma visita do meu primo Gneu. Diz ele que ontem encontrou uns forasteiros na sua montanha, homens vindos de Roma que tinham ido visitar a velha mina.

 

Ai sim? Eu olhei em frente e vi que Catilina e Tongílio tinham voltado a desaparecer no meio da folhagem.

 

Sim. Parece que um deles quer comprar a velha mina ou representa alguém que quer comprá-la. É uma tolice, se queres saber a minha opinião... a mina não vale nada. Já não há prata a extrair de lá. De qualquer maneira, Gneu perguntou-me se eu tinha visto alguém a andar pela montanha ontem... de minha casa avista-se uma grande parte do velho trilho, sabes, embora esteja muito longe. Bem, a verdade é que não, eu não tinha visto nada e os meus escravos também nada tinham visto na vertente da montanha.

 

Cláudia fez uma pausa para comer uma azeitona.

 

Diz Gneu que não conhecia nenhum daqueles homens, e que apenas um deles se incomodou a apresentar-se era um dos Sérgios, de Roma, como te disse. Mas depois Gneu interrogou o cabreiro que tinha ido mostrar a mina aos forasteiros, um tolo chamado Fórfex, e sabes o que lhe disse o homem?

 

Não imagino.

 

Disse que, juntamente com esse Sérgio, ia um homem mais jovem que parecia ser o seu companheiro, bem como um homem de meia-idade e um rapazinho. Não os conhecia, mas parecia-lhe recordar-se de ouvir um deles tratar o homem por Gordiano. Olhou para mim e ergueu uma sobrancelha.

 

Eu pensei por momentos.

 

Gneu viu pessoalmente esses quatro visitantes?

 

Sim, mas a luz já era fraca. E, apesar de ser jovem, Gneu já não vê muito bem. É por isso que raramente consegue acertar num javali.

 

Ah. Então estás a perguntar-me...

 

Não, não estou a perguntar-te coisa nenhuma. Já percebi pela tua cara. Bem, não percebi tudo, mas percebi o suficiente. Se queres ir bisbilhotar à propriedade do meu primo, isso é uma questão entre ti e ele. E se Gneu quiser confrontar-te com isso, ele que o faça. Eu não sou moça de recados. Contudo, Gordiano, eu estaria a ser descuidada, enquanto parente de Gneu e boa vizinha tua, se não te dissesse nada. Gneu não ficou satisfeito quando Fórfex lhe repetiu o teu nome, nem estava satisfeito quando veio visitar-me esta manhã. Duvido de que venha ver-te ou sequer te mande alguma mensagem; ele prefere manter-se em silêncio e matutar, desaparecendo nos bosques atrás dos javalis. Mas, se estás metido em algum assunto desagradável, aconselho-te a que ponderes muito cuidadosamente a tua posição, Gordiano. Tem cuidado! Os meus parentes não gostam que brinquem com eles. Eu só consigo apaziguá-los até certo ponto. Digo-te isto como amiga.

 

Fez uma pausa por momentos para deixar pousar o assunto, depois inclinou-se e meteu a mão dentro do cesto.

 

E agora tenho uma surpresa... bolos de mel! Feitos pelo meu novo cozinheiro esta manhã. Ai de mim, não é nenhum Côngrio, mas tem mão para os doces.

 

Meto, lá conseguiu afastar os olhos da encosta da montanha; sempre gostara muito de mel. Comeu rapidamente o bolinho e depois lambeu as pontas dos dedos. Cláudia ofereceu-me um bolo, mas eu recusei.

 

Não gostas de doces, Gordiano? O meu cozinheiro levará muito a mal se eu lhos devolver.

 

Uma pontada do mal de Cícero disse eu, tocando no estômago e franzindo o sobrolho.

 

Oh, e eu que fui perturbar-te a digestão com toda esta conversa acerca de Gneu. Que insensato da minha parte, dar-te pão e queijo e notícias desagradáveis ao mesmo tempo. Talvez um bolo de mel te apazigue o estômago.

 

Penso que não. Não eram apenas as notícias que Cláudia me trouxera que me perturbavam o estômago, era a tensão de saber que a qualquer momento ela podia detectar Catilina na encosta ou emergindo na estrada. O verdadeiro remédio seria ela ir-se embora. Mas ela ainda não tinha acabado.

 

Então a festa da toga é este mês. Em que dia?

 

Dois dias antes dos Idos.

 

Ah, mesmo a seguir às eleições.

 

Eu acenei com a cabeça mas nada disse, esperando que o meu silêncio afastasse a conversa da política. Já era suficientemente mau que eu tivesse planeado estar na cidade imediatamente depois das eleições. Quer Catilina vencesse, quer não, era provável que os seus apoiantes ou os seus inimigos andassem pelas ruas, provocando tumultos de protesto. E se, como Célio sugerira, estivesse de facto a preparar-se uma revolução, então Roma era o último lugar do mundo onde eu queria estar. Cláudia acenou com a cabeça e sorriu.

 

Dentro de dez dias, serás um homem, Meto! Mas guardo as minhas felicitações para essa altura. Presumo que fareis uma pequena celebração na cidade antes de ele dar a sua volta pelo Fórum. Seria um grande atrevimento da minha parte solicitar um convite?

 

Estarás na cidade nessa altura, Cláudia?

 

Receio que sim suspirou ela. Juntamente com os meus queridos primos. Eles planeiam ir todos à cidade para votar. Com receio de que Catilina consiga vencer, percebes? A votação compete exclusivamente aos homens, e normalmente eu não vou a Roma nesta altura do ano, mas agora não tenho maneira de escapar. Trata-se daquela casa do Palatino que Lúcio me deixou estou a pensar em alugá-la e o escravo que toma conta dela mandou-me dizer que precisa de algumas obras. Bem, não estou disposta a deixar um dos antigos escravos de Lúcio mandar fazer os arranjos e gastar o meu dinheiro. Quero ser eu a supervisionar tudo. Parto amanhã e suspeito de que estarei por lá a maior parte do mês. Ergueu as sobrancelhas e olhou para mim, na expectativa.

 

Então é óbvio que tens de vir à festa de anos de Meto disse eu.

 

Oh, obrigado! Adorava assistir. Como eu nunca tive filhos, percebes... A sua voz fraquejou. E levarei bolos de mel! acrescentou, animando-se. Meto vai gostar. Estendeu a mão e tocou-lhe no ombro. Meto sorriu um pouco, envergonhado, e depois uma estranha expressão atravessou-lhe o rosto.

 

Estava a ver qualquer coisa lá em baixo. Eu segui a direcção do seu olhar e vi Catilina e Tongílio emergirem dos bosques e entrarem na estrada.

 

Cláudia pareceu detectar que se passava qualquer coisa, porque olhou para Meto com estranheza e depois pousou os olhos em mim.

 

Talvez... comecei eu. Afinal talvez coma um desses bolos de mel.

 

Ah, excelente, deixa-me ver, tens aqui um óptimo mesmo por cima disse ela, inclinando-se para o cesto.

 

Peguei no bolo e olhei-a de frente enquanto o mordia. Ela sorriu e acenou com a cabeça, depois olhou subitamente para baixo, para a estrada.

 

Olhem disse ela. Quem são aqueles homens e de onde vêm eles?

 

Comecei a falar, mas engasguei-me e o bolo pareceu transformar-se-me em pó na garganta. Vendo-me desamparado, Meto pegou na deixa.

 

Que homens? perguntou ele, inocentemente.

 

Aqueles dois homens ali, a cavalo. De onde é que eles vieram? Cláudia franziu a sua testa carnuda, inclinou a cabeça e afastou uma madeixa de cabelo ruivo que escapara do rolo.

 

Meto encolheu os ombros.

 

São apenas dois homens a cavalo.

 

Mas dirigem-se para norte. Não os vi aproximarem-se. Olhem, consegue-se ver toda a extensão da Via Cássia para sul até meio caminho de Roma... está bem, estou a exagerar, mas mesmo assim tê-los-íamos visto aproximar-se durante quilómetros. E subitamente aparecem dois cavaleiros vindos do nada.

 

Nem tanto. Eu vi-os aproximarem-se disse Meto com naturalidade.

 

Viste?

 

Durante algum tempo. Acho que foi quando tu apontaste para as carroças com os vasos arretinos que iam a passar. Sim, reparei em dois cavaleiros, que vinham do sul, a certa distância. E olha agora, as carroças já atravessaram metade da distância. O que significa que os cavaleiros circulam com o dobro da velocidade das carroças. Não é verdade, Papá?

 

Eu acenei com a cabeça, entorpecido, ainda a tossir, e retirei a minha fraca opinião dos talentos de Meto como actor. Cláudia continuava hesitante.

 

Viste-os aproximarem-se a cavalo durante todo este tempo... passarem as carroças e aproximarem-se?

 

Meto acenou com a cabeça.

 

E tu também, Gordiano?

 

Eu encolhi os ombros e acenei com a cabeça.

 

Dois cavaleiros na Via Cássia disse eu. Provavelmente provenientes de Roma.

 

Cláudia estava perturbada.

 

E como é que eu não reparei neles? Ciclopes e Edipo, devo estar a ficar com os olhos tão fracos como os de Gneu.

 

Não é assim tão estranho garanti-lhe eu.

 

Estavas distraída com a nossa companhia e não reparaste. Não é caso para tanto.

 

Não gosto de cavaleiros que aparecem vindos do nada resmungou ela. Não gosto de me sentir... A voz fraquejou-lhe, mas depois ela conseguiu sorrir. Mas tens razão, estou a ser tola. Sou apenas uma velha tonta metida nas suas coisas, que fica perturbada quando é apanhada de surpresa, e ainda mais perturbada quando percebe que já não é tão viva como julga que é. Muito bem, já comeram bolos suficientes? Pronto, vou embrulhá-los outra vez, para não se estragarem. Os deuses desprezam um homem que desperdiça, costumava dizer o meu pai. Tenho mesmo de ir andando. Pronto, obrigada, Meto, por me ajudares a arrumar as coisas.

 

Pegou no cesto, levantou-se e endireitou as costas.

 

Parto para Roma amanhã e só voltarei daqui a muito tempo podes imaginar a quantidade de instruções que tenho de deixar aos escravos e a confusão que vai naquela casa, com o novo cozinheiro, já para não falar das malas por fazer! Oh, odeio a confusão não consigo imaginar o que passou pela cabeça de Lúcio, para me deixar a casa da cidade! Mas ainda bem que consegui encontrar-vos aqui na cumeeira. E voltarei a ver-vos no dia da toga de Meto! A festa será em tua casa?

 

Sim, agora é a casa de Eco. No Esquilino. E um pouco difícil de encontrar...

 

Ah, mas tu e Lúcio eram grandes amigos. Tenho a certeza de que os antigos escravos dele saberão onde é. Não deixarei de estar presente.

 

Gostaríamos muito que estivesses.

 

E, Gordiano... pensa seriamente naquilo que eu te disse sobre Gneu. Tens de ter cuidado. Tens de pensar na tua família. Antes de se voltar, o seu rosto assumiu uma expressão austera, quase severa.

 

No momento em que ela desaparecia por entre os arbustos, eu lambi o mel dos lábios e apeteceu-me subitamente outro bolo, mas era tarde de mais. Entretanto, Catilina e Tongílio tinham tomado velocidade e avançavam rapidamente pela Via Cássia. Meto e eu observámo-los um pouco mais, vendo as duas figuras vestidas de azul misturar-se com o horizonte a norte, obscurecidas pelo calor ondulante que se erguia das pedras do pavimento, queimadas pelo Sol.

 

Catilina é um homem fascinante disse Meto.

 

Catilina disse eu é uma mancha no horizonte.

 

Os dias seguintes passaram sem incidentes ou antes, sem interlúdios desagradáveis da variedade Nemo. Mas nem por isso deixou de haver uma abundância de incidentes, porque transportar uma família inteira do campo para a cidade, ainda que para uma breve visita, implica uma logística e uma planificação complexas. Quando penso que grandes generais como Pompeu conseguem deslocar os seus exércitos sobre vastas arenas, por terra e por mar, juntamente com tendas e utensílios de cozinha e provisões e todas as coisas necessárias à vida do dia-a-dia, fico verdadeiramente espantado.

 

Arato disse-me que sempre estivera encarregado de ajudar Lúcio a fazer as malas, e uma vez que Lúcio fazia viagens frequentes entre a cidade e o campo, e tinha certamente viajado com luxo considerável, a princípio esta afirmação impressionou-me. Depois percebi que, sendo um homem abastado, Lúcio podia permitir-se possuir tudo aos pares, não tendo por isso grande necessidade de andar com os seus bens às costas de um lado para o outro, como uma tartaruga. Por outro lado, Betesda e eu tínhamos de planear as coisas com todo o cuidado para que Eco não ficasse sobrecarregado por nossa causa e a quinta ficasse adequadamente fornecida na nossa ausência. Era uma tarefa considerável.

 

Ainda assim, consegui arranjar tempo para dar início à construção do moinho de água. Era o momento ideal para este projecto, porque o tempo continuava limpo e quente e o fluxo de água no ribeiro diminuía apreciavelmente de dia para dia. Isto facilitava a remoção de pedras e o enchimento das áreas que tinham de ser niveladas com saibro e ladrilhos. Fiquei perturbado ao ver como a corrente ia ficando lenta e a água diminuía de volume, mas felizmente que a quinta dispunha de um poço na base da cumeeira. O poço existia desde tempos imemoriais, contou-me Arato. Estava situado entre as oliveiras e era rodeado por um muro de pedra baixo. Era tão fundo, que quase se não ouvia o eco proveniente das suas negras profundezas de água. O velho poço sempre fora de confiança, garantiu-me Arato, mesmo nos anos de seca.

 

Entretanto, entre o trabalho no moinho e os preparativos para a viagem a Roma, beneficiei de um repouso nas minhas preocupações com visitantes indesejados. As eleições seriam no quinto dia antes dos Idos; assim, a luta eleitoral ficaria decidida antes de nós partirmos para Roma. Eu poderia chegar à cidade sem ter de voltar a pensar no assunto; esperava poder gozar a companhia de Eco e o dia da ascensão de Meto à masculinidade sem mais preocupações com questões sobre as quais não tinha qualquer controlo e que não me interessavam. Catilina seria eleito, ou não seria, mas em qualquer dos casos a sua breve incursão na minha vida teria terminado.

 

Preocupava-me que o mistério da morte e da identidade de Nemo e do seu aparecimento no meu estábulo não tivesse chegado a ser explicado, mas teria ficado muito mais preocupado se se tivessem seguido novas ameaças, ou se Diana e Betesda tivessem de ficar na quinta enquanto eu ia para Roma. Mas a família estaria toda na cidade, reunida em segurança em casa de Eco, pelo menos com a segurança possível numa cidade como Roma.

 

No dia antes da partida, retirei alguns momentos aos preparativos para a viagem e ao trabalho no moinho e afastei-me sozinho para o sítio onde Meto, Arato e eu tínhamos enterrado Nemo. Postei-me diante da esteia simples e passei os dedos pelas letras verticais com o nome de ninguém.

 

Quem eras tu? disse eu. Como morreste? O que aconteceu à tua cabeça e quem fez com que eu te encontrasse no meu celeiro? Tentei convencer-me de que o incidente terminara de vez, mas ao mesmo tempo senti outra coisa qualquer, mais difícil de dissipar do que um vago mau presságio: um sentimento de culpa e de fracasso, de obrigação negada. Não se tratava da minha obrigação para com Cícero, de que já me libertara, mas para com a sombra de Nemo.

 

Encolhi os ombros. Para aliviar uma prega nos músculos, pensei ou seria para mostrar a minha indiferença para com o morto descontente? Afinal, o que devia eu a Nemo.; Se tivesse visto o seu rosto, tê-lo-ia conhecido? Parecia-me improvável. Ele não fora um cliente nem um amigo, tanto quanto eu tinha maneira de saber. Eu nada lhe devia. Encolhi os ombros mas não voltei as costas à sua pedra tumular, antes dei por mim a olhar fixamente para ela, estudando cada uma das quatro letras do nome que eu próprio lhe dera, que não era nome nenhum, mas o oposto de um nome.

 

Há homens que vivem com mistérios e nunca chegam a conhecer a verdade, dia após dia; era uma forma de sobreviver num mundo em que a verdade é sempre perigosa para alguém. Eu também viveria na ignorância, e havia de prosperar e de proteger a minha família. Faria aquilo que os poderosos me pediam e para além disso meter-me-ia na minha vida. Foi isso que disse a mim próprio, mas com pouca convicção. Por que tinha ido ao sítio onde estava enterrado Nemo, senão para lhe prestar homenagem e conversar com a sua sombra? Eu fizera a outros homens mortos o voto de descobrir os seus assassinos, para que houvesse alguma aparência de justiça. Fizera-o porque os deuses me tinham criado teimoso e insatisfeito com a ignorância e a injustiça. Mas nunca fizera um voto a Nemo enquanto ele era vivo, argumentei, discutindo comigo próprio; ele não era ninguém, eu nada lhe devia.

 

Voltei as costas à esteia, mas não sem uma certa dificuldade; quase senti a mão de Nemo no meu ombro, detendo-me, tentando extrair-me uma promessa que eu não queria fazer. Precipitei-me dali para fora, amaldiçoando toda a gente, desde Numa até Nemo, e regressei ao ribeiro.

 

Nessa tarde gritei com Arato sem razão, e depois do jantar Betesda disse-me que eu tinha estado todo o dia maldisposto como uma criança. Na cama, fez o possível por me levantar o moral e finalmente conseguiu levantar-me outra coisa. Dentro dos recessos familiares do seu corpo, eu encontrei um suave conforto que me fez lançar as preocupações para trás das costas. Depois, Betesda tornou-se tagarela. Começou a falar rapidamente, aos arrancos, o que não tinha nada a ver com a sua habitual forma lânguida de falar, especialmente a seguir ao sexo. Estava excitada com a possibilidade de regressar à cidade depois de uma tão longa ausência. Catalogava todos os templos que iria visitar, os mercados onde faria compras, os vizinhos que impressionaria com o seu novo estatuto de matrona do campo.

 

Finalmente, cansou-se. Começou a falar mais lentamente e num tom mais profundo, mas eu tinha a certeza, apesar de estar de olhos fechados, de que ela sorria enquanto falava. A sua felicidade consolou-me e eu adormeci ao som da música relaxante da sua voz.

 

Os deuses sorriam no dia da nossa viagem. O calor abrandou e de vez em quando soprava uma brisa sobre as pedras do pavimento da Via Cássia. Uma procissão de nuvens brancas e fofas atravessava o céu, ameaçando chuva, mas proporcionando longas passagens de sombra apaziguadora. Não se partiu nenhum eixo da carroça onde iam Betesda e Diana e os cavalos em que Meto e eu seguíamos não se queixaram. Escolhi alguns dos escravos mais morenos e feios para nos acompanharem como guarda-costas mais pelo espectáculo do que pelos seus talentos como lutadores e, embora tivessem pouca prática de montar, eles conseguiram fazer a viagem sem contratempos.

 

A norte de Roma, a Via Cássia divide-se em duas. O ramal do sul, que é o mais pequeno, contorna as colinas do Vaticano e de Janículo e vai dar à Via Aurélia, que atravessa o próprio coração da cidade, segue as antigas pontes que passam pelos grandes mercados de gado e continua em direcção ao Fórum. Entrar pela Via Aurélia é sempre impressionante o primeiro vislumbre do Tibre brilhando ao sol, salpicado de barquinhos e com uma série de armazéns e estaleiros alinhados nas suas margens; o ruído dos cascos dos cavalos nas pontes; a imponente linha do céu da grande cidade, dominada pelo Templo de Júpiter, no alto do Capitólio; o lento progresso pelos mercados e o espectáculo do Fórum, com a sua magnífica exibição de templos e tribunais. Teria sido a maneira mais adequada de entrar na cidade para celebrar a maturidade de Meto como cidadão romano, mas o simples pragmatismo levou-me decidir em contrário, porque o trânsito que entra na cidade pela Via Aurélia num fim de tarde pode ser tão lento como o pulso de um homem morto, e com uma carroça na nossa comitiva eu temia ficar entalado numa das pontes ou entre as bancas dos mercados.

 

Tomámos, pois, o ramal principal da Via Cássia, o ramal leste, que vai dar à Via Flamínia ao pé do Tibre, a certa distância da periferia norte de Roma, e atravessa o rio na Ponte Mílvia. A entrada em Roma por esta via é menos espectacular, porque o campo vai ficando para trás e a cidade vai-se insinuando por etapas, de maneira que o viajante passa da extremidade exterior para o próprio interior da grande cidade sem dar conta disso. Deixa para trás os terrenos militares e os espaços abertos do Campo de Marte, à direita, e depois os grandes quiosques de votação (vazios e provavelmente cheios de lixo depois das eleições do dia anterior, pensei eu) e a Porta Flamínia, entrando finalmente na cidade propriamente dita. O nosso caminho passaria bastante a norte do Fórum, e conduzir-nos-ia a casa de Eco, no monte Esquilino, com pouco mais do que um vislumbre de um sacerdote ou de um político e muito menos trânsito do que se tivéssemos optado pela Via Aurélia.

 

E, no entanto, à medida que nos aproximávamos do cruzamento das Vias Cássia e Flamínia, o trânsito era cada vez mais abundante, parecendo virtualmente parado na Ponte Mílvia. Havia veículos e cavaleiros de todos os tipos velhos em carros de bois, grupos de jovens a cavalo, camponeses conduzindo o seu gado ao mercado. Pareceu-me ser o género de multidão que se amontoa na cidade em dias de eleições, quando as pessoas acorrem de toda a Itália para lançar o seu voto; mas o trânsito fluía abundantemente em ambas as direcções e as eleições já tinham passado. Pelo menos, eu tinha razões para pensar que assim era.

 

Enquanto abríamos caminho em direcção à ponte, o ruído da multidão ressoava-me aos ouvidos pessoas a gritar, chicotes a estalar, rodas que se partiam, burros que zurravam. O trânsito empurrava-nos de ambos os lados, de maneira que nós avançávamos sem grandes alternativas, como folhas empurradas por uma torrente preguiçosa. Felizmente, o fluxo levou-nos para um canal mais vigoroso, enquanto à nossa volta outros ficavam entaipados em remoinhos lentos, e conseguimos manter a nossa comitiva unida, apesar do ruído e da confusão. Olhei por cima do ombro e vi que Betesda perdera a compostura e gritava qualquer coisa em Egípcio a um camponês que passava, e que por qualquer razão a ofendera. Ouvi um grito diante de mim e, quando me voltei, vi que o meu cavalo quase pisara uma criança que caíra de uma carroça que passava. Um escravo saltou da carroça para apanhar a criança, enquanto o seu senhor começava a gritar e a gesticular ferozmente, mas era impossível perceber se ao escravo, à criança ou a mim. Fui empurrado de ambos os lados por dois homens a cavalo, que descobriram uma aberta e avançaram para a minha frente. Ainda íamos a meio da ponte e eu já sentia vontade de dar meia volta e voltar para o campo.

 

O regresso à cidade! pensei com um gemido, mas nada disse, considerando que não valia a pena estragar a ocasião do regresso de Meto a Roma. De qualquer maneira, ele provavelmente não me ouviria por causa do barulho e a verdade é que parecia perfeitamente indiferente à perturbação e ao desconforto que o rodeava. A expressão do seu rosto quando entrámos na zona mais apertada da Ponte Mílvia era de puro deleite, como se estivesse a gostar de ser empurrado e da agitação e dos cheiros de tantos homens e tantos animais misturados uns com os outros. Olhei para trás, para a carroça, e vi que Betesda também sorria, como se ter exercitado os pulmões com um forasteiro a tivesse aliviado. Tinha Diana no colo e as duas batiam as palmas, riam e apontavam para um rebanho de cabras que baliam, enquanto passavam precipitadamente por nós.

 

Finalmente, a provação terminou e chegámos à outra margem do Tibre. O tráfego diminuiu um pouco, mas continuou a ser abundante em ambas as direcções. Num ponto alto da estrada, espreitei para diante, para o percurso a direito da Via Flamínia. Ao longo da estrada que ia dar ao Campo de Marte, havia carroças paradas à beira do caminho e os ocupantes pareciam estar a preparar-se para passar ali a noite. Era o género de cena que se vê em tempos de guerra, quando grandes massas de pessoas se lançam improvisadamente ao caminho, mas a verdade é que não havia qualquer sensação de pânico no ar. Era óbvio que aquela estranha confusão tinha qualquer coisa a ver com as eleições, mas o quê?

 

Olhei à volta e vi um camponês de expressão amigável montado no seu cavalo. Tinha o cabelo cor de cobre e uma cara redonda que me recordaram o meu velho amigo Lúcio Cláudio, embora Lúcio nunca tivesse aparecido em público com uma túnica tão cheia de nódoas como a dele. O homem também tinha as faces e o nariz vermelho de Lúcio e o seu ar despreocupado, mas esses podiam ser atribuíveis ao consumo do conteúdo do odre de vinho esvaziado que trazia pendurado ao ombro. Saudei-o e coloquei-me ao seu lado.

 

Cidadão, como explicas tudo isto? disse eu.

 

O quê?

 

Esta multidão. As carroças ao longo da estrada. Ele encolheu os ombros e arrotou.

 

Têm de dormir em algum sítio. Eu próprio regressei a casa, a Veii, e agora estou de volta. Não havia espaço para mim e para o resto da minha família na casa do meu primo, em Roma. Não podia propriamente acampar ao lado da estrada como estes, pelo menos sozinho.

 

Não compreendo. As pessoas saem de Roma e depois regressam? Ele olhou para mim com um ar um pouco desconfiado.

 

Queres dizer que estás a chegar? Mas tu és um cidadão. Ele olhou para o anel de ferro que eu tinha no dedo, para confirmar a sua impressão.

 

Isto tem alguma coisa a ver com as eleições consulares?

 

O quê, não sabes? Não ouviste dizer? Ele lançou-me aquele olhar de satisfação presumida que os cidadãos que votam reservam àqueles que não votam. As eleições foram canceladas!

 

Canceladas?

 

Ele acenou com gravidade.

 

Pelo próprio Cícero Boca de Ouro. Ele reuniu o Senado e convenceu-os a cancelá-las. Imundos Optimates.

 

Mas porquê? Qual foi a justificação?

 

A justificação, ou mais exactamente o pretexto, foi que Catilina está a maquinar uma conspiração terrível para destruir o Senado, como se a maioria deles não merecesse que lhe cortassem o pescoço, e que portanto não é seguro manter as eleições. Aconteceu tudo há uns dias mas tu vives numa caverna? Foram enviados mensageiros a toda a Itália, dizendo às pessoas que não viessem a Roma porque as eleições tinham sido adiadas. Bem, houve uma série de pessoas que não acreditaram pensaram que se tratava apenas de um truque para nos afastar das eleições. Parece o género de coisa que os Optimates fariam, não parece? Por isso, viemos mesmo. Ao ver esta multidão, os Senadores preparavam-se para manter as eleições. Mas, no dia anterior, viram-se uns raios no horizonte, num céu azul sem nuvens, e nessa noite houve um pequeno terramoto. Na manhã seguinte, foram lidos os auspícios e os augures declararam que os augúrios eram terríveis. Os quiosques de votação foram todos fechados. As eleições? Indefinidamente adiadas, dizem eles. Em nome do Hades, o que significa isso? Depois começaram a correr boatos, dizendo que as eleições teriam lugar dentro de dois dias, ou três, ou dez. É por isso que vês as pessoas a saírem de Roma e a regressarem e a passarem umas pelas outras em ambas as direcções. A última coisa que ouvi dizer é que as eleições serão provavelmente depois de amanhã.

 

O quê!

 

Sim, no mesmo dia das eleições para os pretores. Foi por isso que eu regressei hoje. Estou a ver que, em vez de as fazerem daqui a dois dias, vão tentar fazê-las amanhã, estás a ver, para eu aparecer um dia atrasado! Mas eu não me deixarei enganar por esses sujos Optimates. Estarei no Campo de Marte à porta dos quiosques de votação amanhã de manhã bem cedinho, pronto para ser contado juntamente com o resto da minha tribo, e se for necessário vou lá outra vez no dia seguinte e no outro. Por Catilina! gritou ele abruptamente, erguendo o punho.

 

À nossa volta, de um pequeno círculo que conseguiu ouvir a voz do homem por cima do barulho, ergueu-se uma série de punhos e o nome ”Catilina!” foi gritado uma vez e outra, até que diversas vozes o transformaram numa espécie de canto.

 

O homem sorriu perante a manifestação de apoio que provocara, depois voltou-se novamente para mim.

 

Claro que nem todos podem ficar em Roma indefinidamente disse ele, com o sorriso a morrer-lhe nos lábios. É por isso que vês esta gente toda partir na direcção oposta. Os cidadãos comuns têm de regressar às suas quintas, não é verdade? Têm de se preocupar em ganhar a vida e em cuidar das suas famílias. Não são como os Optimates, que podem viajar à sua vontade e nunca falhar umas eleições. Ele olhou-me de alto abaixo, desconfiado. Presumo que tu não sejas um dos ”Melhores”?

 

Não tenho de me justificar perante ti, cidadão lancei eu, e depois percebi que não estava irritado com o homem, mas com aquilo que ele me dissera. Quer dizer que aquilo que eu mais escrupulosamente procurara evitar ia acontecer, e que eu estaria em Roma durante as eleições consulares! Os deuses estavam a brincar à minha custa, pensei eu. Não era de estranhar que não tivéssemos tido contratempos na viagem os deuses insistiam em que eu chegasse a Roma, para que pudesse sofrer durante as eleições! Desatei a rir. Depois parei, apercebi-me de que me sabia bem rir, e por isso voltei a dar umas gargalhadas. O outro homem começou a rir comigo, mas foi interrompido por um grande arroto.

 

Voltou a erguer o punho.

 

Por Catilina! Eu parei de rir.

 

Até ao dia em que a loucura tenha finalmente terminado disse eu baixinho.

 

O que é que disseste? perguntou o homem, inclinando-se na minha direcção. Eu limitei-me a abanar a cabeça, abrandei o passo do cavalo e acenei-lhe com a mão, enquanto ele me ultrapassava.

 

Fomos avançando, lenta mas firmemente, em direcção ao centro da cidade. Grandes nuvens de fumo e de pó subiam ao céu no Campo de Marte, onde milhares de eleitores de fora de Roma tinham montado os seus acampamentos; num dia normal, haveria corredores de carros a treinar e soldados a encenar batalhas fingidas no descampado. A

Villa Pública, o espaço aberto onde os eleitores se congregavam, e os quiosques de votação contíguos, que pareciam um labirinto de recintos para ovelhas, estavam fechados e vazios. O trânsito voltava a ser mais lento na Porta Flamínia mas, passados os portais, encontrámo-nos finalmente dentro das antigas muralhas da cidade, na gloriosa Roma.

 

O Sol estava a pôr-se a oeste, lançando uma névoa vermelha sobre os telhados, mas Roma estava ainda muito desperta, especialmente na azafamada Via Subura. A conhecida rua levava ao coração da cidade, não aos sítios onde se erguem orgulhosamente os templos e os palácios, mas ao bairro dos talhantes e dos bordéis e dos antros de jogo. Os odores da cidade assaltaram-me as narinas a excremento de cavalo e a fumo de fornalhas, a peixe cru e a perfume, uma baforada de urina de uma latrina pública misturada com o aroma de pão acabado de cozer. Num único quarteirão, vi mais caras do que as que vira durante um ano inteiro no campo, vi corpos velhos, gordos, jovens, flexíveis, vestidos com túnicas e togas dispendiosas ou cobertos de farrapos, ou quase nus. As mulheres debruçavam-se das janelas dos andares superiores dos edifícios baratos para coscuvilharem com as vizinhas do outro lado da rua. Havia rapazinhos que jogavam trígono numa praça aberta, formando um triângulo e atirando as suas bolas de couro para um lado e para o outro. Uma etíope vestida de vermelho, com a pele cor de ébano lustroso, enchia o seu cântaro de água no fontanário público.

 

O fontanário chamou-me a atenção. Era o principal ornamento do bairro que servia, e tinha uma gamela para os cavalos e uma bica para as pessoas. A bica era de mármore esculpido e tinha a forma de uma dríade ajoelhada que deitava água de um vaso. Aquele fontanário estava ali desde a minha infância. Não tinham conta as vezes que eu pusera os lábios por baixo da bica para beber um pouco de água fresca, que enchera nele o meu odre, que dera de beber ao meu cavalo na gamela. Nada poderia ser mais vulgar, mas a verdade é que aquele fontanário, e não apenas o fontanário mas tudo o que me rodeava, me parecia simultaneamente desconhecido e familiar. Deixara Roma para sempre, pensei, mas agora que regressara não podia negar que, por muito que eu partisse para longe e por muito tempo que estivesse ausente, Roma seria sempre a minha casa.

 

Olhei para trás, para a carroça. Diana estava exausta. Estava aninhada contra a mãe, profundamente adormecida apesar dos solavancos do caminho. Betesda segurava-lhe numa mãozinha e afagava-lhe o cabelo. Sentindo o meu olhar, ergueu os olhos e sorriu-me. Eu sabia que, naquele momento, tínhamos o mesmo sentimento de regresso a casa, mas ela tinha menos receio de o sentir e menos receio de o mostrar.

 

   A cidade era a nossa cidade, por muito que eu o negasse ou por muito profundamente que me enterrasse no campo. Inspirei profundamente, inalando o cheiro da Subura; depois abri muito os olhos e tentei ver tudo o que me rodeava ao mesmo tempo. Voltei-me e vi que Meto olhava para mim com estranheza, como eu devo olhar para ele tantas vezes quando o vejo contemplar o mundo que o rodeia com os olhos abertos de espanto. Não há no mundo outro lugar como Roma.

 

Chegámos à minha antiga casa no monte Esquilino sujos, esfomeados e exaustos. A luz que esmorecia passara de vermelho a um azul-enublado. As lamparinas da casa já tinham sido acesas. Chegáramos mais tarde do que esperávamos, mas Eco, conhecendo o estado caótico das estradas que iam dar à cidade, disse-me que estava surpreendido por nos ver tão cedo.

 

Vieram pela Via Flamínia, não foi? disse ele, batendo as palmas para chamar os escravos, a fim de que nos ajudassem a desfazer as malas. Eu acenei com a cabeça. Fizeram bem disse ele. Dizem que as pontes da Via Aurélia são um pesadelo. Dizem que há carroças com esqueletos às rédeas.

 

Com os esqueletos dos bois que as puxavam? Eco riu-se e acenou com a cabeça.

 

É   uma piada que se conta na Subura.

 

Típico da Subura disse eu, secamente. Aquele sentido de humor macabro era-me familiar mas desconhecido, como a própria cidade, como a casa em que me encontrava. Esta fora durante muitos anos a minha casa, e antes disso era a casa do meu pai. Aqui estava o jardim e o átrio onde eu recebera tantos visitantes ao longo dos anos, e onde conhecera o meu querido amigo Lúcio Cláudio quando ele veio consultar-me depois de ter visto um morto a andar pela Subura.

 

O jardim está muito bem cuidado disse eu, com um ligeiro aperto na garganta.

 

Sim, é Menénia quem supervisiona a jardinagem. Ela gosta de cultivar coisas.

 

Mandaste pintar as paredes. Vejo que substituíste as telhas soltas e que mandaste endireitar os gonzos da porta principal. Até a fonte parece estar a funcionar.

 

Eco sorriu e encolheu os ombros.

 

Queria que estivesse tudo arranjado para o dia de festa de Meto. Ah, aí vem Menénia.

 

A minha nora aproximou-se com os olhos baixos, cumprimentando-me com a deferência devida a um patriarca romano. Fora um excelente casamento para Eco, considerando as origens humildes do meu filho e a antiguidade do nome de família da sua mulher. Ele escolhera uma beleza de cabelos negros e pele cor de azeitona como Betesda, e julgo que isso agradou à sua mãe adoptiva, ainda que ela não o mostrasse.

 

O céu escureceu rapidamente, ficando de um azul-profundo salpicado de estrelas, que piscavam como pedacinhos de gelo. Os escravos trouxeram mesas e canapés para o ar livre e serviram-nos uma refeição vigorosa, que se adequava a viajantes abatidos, embora nós estivéssemos quase demasiadamente cansados para conseguirmos comer. Antes de o céu passar de azul-escuro a preto, já toda a gente estava deitada, excepto Eco e eu.

 

Quando ficámos sozinhos, ele fez-me algumas perguntas acerca de Nemo e da visita de Catilina. Eu respondi-lhe fatigadamente e, quando ele percebeu que a situação parecia ter chegado a uma inofensiva, ainda que não satisfatória, conclusão, não insistiu. Informou-me de que a última coisa que se dizia acerca das eleições era que seriam daí a dois dias por outras palavras, no dia a seguir à cerimónia da toga de Meto, estando nós ainda em Roma.

 

Ah, bem suspirei eu em dia de eleições, Roma é insuportável! Vamos certamente ter uma experiência da grande cidade em todo o seu explendor.

 

Eco levou-me ao meu antigo quarto, onde Betesda já estava a dormir e de onde ele e Menénia se tinham deslocado para no-lo cederem. Meto e Diana dormiam no quarto ao lado. Onde ia ele dormir e como é que tinha organizado os seus escravos domésticos de forma a arranjar espaço para os meus, era coisa que eu estava demasiadamente cansado para tentar perceber. Deitei-me ao lado de Betesda, que suspirou a dormir e rodou as ancas para me acomodar, e adormeci logo que a minha cabeça tocou na almofada e que os meus lábios se encostaram ao seu cabelo perfumado.

 

Fui acordado por um estranho soluçar.

 

Acordei em fases lentas e irregulares, como acontece aos homens da minha idade quando são arrastados de um sono profundo de total esgotamento. Por momentos, não percebi onde me encontrava o que foi uma experiência estranha, pois estava na casa onde vivera a maior parte da minha vida. Os móveis tinham mudado de lugar, era esse o problema, e a cama era diferente.

 

Os soluços que me acordaram vinham do quarto ao lado.

 

Pensei em Diana. Veio-me à mente a imagem dela a deparar com o corpo decepado de Nemo, e fiquei imediatamente desperto, consciente embora ainda desorientado. O meu coração começou a bater muito depressa, mas os meus braços e as minhas pernas estavam atrasados. Levantei-me, bati com o cotovelo na parede e amaldiçoei o rei Numa.

 

Mas não era Diana quem soluçava o ruído não era suficientemente agudo nem infantil. Nem eram exactamente soluços, era um choro rítmico e abafado, que passava através de uns dentes cerrados e de uns lábios fortemente apertados, o género de queixume assustado que alguém emite quando está a ter um pesadelo.

 

Saí para o corredor. O som parou por momentos, depois voltei a ouvi-lo do lado de lá da fina cortina corrida diante da entrada do quarto que Meto e Diana partilhavam. Uma lamparina fixa na parede continuava a arder com uma chama reduzida certamente ali colocada pelo previdente Eco; ele sabia que o seu pai teria de se levantar a meio da noite para verter águas e que poderia tropeçar ou bater com os joelhos. Peguei na lamparina, afastei a cortina e entrei no pequeno quarto.

 

Diana estava sentada na sua caminha, encostada à parede, pestanejando para afastar o sono, como se tivesse acabado de acordar. Puxou a espessa colcha até ao pescoço e olhou para Meto com uma preocupação grave.

 

Papá, o que se passa com ele?

 

Eu olhei para Meto, que rolava de um lado para o outro na sua cama. A colcha estava toda torcida e revirada; as suas mãos tinham ficado presas no pano. Tinha a testa perlada de suor e os maxilares fortemente cerrados. Por trás das pálpebras fechadas, os seus olhos parecia girarem e revirarem-se. Começou novamente a gemer.

 

Eu já o tinha visto fazer isto uma vez, pouco depois de ter vindo para minha casa e antes de eu o ter alforriado e adoptado.

 

Papá? disse Diana novamente, em voz muito baixa. Meto vai...

 

Não é nada disse eu suavemente. Ele está apenas a sonhar. Deve estar a ter um pesadelo, mas é apenas isso. Não te preocupes. Pronto, eu vou cuidar dele. Por que não vais dormir com a mãe?

 

A sugestão agradou-lhe imenso. Ela pegou na colcha, enrolou-se nela como se fosse uma estola de mulher e saltou da cama. Parou para eu lhe dar um beijo e depois correu para a porta.

 

Tens a certeza de que ele está bem, Papá?

 

Tenho disse eu, e Diana, com uma expressão ainda grave mas não assustada, foi a correr ter com a mãe.

 

Eu coloquei-me ao lado de Meto, observando o seu rosto atormentado à luz da lamparina, sem ter bem a certeza se devia acordá-lo. Subitamente, ele teve um sobressalto e abriu os olhos.

 

Inspirou roucamente. Quis cobrir o rosto com as mãos, mas elas estavam presas na colcha retorcida. Por momentos, entrou em pânico, gemendo como se ainda estivesse a sonhar e sacudindo violentamente a colcha, de maneira que ela ficou ainda mais embrulhada. Eu pousei a lamparina e agarrei-lhe os braços para o impedir de se agitar. Momentos depois, ele acalmou-se e juntos libertamos-lhe as mãos.

 

Ele levou as mãos ao rosto, depois afastou-as, pestanejando confuso com o suor que lhe brilhava nas pontas dos dedos.

 

Estavas a ter um pesadelo disse eu suavemente.

 

Estava na Sicília disse ele num murmúrio rouco.

 

Foi o que eu pensei. Tiveste um sonho assim uma vez, há muito tempo.

 

Tive? Mas eu nunca penso na Sicília, já quase nem me lembro do tempo que lá passei. Por que havia de sonhar com isso, especialmente agora? Sentou-se e pestanejou por causa do suor que lhe pingava para cima dos olhos.

 

Não sei. Toma, limpa a testa com a colcha.

 

Olha! Tenho a almofada toda molhada! Estou cheio de sede... Eu olhei à volta e vislumbrei o brilho embotado de um jarro e de

 

um copo de cobre em cima de uma mesinha, junto da porta. Enchi o copo com água e coloquei-o nas mãos de Meto. Ele bebeu-o todo de seguida.

 

Oh, Papá, foi horrível. Tinha as mãos enroladas em farrapos, como o agricultor costumava fazer quando me obrigava a ficar de pé no pomar para assustar os corvos. Enrolava-me as mãos para que eu não pudesse apanhar a fruta. Estava calor como um forno. A terra estava tão seca e quebrada, que mais parecia um campo de tijolos eu estava constantemente a tropeçar e a cair e a esfolar os joelhos. Tinha os lábios cheios de bolhas por causa do sol. O suor corria-me diante dos olhos, e eu não podia limpá-lo. Estava cheio de sede, mas não podia sair do campo para ir buscar água, senão o agricultor batia-me. Ainda assim, corri até ao poço, mas não consegui puxar o balde. Estava sempre a deixá-lo cair porque tinha as mãos entrapadas. E depois vieram os corvos milhares deles. Invadiram o pomar como gafanhotos horríveis, soltando gritos estridentes, e as árvores ficaram todas despidas. Eu sabia que o senhor me ia bater. Ele ia bater-me até me matar.

 

Meto estremeceu. Olhou extasiado para a dança da chama da lamparina.

 

E depois já não estava no campo. Estava outra vez em Baias. Não na villa, mas na arena que Crasso mandou construir especialmente para matar os escravos. Era como estar dentro de um poço, rodeado por muros altos, com o Sol a incidir sobre nós. A areia estava espessa por causa do sangue. A multidão inclinava-se por cima do corrimão e troçava de nós. Os seus rostos eram hediondos, todos retorcidos de ódio e depois vieram novamente os corvos! Milhares de corvos, tantos que o céu ficou preto por causa deles. Invadiam tudo. Batiam as asas diante da minha cara e bicavam-me os olhos, e eu tentava enxotá-los mas nem sequer conseguia levantar as mãos oh, Papá!

 

Eu deitei mais água no copo. Meto levou-o aos lábios e bebeu avidamente.

 

Foi apenas um sonho, Meto.

 

Mas era tão real...

 

Estás em Roma, não estás na Sicília, nem em Baias. Estás na nossa casa, rodeado pela tua família...

 

Oh, Papá, é verdade que eu tenho uma família?

 

Claro que tens!

 

Não. Isto é que é o sonho. Isto é que não pode ser real. Eu nasci escravo, e isso nunca muda.

 

Isso não é verdade, Meto. És meu filho, tanto como se o meu sangue corresse nas tuas veias. És livre, tão livre como se fosses Romano de nascença. Amanhã tornar-te-ás um homem e depois de amanhã não podes voltar a olhar para trás. Compreendes?

 

Mas, no meu sonho, Crasso e o agricultor da Sicília...

 

Foste propriedade desses homens, mas isso foi há muito tempo. Neste momento, eles não têm qualquer poder sobre ti, nem voltarão a ter.

 

Meto olhou fixamente para a parede, e mordeu os lábios. Uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Um pai romano consciente e severo ter-lhe-ia secado a lágrima com uma bofetada, abanando-o até os dentes lhe chocalharem, e depois obrigá-lo-ia a ir para o pátio e a ficar acordado a noite toda, confrontando-se com os seus medos como um homem a fim de os derrotar, e quanto mais miserável fosse a lição, melhor. Mas eu nunca pretendi ser um pai severo pelos padrões romanos. Abracei-o longamente, apertando-o com força contra mim até o sentir estremecer e descontrair-se. Apertei-o com força, sabendo que era a última vez que poderia abraçá-lo como um rapaz.

 

Propus-lhe deixar-lhe a lamparina, mas ele disse que não era necessário. Saí para o corredor e deixei cair a cortina e a seguir dei uma volta pelo pátio, inquieto. Pouco depois, ouvi o ruído suave do seu ressonar o sonho e a viagem tinham-no esgotado.

 

Diana estava deitada com Betesda e a cama não era suficientemente grande para nós os três, por isso voltei para o jardim e reclinei-me num dos canapés do jantar. Observei as constelações girarem lentamente, lentamente pelo céu, até que senti as pálpebras demasiado pesadas para continuar abertas e Morfeu apanhou-me no seu doce laço.

 

O dia da maioridade de Meto nasceu limpo e claro. No jardim eu acordei de madrugada, com o primeiro raio de sol no rosto e à minha volta os ruídos dos escravos mais madrugadores dedicando-se às suas tarefas.

 

Tinham passado mais de dez anos desde que celebráramos o dia da toga de Eco. Fora no ano anterior aos julgamentos das Vestais e à irupção da revolta de escravos comandados por Espártaco. Nessa altura, a minha carteira era mais fina e os preparativos tinham sido bastante humildes. O dia da toga de Eco fora respeitável, mas não tinha sido o género de coisa que levasse os vizinhos a coscuvilhar cheios de inveja. Talvez fosse por isso que Eco parecia decidido a fazer com que o seu irmão mais novo tivesse um décimo sexto aniversário que nunca mais pudesse esquecer.

 

Era impensável que esse evento acontecesse noutro local que não Roma e, sendo a casa de Eco o sítio mais lógico para comemorá-lo, no princípio do ano ele oferecera-se para organizar os pormenores. Só isso, já seria um presente suficiente para o seu irmão, pensei eu. Eco calculou as despesas e solicitou-me determinada quantia que eu achei generosa mas razoável. Só mais tarde descobri que ele próprio mais do que a duplicara.

 

O dia começou com a montagem de um toldo amarelo no jardim. Os escravos afadigavam-se nos telhados e nos pórticos, içando as extremidades do toldo e esticando os cantos para os meter nos ganchos. Em baixo, outros escravos começavam a reunir as mesas, cobrindo-as com as toalhas e instalando os canapés para o jantar. Muitos dos canapés eram bastante requintados, com pernas finamente trabalhadas e almofadas de pelúcia de cores diversas; Eco pedira emprestados os melhores canapés (e também os melhores escravos de serviço) a um dos seus clientes mais abastados. Da cozinha, ressoava o bater dos potes e os ruídos dos escravos em grande azáfama.

 

Contudo, a nossa refeição da manhã foi bastante humilde: figos frescos e pão. Eu observei Meto comer o seu naco de pão com apetite, não evidenciando sinais das dúvidas e do sofrimento que o tinham assaltado na noite anterior. Parecia repousado, sobriamente excitado e apenas um pouco nervoso. Óptimo, pensei eu; oxalá nada estrague este dia.

 

Depois de comer, a família partiu para os banhos, acompanhada de duas escravas para atenderem a Betesda e a Menénia. O escravo cujos deveres consistiam em assistir e barbear Eco também viria connosco. Neste dia, Meto seria barbeado pela primeira vez.

 

Não fomos a pé, porque Eco alugara uma equipa de três liteiras e os respectivos transportadores para aquele dia. Eles estavam à nossa espera no pequeno trilho que levava da casa até à Via Subura. Diana guinchou de prazer quando viu os escravos de ombros largos e as enormes e elegantes liteiras. Betesda tentou ocultar a surpresa por trás de uma atitude cosmopolita. Menénia sorriu com um ar conhecedor. Meto corou e pareceu quase envergonhado por lhe serem oferecidos tais luxos.

 

Eco disse eu baixinho isto deve ter custado...

 

Papá, é só um dia! Além disso, foi um preço especial, combinado há mais de um mês. Na altura, o proprietário pensou, evidentemente, que nesta data as eleições já teriam acabado e que os forasteiros já teriam regressado ao campo, não restando ninguém para alugar as liteiras. Aluguei-as por pouco mais do que nada.

 

Ainda assim...

 

Subam! Olha, podes ir nesta com Diana. Eu vou com Meto e as mulheres podem ir juntas. Os escravos seguirão atrás, a pé.

 

E foi assim que eu dei uma volta de liteira pelas ruas de Roma com Diana sentada no meu colo. Mentiria se dissesse que foi algo menos do que uma verdadeira delícia. Ainda era cedo, mas o tráfego já começava a engrossar; mas que importava que tivéssemos de parar a cada esquina, se tudo aquilo por que passávamos era fascinante para Diana? O cheiro do pão a cozer deliciou-a tanto como os odores que provinham das lojas dos vendedores de perfumes; bateu as palmas e riu-se perante um grupo de rústicos remelosos que saíam de um bordel, achando-os quase tão absurdos e divertidos como um grupo de acrobatas seminus que tinham decidido praticar as suas habilidades numa pequena praça à saída da Via Subura. Concedeu um sorriso e um aceno amigável a duas escravas de cabelos grisalhos que lhe sorriram mas não puderam acenar-lhe, por irem demasiadamente carregadas com as compras da manhã, e depois fez o mesmo a um par de brutos escanzelados e por barbear que eu sabia serem assassinos contratados; eles pareceram um pouco mortificados e acenaram-lhe hesitantemente. Todas as coisas eram iguais aos olhos de Diana; toda a gente era igualmente fascinante. É isso que significa ser criança, pensei eu, e é por isso que temos saudades da nossa infância; mais tarde, somos obrigados a escolher e a descriminar a cada passo. Ser homem, ser cidadão e ser adulto significava, por exemplo, ter ocasionalmente de escolher entre pessoas como Catilina e Cícero e que prazer podia haver nisso, em comparação com o deleite simples de Diana, que olhava e se ria e aceitava sem perguntas todos os momentos em que estava viva?

 

Passado algum tempo, saímos da Via Subura e tomámos uma série de ruas mais pequenas que circundavam o sopé da colina Opiana e por fim intersectavam a Via Sagrada. Aqui, voltámos à direita e parámos um pouco mais adiante, mesmo à entrada do Fórum, diante dos degraus que davam para as Termas Senianas.

 

Lá dentro, debaixo do pórtico sombreado, os homens e as mulheres separaram-se. Diana ficou aborrecida com a separação e fez beicinho, mas rapidamente se deixou levar quando Menénia se inclinou para ela e lhe sugeriu que podiam escovar o cabelo uma da outra. Diana abandonou-me imediatamente e eu fiquei a vê-la encaminhar-se para os banhos das mulheres flanqueada por Menénia e Betesda e de mãos dadas com ambas, seguidas pelas duas escravas, com o fardo dos unguentos, das escovas e dos pentes.

 

Ela tem muito jeito para crianças disse eu, olhando para Menénia e para o seu longo cabelo preto.

 

Pois tem disse Eco, acenando e sorrindo.

 

Ainda não...

 

Ainda não, Papá.

 

Conduziu-nos aos banhos dos homens, recentemente reconstruídos e alargados. A dimensão era impressionante, de uma escala quase egípcia. Ainda assim, Eco queixou-se dos apertos.

 

Normalmente, temos espaço para mexer os braços suspirou ele mas com tantos homens na cidade para as eleições bem, estás a ver como estão cheias.

 

Dirigimo-nos ao pátio central, onde dois lutadores nus se treinavam na relva. Os seus companheiros andavam por ali, animando-os e treinando os seus próprios músculos. Por trás do pórtico sombreado, um grupo de estóicos completamente vestidos estava sentado em círculo. Quando passámos, ouvi dois deles a discutir os méritos do estilo retórico de Cícero versus o de Hortênsio, mas pareceu-me que a maioria dos filósofos estava mais interessada em observar os jovens atletas nus. Dentro dos muros, senti imediatamente o odor típico do local (a água sobre pedra, os corpos sujos e os corpos limpos) e os ecos vagos que ressoavam nas cúpulas (o riso dos homens, os murmúrios dos rapazes, o ruído da água a correr, a pingar e a remoinhar, as batidas rítmicas dos pés nus contra as pedras do chão). Despimos as túnicas e colocámo-las sobre os braços estendidos do barbeiro de Meto. O escravo dobrou-as cuidadosamente e arrumou-as num nicho da parede, regressando depois com toalhas e estrígis para nosso uso.

 

Começámos por mergulhar na piscina de água morna, que estava suavemente perfumada com jacinto, passámos à de água quente, onde Meto ganiu, erguendo o traseiro acima da água provocando nos homens já imersos até ao pescoço um grasnido de riso que ecoou pelo compartimento de tecto alto. Meto não se ofendeu, limitando-se a rir com eles e suprimindo outro ganido quando se afundou, delicada mas resolutamente, na água fumegante e em remoinhos.

 

Esfregados com as estrígis, com as caras brilhantes e as barbas amaciadas pela água quente, saímos da piscina e submetemo-nos, à vez, à lâmina do barbeiro. Meto foi o primeiro, já que este era o seu dia especial e era a primeira vez que uma lâmina lhe tocava o rosto. O escravo entrou no espírito dos festejos e encenou uma razoável produção para aquilo que poderia ter sido completado com três ou quatro passagens simples da lâmina. Havia naturalmente uma quantidade razoável de penugem nas faces de Meto, quase invisível excepto quando se olhava de determinados ângulos, embora ele praticamente não tivesse pêlos no lábio superior nem no queixo. No entanto, o barbeiro abordou a tarefa como se tivesse diante de si um veterano grisalho que não se barbeasse há meses. Afiou a lâmina comprida e estreita numa tira de couro, passando-a rapidamente para um lado e para o outro até Meto, que observava o metal reluzente, ficar fascinado. O barbeiro aplicou uma toalha quente e fumegante ao rosto de Meto e arrulhou para ele como um condutor de carros acalmando um cavalo. Girou à sua volta e aplicou delicadamente a extremidade da lâmina às faces, ao maxilar, ao pescoço e ao queixo de Meto, deixando para o fim o lábio superior, o ponto mais vulnerável e mais difícil. Meto vacilou mais do que uma vez afinal, ser barbeado é o dever mais íntimo que um homem pode confiar a um escravo e a verdadeira confiança só se constrói com o tempo. Quando terminou, não havia uma gota de sangue em lado nenhum, nem na lâmina nem na toalha, nem na cara recém-barbeada de Meto. Este parecia quase desiludido por não ter ficado ferido, mas estava fascinado com a adorável sensação que era tocar na sua pele desnudada.

 

Depois, o barbeiro tirou a tesoura uma excelente tesoura, que Lúcio Cláudio certa vez me oferecera e que eu passara a Eco quando fui viver para o campo. O barbeiro colocou um pano áspero sobre os ombros de Meto e começou a cortar-lhe o cabelo até ele ficar com um ar respeitável e extraordinariamente adulto, com as orelhas e a parte de trás do pescoço à mostra. Depois, o barbeiro aplicou-lhe no cabelo um óleo perfumado, e assim terminou a sua tarefa.

 

Eu deixei que o homem me aparasse um pouco o cabelo e a barba, mas recusei-me a permitir que ele me tocasse com a lâmina. Depois foi a vez de Eco.

 

Eis a tua oportunidade disse eu de te livrares desse corte de cabelo absurdo e dessa barba excêntrica.

 

Eco riu-se.

 

Absurdo e excêntrica? Papá, olha à tua volta.

 

Eu assim fiz e vi uma série de jovens com a idade de Eco exibindo o mesmo estilo que ele adoptara, juntamente com Marco Célio o cabelo aparado dos lados e comprido em cima, a barba aparada e com a forma de uma tira fina ao longo do maxilar.

 

Sabes onde teve origem essa moda?

 

Sei, com Catilina. Pelo menos foi o que tu me disseste e já ouvi outros dizerem o mesmo. Catilina e o seu círculo lançam todas as modas.

 

Bem, sabias que Catilina abandonou essa moda?

 

A sério?

 

Foi debaixo do meu tecto. À noite tinha essa barba fina e na manhã seguinte... passei o dedo pelo maxilar. Tinha desaparecido.

 

Rapou a barba?

 

Ficou liso como Meto. Não foi, Meto?

 

Meto, que continuava a dar pancadinhas no rosto para experimentar a novidade da sensação, confirmou acenando com a cabeça.

 

Estás a ver disse eu neste momento, é Meto quem está mais à moda. Talvez devesses fazer o mesmo.

 

Mas toda a gente usa uma barba de tira no queixo...

 

Por enquanto. Encolhi os ombros.

 

Eco estendeu a mão e o barbeiro entregou-lhe um espelho. Ele estudou o rosto e passou o indicador e o polegar pela fina linha preta da sua barba.

 

Achas realmente que devia cortá-la?

 

Foi o que Catilina fez disse eu, encolhendo os ombros como se não tivesse grandes opiniões sobre o assunto.

 

De qualquer maneira, Menénia nunca gostou muito da barba disse Eco depois, dando umas pancadinhas no maxilar e vendo-se ao espelho de cobre polido que o barbeiro segurava. Deu uma pancadinha no queixo e recuou ligeiramente; nos sítios em que os pêlos eram mais espessos, o barbeiro recorrera a uma pinça, arrancando-os suavemente. Eco suportara a prova sem pestanejar. Suspeito de que o barbeiro tinha gostado. Ao infligir estes pequenos desconfortos, os escravos conseguem ocasionalmente libertar-se das frustrações que sentem contra os seus senhores.

 

Pensei que me tinhas dito que Menénia gostava da barba disse eu, para picar Eco.

 

Tenho a certeza de que ainda vai gostar mais de mim sem ela.

 

E gostou. A avaliar pela sua expressão e pela de Eco quando voltámos a juntar-nos às mulheres no vestíbulo, parecia que não se viam há meses. Mas tal é o primeiro rubor da paixão. Quanto a Meto, Betesda tocou-lhe no rosto e suspirou, como se fosse realmente possível localizar os pontos por onde a lâmina passara. Com a brutal franqueza das crianças, Diana insistia em que não via mudança nenhuma. Menénia voltou a encarregar-se da situação, propondo a Diana que voltasse para casa na sua liteira, uma sugestão que Diana aceitou imediatamente. Menénia arranjara o seu cabelo comprido num rolo seguro com pentes decorados com conchas, mais ou menos como Betesda embora os pentes de Menénia fossem menos ornamentados. Eu admirava cada vez mais o seu tacto.

 

Quando chegámos à casa do Esquilino, limpos e refrescados, descobrimos que os preparativos estavam praticamente terminados. O relógio de sol da Via Subura indicava que era quase meio-dia; os primeiros convidados estavam prestes a chegar. Era altura de Meto ir vestir a toga.

 

Vestir uma toga não é uma coisa simples, mesmo para advogados e políticos como Cícero, que quase todos os dias as vestem. Aquilo que parece uma coisa simples no seu estado desdobrado uma peça de tecido branco de grandes dimensões, com uma forma oblonga torna-se demoniacamente intratável e assume vida própria quando tentamos transformá-la numa toga de aspecto respeitável. Pelo menos é essa a minha experiência. É necessário traçá-la no peito, passá-la por cima do ombro e pendurá-la sobre um braço. A colocação precisa das numerosas pregas e a forma como elas são dispostas é de suprema importância, pois de outra maneira um homem fica com o aspecto de quem saiu de casa vestido com um vulgar lençol uma aparência absurda, que seguramente atrairá o desprezo dos seus vizinhos.

 

Felizmente, como acontece relativamente a todas as coisas importantes, os Romanos têm escravos para resolver esse problema. (Na verdade, quando eu era jovem, corria em Alexandria a piada de que os Romanos queriam conquistar o mundo para poderem ter escravos que os ajudassem a vestir.) O escravo que atendera e barbeara Eco era também aquele que o ajudava a vestir-se. Aqui, tal como com a pinça, um escravo tem oportunidade de obter pequenas vinganças do seu senhor, levando-o a sair de casa com a bainha da toga a arrastar ou com uma prega mal segura, que mais tarde se deslocará. Mas o escravo de Eco era bastante competente e mostrou-se muito paciente enquanto nos ajudava a vestir as togas, a começar pelo seu senhor, passando por mim, e terminando em Meto.

 

Eco comprara a toga de Meto numa loja excelente, no sopé do Palatino. Foram necessárias duas tentativas para lha vestir, houve algum espalhafato com as pregas, mas por fim Meto apresentou-se diante de nós perfeitamente envolvido na sua primeira toga de homem.

 

Que tal? disse ele.

 

Estás esplêndido disse Eco.

 

Papá?

 

Eu hesitei, porque sentia um aperto na garganta.

 

Estás... comecei a dizer, mas tive de pigarrear. Estava encantador! Fora um belo rapaz, seria um homem elegante, e nesse momento era possível divisar ambos, o passado e o futuro simultaneamente. O seu cabelo parecia mais preto e a sua pele mais macia contra o tecido branco; a cor fazia com que ele parecesse estar envolto em pureza. Ao mesmo tempo, a autoridade e o carácter anónimo da toga emprestavam-lhe um ar de dignidade e de maturidade muito superior à sua idade. Eu dissera-lhe na noite anterior que ele podia pôr definitivamente para trás das costas os seus anos de escravatura, que não voltaria a precisar de se preocupar com as suas origens impróprias. Neste momento, acreditei nisso.

 

Sinto-me orgulhoso, Meto. Muito orgulhoso.

 

Ele aproximou-se de mim e julgo que me teria abraçado se as pregas do tecido que tinha sobre o braço esquerdo o não constrangessem. Pareceu confuso por momentos, depois riu-se e deu uma volta, apercebendo-se de que mexer-se confortavelmente dentro de uma toga era uma arte que teria de aprender a dominar.

 

E como é que eu vou à privada com isto tudo? perguntou, sorrindo.

 

Eu mostro-te quando precisares de ir disse eu, e suspirei com um cansaço fingido. Ah, os deveres da paternidade!

 

Os convidados já tinham começado a chegar. O Sol ia bem alto e a luz amarela filtrada pelo toldo transparente lançava um brilho agradável sobre o pátio e os corredores e os quartos que o rodeavam. Tinham sido colocados sobre as mesas pratos com todo o género de iguarias e os canapés estavam informalmente dispostos para que os convidados pudessem comer e reunir-se como preferissem, em vez de se reclinarem e de lhes ser servida uma sucessão de pratos. Isto pareceu-me um tanto caótico e mesmo um pouco indelicado, mas Eco garantiu-me que era a nova moda.

 

E, tal como a tua barba, suspeito que venha desaparecer como surgiu disse eu baixinho.

 

Como sempre acontece neste género de reuniões, a princípio parecia haver apenas uma mao-cheia de convidados e depois, subitamente, o jardim estava cheio de homens com as suas togas e de mulheres com estolas multicolores. O suave murmúrio das conversas enchia o ar. Os vários perfumes e unguentos misturavam-se com as fragâncias do jardim e com os deleitáveis odores dos papa-figos assados e dos pombos recheados, enviados da cozinha em tabuleiros.

 

Eu abri caminho por entre o ajuntamento, parando para falar a vizinhos e clientes que não via há anos, e finalmente descobri Eco e chamei-o à parte.

 

Convidaste esta gente toda? murmurei.

 

Claro. São todos amigos ou conhecidos. A maioria conhece Meto desde rapazinho.

 

Mas não acredito que tenhas feito planos para que eles vão todos connosco passear pelo Fórum, regressando depois aqui para o jantar!

 

Claro que não. Isto é apenas a recepção geral. As pessoas vêm aqui divertir-se, conhecem a família, vêem Meto de toga vestida e vão-se embora quando quiserem...

 

Quer dizer, vêm comer-te os rendimentos de um ano inteiro! Olha para ali! Um homem de barba grisalha que me parecia vagamente familiar não era uma associação agradável, parecia-me recordar que tínhamos estado em lados opostos num litígio qualquer rondava furtivamente uma mesinha de serviço, atirando parras recheadas para uma espécie de bolsa que tinha dentro da toga. Eco riu-se.

 

Não é o velho Festo? Não te lembras, veio cá a casa dizendo que te queria consultar por causa de um processo que lhe tinham posto, e nunca mais vimos aquele vaso alexandrino.

 

Não. Franzi o sobrolho, abanando a cabeça. Aquele não é Festo.

 

Eco coçou a cabeça.

 

Ah, já sei. E Rutílio... o irmão pôs-lhe um processo, acusando-o de o roubar. O malandro nunca negou; mas queria que nós descobríssemos qualquer coisa terrível e escandalosa acerca do irmão, para compensar.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Não, também não é Rutílio, mas é provavelmente outra pessoa igualmente horrível. Presumo que não tenhas convidado nenhum deles para a festa de Meto! Oh, as indignidades que eu tive de aturar ao longo dos anos para vos manter a barriga cheia! Ainda bem que me afastei disso tudo. E ainda bem que tu és jovem e suficientemente resistente para abrires caminho por entre as ciladas e as armadilhas desta cidade.

 

Tu ensinaste-me bem, Papá.

 

Quem me dera ter ensinado alguma coisa a Meto.

 

Meto é diferente de mim disse ele. E é diferente de ti.

 

As vezes preocupo-me com ele, com o seu futuro. Ainda é tão infantil...

 

Papá, tens de deixar de dizer isso. Meto já é um homem, não é um rapaz.

 

Apesar disso... oh, não, isto é demais! Olha-me para aquele malandro, agora está a roubar as tâmaras com mel! Não vão sobrar nenhumas para os outros convidados. Estás a ver, convidaste demasiadas pessoas nenhum de nós se lembra quem é o homem, embora ambos saibamos que não gostamos dele. É por isso que é um erro deixar que as pessoas se sirvam a si próprias. Se estivéssemos todos sentados, com os escravos a servi-nos...

 

Suponho que devia fazer qualquer coisa disse Eco. Vou perguntar ao tipo se ele matou alguma mulher ou envenenou algum parceiro de negócios ultimamente.

 

E com isso dirigiu-se tranquilamente ao velho de barba grisalha, que apanhou um susto e recuou da mesa quando Eco lhe tocou no ombro. Eco sorriu, disse-lhe qualquer coisa e afastou-o da comida. O salto deve ter soltado o saco que o homem tinha escondido, porque começaram a cair-lhe de dentro da toga parras recheadas e tâmaras com mel, deixando um trilho pelo chão atrás dele.

 

Senti uma mão tocar-me no ombro. Voltei-me e vi uma guedelha de cabelo ruivo, um nariz elegante coberto de sardas e um par de brilhantes olhos castanhos que olhavam para os meus. No momento seguinte, fui encerrado num abraço mútuo, depois um pouco afastado pelos braços de Marco Valério Messala Rufo, que me olhava de cima a baixo.

 

Gordiano! Não há dúvida de que a vida no campo te faz bem... estás com excelente aspecto!

 

E a vida na cidade deve fazer-te bem a ti, Rufo, porque os anos parece que não passam por ti.

 

Faço trinta e três este ano, Gordiano.

 

Não! Quando nos conhecemos...

 

Eu tinha mais ou menos a mesma idade que tem agora o teu filho Meto. O tempo voa, Gordiano, e o mundo muda.

 

Embora nunca mude o suficiente para o meu gosto. Tínhamo-nos conhecido anos antes em casa de Cecília Metela, quando Rufo ajudava Cícero na defesa de Sexto Róscio. Nessa altura, ele tinha apenas dezasseis anos, era um patrício de linhagem antiga, politicamente precoce e secretamente apaixonado pelo seu mentor, Cícero. Naturalmente, essa paixão não dera em nada, mas as ambições práticas de Rufo tinham produzido uma carreira bem sucedida. Ele fora um dos mais jovens eleitos de sempre para o colégio dos augures, e como tal era frequentemente convocado para ler os auspícios e pronunciar a vontade dos deuses. Nenhuma transacção, pública ou privada, de alguma importância tem lugar em Roma, nenhum exército parte para a guerra, nenhum casamento é consagrado, sem se consultar um augure. Pessoalmente, eu nunca tivera muita fé na leitura de mensagens no voo das aves ou na detecção da vontade de Júpiter no brilho de um relâmpago. Muitos (ou a maioria dos) augures são charlatães contratados pelos políticos, que utilizam o seu poder para suspender reuniões públicas e bloquear a aprovação de leis, mas Rufo sempre me parecera sincero na sua crença na ciência dos augúrios. Também ele estivera envolvido no escândalo das Virgens Vestais, pois fora Rufo, um parceiro de religião, o primeiro a quem a Virgo Maxima pedira ajuda quando Catilina fora descoberto na Casa das Vestais. Rufo apelara a Cícero e Cícero mandara-me chamar. Como já observei, às vezes Roma parece mesmo uma cidade muito pequena.

 

Ainda bem que vieste, Rufo. São poucos os rostos do Fórum de que eu tenho saudades no dia-a-dia, e o teu é um deles. Falo a sério disse eu, e falava, porque Rufo sempre fora um jovem de rara integridade, bom orador mas de opiniões apaixonadas e movido por uma intensidade que não era imediatamente óbvia nas suas maneiras simpáticas. O seu natural sentido de justiça e a sua equanimidade moral pareciam muitas vezes deslocadas no Forum, no meio da oratória auto-indulgente e das incessantes facadas nas costas. Mas o que é isto? disse eu. Trazes uma toga de candidato.

 

Rufo fingiu sacudir o pé, porque a cor natural da sua toga branca fora salpicada de giz para ficar de um branco mais severo, como era costume entre os candidatos a lugares públicos.

 

É que este ano sou candidato a pretor.

 

Então espero que ganhes. Roma precisa de homens bons que governem a cidade com justiça.

 

Veremos. As eleições são amanhã, imediatamente a seguir à votação para os cônsules. Normalmente, as eleições dos pretores e dos cônsules são em dias diferentes, claro, mas com o adiamento das eleições consulares bem, vai ser um dia de loucos. César também é candidato a pretor, tal como Quinto, o irmão de Cícero.

 

Suponho que continuas aliado a Cícero disse eu, mas percebi pela sua expressão que estava enganado.

 

Cícero... Rufo encolheu os ombros. Bem, conheces o número de circo que ele desempenhou no Verão passado para ganhar o consulado. Lançou fumo da boca e atravessou arcos em chamas embora não fosse particularmente surpreendente vê-lo recorrer aos truques mais extraordinários para conseguir ser eleito. Ao longo dos anos, tem mudado de posição em virtualmente todas as questões, mas a sua retórica é a mesma como se fosse a retórica, e não os princípios, que desse consistência a um homem. Actualmente, sinto-me pouco à-vontade na sua presença. Li os auspícios no dia em que ele assumiu o cargo não oficialmente, mas para minha satisfação pessoal e eles previam um ano cheio de fraudes e traições, talvez mesmo uma calamidade. Ah, Gordiano, vi a tua expressão, tu não tens fé nos augúrios.

 

Cícero também não; acha que eles não passam de instrumentos que homens como ele podem utilizar para manipular as massas. E a verdade é que as manipula, sem pudor nenhum. Virou hipocritamente as costas aos filhos das vítimas de Sula que procuram compensação, opôs-se às leis de reforma da terra propostas por Rulo, geriu de forma vergonhosa o tumulto por causa da atribuição de lugares especiais aos cavaleiros no teatro, e agora este adiamento das eleições... não estás na cidade há muito tempo, pois não?

 

Só cheguei ontem à noite.

 

É um caos completo. Eleitores que chegam depois de horas ou dias de viagem e descobrem que as eleições foram indefinidamente adiadas... imagina! Agricultores irritados, que vieram da Etrúria e acampam no Campo de Marte, acendendo fogueiras que podem pegar fogo à cidade e, quando os pretores vão avisá-los, os agricultores desembainham as suas velhas espadas cheias de ferrugem de quando lutavam ao lado de Sula! É o suficiente para me fazer perder a vontade de concorrer a pretor. E tudo isto por causa da disparatada ideia de Cícero de que Catilina tem um plano para assassinar metade do Senado se não ganhar as eleições. E agora, como que para demonstrar que já não lhe resta vergonha nem decoro nenhum, Cícero insiste em andar pelo Fórum com aquela couraça absurda...

 

O que é isso?

 

Por favor. Nem sequer consigo pensar no assunto. O mais provável é que o vejas pessoalmente quando fores ao Forum. Oh, Cícero! Actualmente, eu estou do lado de Gaio Júlio César. Eu acenei com a cabeça ao ouvir o nome do jovem patrício que no início desse ano, contra todas as expectativas, ganhara as eleições para o lugar do falecido Pontifex Maximus, o principal sacerdote da religião do Estado. Nos últimos anos, César emergira como porta-estandarte dos descontentes e dos reformadores. Os seus gastos sumptuosos com jogos e banquetes públicos tinham conquistado as massas (ao mesmo tempo que lhe granjeavam grandes dívidas, de acordo com os boatos que corriam, apesar da enorme fortuna da sua família). Dizia-se que era esperto, encantador, fraudulento, que desprezava os Optimates e que possuía aquela natureza obstinada que nos políticos pode levar à grandeza, ou à calamidade, ou a ambas. Havia quem temesse ou esperasse que César se transformasse noutro Catilina, se de facto a credibilidade e as esperanças de ascender ao consulado de Catilina estavam a chegar ao fim.

 

Cícero desiludiu-nos a todos suspirou Rufo enquanto César... Os seus olhos castanhos brilharam. Sorriu, com algum acanhamento, pensei eu.

 

Quanto mais conheço Gaio Júlio, mais impressionado me sinto. Como Pontifex Maximus, foi uma fonte de inspiração para mim; respeita a religião dos nossos antepassados como um Homem Novo como Cícero nunca poderia respeitar. A sua percepção do mundo ultrapassa infinitamente a de Cícero em não pequena medida porque César não é apenas um orador, é um homem de acção que conheceu a guerra e os perigos que ela comporta deves conhecer a história do seu rapto por piratas quando era jovem. Tratou-os a todos com desprezo, juntou o seu próprio resgate, e mais tarde fez com que fossem capturados e crucificados. Cícero ter-se-ia limitado a matá-los de aborrecimento com a sua retórica. César assumiu a causa daqueles que ainda sofrem os vestígios da ditadura de Sula, dos filhos daqueles que Sula desapossou e que desejam agora recuperar os seus direitos de nascença. Enquanto Cícero, que está sempre a apregoar que se opôs a Sula no caso de Sexto Róscio, não ergueu um dedo para ajudar as vítimas de Sula as suas pretensões são perfeitamente justificadas, diz ele, mas esta não é a melhor altura para perturbar o governo com as suas exigências. Nunca é a melhor altura, claro! E ainda menos agora que os Optimates que controlam o Estado vêem resguardada a sua propriedade e os seus privilégios, e não querem que nada se altere. Cícero, que tão corajosamente se opôs ao ditador quando era jovem, defende os velhos amigos do ditador sem a menor sugestão de protesto.

 

”E enquanto Cícero pretende ser um homem de visão, é César quem antevê o futuro. O império deve judiciosamente conceder direitos àqueles que conquista e não se limitar a explorá-los. A estabilidade pode ser construída com base no sangue e na guerra, mas a compaixão deve acompanhar as vitórias. César e eu juntámos os nossos recursos na campanha para pretores, mas eu sinto-me um tanto presunçoso por me apresentar a par de um candidato tão excelente. Ele é brilhante. Não há outra palavra. Quando ele fala... A voz de Rufo apagou-se e ele olhou para meia distância.

 

Se Rufo tem algum defeito, é o de ter tendência para se apaixonar por aqueles que respeita e admira. Fora assim com Cícero, mas pela inflexão que agora dera ao nome que no passado estimava, era óbvio que o amor, o respeito e a admiração tinham desaparecido por completo.

 

Estava claramente enfeitiçado com César e, pelo que eu ouvira dizer acerca de César, a começar pelo seu antigo caso com o rei da Bitínia, Rufo tinha muito mais hipóteses de ser correspondido pelo novo objecto da sua adoração do que tivera com o anterior se é que não o era já, hipótese razoável a avaliar pela sua expressão de enlevo.

 

Ah, mas estavas a falar da minha toga de candidato disse Rufo.

 

Na verdade, ia tirá-la...

 

Por favor, não precisas de deixar a campanha à porta desta casa, disse eu, para o arreliar. Seria mais fácil pedir a um pássaro que tirasse as asas do que solicitar a um político que pusesse de lado a sua candidatura.

 

Ele olhou para mim confuso.

 

Mas vou ter de vestir as minhas vestes de augure antes de iniciarmos o passeio, claro.

 

Mas então... quer dizer que és tu que vais ler os auspícios a Meto?

 

Claro. Foi para isso que vim, como augure. Não que não tivesse vindo como simples amigo. Mas Eco não te disse?

 

Não. Pensei que ele tinha pedido a um augure privado, um daqueles que conduzem as cerimónias de casamento. Não fazia ideia... mas vais roubar tempo à tua campanha na véspera das eleições...

 

Que melhor publicidade de última hora do que ser visto a desempenhar sobriamente os meus deveres de augure diante de todo o Fórum? Certamente terei um aspecto mais respeitável do que o de todos aqueles candidatos que se degladiam uns aos outros, pedindo votos à multidão.

 

Ele sorriu com astúcia.

 

Rufo! Eu ri-me. Deves pertencer a uma nova estirpe de políticos. O idealismo como pragmatismo; a virtude e a atenção aos deveres em vez da violência e do suborno declarado como meios de vencer uma eleição. É uma ideia exótica, mas pode perfeitamente funcionar.

 

Gordiano, és um cínico sem remédio.

 

E tu, Rufo, continuas admiravelmente cheio de esperança e de virtude.

 

Ele sorriu.

 

Agora tenho mesmo de ir vestir as minhas vestes de augure. Oh, e mais logo talvez tenha uma surpresa para ti e para Meto. Mas falaremos nessa altura. Chamei um dos escravos de Eco e indiquei-lhe que levasse Rufo a um compartimento privado; a sua pequena comitiva de escravos, transportando as suas vestes e o bastão de augure, seguiu atrás dele.

 

Eu olhei à volta, momentaneamente perdido no meio da confusão. Depois, ali perto e acima do ruído da multidão, ouvi uma voz conhecida de mulher pronunciar um nome conhecido:

 

Ah, então deves ter conhecido o meu falecido primo, Lúcio Cláudio. Sim, um homem alegre, com o cabelo tão ruivo como o daquele belo jovem que acaba de passar, mas com uma figura mais parecida com a minha, lamento dizê-lo. Sim, bem, eu herdei a casa de Lúcio no Palatino, uma casa antiga, enorme e maravilhosa, mas demasiadamente grande e elegante para as minhas humildes necessidades, embora me tenham dito que posso conseguir um belo rendimento com ela se encontrar um inquilino suficientemente rico para poder pagar a renda, e se fizer alguns investimentos para a arranjar, embora os meus primos achem que eu devia manter a casa vazia para nos alojarmos quando vimos à cidade, mas isso significa manter pelo menos alguns escravos a tempo inteiro, mesmo quando a casa está vazia, e não ouvi nenhum dos meus primos oferecer-se para os alimentar... Oh, mas olha, aqui está ele, o nosso anfitrião e meu querido vizinho. Gordiano, felicidade e satisfação para ti no aniversário do teu querido filho!

 

Cláudia disse eu, pegando na mão que ela me estendia e beijando-lhe o rosto maquilhado. Dificilmente a teria reconhecido se não tivesse ouvido a sua voz, porque em vez do fato vulgar e um pouco masculino que costumava usar no campo, ela trazia uma requintada estola lilás, cujas dobras escuras se adaptavam com elegância aos generosos contornos do seu corpo. Tinha lavado o cabelo ralo com hena, o que lhe dava um tom mais escuro, e penteara-o para cima, num rolo tão alto que devia ter roçado pela porta quando entrou. E também não tinha o seu habitual aspecto descontraído; pelo contrário, estava tão exuberante que se ria constantemente. Falava com uma vizinha nossa da cidade, uma mulherzinha parecida com um rato que ao longo dos anos se interessara por Meto e Diana e que se encontrara algumas vezes com Lúcio Cláudio quando ele vinha visitar-me. A mulherzinha parecia completamente dominada pela presença de Cláudia e afigurou-se-me mais aliviada do que ofendida quando Cláudia se voltou abruptamente para mim, dando-lhe assim a possibilidade de se afastar discretamente.

 

Gordiano, nunca esperei ornamentos tão esplêndidos. A comida é soberba... mas não me parece que seja feita por Côngrio. É do cozinheiro do teu filho Eco ou de algum escravo que ele comprou especialmente para esta ocasião, não? Sim, normalmente consigo distinguir o toque dos cozinheiros; o meu palato é muito sensível. E Meto está tão bonito na sua toga! Embora eu tenha reparado que ele tem alguma dificuldade em mantê-la dobrada como deve ser sobre o braço esquerdo, pronto, estás a ver, escorregou e ele está a puxá-la para cima com a mão direita e a encolher o ombro esquerdo. Mas há-de habituar-se, claro. Oh, obrigada por me teres convidado, embora eu não possa propriamente reclamar que pertenço à família ou sequer que sou uma velha amiga. Talvez possas considerar-me uma representante do querido Lúcio, que não teria perdido este acontecimento por nada no mundo.

 

Lúcio e eu sentámo-nos muitas vezes neste jardim, a beber juntos disse eu.

 

Encantador, encantador disse Cláudia distraída. Claro que eu não devia estar aqui. Parto esta tarde para a quinta e, dada a congestão das estradas...

 

Partes esta tarde? Mas pensei que ias passar todo o mês de Quinctilis aqui na cidade, a arranjar a casa de Lúcio.

 

Pois é justamente isso. Sinto-me mais confusa do que nunca quanto ao que hei-de fazer com a casa. Estou num tal impasse, que acho que a única coisa a fazer é regressar à quinta e pensar bem antes de tomar uma decisão. Sim, eu sei, vou perder a excitação das eleições amanhã, mas graças a Júpiter por isso! Sou uma mulher e de qualquer maneira a família não precisa de mim para votar. Além disso, já estou completamente farta da cidade. A ideia de passar aqui um mês inteiro bem, estás a ver como isso me perturba. Sinto-me uma completa impostora, toda arranjada desta maneira. Sentir-me-ia muito mais confortável com uma roupa velha e estou tão atrapalhada que não consigo parar de falar...

 

Subitamente, deu uma gargalhada e inspirou profundamente.

 

Bem, estás a ter uma prova disso! E, muito francamente, já estou farta do meu primo Mânio e da sua esganiçada mulher. São aqueles que têm a propriedade a norte da tua, mas passam a maior parte do tempo aqui em Roma. Insistem em ir-me visitar todos os dias e convidam-me para casa deles todas as noites, e eu estou farta. O cozinheiro deles é um desastre, para começar, e em termos políticos eles são demasiadamente conservadores para o meu gosto. Podes imaginar os discursos e os desvarios que vão naquela casa, agora com as eleições.

 

Cláudia baixou a voz e aproximou o rosto do meu.

 

Mas a minha estada com Mânio teve pelo menos um resultado positivo, caro Gordiano, e que tem a ver contigo. Na verdade, foi por isso que fiquei em Roma até agora e que hoje vim aqui antes de regressar à Etrúria. Gordiano, promete-me que não te zangas, mas tomei a liberdade de trazer comigo o primo Mânio. Foi uma presunção da minha parte, eu sei, mas pareceu-me a oportunidade ideal, e eu pensei ”Avança!” E assim fiz. E penso que será para bem. Ali está ele... Mânio! Sim, primo, vem conhecer o nosso anfitrião.

 

Ela estava a chamar alguém por cima do meu ombro. Quando me voltei, quem havia eu de ver senão o homem da barba grisalha que detectara a roubar parras recheadas e tâmaras com mel? Não admira que a memória pouco nítida que tinha dele me fizesse sentir desconfortável; ele estava presente no tribunal quando Cícero defendera a minha herança de Lúcio Cláudio, embora fosse uma personagem tão indistinta, que o seu rosto me deixara apenas uma impressão muito vaga. Recordava-me agora dele e também me lembrava dos comentários sobre mim que o assistente de Côngrio o ouvira fazer na reunião em casa de Cláudia: ”Estúpido zé-ninguém sem antepassados, que devia ser metido numa gaiola e mandado para Roma.” O que estava este homem a fazer em nossa casa no dia da toga de Meto? Cláudia fora louca em trazê-lo consigo. Se eu fosse supersticioso como Rufo, teria considerado a sua presença um augúrio verdadeiramente negativo.

 

Cláudia pareceu ler-me os pensamentos. Enquanto Mânio se aproximava, agarrou-me no cotovelo e disse-me ao ouvido:

 

Vá lá, Gordiano, não é do interesse de ninguém ter maus sangues entre as nossas famílias. Mânio ficou irritado com a tua boa sorte e falou mal de ti no passado, como fizeram todos os meus primos, mas ele e eu discutimos o assunto várias vezes durante a minha estadia em Roma, e julgo tê-lo convencido a fazer as pazes. Foi para isso que o trouxe. Vais ser hospitaleiro, não vais?

 

Eu não tinha grandes alternativas, porque no momento seguinte o homem estava de pé diante de mim, com uma expressão irascível e de olhos desviados.

 

Muito bem, Gordiano disse ele, olhando finalmente para mim. A minha prima Cláudia parece pensar que devíamos ser amigos. Ele deu à palavra um acentuado tom sarcástico.

 

Então, Mânio avisou Cláudia, sorrindo apreensivamente. Eu inspirei profundamente.

 

Amigo é uma palavra elevada, Mânio Cláudio, que não deve ser outorgada com ligeireza. Eu era amigo do teu falecido primo Lúcio, e sinto grande orgulho nisso. Por vontade sua, tu e eu somos vizinhos, ainda que não sejamos amigos; mas parece-me que os vizinhos podem, pelo menos, procurar uma certa harmonia e o bem comum. E, dado que nós somos vizinhos...

 

Só por um acidente legal e um lapso da capacidade de avaliação do meu falecido primo, para não falar do seu bom gosto disse Mânio com azedume.

 

Eu mordi a língua por vários momentos.

 

Cláudia, pensei que tinhas dito...

 

Disse, sim, Gordiano, e não compreendo disse Cláudia através dos seus dentes cerrados. Mânio, antes de sairmos de casa esta manhã, pareceu-me que concordámos...

 

Apenas concordei, Cláudia, vir a esta casa, comportar-me com civilidade e ver pessoalmente se achava a família de Gordiano respeitável, encantadora e, nas tuas palavras, ”exactamente o género de pessoas que qualquer um gostaria de ter como vizinhos”. Pois bem, aqui estou, Cláudia. Comportei-me com o decoro com que me comportaria se estivesse em minha casa. Mas não fiquei encantado. Na verdade, passou-se exactamente o contrário; confirmaram-se as minhas piores suspeitas acerca desta gente.

 

Oh, céus disse Cláudia em voz baixa, levando as mãos aos lábios.

 

Tenho estado a conversar com alguns convidados, prosseguiu Mânio. Há por aqui muitos radicais e populistas, daqueles que costumam excitar as multidões. Mas a verdade é que há em Roma demasiada gente dessa para o meu gosto. Não nego que estão aqui umas quantas pessoas respeitáveis e mesmo alguns patrícios como eu, embora seja para mim um mistério o que fazem eles numa casa como esta numa reunião como esta. O padrão das pessoas com quem nos damos e com quem não nos damos baixou muito desde a minha juventude. Eu diria mesmo que desapareceu por completo.

 

Mânio, pára com isso! arquejou Cláudia. Mas Mânio continuou.

 

Como eu estava a dizer, conversei com outros convidados e descobri exactamente o tipo de família que habita esta casa e reside actualmente na quinta de Lúcio. No ano passado, não me interessei particularmente em investigar a natureza da nossa oposição quando estava a ser decidido o destino da propriedade de Lúcio. Não me preocupei com o tipo de pessoa que era Gordiano, mas apenas em impedir que ele se apoderasse de uma parte da herança da família. Sabia que era um plebeu sem antepassados que pudesse apresentar e que se envolvia em todo o tipo de empreendimentos, mas não fazia ideia do tipo de família que ele produzira. Uma família do mais irregular que há! Ninguém parece saber o que quer que seja sobre a sua linhagem, o que já diz muito. A sua mulher não é romana, é metade egípcia e metade judaica, e foi no passado escrava e concubina! O filho mais velho, aquele que vive actualmente nesta casa, nasceu romano, aparentemente, mas não é filho de Gordiano e da sua escrava; esse Eco que nome ultrajante e grosseiro! era um pedinte abandonado que foi tirado das ruas. Quanto ao rapaz cujo aniversário e maturidade celebramos hoje, parece que nasceu como escravo em Baias, provavelmente de origem grega. Um escravo! E agora olhem para ele, de toga vestida. Nos tempos dos nossos antepassados, nos grandes dias da República, este género de profanação teria sido totalmente impensável. Não é de estranhar que o rapaz não consiga que a toga lhe poise adequadamente nos ombros!

 

Eu ouvi esta tirada, primeiro mudo, depois com as orelhas a arder, e em seguida com o punho fortemente apertado para evitar que ele voasse pelo ar. A certa altura, Cláudia, que olhava nervosa e alternadamente para Mânio e para mim, colocou timidamente a mão no meu cotovelo. O seu dócil freio era desnecessário, porque eu não tinha qualquer intenção de recorrer à violência em minha própria casa e de estragar a harmonia de celebração de Meto. Mantive os braços estendidos ao longo do corpo e deixei a fúria ferver dentro de mim enquanto Mânio prosseguia.

 

Por fim, e por menos, há uma filha. Segundo sei, nasceu livre, e aparentemente é filha de ambos. E legalmente uma rapariga romana, e certamente que um dia entrará, pelo casamento, numa casa romana levando consigo o sangue egípcio e judaico da sua mãe, nascida escrava. Será de espantar que a República tenha entrado em colapso e esteja a cair no caos à velocidade a que está? Quem defende a família romana e os valores a que ela outrora aspirava? Até um excelente Cláudio como o nosso primo Lúcio ficou aparentemente seduzido para usar a tua palavra, Cláudia, ”encantado” com toda esta decadência de capoeira, mas a verdade é que Lúcio sempre foi um excêntrico. Suponho que essa é também a tua desculpa, Cláudia a excentricidade. Se achas que este género de convívio está de acordo com a tua natureza, então não hesites, mas por favor guarda-o para ti. Cláudia, vejo agora que estava profundamente enganado. Permiti que as palavras doces de uma mulher enfraquecessem as minhas resoluções e modificassem os meus juízos. O tempo que aqui passei foi completamente desperdiçado.

 

Instantes mais tarde, ele ter-se-ia voltado e teria partido em triunfo presunçoso, deixando-me engasgado de fúria e sem alternativa que não fosse engolir a minha raiva ou correr atrás dele e fazer uma cena diante dos nossos convidados. Mas por vezes, em momentos como este, Nemesis estende a mão e faz de tolos aqueles que o merecem.

 

Oh, certamente que a tua visita não foi um desperdício completo comentei eu, não sabendo ainda muito bem o que queria dizer. O tom de ameaça contido na minha voz deve ter alertado Mânio, porque ele recuou, mas não foi suficientemente rápido. Pelo canto do olho, deve ter detectado o movimento ascendente da minha mão; ergueu os braços para se defender de um golpe que não chegou a ser dado, porque eu não fiz qualquer tentativa de o atingir na cara. Em vez disso, sem uma intenção consciente, estendi a mão para o sítio no interior da sua toga para onde tinha anteriormente visto a sua mão desaparecer, enquanto ele roubava acepipes das mesas. Dei uma palmada num ponto duro e inchado oculto por baixo das dobras flutuantes. Cláudia levou as mãos à boca e deu um pequeno guincho, suficientemente alto para fazer voltar as cabeças do pequeno círculo de pessoas que nos rodeavam. Instantes depois, o saquinho de pano que Mânio tinha escondido por baixo da toga, atado à cintura, caiu-lhe aos pés e rebentou pelas costuras. Tâmaras com mel, parras recheadas, castanhas assadas e bolos de sésamo espalharam-se pelo chão como se proviessem de uma cornucópia.

 

Cláudia, que anteriormente guinchara alarmada, guinchou agora de riso e o mesmo fizeram as mulheres que se tinham juntado, e que eram bastantes, e também se ouviram muitas gargalhadas no registo mais grave. Mânio Cláudio ficou tão corado que eu pensei que ele ia rebentar como o saco que tinha aos pés, e todo o seu corpo pareceu contorcer-se, como se ele quisesse desesperadamente desaparecer do jardim mas estivesse pregado ao chão. Olhou para mim com uma expressão de puro ódio e finalmente conseguiu erguer o braço e fazer um gesto incipiente, acompanhado por uma praga atabalhoada e incoerente. Voltou-se e poderia ter-se retirado com alguma da sua dignidade intacta, se não tivesse pisado uma tâmara com mel. A escorregadela fê-lo estender-se com tanta eficácia como se eu lhe tivesse aplicado o pontapé que ansiava por lhe dar naquele traseiro. Não chegou a cair completamente, mas a sua estranha e bamboleada retirada deixou-o sem pé onde se apoiar, pelo menos metaforicamente. Não nos concedeu nem mais um olhar mas eu vi-lhe as orelhas vermelhas e brilhantes. Era fácil imaginar as correntes de fumo que lhe sairiam pelas narinas.

 

Eu comecei a rir, de tal maneira que quando Eco e Meto correram para o meu lado, pensando que eu me tinha engasgado, me foi impossível explicar-lhes o que acontecera. Ria-me tanto que chorava, e toda a amargura e a irritação que Mânio provocara dentro de mim tornaram-se doces como o mel.

 

Quando finalmente consegui recuperar o fôlego e limpar as lágrimas, vi que Cláudia desaparecera, com menos fanfarra que o seu primo, mas provavelmente com igual vergonha. Pobre Cláudia, pensei eu, a tua intenção era boa, mas todos os teus esforços de fazer as pazes entre as nossas famílias saíram frustrados.

 

Não me foi permitido ficar a matutar ou regozijar-me com o incidente com Mânio Cláudio, porque a festa prosseguia e as solicitações ao pater famílias não tinham terminado. Eu acolhi, encantei, despedi-me. Finalmente, após alguns lapsos embaraçosos, insisti em que Eco se mantivesse ao meu lado, como se eu fosse um político do Fórum e ele o meu nomenclador, murmurando-me ao ouvido os nomes de que eu não me lembrava bem. O número de pessoas que um homem acaba por conhecer depois de viver continuamente durante mais de vinte anos numa cidade como Roma é vertiginoso. A minha profissão obrigou-me a entrar em contacto íntimo com um círculo em constante expansão de clientes bem relacionados, e Eco prosseguira o meu trabalho. O mais extraordinário era que parecia termo-nos tornado respeitáveis. Eu lembrava-me de uma altura em que os oradores e os advogados nunca se teriam dignado entrar em minha casa ou convidar-me para a sua; preferiam relacionar-se comigo através dos seus escravos. Mas a perseverança e a prosperidade conferem credibilidade e suponho que, com o passar dos anos, qualquer linha de actividade pode tornar-se respeitável desde que seja bem sucedida e que sobreviva, especialmente se proporcionar lucros à classe adequada de pessoas.

 

Começaram a doer-me os pés por estar tanto tempo na mesma posição. Tinha comido excessivamente para um dia quente de Verão como aquele, e bebido demasiado vinho (porque tinha a garganta seca de tanto falar pelo menos era essa a minha desculpa). E, no entanto, de uma forma geral, sentia-me feliz. Sentia-me ligeiro como uma pena, estava na festa mas também observava a festa, distanciado e divertido, como um visitante do Olimpo. Era do vinho, pensei, ou da sucessão de cumprimentos elogiosos, a mim próprio e a Meto, ou ainda da alegria pela humilhação de Mânio Cláudio eram estas coisas, pensei eu, que explicavam o meu estado de espírito, que era de cada vez maior felicidade à medida que o dia avançava. Não tinha nada a ver com o simples facto de ter regressado a Roma, de me sentir no centro da maior concentração de humanidade do mundo, de sentir à minha volta o poder e a paixão daqueles que vivem, amam, louvam, sofrem, triunfam e morrem todos os dias numa cidade de loucura como esta. Eu já não amava Roma, pensei; tínhamos sido amantes, mas isso acabara de vez. Poderia regressar a ela de tempos a tempos, mas apenas como visitante, liberto da tórrida, esquálida e jubilosa memória do nosso tumultuoso casamento. Eu já não amava Roma, pensei, e quase me deixei convencer.

 

De entre todos os momentos desse dia, nenhum foi mais puramente jubiloso do que aquele em que um certo riso ribombante me chegou aos ouvidos e suscitou um reconhecimento imediato na minha memória. Ergui os olhos da conversa superficial em que estava envolvido e sondei a multidão à procura da fonte desse riso, mas não consegui discernir o rosto que procurava. Depois ouvi o mesmo riso perto de mim, e quando me voltei vi Meto ser esmagado no aperto forte de um homem de sorriso aberto e músculos sólidos, com uma espessa barba preta e branca como mármore matizado. Por trás do homem barbudo, via-se outra figura de toga, um homem um pouco mais jovem e extraordinariamente belo, com um sorriso enigmático nos lábios, como uma estátua grega com um fato romano.

 

Finalmente, o homem libertou Meto, que recuperou o fôlego e tentou, confuso, endireitar as pregas da toga. Meto sentiu o meu olhar e devolveu-o com uma estranha expressão no rosto.

 

Papá chamou ele, com um estranho requebro na voz olha quem está aqui!

 

Como sempre, ouvi-te ainda antes de te ver! disse eu, rindo-me e dirigindo-me a passos largos para o recém-chegado. Preparei-me para o abraço de ferro do meu velho amigo Marco Múmio.

 

Fora Múmio quem desafiara a vontade de Marco Crasso, descobrira Meto na Sicília e o salvara de uma vida de escravidão a espantar corvos num campo poeirento. Múmio trouxera Meto para esta casa no mesmo dia em que Diana nascera. Ele teria sempre um lugar especial no meu coração.

 

Meto não fora o único escravo de Crasso que Múmio fizera um esforço especial para salvar. Atrás dele estava agora Apolónio, que Crasso vendera a um cruel senhor egípcio. Múmio atravessara o mar interior para salvar o escravo, trouxera-o de volta para Roma e por fim alforriara-o. Apolónio permanecera em casa de Múmio como seu liberto e companheiro de todos os momentos. Crasso desprezara a paixão que levara o seu lugar-tenente a preocupar-se tão profundamente com o destino de um mero escravo. Essa discórdia fora o ponto de partida do progressivo distanciamento entre Crasso e Múmio, que acabou por transferir a sua lealdade para Pompeu o que não estava mal, pois só ao serviço de Pompeu, azorrague dos piratas do mar e conquistador do Oriente, poderia um militar como Múmio exercitar o seu verdadeiro génio.

 

Marco! gritei eu. E Apolónio! Que bom ver-vos a ambos, especialmente num dia como o de hoje. Mas que surpresa! Pensei que ainda estavas no Oriente com Pompeu.

 

O quê, sem mais batalhas para travar? disse Múmio. Mitridates está acabado, os reinados menores foram colocados sob o domínio de Roma... já só falta tomar resoluções políticas. Fazer de Júpiter, chamo-lhe eu, mover princípezinhos de um lado para o outro, como ossos num tabuleiro de jogo. Pompeu adora esse género de trabalho, mas como sabes eu não tenho paciência para isso. Eu sou bom é a levar exércitos para a batalha, embora me pareça que estou a ficar demasiadamente velho e lento para ser soldado durante muito tempo, a não ser que queira morrer assim. Olha-me bem para isto!

 

Sem hesitações, levantou a sua toga de senador, debruada a roxo, e exibiu as coxas corpulentas. Usar uma toga implica a ausência de qualquer tipo de roupa interior que possa apertar as partes íntimas um homem dificilmente pode atender aos apelos da natureza com o braço esquerdo envolvido em tecido, todas as pregas de uma toga para controlar, e ainda o pano para cingir os rins, pelo que Múmio esteve perigosamente perto de se descobrir. Tanto quanto me lembro, uma parte considerável do seu corpo ficou mesmo a descoberto. Olhei à volta um pouco nervoso e fiz com as mãos o gesto de quem apaga um fogo, mas é mais fácil tentar impedir um urso de coçar a barriga do que Marco Múmio de exibir uma ferida de guerra. Felizmente, a única mulher que por acaso passou por ali na altura foi Betesda, que se dirigia para a cozinha com um ar de quem se ia meter onde não era chamada. Perante o espectáculo de Múmio exibindo as suas pernas corpulentas, ela parou, inclinou a cabeça e lançou-lhe um olhar calculador, como se estivesse a avaliar uma peça no mercado de carne.

 

Olha para esta! Múmio apontou para uma cicatriz longa e fina, que ia desde a carne pálida da parte de cima da sua coxa até à região do joelho, onde a pele bronzeada era mais escura que a de um egípcio. No meio da espessa cobertura de pêlos, a tira de pele cor-de-rosa a descoberto salientava-se com nitidez. Múmio flectiu os músculos, fazendo com que a longa cicatriz se contorcesse como uma cobra. A avaliar pelo seu riso áspero, achava que isto era estrondosamente divertido. Olhei por cima do ombro dele para Apolónio, que revirou os olhos e sorriu indulgentemente. Certamente já observara a mesma cena muitas vezes.

 

Batalha do Rio Abas! declarou Múmio, soltando a bainha da toga. E foi uma loucura deixar que isto acontecesse. Eu estava montado e o Albano a pé, só com um barrete de pele na cabeça; ele correu para mim com a espada desembainhada e gritando a plenos pulmões; eu vi-o aproximar-se tinha muito tempo para o derrubar com o lado cego da minha lança, ou para o empalar logo ali, ou para tirar a espada e me esquivar aos seus golpes, ou simplesmente para incitar o cavalo e pôr-me a andar dali para fora. O problema foi que tive demasiado tempo para pensar não fui capaz de decidir. Devia ter reagido por puro reflexo, mas descobri nesse dia que os meus reflexos estão mortos como Cartago. E descobri-o da pior maneira. Oh, a queimadura que senti quando a espada me entrou pela carne e a rasgou toda! Nessa altura, fui eu que gritei.

 

E depois o que fizeste? disse Meto, que sempre adorara histórias de soldados.

 

Se antes não tinha feito nada, nesta altura fiz tudo ao mesmo tempo! Bati no elmo do tipo com o lado cego da lança, vergastei-o com ela e esfaqueei-o no peito com a ponta, desembainhei a espada com a outra mão e cortei-lhe o pescoço, e depois incitei o cavalo e atirei-me às fileiras dos inimigos! Aconteceu tudo num instante.

 

Foste em direcção ao inimigo, em vez de te afastares dele? Mesmo ferido como estavas? disse Meto.

 

Não tinha alternativa. Foi uma coisa que aprendi noutras batalhas... quando somos gravemente feridos, a pior coisa que podemos fazer é parar. Isso é precisamente aquilo que não podemos fazer, porque então a dor abate-se sobre nós e é o nosso fim. Vi muitos homens morrerem de uma ferida que não devia tê-los morto, só porque pararam de combater e cederam ao ferimento. Não, devemos abrir a boca e gritar para deixarmos as Fúrias entrar dentro de nós, e mergulhar em cheio na batalha. Assim, nem chegamos a sentir a ferida e também não nos esvaímos em sangue, porque o sangue sobe-nos à cabeça e ao braço que tem a espada, em vez de correr pelo golpe.

 

Meto olhava para ele com os olhos muito abertos, cheio de temor.

 

Sabes, dizem que nessa batalha havia Amazonas a combater ao lado dos Albanos, embora eu não tenha visto nenhuma e não houvesse mulheres entre os mortos. Não me parece que gostasse de me confrontar com uma mulher em combate... Mas cá estou eu a falar de mim, como sempre, quando este dia pertence ao jovem Meto! Ficas impressionante com essa toga de homem! Lembro-me de seres uma coisinha assim, a correr de um lado para o outro na villa de Baias, a fazer recados e a atormentar os outros... as outras pessoas...

 

As últimas palavras foram um pouco estranhas. O que ele queria dizer era ”os outros escravos”.

 

Vi de novo a estranha expressão que atravessara o rosto de Meto aquando da chegada de Múmio. Enquanto Múmio mantinha a sua habitual disposição animada, gabando-se dos seus feitos nas batalhas, Meto podia limitar-se a ouvir fascinado, mas logo que a conversa incidia sobre o passado, Múmio transformava-se num lembrete palpável das próprias circunstâncias de que, há anos, salvara Meto. O rosto de Meto ficou vermelho, mas não tanto como o de Múmio, que se apercebeu de que pisava terreno incerto. Tentou um recuo apressado, mas já estava atolado.

 

Quer dizer, lembras-te do que Gordiano dizia de ti nessa altura

 

que eras os olhos e os ouvidos da casa? Andavas de um lado para o outro sem que ninguém reparasse em ti, a ver e a ouvir tudo o que se passava. Um braço de Nemesis, chamou-te ele depois, por causa do papel que desempenhaste na salvação dos outros... das outras pessoas. Uma vez mais, como o general que descobre que anda perdido no nevoeiro e sem querer dá voltas sobre si próprio voltando a cair na mesma emboscada da qual se libertara, Múmio tropeçou novamente na palavra proibida. Eu gemi.

 

Os outros escravos disse Meto muito calmamente.

 

O quê? balbuciou Múmio, que dificilmente poderia ter deixado de ouvir.

 

Os outros escravos, era o que tu querias dizer disse Meto.

 

Estavas a falar do papel que eu desempenhei na salvação dos outros escravos isto é, os outros que, tal como eu, eram escravos de Crasso.

 

Múmio retorceu a boca, que assumiu diversas formas. Teria ele a língua assim tão presa quando se dirigia às suas tropas?

 

Bem... sim, suponho que era isso que estava a tentar dizer. Ou a tentar não dizer, pensei eu.

 

Meto baixou os olhos.

 

Não tem importância, Marco Múmio. Não vale a pena esconder a verdade; foi isso que o meu pai me ensinou. Se escondermos a verdade, apenas conseguiremos ver falsidades. Ergueu os olhos, mas a sua expressão era calma e forte. Todos fomos muitas coisas, a caminho de nos tornarmos aquilo que somos agora. Esta toga não esconde aquilo que eu fui; não é esse o seu objectivo. Ela veste aquilo que eu sou. Sou o filho de Gordiano. Hoje passei a ser um homem e um cidadão romano de pleno direito.

 

Múmio recuou e ergueu as sobrancelhas. Depois, o seu rosto abriu-se num sorriso.

 

Esplêndido! exclamou. Que à-vontade esplêndida tu tens com as palavras! Hás-de vir a fazer-nos sentir orgulhosos de ti daqui a uns anos, tenho a certeza!

 

A tensão fora quebrada. Viram-se sorrisos a toda a volta. Eco pôs a mão no ombro de Meto e apertou-o. Os meus filhos nunca gostaram muito de demonstrar fisicamente o afecto que têm um pelo outro, e este gesto espontâneo de carinho alegrou-me e surpreendeu-me.

 

Deves sentir-te muito orgulhoso disse uma voz junto ao meu ouvido.

 

Voltei-me e vi o rosto elegante de um jovem com um sorriso doce e um brilho malicioso nos olhos escuros, enquadrados por uma barba em tira que lhe contornava o queixo e um corte de cabelo à moda. O rosto estava deslocado e o seu proprietário não fora certamente convidado; por um breve instante, senti-me desorientado, mal podendo acreditar que o tinha diante de mim.

 

Marco Célio! O que estás tu aqui a fazer? Lancei um olhar por cima do ombro. Meto e Eco conversavam um com o outro em voz baixa. Múmio e Apolónio tinham-se voltado para cumprimentar Betesda. Eu tomei o cotovelo de Célio e afastei-me um pouco com ele.

 

Ele ergueu uma sobrancelha.

 

Se eu fosse susceptível, poderia pensar que não te sentias feliz por me ver.

 

Guarda as tuas graças para o Fórum, Célio.

 

Francamente, Gordiano, achas que eu desperdiço as minhas graças com políticos? Os poetas e as prostitutas apreciam-nas muito mais do que eles.

 

Não me parece que tenhas sido convidado para esta ocasião disse eu, tentando manter-me calmo.

 

Eu não, mas Cícero foi. O teu filho mais velho, Eco, tratou de enviar um convite ao cônsul com meses de antecedência. Mas Cícero não pôde vir. Estava demasiadamente ocupado a tentar aproveitar a sua última oportunidade de arengar aos eleitores no Fórum antes das eleições de amanhã. E, claro, não podia ser visto nesta festa, dado a fictícia situação de discórdia que mantém contigo. Tenho estado a fazer o possível por semear rumores da profunda desavença existente entre Cícero e Gordiano... só para convencer Catilina de que pode confiar em ti, naturalmente.

 

Tudo isso terminou, Célio. Ou terminará com as eleições de amanhã.

 

Terminou, Gordiano? Julgo que não. Parece-me que está apenas a começar. Seja como for, Cícero pede-te que lhe perdoes, sabendo que tu compreenderás por que razão não pôde vir pessoalmente. Claro que, oficialmente, e se alguém por acaso perguntar, eu estou aqui em representação de Catilina, para prestar as suas homenagens por ocasião da maioridade do teu filho.

 

Quantos senhores tens tu, Marco Célio? Utilizei a palavra ”senhor” deliberadamente, com o propósito de o insultar, mas Célio não se perturbou.

 

Catilina sabe que eu lhe sou leal. E Cícero também. Só que, relativamente a Cícero, isso é verdade.

 

Será?

 

A sua expressão mudou. O sorriso maroto semelhante ao de um rapazinho que esconde um segredo morreu-lhe nos lábios e o brilho malicioso desapareceu-lhe dos olhos. Ele baixou a voz.

 

Perdoa-me, Gordiano. Andamos todos um bocado excitados depois do que aconteceu nos últimos dias aqui em Roma, especialmente os que estamos mais próximos de Cícero. Imagina o que é para mim andar de um lado para o outro, entre ele e Catilina, fingindo servir a ambos. Tenho tendência para me comportar com alguma ligeireza quando a tensão se torna excessiva.

 

Marco Célio, o que vieste fazer? perguntei fatigadamente.

 

Nada mais do que aquilo que te disse. Vim apresentar-te cumprimentos de Catilina, que acha que eu o represento, quando de facto o não represento, e comunicar-te as desculpas de Cícero pela sua ausência, dado que a aparência de distanciamento entre ti e Cícero deve ser mantida.

 

Mantida? Mas porquê? Fiz o que Cícero e tu me pediram; abri as portas de minha casa a Catilina, embora continue sem saber com que objectivo. Amanhã, os eleitores decidirão o futuro de Catilina e as minhas relações convosco, com todos vós, terminarão. Quer Catilina vença, quer perca, eu fiz o que me pediste. A minha dívida para com Cícero está saldada, e ponto final.

 

Não é bem assim disse Célio.

 

O que queres dizer com isso?

 

Quero dizer que as coisas não são assim tão simples, Gordiano. Quero dizer que as eleições de amanhã se de facto Cícero não conseguir convencer o Senado a voltar a adiá-las serão apenas a jogada de abertura da disputa que se aproxima.

 

Que disputa? Estás a dizer que Cícero espera que eu prossiga com esta charada de ser amável com Catilina?

 

A tua cooperação nunca foi tão importante como agora.

 

Marco Célio, começas a irritar-me.

 

Perdoa-me, Gordiano, vou-me já embora.

 

Célio...

 

Sim?

 

Célio, o que sabes tu acerca do corpo que foi deixado no meu celeiro?

 

Um corpo? disse Célio, inexpressivamente.

 

Logo a seguir à tua visita, logo a seguir a teres-me proposto um enigma acerca de corpos sem cabeças e de cabeças sem corpos. Disseste-me que o enigma era da autoria de Catilina. E depois, o corpo apareceu na minha propriedade. O corpo sem cabeça.

 

Célio franziu o sobrolho. A sua consternação seria real ou fingida? Sob o meu escrutínio, pareceu-me que a luz desaparecia dos seus olhos e que eles se tornavam completamente opacos, e deixei de conseguir discernir neles a verdade, como não conseguiria discerni-la nos olhos pintados de uma estátua.

 

Nada sei acerca de um corpo disse ele.

 

Cícero diria o mesmo, se eu lhe perguntasse? E Catilina?

 

Acredita em mim, Cícero não saberia mais do que eu. Quanto a Catilina...

 

Sim?

 

Ele abanou a cabeça.

 

Não vejo razões para suspeitares de que Catilina tenha cometido tal atrocidade.

 

Quando eu hesitei em aceder ao teu pedido de que recebesse Catilina em minha casa, apareceu o corpo, sem cabeça como o do enigma... como que para me convencer.

 

Gordiano, não sei nada acerca disso, juro por Hércules. Não faz qualquer sentido...

 

Quanto mais intensamente eu olhava para os seus olhos, mais impossível se tornava sondá-lo. Estaria a mentir? E, se sim, em nome de quem?

 

Mas se queres saber a solução do enigma de Catilina...

 

Sim?

 

Espera pela réplica de Catilina a Cícero esta tarde, no Senado. Aquilo que Catilina vai dizer estará na boca de todos. Nessa altura, Roma inteira conhecerá a solução do enigma.

 

Conta-ma já, Marco Célio...

 

Nesse momento, fez-se silêncio no jardim e as cabeças de todos voltaram-se para o corredor que dava para os quartos, de onde Rufo emergira vestido de augure. Estava resplandecente na sua trábea, um fato branco ornamentado com uma bainha roxa e listas cor de açafrão. Trazia na mão direita um bastão esguio e comprido de marfim, decorado com esculturas de corvos, mochos, águias, abutres e galinhas, bem como raposas, lobos, cavalos e cães os diversos pássaros e quadrúpudes a partir de cujas acções os augures interpretam a vontade dos deuses.

 

Rufo falou, com uma voz cheia de autoridade.

 

Chegou o momento de Meto passear pelo Fórum com a sua toga da masculinidade e de subir comigo ao Templo de Júpiter para a leitura dos auspícios.

 

Olhei à volta, e vi que Marco Célio se tinha ido embora.

 

Com muitos votos de felicidades, os convidados dispersaram. Os escravos das cozinhas, reunidos por Betesda e Menénia, começaram a limpar as mesas e a arrumar a comida que tinha sobrado dentro das bilhas. Eco chamou os restantes escravos domésticos e deu-lhes uma vista de olhos para ter a certeza de que estavam limpos e apresentáveis. Um romano não suscita respeito no Fórum a não ser que tenha uma comitiva quanto maior for a comitiva, maior será o respeito e, como diz Cícero, um escravo ocupa o mesmo espaço que um cidadão. A nossa comitiva seria pequena, mas com Rufo à cabeça seria distinta. Múmio declarou que ele e Apolónio também viriam connosco. Para completar, havia mais alguns cidadãos e libertos, homens que deviam favores a Eco ou estavam há muito ligados à nossa família por laços de obrigação mútua.

 

Descemos o caminho estreito até à Subura, onde nos esperavam as liteiras alugadas. Diana ficou em casa (e quase não protestou, graças a Menénia), por isso eu partilhei a minha liteira com Betesda. Eco foi com Menénia e Meto seguiu na liteira da frente com Rufo. Senti algum desgosto por não ter um lugar para oferecer a Marco Múmio, mas ele antecipou-se às minhas desculpas declarando que nunca aceitaria ser transportado por escravos enquanto tivesse duas pernas para andar. Seguiram-se os previsíveis alardes das longas distâncias percorridas nas campanhas; Múmio declarou ter certa vez percorrido setenta e cinco quilómetros num único dia numa estrada rochosa de montanha com a armadura posta.

 

Instalámo-nos nas liteiras e fomos erguidos acima da multidão. Os escravos levaram-nos para a Via Subura, com a comitiva atrás.

 

Betesda deixou-se estar calada durante algum tempo, observando as pessoas na rua e avaliando os vendedores e as suas cargas. Tinha saudades da azáfama da cidade, pensei eu.

 

Correu muito bem disse ela por fim.

 

Sim.

 

A comida era excelente.

 

De facto. Mesmo pelos nossos padrões habituais, e Côngrio estraga-nos com mimos.

 

O toldo amarelo foi uma boa ideia.

 

Sim, está um sol forte.

 

E estas liteiras são divertidas.

 

São um regalo concordei eu. Para uma conversa tão ligeira, a voz de Betesda estava estranhamente monótona, e ela observava os transeuntes da Subura com uma expressão pensativa. Vi a nossa vizinha Cláudia.

 

Ela falou contigo?

 

Não.

 

Bem, foi-se embora subitamente. Cometeu o erro de trazer consigo o primo Mânio. Ele foi um bocado insultuoso e fez uma cena, mas que acabou mal para ele. Não assististe?

 

Não, devia estar ocupada na cozinha. Mas ouvi falar depois. Eco diz que o homem fez figura de parvo. Ele estava mesmo a meter comida para dentro da toga?

 

Receio que sim.

 

Que absurdo! Deve ser rico como Crasso.

 

Estás a exagerar, mas duvido de que Mânio passe fome. Estes Cláudios do campo são uma gente estranha. Parece terem uma natureza extraordinariamente somítica e obstinada. Até Cláudia, pensei eu, se distinguia pelo seu ódio mesquinho ao desperdício.

 

Também vi outra pessoa na festa...

 

Sim? disse eu.

 

Aquele jovem que nos visitou há algum tempo. Aquele que conseguiu que tu recebesses Catilina. O elegante.

 

Marco Célio.

 

Sim. Também não tive oportunidade de falar com ele. Tentei não sorrir.

 

Pois, Betesda, compreendo que lamentes ter perdido uma segunda oportunidade de encantar um jovem tão belo...

 

Ela desviou o rosto da rua. A sua expressão fria calou-me.

 

Marido, achas realmente que eu me poria a matutar desta maneira por ter perdido uma oportunidade de namoriscar? O que estava Marco Célio a fazer em nossa casa hoje? Ela tinha o rosto distorcido, como quem usa um fato demasiadamente apertado, e os seus olhos tinham uma expressão assombrada que me fez o coração em água. Não estava irritada, estava assustada.

 

Betesda! Eu procurei pôr o braço à volta dos seus ombros, mas ela afastou-me.

 

Não me acarinhes como se eu fosse uma escrava. Diz-me por que veio aquele homem à festa de Meto. O que queria ele de ti?

 

Muito bem. Ele veio, segundo me disse, pedir desculpas pelo facto de Cícero não ter vindo pessoalmente.

 

Pediu-te mais favores? Quando eu hesitei em responder, os olhos de Betesda faiscaram. Eu sabia! O que quer ele de nós desta vez? Tem novamente a ver com Catilina?

 

Betesda, eu comuniquei a Célio de forma inequívoca que as minhas obrigações já tinham sido cumpridas.

 

E ele ficou satisfeito?

 

Eu voltei a hesitar, e a faísca dos seus olhos incendiou-se.

 

Eu sabia! Mais problemas!

 

Não necessariamente, Betesda.

 

Como é que podes dizer isso? Fazes ideia de como tenho andado preocupada desde que Diana encontrou aquele corpo horrível no estábulo? Não quero que aconteçam coisas dessas à nossa volta!

 

Então talvez seja preferível fazermos aquilo que Célio nos pede.

 

Não!

 

Sim! Satisfazemo-lo e quem quer que ele realmente representa, seja Cícero, Catilina, ou... Pela primeira vez, ocorreu-me que Célio poderia representar outra pessoa qualquer.

 

Não deves relacionar-te com ele insistiu Betesda.

 

Ele pede muito pouco.

 

Até agora! Mas o resultado será terrível. Quando saímos da cidade, disseste que deixavas essas coisas para trás.

 

E deixei. Mas elas seguiram-me.

 

Mas isto é diferente. Não é o teu estilo, fazer as coisas sem saber por quê. Sempre foste um homem aberto e honesto, mesmo quando trabalhavas em segredo.

 

Isso não faz muito sentido, Betesda.

 

Sabes o que eu quero dizer! Eu suspirei.

 

Sim, sim. A duplicidade para que Célio me empurra não se adequa bem à minha personalidade. Na verdade, assusta-me. Sem intenção, com a naturalidade de uma criança, estendi a mão para a sua e entrelacei os meus dedos nos seus. Eu também tenho medo, Betesda.

 

Sinto-me assustado, desanimado e um pouco indignado... e orgulhoso, feliz e sentimental, porque este é o dia da toga de Meto! Se ao menos as nossas vidas pudessem ser uma coisa de cada vez, em vez desta louca salgalhada.

 

Foi a minha vez de ficar pensativo e de observar os transeuntes.

 

Betesda, quando eu era jovem e começava a abrir caminho no mundo continuando o trabalho do meu pai, houve uma coisa que ele me obrigou a prometer que nunca faria utilizar as minhas capacidades para capturar escravos fugitivos. Não tive dificuldade em fazer essa promessa, e nunca a quebrei, pois não tenho interesse por esse tipo de trabalho. Com o passar dos anos, eu próprio acrescentei outra promessa, esta de minha lavra que nunca seria espião do Estado, nem me tornaria um polícia secreto de um ditador se a República voltasse a ser presa de outro Sula, Júpiter não o permita.

 

”Houve alturas em que fiz coisas de que me não sinto particularmente orgulhoso, e momentos em que me foi difícil distinguir o bem do mal foi assim que os deuses fizeram este mundo, com múltiplas incertezas e perguntas sem resposta. Mas sempre dormi bem e sempre pude ver-me ao espelho sem vergonha. Agora, dou por mim obrigado a fazer um papel de espião, ou pelo menos a relacionar-me com um espião, e nem sequer tenho bem a certeza da pessoa para quem estou a trabalhar. Serei agente de Cícero ou dos Optimates, ou seja, do Estado? Ou serei o instrumento involuntário de Catilina, que não hesitaria em ser ditador se pudesse, pois de que outra maneira poderá ele introduzir as alterações que promete aos seus seguidores, os deserdados e privados dos seus direitos? Em última análise, digo a mim próprio, tanto me faz desde que deixem em paz a minha família e o meu próprio cinismo perturba-me! Estarei a ser sensato, ou meramente apático... ou a ser cobarde?

 

Betesda olhou para mim firmemente e apertou-me a mão.

 

Tu não és cobarde.

 

Ah, mas não estou a ouvir-te garantir-me que estou a ser sensato?

 

Ela esfriou um pouco e retirou a sua mão das minhas. Pousou o queixo sobre os nós dos dedos e olhou fixamente para a rua. Falou num tom simultaneamente distanciado e decidido, que não admitia contradição.

 

No teu coração, tu sabes o mesmo que eu sei: que algo terrível paira sobre nós. Eu sou uma mulher, o que posso eu fazer? Meto ainda não é um homem. Eco também é muito jovem e a sua vida é aqui na cidade. Tudo cai sobre os teus ombros, marido.

 

Eu pestanejei e suspirei, e perguntei a mim próprio: teria esta mulher alguma vez sido minha escrava?

 

As liteiras depositaram-nos na extremidade oriental do Fórum, perto das Termas Senianas. De acordo com o costume, as mulheres ficaram para trás, à nossa espera. Meto pisou o Caminho Sagrado com um sorriso feliz como companhia da sua toga. Não sei do que viera a falar com Rufo, mas devia ter sido de tópicos mais felizes do que os da minha conversa com Betesda.

 

Chefiado por Rufo, nas suas vestes de augure, o nosso pequeno grupo abriu caminho pelo coração de Roma. Por entre a aglomeração de vendedores, eleitores, políticos e vagabundos, passámos pela Casa do Pontifex Maximus, onde o jovem César desempenhava agora o seu cargo, e pela vizinha Casa das Virgens Vestais, o cenário da indiscrição de Catilina, dez anos antes. Passámos pelo Templo de Vesta, onde o fogo-sagrado arde eternamente no lar da deusa, e pelo templo de Castor e Pólux, onde são guardadas as escalas e as medidas do Estado. Passámos pelo tribunal dos comissários, onde se fizera justiça no caso de Asúvio e do testamento forjado a minha primeira aventura com Lúcio Cláudio. Chegámos à Rostra, a plataforma dos oradores decorada com os bicos dos navios capturados na guerra de onde os políticos arengam às massas e os advogados defendem os seus casos diante dos tribunais. Fora aqui que o jovem Cícero litigara o caso que estabelecera a sua carreira, defendendo Sexto Róscio da acusação de parricídio; eu fora o seu investigador. Nessa altura, a praça era dominada por uma enorme estátua equestre de Sula, que entretanto desaparecera; o Senado ordenara que ela fosse retirada há poucos anos. Por trás da Rostra ficava o Senado, onde Cícero, na sua qualidade de cônsul de Roma, iria hoje propor outro adiamento das eleições consulares e Catilina se defenderia da acusação de querer dissolver o Estado.

 

A praça estava apinhada de gente. Um político falava da Rostra a uma audiência de eleitores era um dos candidatos dos Optimates a cônsul, a julgar pela sua retórica, embora não fosse óbvio se se tratava de Murena ou de Silano, mas havia por ali muitos outros oradores, rivalizando entre si pelas atenções dos eleitores. Parecia que, onde quer que um lance de escadas ou um muro permitisse a um homem erguer-se acima da multidão e ser visto por ela, havia um político a dirigir-se a todos os que conseguissem ouvi-lo. Por vezes, o discurso parecia ser mais um debate do que uma alocução, com a multidão a gritar perguntas ou acusações ao orador, ou mesmo a apupá-lo.

 

Era óbvio que, quanto maior fosse a comitiva de um orador, maior era a sua segurança e mais eficaz a sua retórica, por isso cada político estava rodeado pelo número máximo de apoiantes que conseguira reunir, já para não falar de libertos, escravos e guarda-costas. A praça parecia um campo de batalha de várias facções conflituais, misturadas umas com as outras sem razão discernível, a não ser a de apoiarem o seu candidato favorito e escarnecerem dos outros. A ameaça de violência pairava nitidamente no ar; veio-me ao espírito a imagem de uma panela ao lume, a ponto de entrar em ebulição.

 

Com Rufo à cabeça, a nossa comitiva inspirava respeito. A sua trábea de riscas cor de açafrão era imediatamente reconhecível; os homens afastavam-se para dar passagem ao augure. Muitos conheciam-no pessoalmente e ele cumprimentava-os alegremente; a sua juventude e o seu encanto, raros num augure, contribuíam certamente para a sua popularidade. Múmio também era uma figura conhecida e popular entre a multidão; as pessoas ainda se recordavam do papel que ele desempenhara no combate à revolta de escravos de Espártaco, e a sua mais recente actividade ao serviço de Pompeu granjeara-lhe ainda mais respeito.

 

Meto não foi ignorado. O objectivo da nossa comitiva era imediatamente evidente para muitos um augure, pai, filho e a sua comitiva dirigindo-se ao Capitólio e ouviram-se aplausos espontâneos para o jovem que dava o seu primeiro passeio como adulto pelo Fórum. Meto, sorrindo feliz com os olhos muito abertos, parecia deslumbrado. Eu nem sequer estava bem certo de que ele se apercebesse de que os aplausos eram para ele.

 

A pressão dos corpos era tão grande, que tivemos de parar por várias vezes, esperando que a multidão se abrisse para podermos prosseguir. À nossa volta, de uma extremidade à outra do Fórum, captei fragmentos de conversas acesas. Junto do Templo de Castor e de Pólux, dois homens discutiam um incidente no teatro. A menção de Cícero chamou-me a atenção.

 

... e o discurso que ele fez depois foi o melhor de sempre! dizia o primeiro homem.

 

Absurdo! contrariou o outro. Foi o ponto mais baixo da sua carreira. Cícero devia ter resignado com a vergonha! Defender uma prática tão injusta e tão pouco romana! Antigamente, o teatro era o único local em que os Romanos eram verdadeiramente iguais. Quando eu era rapaz, os ricos e os pobres sentavam-se lado a lado. Apupávamos os patifes e ríamo-nos dos palhaços e corríamos atrás dos jovens amantes a uma só voz.

 

Toda a gente era igual no teatro? As primeiras quatro filas sempre foram para os senadores.

 

Porque fazer parte do Senado é uma prova de superioridade e de linhagem distinta. Mas por que é que há-de haver lugares especiais para certas pessoas, só porque têm dinheiro? São gente comum, tal como eu. Devemos sentar-nos todos juntos, como uma família, e não nos estarmos a cindir-nos entre ricos e pobres. O quê, eu cheiro excessivamente a suor honesto para um mercador perfumado se sentar ao meu lado? A lei de Oto é um escândalo, é má para Roma, e ouvir Cícero defendê-la...

 

A lei de Oto é perfeitamente razoável, como bem saberias se tivesses ouvido o discurso de Cícero.

 

Preferia ouvir um actor recitar Plauto nos melhores lugares do teatro, se chegar suficientemente cedo para os conseguir, em vez de ser enxotado lá para trás por não pertencer à classe dos cavaleiros abastados, como a família de Cícero! Porque me hei-de sentar atrás de um cavaleiro de cabeça grande, que me tapa a vista?

 

É óbvio que preferes cuspir veneno do que discutir com base em argumentos.

 

Muito bem, vai-te embora porque eu não tive aulas de retórica! Talvez um murro no nariz seja mais convincente!

 

Felizmente, naquele momento, uma abertura na multidão permitiu-nos passar. Inclinei-me para Rufo.

 

Que escândalo é esse acerca de um incidente no teatro? Já te referiste a isso.

 

Não ouviste falar?

 

Não.

 

Ele revirou os olhos.

 

Há meses que não se fala de outra coisa na cidade! É a melhor maneira de arranjar uma discussão em Roma! Sabes como as coisas são... um pequeno incidente atrai subitamente a atenção de toda a gente, desencadeia uma controvérsia e torna-se um foco de discussões acerca de questões muito mais importantes do que o próprio incidente.

 

Bem, há uns anos, Lúcio Róscio Oto foi tribuno e fez aprovar uma lei reservando catorze filas de lugares no teatro para os cavaleiros mais abastados.

 

Sim, eu lembro-me.

 

Nessa altura, pareceu uma medida liberal, pelo menos dentro do Senado. Sempre houve pelo menos quatro filas reservadas para os senadores; portanto, defendia Oto, por que não reservar algumas filas para os cavaleiros? O conjunto dos endinheirados que não conseguem entrar no Senado ficou muito satisfeito, e desde então tem financiado a carreira política de Oto. Este ano, ele tem um cargo de pretor e, enquanto tal, fez com que a sua lei dos lugares fosse escrupulosamente respeitada em todas as festividades públicas. Foi no mês de Aprilis, mesmo no início da época teatral, durante os Jogos Megalésios, numa representação de A rapariga de Andros, que Oto apareceu pessoalmente na assistência. Um grupo de jovens desordeiros começou a apupá-lo e a assobiá-lo, dizendo que queriam melhores lugares, e por que não podiam sentar-se nos lugares vazios das filas dos cavaleiros? Gritaram epítetos a Oto. Em resposta, um contingente da secção dos cavaleiros começou a aplaudir Oto. Os desordeiros tomaram esta atitude como um insulto, considerando que os aplausos dos cavaleiros eram uma forma de agradecerem a Oto por não os obrigar a sentarem-se ao lado daquele lixo. Mais assobios, mais aplausos, e não tardou que começassem a ouvir-se ameaças e a ser lançadas coisas pelo ar. A multidão estava à beira de um tumulto.

 

”Quase imediatamente, Cícero foi informado do incidente na sua casa do Palatino Cícero tem olhos e ouvidos em toda a parte, e não acontece nada de importante na cidade, que ele não seja rapidamente informado. Pouco depois, o cônsul foi pessoalmente ao teatro, com guarda-costas armados. Convocou todos os presentes para o Templo de Belona, onde produziu um discurso esplêndido, que terminou com a multidão em peso a aplaudir Oto, regressando depois aos seus lugares para assistir à peça sem mais interrupções.

 

E o que disse Cícero?

 

Eu não estava presente, mas estou certo de que Tiro, o secretário de Cícero, transcreveu uma cópia que poderás consultar. Cícero não abre a boca sem que Tiro não escrevinhe todas as frases, como se o seu senhor fosse um oráculo. Sabes como Cícero sabe ser convincente quando defende os privilégios e a ordem. Julgo que ele se alongou nos ilustres serviços prestados por Oto ao Estado e repreeendeu os mal-educados que assobiavam e apupavam um distinto magistrado romano. Depois defendeu o alargamento dos privilégios aos cavaleiros; não lhe foi difícil ele próprio pertence à classe dos cavaleiros, claro disse Rufo, erguendo uma sobrancelha com um ar desdenhoso próprio de um patrício. A minha teoria é que os membros mais excitados da multidão se aborreceram e se foram embora gastar as suas energias para outro sítio, enquanto os membros mais calmos da audiência regressaram ordeiramente para desfrutar da comédia. Cícero inclui o caso no rol dos seus triunfos pessoais.

 

Pela discussão que acabamos de ouvir, deve ter havido quem discordasse.

 

A controvérsia prossegue. São sempre as pequenas coisas que espicaçam as pessoas. Catilina pegou nisto como tema de campanha, claro. Catilina está sempre pronto a ser o campeão dos descontentes.

 

Pouco depois, ouvi outra discussão, desta vez entre um orador que subira a um pedestal de madeira improvisado e um cidadão que se recusava a permitir que ele pronunciasse o seu discurso, envolvendo-se com ele numa discussão acesa.

 

A lei de reforma da terra de Rulo teria sido um grande progresso! insistia o orador.

 

Que disparate! gritava o cidadão. Foi uma das leis mais absurdas que alguma vez foram propostas e Cícero teve toda a razão em se opor a ela.

 

Cícero não passa de um porta-voz dos Optimates.

 

E então? Compete aos Melhores oporem-se a esses planos loucos propostos por César apenas para conseguir os favores da multidão... e, de caminho, apoderar-se do Egipto.

 

Foi Rulo quem propôs a lei, não foi César.

 

Rulo abre a boca e o que ouvimos são as palavras de César.

 

Muito bem, então concordamos que a discussão não foi entre Rulo e Cícero, mas entre César e os Optimates dizia o orador.

 

Exactamente!

 

Então tens de concordar também que, se a proposta de Rulo tivesse passado, poderia ter havido uma redistribuição da terra àqueles que dela necessitam, sem recurso à violência ou a confiscações injustas.

 

Absurdo! Nunca teria resultado. De qualquer maneira, qual é o habitante de Roma que está interessado em ir para o campo fazer de agricultor, quando aqui na cidade tem o circo e as festividades e as ofertas de trigo gratuito?

 

São atitudes como essas que estão a destruir a República.

 

São os Romanos que estão a destruir a República, porque se tornaram moles e preguiçosos. É por isso que precisamos que os Optimates segurem o leme.

 

Segurem as terras, queres tu dizer. É preferível que seja o homem comum a pegar no arado.

 

Ridículo olha para a confusão que se passou na Etrúria com os veteranos de Sula. Nem um em dez se transformou num agricultor como deve ser. Agora estão todos na bancarrota e têm esperança de que Catilina, esse demagogo, lhes pague a fiança, com o fogo e a espada se for preciso.

 

Então não queres a reforma da terra, não gostas de Catilina...

 

Desprezo-o! Ele e o seu círculo de diletantes mimados, bem-nascidos e irresponsáveis. Todos tiveram a possibilidade de viver uma vida decente e preferiram desperdiçá-la endividando-se desesperadamente junto de cidadãos mais responsáveis e honestos. Todo esse esquema radical de perdão das dívidas não é favor nenhum às massas é uma maneira de ele se libertar, e aos seus amigos, e de pilhar a propriedade daqueles que merecem manter aquilo que eles e os seus antepassados acumularam. Se conspiradores como Catilina acabam impotentes e empobrecidos, não têm mais do que aquilo que merecem. E se os eleitores de Roma são suficientemente insensatos para apoiarem as suas ideias loucas...

 

Está bem, está bem, longe de mim defender Catilina. Mas parece-me que tens uma opinião igualmente negativa de César...

 

Que está igualmente endividado! Não é de espantar que ambos suguem o famoso milionário. Catilina e César são como bebés gémeos pendurados das tetas de Crasso. Ah! Parecem Rómulo e Remo a mamar na loba! O orador deu uns estalidos obscenos com os lábios. Isto provocou partes iguais de risos e assobios na multidão, divertida ou ofendida com tal blasfémia.

 

Muito bem, cidadão, insultas Catilina, insultas César e Crasso... Suponho que te inclines para Pompeu.

 

Pompeu também não é o meu homem. São todos uns cavalos selvagens a tentarem libertar-se do carro. Correm uns contra os outros e não se preocupam absolutamente nada com o bem comum.

 

E Cícero preocupa-se? zombou o orador.

 

Sim, preocupa-se. Catilina, César, Crasso, Pompeu... todos eles gostariam de ser ditadores, se pudessem, e de cortar as mãos dos outros.

 

Não podes dizer o mesmo de um homem como Cícero. Ele tem-se pronunciado contra a tirania desde a ditadura de Sula, quando era preciso ser corajoso para o fazer. Chamaste-lhe porta-voz muito bem, é isso mesmo que um cônsul deve fazer, falar em nome dos membros do Senado cujas famílias fizeram da República aquilo que ela é e a têm governado desde que os reis foram afastados. Não queremos o governo da multidão, nem queremos ditadores, queremos a governação firme, lenta e segura daqueles que sabem mais.

 

Esta última declaração provocou um coro de zombarias de alguns recém-chegados e o debate degenerou num desafio de gritos. Felizmente, a agitação da multidão proporcionou uma abertura, e nós pudemos prosseguir. Momentos depois, Meto aproximou-se de mim com uma expressão muito séria.

 

Papá, não consegui perceber nada daquela discussão!

 

Eu consegui perceber alguma coisa, mas não muito. Reforma da terra! Todos os populistas a prometem, mas ninguém consegue concretizá-la. Os Optimates transformaram a expressão num palavrão.

 

O que era essa lei de Rulo de que eles estavam a falar?

 

Foi uma proposta feita no princípio deste ano. Lembro-me de a nossa vizinha Cláudia protestar contra ela. Mas não conheço os pormenores confessei.

 

Rufo voltou-se para nós.

 

Foi uma das ideias de César, em conjunção com Crasso, uma ideia tipicamente brilhante. O problema: como encontrar terras para todos os que precisam delas aqui em Itália. A solução: vender as terras públicas que conquistámos em países distantes e reservar esses lucros para a compra de terras destinadas a instalar os pobres em colónias agrícolas. Não era uma simples confiscação e redistribuição das terras dos ricos aos pobres, como propõe Catilina, mas a aplicação de fundos públicos para obter uma redistribuição justa.

 

E por que é que o homem mencionou o Egipto?

 

As terras longínquas que seriam vendidas incluíam as do Egipto, que o falecido Alexandre II legou a Roma. A lei de Rulo propunha a constituição de uma comissão especial de dez homens para supervisionarem o projecto, incluindo a sua administração no Egipto...

 

E César seria um dos membros dessa comissão disse Múmio friamente, juntando-se à discussão. Ter-se-ia apropriado do Egipto como quem colhe um figo de uma árvore.

 

Se quiseres concedeu Rufo. Crasso também faria parte da comissão, dado que o seu apoio era vital. Com o Egipto sob o seu domínio, eles disporiam de um bastião contra o poder de Pompeu no Oriente, estás a perceber? Seria de esperar que isso agradasse aos Optimates, uma vez que eles também têm receio de Pompeu. Mas, enquanto Pompeu estiver longe de Roma a fazer campanha no Oriente, os Optimates têm mais receio de César e de Crasso.

 

Já para não falar de Catilina e da multidão disse eu.

 

Sim, mas Catilina distanciou-se intencionalmente da lei de Rulo. Era demasiadamente conciliadora para ele; ser visto como uma força de suporte dessa lei teria posto em causa a sua reputação de radical. E o seu apoio também não seria vantajoso para a proposta; o seu entusiasmo teria alarmado ainda mais os Optimates, que já desconfiavam da ideia.

 

Ainda assim, imagino que Catilina teria aceite ser nomeado um dos novos comissários de terras, juntamente com César e Crasso.

 

Rufo sorriu de esguelha.

 

A tua percepção da política é mais subtil do que dás a entender, Gordiano.

 

Mas a proposta não passou disse Meto.

 

Não. Os Optimates consideraram que se tratava apenas de um instrumento para César e Crasso, e claro, talvez Catilina, aumentarem o seu poder, e sempre que se fala de reformas de terra, eles ficam imediatamente com os nervos em franja. Fingem apoiar a ideia em abstracto, mas nenhuma proposta concreta os satisfaz. Cícero foi o seu porta-voz, como tem sido desde que eles se juntaram para apoiar a sua candidatura ao consulado. Mas não se limitou a discutir o assunto no Senado. Veio para aqui, para o Fórum, e apresentou a questão directamente ao povo.

 

Mas esse é o tipo de proposta de que o povo gosta, não é? É por isso que dizem que César é um populista, não é? perguntou Meto. Por que havia Cícero de discutir a proposta diante do próprio povo que ela se destinava a favorecer?

 

Porque Cícero é capaz de convencer um condenado a cortar a própria cabeça disse Rufo. Ele sabe montar um discurso; conhece os argumentos que podem impressionar a multidão. Primeiro, disse que a lei era dirigida contra Pompeu, embora Pompeu tivesse sido especificamente excluído das investigações que seriam feitas às aquisições dos grandes generais em países estrangeiros. O povo não gosta de coisas que possam ser contra Pompeu. Pompeu é o querido da populaça; como todos os generais bem sucedidos. Denegrir Pompeu é denegrir o povo de Roma, questionar Pompeu é insultar o filho favorito de Roma, et cetera, et cetera. Depois, Cícero voltou-se contra a comissão, dizendo que ela se transformaria numa pequena corte de dez déspotas. Eles desviariam os fundos que conseguissem juntar, roubando ao povo romano a sua riqueza; castigariam os seus inimigos obrigando-os a vender as suas terras, o que seria quase tão perverso como as proscrições e as confiscações de Sula; empurrariam os pobres urbanos, agora satisfeitos, para pedaços áridos de terra onde eles morreriam à fome. Bem, sabes como Cícero é persuasivo, especialmente quando se trata de convencer as pessoas a agir contra os seus próprios interesses. Tenho a certeza de que ele conseguiria convencer um pedinte de que uma pedra é melhor do que uma moeda porque pesa mais e de que um estômago vazio é preferível a um cheio porque não provoca indigestão.

 

Mas Rulo deve ter defendido a lei disse Meto.

 

Defendeu, e foi reduzido a pó... retoricamente falando. César e Crasso molharam um dedo, ergueram-no ao vento e decidiram manter-se em silêncio, embora ambos estejam à altura de Cícero numa discussão, pelo menos aos meus ouvidos. Não era o momento próprio e a lei foi simplesmente deixada cair. As pessoas não tardaram a ser distraídas por outras coisas, como o incidente no teatro e a nova campanha de Catilina para cônsul.

 

Dizes que não era o momento próprio para esse género de reforma disse eu. Em Roma, e com os Optimates a controlarem o Senado,     quando é que será o momento próprio para qualquer mudança? Nunquam disse Rufo, sorrindo pesarosamente: nunca.

 

O nosso destino era o cume do Capitólio, onde Rufo leria o seu augúrio. Conseguimos finalmente atravessar a zona densamente povoada diante da Rostra e chegámos ao largo caminho pavimentado que sobe em patamares sinuosos até ao cume do Capitólio. Aí, tivemos de fazer nova pausa porque um grande grupo de homens descia o caminho, tantos que nos impediam de subir. À medida que o grupo se aproximava, o rosto de Rufo iluminou-se. Ele via melhor do que eu e já detectara os rostos dos dois homens que caminhavam lado a lado, à cabeça das respectivas comitivas. Um deles tinha vestida uma toga senatorial, branca debruada a púrpura; o outro vestia a toga com um debrum púrpura bastante mais largo do Pontifex Maximus.

 

Eles também sorriram quando reconheceram Rufo e acenaram a Marco Múmio. De momento, Meto e eu próprio, bem como o resto da nossa comitiva, éramos invisíveis para eles. Aqueles que vestem de púrpura começam por se reconhecer entre si; os outros vêm depois.

 

Rufo! disse o Pontifex Maximus.

 

César! disse Rufo, inclinando a cabeça. Fez o mesmo gesto de submissão ao augure de barba branca que seguia ao lado do Pontifex Maximus, vestindo como Rufo uma trábea com tiras cor de açafrão. Dentro de cada colégio, um augure mais jovem era sempre deferente para com outro mais idoso.

 

Olhei atentamente para o rosto do Pontifex Maximus. Gaio Júlio César ainda não tinha quarenta anos, mas já era uma força que a República teria de ter em conta. A sua herança patrícia era impecável; os seus laços de família com o antigo inimigo do ditador Sula, Mário, que no passado significavam uma condenação à morte, tinham-se tornado parte das suas credenciais como chefe do movimento populista. Se Cícero era mestre de retórica, capaz de conseguir o que queria pelo simples poder da argumentação, dizia-se que César era mestre da política pura, um génio a compreender as múltiplas e frequentemente obscuras tendências da velhíssima rede que ligava um ao outro o Estado e o sacerdócio. Ele conhecia as mais arcanas e pesadas regras de procedimento no interior do Senado e invocava-as nos momentos mais inesperados, para consternação dos seus inimigos; conhecia o funcionamento intrincado de uma burocracia sempre crescente que cumpria (e muitas vezes confundia) a vontade do Senado e do povo; como Pontifex Maximus, supervisionava o labirinto de ofícios e irmandades religiosas que interpretavam os auspícios e os textos sagrados, exercendo assim o seu poder sobre o Senado, o exército e o comércio, ao permitir que estas instituições funcionassem, ou não, em determinado dia.

 

César não era um homem belo, mas também não era, de modo nenhum, um homem vulgar. O seu rosto estreito chamava a atenção, mas não porque a beleza figurasse nele. Era a vitalidade dos seus olhos que impressionava, juntamente com a austeridade patrícia dos seus malares subidos e da testa alta, e a tensão desenhada dos seus lábios finos, que parecia sorrirem perpetuamente num gracejo irónico. A sua atitude erecta e o seu porte seguro distinguiam-no como um homem que controlava absolutamente todos os seus movimentos, tinha uma consciência absoluta da sua graça fluida e se sentia discretamente satisfeito com a imagem que apresentava ao mundo. Não conheci mais do que uma mão-cheia de homens (e algumas mulheres) com este género de atitude, e todos eles eram patrícios ricos e eminentemente educados, ou então escravos que possuíam o encanto natural dos incultos juntamente com aquela beleza notável que obscurece qualquer outra consideração. Nós, os mortais intermédios, nunca poderemos esperar possuir a graça perfeita destes seres abençoados pelos deuses que se encontram acima e abaixo de nós próprios. É uma coisa que tem origem no poder, suponho eu, seja ele de natureza política ou sexual e que não tem a ver apenas com possuí-lo, mas com saber instintivamente utilizá-lo, e ter a capacidade de gostar disso. Catilina tinha alguma dessa graça, mas que nele estava misturada com outra coisa, uma qualquer imperfeição que o tornava ainda mais fascinante. Em César, essa graça não se encontrava diluída. Ele parecia-me ser a própria personificação do poder, projectando por essa razão (tal como os homens belos) a ilusão de ser indestrutível e imortal. Ainda que este vaso mortal fosse dilacerado com feridas, aberto de tal maneira que os seus ossos e o seu sangue ficassem expostos e a cabeça fosse separada dos ombros ainda assim, parecia que os seus lábios manteriam o mesmo sorriso natural.

 

Eu tinha vislumbrado o seu companheiro pelo canto do olho, ou talvez tivesse reconhecido o seu porte à distância, porque sabia que o homem era Marco Lúcio Crasso antes de ter poisado relutantemente os olhos sobre ele. Havia poucos homens que eu desejasse menos encontrar por acaso, e logo neste dia. Quando Rufo se voltou para o cumprimentar, o olhar inquieto de Crasso pousou sobre mim. Reconheceu-me imediatamente, embora tivessem passado quase nove anos desde o caso de Baias. As coisas não tinham corrido como ele desejava, graças a mim, e Crasso era um homem habituado a que as suas relações com homens inferiores se passassem de acordo com a sua vontade; pelo brilho dos seus olhos, percebi que a recordação ainda o irritava. Catilina dissera-me que Crasso me respeitava de uma forma involuntária mas, se assim era, não tinha dificuldades em o esconder. Os seus olhos tinham um brilho frio, sem vestígios de bom humor.

 

Ele envelhecera nitidamente desde a última vez em que eu o vira de perto estava mais velho, era mais rico e mais poderoso, mas as suas ambições eram postas em causa pelas ambições conflituais de homens tão astutos e implacáveis como ele próprio. Tinha o cabelo grisalho e um rosto demasiadamente austero para poder ser belo. A sua expressão exibia um descontentamento perpétuo; ele era um homem que nunca seria suficientemente bem sucedido para se sentir satisfeito. ”Crasso, Crasso, rico como Creso”, cantava o ditado popular, comparando-o com o avarento da lenda, mas para mim ele era Sísifo, carregando constantemente o pedregulho pelo monte acima, vendo-o cair e recomeçando, tendo muito mais fortuna e influência do que os outros homens, mas nunca o suficiente para repousar. Há anos que rivalizava com Pompeu pelo poder; com César, parecia manter excelentes relações, pelo menos de momento.

 

Vimos agora mesmo do Arx disse César, referindo-se ao cume norte do Capitólio. Tal como a acrópole de Atenas, o Arx era o ponto alto onde os fundadores de Roma tinha decidido erigir a cidadela e os templos mais sagrados. Do Arx, um homem avista Roma inteira e pode, por sua vez, ser visto pelo deuses sem obstáculos. Fomos ler os auspícios para a convocação do Senado de hoje. Foi uma pena que não estivesses disponível para ler o augúrio, Rufo.

 

Hoje vou ler um augúrio privado disse Rufo, fazendo um ligeiríssimo sinal de cabeça na nossa direcção. Presumo que os auspícios para o Senado tenham sido favoráveis, como desejavas.

 

De facto, foram disse César. O sorriso irónico parecia dizer que dificilmente poderiam ter deixado de o ser. Um falcão voou do ocidente, e depois mergulhou para norte. O augure Festo garantiu-nos que isso pressagia um bom dia para a reunião do Senado.

 

Por mim disse Crasso friamente pareceu-me mais significativo o facto de um corvo sobrevoar o Senado a crocitar e a queixar-se, mas voando em círculos como se não fosse conseguir o que queria por muito que grasnasse. Esse corvo fez-me recordar alguém seria Cícero? Mas a verdade é que eu não sou íntimo do conhecimento secreto dos augures e não tenho qualificações para fazer essa interpretação. O sorriso não ajudou a suavizar o sarcasmo.

 

Rufo ignorou este insulto velado à sua profissão.

 

Achas que as coisas vão correr bem no debate de hoje? perguntou a César.

 

Oh, sim respondeu César com um suspiro. Cícero não tem votos suficientes para censurar Catilina, e certamente que não dispõe do apoio de que necessita para voltar a adiar as eleições. O que é preocupante não é o que vai acontecer hoje, mas o que os eleitores decidirão amanhã. Veremos. O que estão aqui a fazer, foi um jovem que chegou à idade adulta? Sorriu e acenou amavelmente na nossa direcção, mas não insistiu numa apresentação. Por falar em Cícero, se vão a caminho do Arx, vão cruzar-se com os nossos dois estimados cônsules, que vêm a descer. Olhou rapidamente por cima do ombro. Cícero deve vir aí; estava ansioso por que os auspícios terminassem, para poder reunir o Senado. O debate vai começar a qualquer momento. Vais perder os argumentos iniciais, Rufo, e tu também, Marco Múmio.

 

Vamos lá ter depois disse Rufo.

 

O mais provável é que a sessão seja breve. Cícero só está preocupado com o espectáculo; quer pôr fim àquilo e aproveitar o resto do dia para arengar à multidão no Fórum é a sua última hipótese de influenciar os eleitores contra Catilina. Tu também devias usar este dia para fazer alguma campanha, Rufo. É o que eu tenciono fazer. Conto contigo para seres meu co-pretor no ano que vem.

 

Não te preocupes, logo que acabe de pronunciar o meu augúrio, voltarei a vestir a minha toga de candidato! Rufo riu-se.

 

César e Crasso puseram-se em movimento. O nosso grupinho afastou-se para o lado para dar passagem às suas comitivas. Crasso não dissera uma palavra ao seu confederado Múmio, cuja estima perdera, e aparentemente não tencionava fazê-lo. Mas olhou firmemente para mim ao passar, depois fez uma pausa e os seus olhos pousaram sobre Meto.

 

Eu não te conheço, jovem? disse ele.

 

Eu olhei para Meto e senti um baque de temor, recordando-me do seu pesadelo. Uma estranha emoção iluminou os seus olhos, mas o seu rosto permaneceu impassível.

 

Conheceste-me noutros tempos, cidadão disse ele. Falou num tom baixo mas seguro.

 

Conheci? disse Crasso, inclinando a cabeça e endireitando os ombros. Sim, conheci, ainda que mal. Com que então és agora um liberto, Meto?

 

Sou.

 

Filho adoptivo de Gordiano?

 

Eu abri a boca para responder, mas Meto respondeu primeiro.

 

Sim.

 

Que interessante. Sim, só recentemente um amigo meu me informou dessa circunstância. Estaria a falar de Catilina? Ou teria sido o seu antigo protegido, Marco Célio? Fosse qual fosse, não me agradava, a ideia de falarem da minha família nas minhas costas. É estranho que, ao longo destes anos, esse pormenor da tua alforria e adopção tenha escapado à minha atenção.

 

Não me parece que seja uma questão digna da atenção de um homem tão eminente como tu, cidadão disse Meto, respondendo ao escrutínio de Crasso com um olhar resoluto. Olhei para Meto, ligeiramente atemorizado. Não só ele tinha dito exactamente o que eu próprio teria dito, como o fizera exactamente como eu teria tentado fazê-lo, com a mesma inflecção deliberadamente franca, nem insolente, nem servil. Por vezes, abrimos a boca e ouvimos os nossos pais falar; outras vezes, os nossos filhos abrem a boca e é a nossa voz que sai.

 

A última vez que ouvi falar de ti, Meto, estavas na Sicília, onde eu dispus que estivesses disse Crasso, evitando delicadamente o vocabulário grosseiro do comércio e da propriedade. Tal como dispusera que aquele fosse mandado para o Egipto acrescentou, indicando Apolónio e lançando um olhar cortante a Múmio. Pergunto a mim próprio que papel terá Marco Múmio desempenhado na frustração desses meus planos. Deixa lá. Agora dou contigo de toga, Meto, e a caminho do Arx para comemorares a tua cidadania. Comprimiu os lábios no mais fino dos sorrisos. Estreitou os olhos e passeou-os entre mim e Meto. A deusa Fortuna sorriu-te, Meto. Possa ela sorrir-te sempre disse ele num tom cavernoso e voltou-se, chamando a sua comitiva atrás de si.

 

Talvez estivesse a falar a sério, porque acima e para além do triunfo da vontade individual, um romano respeita e inclina-se perante os incompreensíveis caprichos da Fortuna, e a um homem como Crasso a salvação de um rapaz como Meto, apesar dos esforços em contrário do próprio Crasso, poderia perfeitamente parecer uma ocorrência sobrenatural, uma prova da intervenção dos deuses, e portanto uma ocasião para mostrar respeito e a humilde expressão de boa vontade. Afinal, quem sabe se algum dia a deusa Fortuna lhe voltaria as costas, apesar de ele ser o homem mais rico de Roma?

 

As compridas comitivas passaram. Nós avançámos e subimos e encontrámos outra comitiva. Descendo da cidadela atrás de Crasso e de César, vinha Cícero em pessoa, juntamente com o seu colega cônsul, a notória não-entidade Gaio António. Na festa, Rufo mencionara de passagem que Cícero usava uma armadura ”aquela couraça absurda”, chamara-lhe ele, e mudara de assunto sem se explicar. Eu percebia agora o que ele queria dizer, porque o peito de Cícero estava coberto por uma couraça lustrosa como aquelas que os generais usam no campo de batalha, que reflectia o brilho rigoroso do sol da tarde. A toga consular de Cícero estava aberta no pescoço, de maneira que os peitorais de formas audaciosas do metal martelado em filigrana estavam completamente à vista. À sua volta, rondava uma escolta de homens armados, tipos com um ar carrancudo que caminhavam com as mãos nos copos dos punhais embainhados. Ocorreu-me que este género de espectáculo se adaptava menos a um cônsul da República do que a um autocrata desconfiado até o ditador Sula andava pelo Fórum desarmado e sem guardas, confiando a sua protecção aos deuses.

 

Antes que eu tivesse tempo de pedir a Rufo que me explicasse as razões da couraça e da pesada escolta, Cícero chegara junto de nós. Enquanto conversava com António, apercebeu-se da presença de Rufo. A sua expressão sofreu mudanças rápidas. A princípio, pareceu genuinamente agradado, depois grave e indeciso, depois quase divertido na sua astúcia era o rosto de um mentor que perdeu a lealdade de um pupilo anteriormente dedicado, mas que não desespera de o reconquistar.

 

Caro Rufo! disse ele, sorrindo abertamente.

 

Cícero! respondeu Rufo sem emoção.

 

E Marco Múmio, que serviu Pompeu no Oriente. E... Gordiano

 

disse Cícero, avistando-me finalmente. A sua voz ficou insípida por momentos, assumindo em seguida a familiaridade afável dos políticos.

 

Ah, sim, vieram ler os auspícios da maturidade do jovem Meto. Estamos todos a envelhecer, não estamos, Gordiano?

 

Alguns mais do que outros, pensei eu, embora os anos tivessem contribuído para suavizar as feições pouco atraentes de Cícero. O nariz fino e aguçado estava agora um pouco mais cheio; o pescoço magro, com o seu proeminente nó, estava almofadado com anéis de gordura; o queixo pontiagudo desaparecia no meio de papos. O homem cuja constituição delicada quase não lhe permitia comer nas horas de calor tinha apesar disso ganho alguma corpulência. Cícero nunca fora belo, mas conseguira adquirir um ar de prosperidade e de segurança. A sua voz, que antigamente era áspera e desagradável, fora treinada e transformara-se com o passar dos anos num instrumento melodioso.

 

Lamento imenso não ter podido ir à tua festa disse ele. As exigências do cargo de cônsul nunca mais acabam... estou certo de que compreenderás. Mas enviei-te Marco Célio para te apresentar as minhas desculpas. Ele entregou-te a mensagem, não entregou? A expressão dos seus olhos conferiu um sentido mais profundo à pergunta.

 

Célio esteve presente disse eu. Mas a sua mensagem foi mal endereçada. Ele não partiu satisfeito.

 

Oh? Cícero pareceu desconcertado, mas os seus olhos brilharam. Bem, o meu colega cônsul e eu temos de nos apressar... temos assuntos urgentes a tratar no Senado. Boa sorte na tua campanha, Rufo! Boa fortuna para ti, Meto!

 

Quando eles passaram, eu disse a Rufo, em voz baixa.

 

Bem, augure, o que dizes daquele relâmpago vacilante aquele que se lia nos olhos de Cícero?

 

Há problemas entre vocês?

 

É provável que venha a haver. Mas para que é aquela couraça? E por que anda ele por aí com uma escolta tão formidável?

 

Tem um aspecto absurdo! bramiu Múmio. Parece uma imitação barata de um soldado. Atrever-se-á a fazer troça de Pompeu?

 

Não me parece respondeu Rufo. Começou a usar aquilo no dia em que as eleições foram adiadas, dizendo que Catilina conspirava para o assassinar na confusão do dia das votações ”Para salvar a sua própria vida, o cônsul da República Romana tem de recorrer a uma armadura e de se rodear de homens armados”. É uma táctica para chamar a atenção da multidão e assustar os eleitores; é teatro político, espectáculo, nada mais. Depois daquilo que Cícero e o irmão fizeram ao bom nome de Catilina na campanha consular do ano passado, ninguém se espantaria se Catilina quisesse assassiná-lo. Quem sabe, talvez haja uma conspiração para assassinar Cícero; mas para Cícero isto é mais água para o moinho da sua estridente retórica.

 

Políticos! vociferou Múmio. Fiquei farto deles no ano em que fui pretor. Dêem-me ordens para seguir e homens para comandar, e sentir-me-ei feliz.

 

Bem disse eu, arquejando e bufando com o esforço da subida íngreme de momento, pelo menos, punhamos de lado todas essas questões sem importância. Literalmente de lado e para trás de nós, pensei eu, voltando a cabeça para olhar para baixo, para o Fórum apinhado de gente. Chegámos ao cume. Nada mais há entre nós e os olhos de Júpiter do que o céu azul. Aqui, neste lugar, o meu filho vai tornar-se um homem.

 

Nos campos de batalha e nas zonas rurais, onde não há lugares permanentes para ler os augúrios, é necessário armar uma tenda sagrada antes de o augure poder iniciar o seu trabalho. No Arx, em Roma, no cume de um íngreme penhasco semicircular com uma perspectiva expansiva sobre todo o horizonte norte, existe um lugar pavimentado e descoberto chamado Auguraculum, especialmente consagrado à leitura dos auspícios. A única estrutura aí existente é uma tenda permanentemente montada, cuja manutenção está a cargo do colégio dos augures. Tal como as vestes especiais que eles usam, tem um rebordo púrpura e está entremeada com tiras cor de açafrão. É uma tenda pequena, tão pequena que uma pessoa teria de se inclinar para poder entrar, embora, tanto quanto eu sei, ninguém lá entre.

 

Porquê uma tenda? Não sei, especialmente tendo em conta que a leitura de auspícios deve, por definição, ser feita ao ar livre, para se poder ver o céu. Talvez se deva à antiga ligação dos augures às campanhas militares, dado que os generais continuam a ter de obter a sua aprovação dos presságios antes de partirem com as suas tropas para as batalhas. Talvez se deva ao facto de os augures não estudarem apenas os voos das aves e as peregrinações dos quadrúpedes, mas também a ocorrência de relâmpagos, cujo estudo remonta aos Estruscos e a povos anteriores; afinal, quando há relâmpagos, é provável que haja chuva, e portanto necessidade de uma tenda.

 

Seja como for, encontrávamo-nos reunidos no Arx diante da tenda sagrada. Rufo ergueu o seu bastão de marfim, e marcou com ele a secção do céu onde leria os auspícios, como se fosse uma janela invisível aberta para o céu. Através dela, via-se a maior parte do Campo de Marte, uma curva larga do Tibre e uma vasta porção de terra para além do rio. Os augures dividem as aves em duas classes, aquelas cujo grito significa a vontade divina, e que incluem o corvo, o mocho e o pica-pau, e aquelas cujo voo pode ter significados semelhantes, como o abutre, o falcão e a águia, a ave favorita de Júpiter. Nas expedições militares, onde às vezes é necessário um presságio num curto prazo e as aves selvagens podem escassear, levam-se galinhas em jaulas especiais. Para determinar a vontade dos deuses, abrem-se as portas das jaulas e lançam-se grãos de milho ao chão. Se as galinhas mostram um grande apetite, isso é um sinal positivo, especialmente quando deixam cair bocadinhos de comida do bico. A relutância ou a hesitação em sair da jaula são mau sinal. Quanto à leitura dos relâmpagos, eu sempre achei que um relâmpago do lado esquerdo era um sinal positivo, e negativo se ele viesse do lado direito. Ou será ao contrário?

 

Há aqueles que, como Cícero, acham que os augúrios são um disparate absoluto e o dizem em cartas e em conversas privadas. Há também políticos como César que consideram os augúrios um instrumento útil e não têm mais nem menos desprezo por eles do que por qualquer outro dispositivo de poder, como as eleições, os impostos ou os tribunais. E depois há homens que, como Rufo, acreditam sinceramente na manifestação da vontade divina através de diferentes fenómenos e na sua própria capacidade de perceber e interpretar essas manifestações.

 

Por mim, ali de pé ao sol, e desejando ter-me lembrado de trazer o meu chapéu de abas largas, comecei a desejar que houvesse uma capoeira na tenda cerimonial que estava atrás de nós, para que pudéssemos despachar-nos com a adivinhação. Parecia que todas as aves de Roma estavam a fazer a sesta e não se via uma nuvem no céu.

 

Um augúrio demora o tempo que demorar. A vontade divina não está imediatamente à disposição de quem a convoca, mesmo que se trate do mais jovem e encantador dos augures. Os deuses têm mais que fazer do que obrigar um corvo a crocitar ou mandar um abutre planar no vento quente. A paciência é o primeiro dever dos piedosos.

 

Ainda assim, dei por mim a divagar. Os meus olhos desviaram-se da secção designada dos céus para a escarpa oriental do Arx, por cima da qual, se me pusesse em bicos dos pés, conseguia vislumbrar o Fórum, lá em baixo. Continuava cheio de gente, mas descera sobre a multidão uma certa calma e um silêncio de atenção. No interior do Senado, os senadores discutiam e os homens de Roma esperavam a decisão dos seus chefes. Cícero estaria provavelmente a falar neste preciso momento. César e Crasso poderiam juntar-se à discussão, bem como Catão, com os seus discursos fortemente moralizadores, e o desordeiro Clódio, e o cônsul esquecido desse ano, a não-entidade António. Catilina também estaria presente, para se defender, para contra-atacar Cícero, para exigir que as eleições se realizassem. Seria realmente possível que ele fosse eleito cônsul? E, se sim, conseguiria obrigar o Senado a implementar os seus programas radicais? Estariam César e Crasso dispostos a apoiá-lo até que ponto? Ficaria o Estado imobilizado? Seria desmembrado? Voltaria a cair numa guerra civil sangrenta? E depois, quem o reconstruiria Crasso, César, Pompeu... Catilina?

 

Ali! exclamou uma voz suave atrás de mim. Era Eco, que tinha detectado uma coisa com asas no céu. Eu abanei a cabeça, sonolento por causa do calor, e tentei recordar-me do meu devaneio. Pestanejei e fixei o ponto escuro que pairava no céu. Infelizmente, ele voou numa pequena espiral e depois desceu, não tendo chegado a entrar na secção designada do céu. Afinal não era um presságio. À minha volta, ouvi um suspiro colectivo de desapontamento. Rufo estava junto ao precipício de costas para nós, de maneira que eu não podia ver-lhe o rosto. Mas ele mantinha os ombros erectos, o queixo erguido e confiante. Tinha fé na sua ciência, e paciência com os deuses.

 

Não devia ter comido tanto na festa de Meto, pensei eu. Cícero tinha razão: ao meio-dia, um homem deve comer uma refeição muito ligeira. Mas a verdade é que Cícero sempre sofrera do estômago. Eu não me sentia desconfortável, apenas cheio e pesado, e ensonado por causa do calor e da subida até ao Arx, que fora cansativa. Mal conseguia manter os olhos abertos...

 

Da última vez que Roma estivera mergulhada numa guerra civil, o resultado fora desastroso. Sula triunfara, e com ele os elementos mais reaccionários do Estado. As leis que davam poder à populaça tinham sido revogadas. A constituição fora reformada, a fim de proporcionar aos ricos maior influência sobre as eleições populares e os tribunais e, dentro das classes superiores, Sula fizera o possível por exterminar a oposição. Uma geração mais tarde, o caos do Estado era maior do que nunca. Muitas das reformas de Sula tinham sido revogadas e as forças populistas estavam novamente activas, mas o legado de Sula continuava vivo nas privações dos filhos das vítimas e no fracasso total da sua política agrária os veteranos que ele destinara à agricultura tinham arruinado as suas terras e congregavam-se agora, desesperados, atrás de Catilina. O descontentamento grassava, excepto entre aquele reduzido grupo que sempre possuíra e sempre possuiria mais riqueza e poder do que poderia usar durante toda a sua vida. A posição confortável de que usufruíam tinha-lhes sido concedida pelos deuses, pensavam eles; talvez os deuses também lhes tivessem concedido Cícero, uma voz doce capaz de adormecer as massas turbulentas...

 

O pior de tudo tinham sido as cabeças, pensei eu. As cabeças dos inimigos de Sula, espetadas em estacas e alinhadas no Fórum diante de todos. Os caçadores de prémios cortavam as cabeças e traziam-nas a Sula para receberem a recompensa. Mas os corpos não lhes serviam para nada. O que acontecera a todos aqueles corpos, aos corpos sem cabeça? Subitamente, vi diante de mim o corpo de Nemo deitado na palha, com tanta nitidez como o vira no dia em que Diana o encontrara, com o sangue coagulado à volta do cepo do seu pescoço. O choque foi tão grande, que eu arquejei e os meus ombros tiveram uma convulsão.

 

Sim! Finalmente! sussurrou-me Eco ao ouvido, pondo-me a mão na parte de trás do pescoço. Olha, vem do rio em voo rápido.

 

Eu pestanejei, confuso e ofuscado pela luz. Aos meus pés brilhavam pedras brancas e o Sol parecia ter enchido o céu. No meio de toda aquela luz, tomou forma uma figura preta minúscula, voando da esquerda para a direita e aumentando de tamanho até se transformar num corpo com compridas asas estendidas.

 

É um falcão sussurrou Eco.

 

Não disse Múmio é uma águia!

 

A ave fez outro círculo por cima do Campo de Marte e depois foi aumentando cada vez mais de tamanho, à medida que se aproximava de nós. A sua velocidade era espantosa; nenhum cavalo poderia cavalgar tão depressa pelo céu. Momentos depois aterrou, tão perto de Rufo que lhe teria bastado inclinar-se para lhe tocar, se se atrevesse. Ficámos petrificados e silenciosos. Olhávamos fixamente para a águia, e ela olhava para nós. Eu nunca vira uma águia tão perto. Depois, com a mesma rapidez com que tinha aterrado, ela abriu as suas asas gigantescas e ergueu-se acima das nossas cabeças, em direcção ao Sol.

 

Eu baixei os olhos, pestanejando quase cego. Rufo voltou-se para nós com uma expressão de temor.

 

O presságio disse eu. Foi bom?

 

Bom? Ele franziu o sobrolho, depois abriu um rosto num sorriso. Não poderia ter sido melhor!

 

Se a cidade não estivesse consumida pelas controvérsias imediatas que giravam à volta de Catilina e das eleições, talvez o prodigioso presságio que aterrara aos pés de Rufo tivesse excitado grandes comentários. Se tivesse ocorrido num dia monótono de Verão, num dia em que nenhum outro acontecimento digno de nota tivesse lugar no Fórum, a coscuvilhice ter-se-ia espalhado pelas praças e pelas tabernas a ave de Júpiter, uma águia, pousara no Auguraculum para a simples passagem à maturidade de um rapaz, e de um rapaz que até fora um escravo! Os supersticiosos tê-lo-iam considerado inspirador ou assustador, um sinal do desagrado ou da bênção dos deuses. Mas, no contexto do caos generalizado daquele dia, o incidente passou despercebido, excepto entre aqueles que se encontravam presentes.

 

Durante a descida para o Fórum, Múmio estava muito animado.

 

Uma águia, uma ave militar! Pressagia uma grande carreira no exército! Reparei que Meto sorria ao ouvir isto e desejei que Múmio se calasse.

 

Voltei-me para Rufo, que trocara a trábea de augure pela toga de candidato.

 

É esse o significado, Rufo?

 

Não necessariamente. Meto ouviu-o e o sorriso morreu-lhe nos lábios, o que me deixou satisfeito. Eu não queria que a sua cabeça se ocupasse com pensamentos de glória militar. Não tinha liberto este rapaz da escravatura para o ver derramar o seu sangue em nome de um qualquer general ambicioso.

 

Rufo abrandou o passo e deixou os outros avançarem diante de nós. Tocou-me no braço, fazendo-me sinal para que ficasse para trás com ele. Tinha uma expressão apreensiva. A sua exuberância inicial perante a aterragem da águia desaparecera e fora substituída pela incerteza.

 

Foi um portento poderoso, Gordiano. Nunca me acontecera tal coisa, nem a qualquer outro augure, que eu saiba.

 

Mas não é um bom portento? disse eu, esperançosamente. Pareceu-me que tu achaste que sim, quando aconteceu.

 

Sim, mas aquilo que eu senti foi uma espécie de temor religioso. Isso pode cegar um homem, mesmo que ele seja um augure. Todos os presságios são terríveis, porque provêm dos deuses, mas aquilo que eles significam para os mortais nem sempre nos traz felicidade.

 

Rufo, o que estás tu a dizer?

 

Quase gostaria que os auspícios tivessem sido menos prodigiosos. Uma simples visão de um abutre, um corvo voando numa espiral ascendente...

 

Mas uma águia enviada por Júpiter, certamente que isso é bom...

 

Um presságio tão poderoso, numa ocasião tão modesta... é preocupante. Parece-me deslocado, desequilibrado. Vivemos num tempo em que homens pequenos são conduzidos a grandes eventos, por vezes são elevados à grandeza por esses acontecimentos, mas é mais frequente serem esmagados por eles. Meto é tão simples e bondoso, o que pode significar um auspício tão potente no dia da sua maioridade? É preocupante.

 

Oh, Rufo... Ia-me distraindo e por pouco não troçava directamente nele; mas ele inspirava-me demasiado respeito. Apesar disso, senti simpatia por descrentes como Cícero, que em privado abanam a cabeça aos trejeitos de mãos dos piedosos. Ou estaria eu a fazer boa cara à minha própria ansiedade? Talvez o presságio tivesse outro objectivo. Talvez tivesse qualquer coisa a ver com Catilina ou com Cícero. Talvez fosse destinado aos cônsules e tivesse chegado com uma hora de atraso! Também os deuses cometem erros de vez em quando... todos os poetas o dizem.

 

Nunca ouvirás um sacerdote ou um augure dizer isso respondeu Rufo muito sério.

 

Continuámos a descer. O ruído proveniente do Fórum chegou até nós. À nossa frente, Múmio tinha um braço à roda dos ombros de Meto e fazia gestos entusiásticos com o outro.

 

Quando os Romanos partem para a guerra com as bandeiras desfraldadas, vê-se sempre uma águia no topo dos estandartes. Pompeu usa uma couraça dourada com uma águia de asas abertas gravada nos peitorais, como se fosse uma ave imponente que viesse arrebatar a Mitridates, o seu reino! Oh, e lembro-me que antes da batalha na Porta Colina, quando eu era um jovem lugar-tenente de Crasso e lutávamos do lado de Sula, os augures viram três águias voando em círculos sobre Roma... Meto parecia completamente fascinado com a conversa.

 

Por isso, eu fiquei de alguma maneira aliviado quando chegámos ao sopé do Capitólio e Múmio se despediu de nós, dizendo que queria apanhar o fim do debate no Senado. Não se demorou nas despedidas, mas deu um forte abraço a Meto e a Eco e partiu num rápido passo de marcha, com Apolónio atrás.

 

Pareceu-me uma boa altura para dispersar a comitiva; agradeci aos amigos e conhecidos que nos tinham acompanhado e dispensei-os para irem dedicar-se às tarefas que tivessem pendentes no Fórum. O pai e o irmão seriam companhia suficiente para Meto, na sua travessia do Fórum ao encontro das mulheres.

 

Mas Rufo tinha um plano diferente.

 

Lembras-te de eu te ter dito que talvez tivesse uma surpresa para Meto? Parecia ter posto de lado as suas apreensões e sorria matreiramente, pelo menos tanto quanto a sua natureza lho permitia. Vou levar-vos ao Senado comigo!

 

O quê? O coração caiu-me aos pés.

 

Ouvir o debate dos senadores? disse Meto, que parecia quase tão interessado por esta novidade como se mostrara interessado pelas conversas militares de Múmio.

 

A ideia surgiu-me logo que Eco me pediu que presidisse como augure à tua celebração. Claro que, no curso normal dos acontecimentos, o Senado poderia não se reunir neste dia, mas afinal a ocasião dificilmente poderia ser melhor. A câmara está cheia e vais assistir a um espectáculo e tanto. Estamos um bocado atrasados, mas ainda assim...

 

Mas, Rufo, só os filhos e os netos dos senadores podem assistir.

 

Não é bem assim. Há muitos secretários a circular por ali.

 

Mas certamente que os Gordianos não estão autorizados a entrar no Senado disse eu.

 

Acompanhados por mim, estão. Parecia completamente seguro. Os patrícios podem mostrar-se muito seguros e habitualmente têm boas razões para isso.

 

Oh, Rufo, é uma honra, claro, mas julgo que temos de declinar disse eu.

 

Meto olhou para mim como se eu tivesse descuidadamente deixado cair ao Tibre um dos seus presentes de aniversário.

 

Mas, Papá, por que não?

 

Sim, Papá, por que não? disse Eco.

 

Porque... bem, certamente que te sentirias intimidado num sítio como aquele, Meto.

 

Meto franziu o sobrolho. Rufo respondeu por ele.

 

Ficaremos nos lugares de trás. Ninguém vai reparar em nós.

 

Mas, Rufo, seremos um incómodo para ti. Já te impedimos de desempenhar o teu papel de senador por termos aceite os teus serviços de augure.

 

E estás a impedir-me de desempenhar o meu papel continuando a argumentar sem razão nenhuma. Vá lá, Gordiano, este é o dia, é a hora em que Meto passa a ser um cidadão romano de pleno direito. Que melhor forma de celebrar, do que levá-lo ao próprio coração da República? Como podes negar ao teu filho uma tão valiosa lição de cidadania? Confesso que me sentia um pouco inseguro da minha iniciativa até a águia ter poisado no Auguraculum. Agora estou convencido de que é isto que deve ser feito. Vamos, apressemo-nos, antes de os senadores concluírem os seus assuntos e voltarem a correr para o Fórum à procura de votos!

 

Voltou-se e tentou passar por entre a multidão. Meto olhou para mim com um misto de súplica de rapaz e de impaciência de homem. Eco olhava para mim com simpatia, porque me conhecia suficientemente bem para saber quão profundamente me desagradava a ideia de me ver imerso, juntamente com a minha família, num mar de políticos, embora soubesse que eu não tinha nenhuma desculpa razoável para recusar a generosa e solícita oferta de Rufo, nem para negar a Meto a oportunidade de ver tal coisa com os seus próprios olhos. Suponho que devia ter deixado os meus filhos irem com Rufo e ter ido amuar para junto das mulheres mas, nesse caso, não teria ouvido Catilina propor o seu enigma.

 

Sobe-se ao alpendre do Senado por um amplo lance de escadas, e a entrada é flanqueada por grandes colunas. Os degraus estavam ocupados por diversos servidores dos senadores que se encontravam no interior; entre eles, reconheci alguns dos corpulentos guarda-costas que faziam parte da comitiva de Cícero. Outros guardas, pertencentes ao próprio Senado, flanqueavam as portas altas, que por lei permaneciam abertas para não ocultar aos olhos dos deuses o que se passava lá dentro. Uma vez mais, pareceu-me improvável que nos deixassem entrar, mesmo acompanhados por Rufo, mas isso foi porque eu pensava que o Senado só tinha uma entrada. Mas Rufo sabia que não.

 

Ao lado do Senado, e ligado a ele, existe outro edifício menos imponente, que alberga diversos departamentos do Estado. Eu nunca entrara ali, e de facto quase nem reparara na sua existência. Com o calor que estava, as portas de madeira da entrada estavam abertas e não havia ninguém que nos impedisse de entrar.

 

Lá dentro, um corredor largo atravessava toda a extensão do edifício, com pequenos compartimentos de um lado e do outro. Os compartimentos estavam cheios de rolos de pergaminho, arrumados em estojos contra as paredes e empilhados em cima das mesas. Por entre os documentos, moviam-se letargicamente alguns funcionários sonolentos, como pastores guardando um rebanho dócil, que não repararam em nós.

 

No centro do edifício, um lanço de escadas levava a um segundo andar, e depois a um terceiro. Rufo conduziu-nos por entre uma sucessão de compartimentos pequenos e simples. Eu comecei a ouvir o eco das vozes que falavam em tons elevados e empolados, ocasionalmente interrompidas por um bramido indistinto, que podia ser de escárnio ou de risos. Os sons foram aumentando à medida que íamos passando de sala em sala, até chegarmos a uma porta de ferro semiaberta. Rufo pôs um dedo sobre os lábios, embora nenhum de nós tivesse dito uma só palavra desde que tínhamos começado a segui-lo; depois passou pela entrada. Com um gesto de mão, indicou-nos que o seguíssemos.

 

O Senado não é um edifício antigo; foi reconstruído e renovado por Sula durante a sua ditadura. Os materiais revelam o gosto impecável do déspota as paredes decorativas de mármore colorido, as belas colunas trabalhadas, o tecto ornamentado com painéis. Um vestíbulo separa a sala de reuniões da entrada principal. A grande câmara é rectangular, iluminada à noite ou nos dias de tempestade por grandes lamparinas penduradas do tecto, e numa tarde luminosa como esta por janelas altas sem persianas, abertas na parte superior das paredes e cobertas com grades de bronze. Ao longo das paredes mais compridas e num semicírculo encostado à parede curta oposta ao vestíbulo, existem três fileiras de lugares, de maneira que as cadeiras de madeira trabalhada estão dispostas em U. A porta por onde nós tínhamos entrado estava situada junto da haste do lado esquerdo do U, entre o vestíbulo, à nossa esquerda, e as fileiras de lugares, à nossa direita. Neste lugar inconspícuo havia cerca de dez ou mais funcionários, que se mantinham atentos aos Senadores, não fosse serem convocados para ir buscar algum documento ou levar uma mensagem. Alguns dos funcionários aperceberam-se da nossa chegada e lançaram-nos um olhar desconfiado, mas quando viram que estávamos com Rufo deixaram de nos prestar atenção. Pareciam demasiadamente entretidos com o que se passava no Senado.

 

Cícero estava de pé mesmo no centro da sala, rodeado pelos senadores sentados como um gladiador num circo. Se Meto precisava de instrução pelo exemplo para aprender a comportar-se quando vestia uma toga, poderia ter aprendido muito nesse dia com Cícero, que parecia ser capaz de falar com todo o corpo, voltando e revirando subtilmente o pescoço, gesticulando com um braço e agarrando o diafragma com o outro, como se segurasse um escudo. Estava longe daquele orador apaixonado mas um pouco rígido que eu conhecera há muitos anos. Quase não era necessário ouvi-lo para sentir a força da sua argumentação.

 

Ele não estava a pronunciar um discurso previamente preparado, antes parecia envolvido numa discussão espontânea com um dos senadores das fileiras. Do ponto onde me encontrava, tinha de estender o pescoço para ter um vislumbre do homem, mas quando lhe ouvi a voz deixei de precisar de o ver: era Catilina.

 

Quando reconstruiu o Senado, Sula recorreu, não apenas ao seu impecável gosto visual, mas também ao seu ouvido. O grande amante da música e do teatro aprendera alguma coisa com aqueles famosos teatros gregos em que o murmúrio de um actor é ouvido com clareza no último lugar. Todas as palavras que Cícero e Catilina trocavam ressoavam tão claramente como se estivéssemos entre ambos.

 

Catilina, Catilina! gritava Cícero, num tom fingidamente magoado. Não peço que as eleições sejam adiadas para pôr em causa as tuas possibilidades de ser eleito, se essa for a vontade do povo. Nada faria para pôr em causa a vontade do povo romano! Mas, enquanto tiver o cargo de orientar o Estado, farei tudo o que puder para que o Estado e o povo sejam preservados do mal. Isso aplica-se igualmente ao augusto corpo! Tal como as coisas se apresentam neste momento, o mais provável é termos, não umas eleições, mas um banho de sangue!

 

Nesta altura, ouviu-se outro tumulto suave. Graças à extraordinária acústica da sala, consegui ouvir distintamente os gritos misturados de troça e concordância dentro do tumulto geral.

 

Cícero está obcecado com a ideia de que haverá derramamento de sangue no dia das eleições gritou Catilina mas isso é apenas porque teme que seja o seu.

 

E negas que tenho todas as razões para o temer? disse Cícero. Terei visto as suas sobrancelhas erguerem-se, ou seria toda a postura do seu corpo que exprimia essa ironia eloquente? Já te interroguei acerca dos relatos que chegaram até nós, de que conspiras contra a pessoa do cônsul...

 

E eu já os neguei rotundamente, e volto a perguntar-te: que relatos são esses e quais são as fontes?

 

Tu estás aqui para responder a perguntas, Catilina!

 

Não estou a ser julgado!

 

Queres dizer que ainda não foste formalmente acusado de nenhum crime, mas isso deve-se apenas ao facto de ainda não teres tido oportunidade de o cometer.

 

Isto provocou

novo tumulto. Por cima do ruído, Cícero gritou:

 

E isso deve-se apenas à vigilância da tua vítima projectada!

 

Cruzou os braços e endireitou os ombros, envolvendo-se na toga como se se envolvesse em virtude, depois agarrou nas dobras do tecido à volta do pescoço e puxou-as para baixo para revelar a couraça brilhante.

 

Isto provocou um tumulto roufenho. O grupo dos senadores que rodeavam Catilina, presumivelmente seus aliados, pôs-se de pé, alguns a rir, outros a abanar os punhos e a fazer troça. Em vez de recuar, Cícero avançou em direcção a eles, desnudando ainda mais a couraça. Tal descaramento provocou um tumulto ainda mais forte.

 

Isto é pior do que a multidão no Fórum murmurei eu a Rufo.

 

Nunca vi uma cena tão caótica sussurrou ele. Mesmo nos debates mais apaixonados, há sempre alguma ordem e um certo respeito mútuo, algum humor para atenuar as animosidades, mas hoje toda a câmara parece estar à beira de um motim.

 

Acima dos gritos contínuos dos apoiantes de Catilina, Cícero conseguiu fazer ouvir a sua voz. O poder dos seus pulmões era extraordinário.

 

Negas que tens conspirado para assassinar membros deste augusto corpo?

 

Que provas tens? respondeu Catilina, também aos gritos, mal se fazendo ouvir por cima do tumulto dos seus apoiantes.

 

- Negas que conspiraste para assassinar o cônsul legalmente eleito da República, e para fazê-lo no contexto do próximo dia das eleições consulares?

 

Uma vez mais, que provas tens?

 

Negas, Lúcio Sérgio Catilina, que o teu objectivo último é desmantelar o Estado tal como o conhecemos, e fazê-lo por quaisquer meios necessários, por muito violentos e ilegais que sejam?

 

Catilina respondeu, mas a sua voz foi afogada pelos seus próprios apoiantes, dando vantagem a Cícero, com a sua voz de trompete. Finalmente, Catilina conseguiu acalmar os seus aderentes, que regressaram aos seus lugares. Catilina manteve-se de pé.

 

Com o devido respeito, as acusações do cônsul são desvairadas! Ele aflige-se com a segurança da República como uma mãe que teme que o seu filho saia de casa. Será a República assim tão delicada, que possa ser destruída por umas eleições honestas? Será ele próprio tão vital para o Estado, será o seu discernimento tão singular, que sem ele nós seremos todos cegos? Ah, sim, Cícero vê coisas que os outros homens não vêem... mas pergunto-vos, isso é bom ou mau? Isto provocou uns risos dispersos, que trouxeram um notório abrandamento da tensão. Contrariamente ao que este Homem Novo possa pensar, a história da República não começou nem terminará com o seu consulado. Ouviram-se mais risos, e mesmo alguns aplausos. Catilina sorriu amargamente.

 

Não sou eu que quero contrariar a vontade do povo, Cícero, és tu! A isto, ouviram-se assobios e apupos do lado oposto da câmara.

 

Sim, quem mais está decidido a continuar a adiar as eleições? E porquê? Porque teme pela sua vida? Isso é absurdo! Se algum homem tivesse razões para matar o nosso amado cônsul, por que haveria de esperar até ao dia das eleições?

 

Para espalhar o caos respondeu Cícero. Para assustar os eleitores decentes, para que os teus seguidores possam roubar as eleições.

 

Absurdo, repito! O verdadeiro roubo está a ter lugar diante dos nossos olhos e por ordem do cônsul, pois ao tornares incerta a data das eleições, estás a afastar aqueles que têm de viajar até Roma e não podem ficar indefinidamente alojados na cidade. As eleições já foram adiadas duas vezes. Não voltem a adiá-las!

 

As eleições foram adiadas por causa dos auspícios disse Cícero.

 

A terra tremeu, relâmpagos enrugaram os céus... A isto, ouviram-se gemidos e escárnios dispersos, presumivelmente por parte dos cépticos, seguidos de uma segunda onda de escárnios, dos piedosos que assobiavam aos cépticos.

 

Tipicamente, Cícero, mudas de assunto, esperando afastar a nossa atenção do verdadeiro problema! O primeiro adiamento terminou. Nesta altura, os auspícios são favoráveis. Não tens razões religiosas para continuar a adiar as eleições. Perante isto, até alguns dos senadores que até este momento se tinham mantido silenciosos murmuraram a sua concordância e acenaram gravemente.

 

Vamos, Cícero, já discutimos o suficiente gritou um dos senadores mais velhos. Este grito foi repetido por muitos outros. Cícero recuou e observou as fileiras, como se estivesse a avaliar a sua força. Parecia insatisfeito mas, como aumentassem os apelos para que o debate terminasse, recuou e fez um gesto ao seu companheiro cônsul, Gaio António, que começou a ler uma proposta para um novo adiamento das eleições consulares e de censura a Catilina por ”perturbação do Estado”. Aqueles que estavam a favor receberam instruções para se sentarem do lado esquerdo da sala; aqueles que estavam contra, deviam reunir-se no lado oposto, onde já estavam sentados Catilina e os seus apoiantes.

 

Nesta altura, Rufo deixou-nos para ir juntar-se aos outros senadores, opondo-se à proposta. Reparei que Marco Múmio também pertencia à mesma facção, bem como César e Crasso e os respectivos aderentes. Quando todos se acalmaram, mesmo sem uma contagem rigorosa, era óbvio que Cícero fora contrariado e que as eleições teriam lugar. Gaio António anunciou o resultado e dissolveu sumariamente a assembleia.

 

Um murmúrio de conversas encheu a câmara, acima do qual foi possível ouvir a voz de trompeta de Cícero.

 

Amanhã veremos quem tinha razão. Prevejo tempos perigosos para esta República!

 

Que olhos tu tens, Cícero, que te permitem ver muito mais do que todos nós! respondeu Catilina.

 

Muitos dos senadores suspenderam as suas conversas para ouvir. Talvez eles ainda não estivessem fartos do debate dos seus colegas, mas eu estava. Indiquei a Meto e a Eco que era altura de nos irmos embora, antes que fôssemos apanhados a circular pela câmara sem Rufo para responder por nós. Passámos pela porta semiaberta pela qual tínhamos entrado. A voz de Catilina ecoava atrás de nós.

 

E sabes o que eu vejo, Cícero? Sabes o que vêem os meus olhos quando eu estudo esta República? Vejo dois corpos...

 

Parei, subitamente alerta., e voltei atrás para ouvir. Meto estava espantado, mas vi nos olhos de Eco que ele também tinha ouvido.

 

A voz de Catilina chegava até nós distorcida pelo eco, como se fosse uma voz num sonho.

 

Vejo dois corpos, um é magro e está enfraquecido, mas tem uma grande cabeça, o outro não tem cabeça, mas é grande e forte. O inválido que tem cabeça conduz o outro como um animal, preso por uma corrente. Pergunta a ti próprio por que razão é tão medonha a possibilidade de que eu me transforme na cabeça daquele corpo que precisa dela. Nessa altura, a história seria muito diferente!

 

Dito em contexto, o sentido do enigma era claro. Eu suspendi a respiração perante a audácia de Catilina. Tendo conseguido prosseguir com as eleições, atrevia-se agora a troçar, não apenas de Cícero, mas também do próprio Senado, dentro da sua própria casa. Porque o que poderia representar o corpo definhado com uma cabeça inchada, senão o próprio Senado? E o que era o corpo forte mas sem cabeça, senão as massas sem chefe, de que Catilina queria ser o chefe e cujo descontentamento pretendia aproveitar para alcançar os seus próprios intentos? Eco também compreendeu.

 

O homem deve ser louco disse ele.

 

Ou então está muito seguro do seu êxito disse eu.

 

Ou ambas as coisas disse Meto gravemente.

 

Depois de terminada a reunião, o espaço diante do Senado tornou-se quase intransitável porque as comitivas dos diversos senadores se reuniram à volta deles. Eu não tinha qualquer vontade de andar aos empurrões por entre a multidão para abrir caminho através do Fórum. Recuámos, pois, para o labirinto de ruas laterais, estreitas e sinuosas a norte do Fórum e emergimos no ponto onde tínhamos deixado as mulheres.

 

Não foram necessárias desculpas para a duração da nossa ausência, porque a própria Betesda acabava de regressar das compras em diversos mercados a toda a volta do Fórum. Para Diana, comprara uma boneca de argila, com olhos de vidro verde, para Menénia uma blusa e um lenço amarelo, e para si própria um pequeno pente de mármore. Eu gemi interiormente, ao ver estas pequenas extravagâncias, pensando em todo o feno que se perdera por causa do míldio e perguntando a mim próprio como aguentaria as finanças da quinta durante o Inverno. Mas como poderia eu negar a Betesda o prazer de uma tarde de compras quando ela estava há tanto tempo afastada desse mundo?

 

As liteiras levaram-nos de volta à casa do Esquilino, onde Eco despediu os carregadores. Nessa noite, comemos uma refeição formal, instalados em canapés reunidos na sala de jantar ao lado do jardim. Foi um jantar só para a família. As mulheres vestiam as suas estolas e nós, os homens, as nossas togas. Meto tomou o lugar de honra. Ele nunca se reclinara num canapé nem comera uma refeição formalmente vestido, mas conseguiu fazê-lo sem grande dificuldade e não entornou uma única gota de vinho na toga.

 

A conversa versou principalmente assuntos de família a remodelação da casa que Menénia e Eco tinham levado a cabo, o modo como as coisas estavam a correr na quinta, as relações de Eco com a família da sua mulher. Discutiu-se um pouco o augúrio dessa tarde, que todos concordaram que era extraordinariamente auspicioso todos excepto Betesda, que sempre considerara a religião romana simplista, em comparação com a sua sensibilidade egípcia. Graciosamente, não criticou a cerimónia; o seu único comentário ao aparecimento da águia no Auguraculum foi perguntar se tinha feições humanas. Menénia, igualmente graciosa, escondeu o sorriso por trás de um leque de papiro.

 

Não se falou de Cícero nem de Catilina, e muito menos de eleições ou de corpos sem cabeça. Isso agradou-me.

 

Depois de os outros membros da família se irem deitar, eu senti-me desperto e inquieto e fui até ao jardim. O toldo amarelo tinha sido retirado e o jardim estava inundado de um luar brilhante. Ouvi o suave esparrinhar da fonte e estudei a Lua que irrompia e as estrelas titubeantes reflectidas na água escura. O luar transformava as duras pedras da calçada numa prata difusa e parecia cobrir as flores com uma suave camada de cinza.

 

Quantas noites eu encontrara paz e evasão dos cuidados da cidade neste jardim? De certa maneira, sentia-me tão distante do tumulto do Fórum neste sítio como na quinta da Etrúria; podia mesmo dizer que me sentia mais seguro e mais distanciado. Sentei-me num banco de pedra ao lado da fonte e encostei-me a um pilar. Olhei para a Lua e para a cúpula de estrelas que a rodeava.

 

Ouvi o som de pés descalços vindos do pórtico, tão familiares que nem tive de olhar.

 

Meto disse eu suavemente.

 

Papá. Ele saiu para o jardim. Tinha tirado a toga e trazia vestida uma tanga à volta dos quadris. Aproximou-se e eu indiquei-lhe que se sentasse ao meu lado, mas ele preferiu sentar-se noutro banco, de frente para mim.

 

Não consegues dormir, Meto? Ou está demasiado calor?

 

Não, não é do calor. O ângulo da luz obscurecia-lhe o rosto mergulhando os seus olhos na sombra, ricocheteava no nariz e fazia com que os seus malares e os seus lábios parecessem esculpidos em mármore.

 

Então é da excitação do dia sugeri eu. Ele ficou em silêncio durante algum tempo.

 

Papá, eu já sou um homem.

 

Eu sei, Meto.

 

Já não sou um rapazinho.

 

Sim, Meto, eu sei.

 

Então porque continuas a tratar-me como se eu fosse um rapazinho?

 

Porque... o que queres dizer com isso?

 

Escondes-me coisas. Falas nas minhas costas. Contas tudo a Eco, partilhas tudo com ele.

 

Porque Eco é...

 

Porque Eco é um homem e eu sou um rapaz.

 

Não, Meto, não é isso.

 

Porque Eco nasceu livre e eu não.

 

Não, também não é isso disse eu fatigadamente, abanando a cabeça.

 

Mas eu sou um homem, Papá. Di-lo a lei e dizem-no os deuses. Por que não acreditas neles?

 

Eu olhei para os seus malares suaves e puros, cor de rosas brancas ao luar, que tinham sido barbeados pela primeira vez naquele dia. Olhei para os seus braços magros e para o seu peito estreito, suave e sem pêlos como o de uma rapariga. Mas, na realidade, os seus braços não eram tão finos como eu pensara; no período de um ano, o trabalho na quinta desenvolvera-lhe os músculos. E o seu peito também não era já o peito liso e estreito de uma criança; começava a alargar e a tomar forma. O luar cauterizava claramente a proeminência angulosa dos seus peitorais e as estrias do seu abdómen. As suas pernas continuavam a ser compridas para o corpo, mas já não eram tão finas; e os músculos das suas coxas e das barrigas das pernas eram duros.

 

Quando é que isto tinha acontecido? Era como se eu estivesse a olhar para um estranho à luz da Lua, ou como se a própria Lua o tivesse transformado, de um momento para o outro, diante dos meus olhos.

 

Tratas-me como uma criança, Papá. Sabes que é verdade. Mesmo aquilo de não quereres que eu fosse ao Senado...

 

Isso não tem nada a ver contigo, Meto. Tem a ver apenas com a minha aversão.

 

E quanto ao corpo descoberto nos estábulos? Trataste-me como trataste Diana.

 

Isso não é verdade. Mandei-a embora, mas a ti mostrei-te o que era possível deduzir da observação do cadáver... embora, tanto quanto me lembro, tu estivesses demasiado enjoado para conseguires olhar.

 

Mas olhei! E não estou a falar de me deixares estudar o corpo contigo. Estou a falar do que aconteceu depois, quando começaste a matutar no assunto. Nunca me falaste nisso. Chamaste Eco, que fez a viagem desde Roma só para tu poderes partilhar os teus pensamentos com ele.

 

Não chamei Eco.

 

Não foi isso que ele me disse.

 

Oh, estou a ver que vocês andaram os dois a falar nas minhas costas.

 

Fizemos confidências um ao outro, Papá, como é de esperar que aconteça entre irmãos. É que eu já sou um homem. Tu precisas de mim, para te ajudar a proteger-te, e à Mãe e à Diana...

 

A proteger-me? A imagem do rapazinho que eu conhecera em Baias a proteger-me de um assassino escondido era de tal maneira absurda, que eu abanei a cabeça. Era meu dever protegê-lo como eu sempre tinha feito. É verdade que ele já não era assim tão pequeno. Mas eu continuava a ser mais forte do que ele, pelo menos eu achava que sim, embora ele pudesse ser mais veloz e o seu vigor maior do que o meu.

 

O teu corpo alterou-se, Meto, isso é verdade, mas noutras coisas...

 

Noutras coisas, continuo a ser uma criança. Eu sei que é isso que tu pensas, mas que provas tens? Estas palavras ressoaram-me estranhamente aos ouvidos. Onde é que ele as fora buscar? Isso não é verdade, Papá. Não sabes o que é que eu penso quando estou sozinho. Também me preocupo com o corpo que encontrámos e com o facto de Catilina ir a nossa casa, e com as coisas terríveis que estão a acontecer em Roma. Vi Marco Célio a falar contigo hoje na festa. Vi a tua expressão. De que é que estavam a falar? O que é que ele queria? Por que não me contas, para eu poder ajudar? Vais contar ao Eco, não vais?

 

Oh, Meto, como é que eu posso pedir-te ajuda quando nem eu sei o que é necessário fazer?

 

Mas é precisamente isso, Papá. Talvez eu me lembre de alguma coisa.

 

Ele ergueu o rosto para o luar e, por momentos, deixou de parecer transformado. Era novamente uma simples criança, magra e desajeitada, inocente e séria e ansiosa por agradar. Eu tive dificuldade em resistir ao desejo de estender a mão e lhe despentear o cabelo. Como é que eu podia tratá-lo como algo que ele não era?

 

Papá, estou a pedir-te que me respeites. Seja qual for o perigo com que nos confrontemos, eu quero saber. Quero fazer a minha parte. Quero ser incluído. Tenho o direito de esperar que assim seja, agora que sou um homem. Não compreendes?

 

Sim, Meto, compreendo.

 

E vais passar a tratar-me de outra maneira? Inspirei profundamente.

 

Vou tentar.

 

Óptimo. Então podemos começar por ir assistir às eleições amanhã.

 

Oh, Meto gemi eu.

 

Mas, Papá, como é que eu posso aprender se não assistir pessoalmente? Foi por isso que o dia de hoje foi extraordinário. Ir ao Senado, ouvi-lo falar... nunca me esquecerei!

 

Referes-te a Cícero?

 

Não, a Catilina! Foi ainda mais significativo do que a cerimónia no Auguraculum. Tenho de ver o que acontece amanhã. Ele baixou os olhos. Eu podia ir sozinho...

 

Nunca! Bandos, facas, tumultos...

 

Então vamos juntos? Eu franzi o sobrolho.

 

Vou dormir sobre isso.

 

Papá...

 

Oh, está bem. Suspirei. Se queres realmente ver Roma no seu pior...

 

Obrigado, Papá! Ele apertou-me as mãos nas suas e depois foi-se deitar. Momentos mais tarde, eu fiz o mesmo, já que afinal não poderia dormir até tarde.

 

Quando eu era miúdo, a parte noroeste da cidade, do lado de fora da Muralha de Sérvio, chamada o Campo de Marte, ainda estava praticamente desocupada. Os corredores de carros treinavam os seus cavalos e as unidades militares faziam os seus exercícios na planície deserta, e tinham tanto espaço que nem sequer tinham de engolir as nuvens de pó uns dos outros. Na extremidade do Campo, por cima de uma curva íngreme do rio Tibre, existem as torrentes quentes medicinais de Tarento, onde o meu pai gostava de ir aliviar as articulações; lembro-me de ir a pé até às torrentes, passando por áreas de floresta onde as cabras comiam as ervas da beira da estrada, e onde mal se via alguma casa, como se estivéssemos no campo. Talvez os meus olhos de rapaz exagerassem estas vastidões pastorais.

 

Claro que a parte sul do Campo de Marte, a mais próxima da Muralha de Sérvio, há muito que está urbanizada. Há muitos anos que as sombras da manhã do Capitólio poisam sobre armazéns e molhes construídos no Tibre, sobre os imensos mercados de vegetais do Fórum Holitorium, sobre edifícios cheios de inquilinos e sobre o enxame de lojas e de termas que rodeia o Circo Flamínio, que continua a ser a mais notória das estruturas existentes no exterior da Muralha de Sérvio. Ainda assim, ao longo da minha vida tenho assistido ao contínuo desenvolvimento do Campo de Marte construíram-se novos armazéns junto ao rio e edifícios mais altos no meio dos outros, as pequenas matas que restavam foram deitadas abaixo para se edificar no espaço por elas ocupado, abriram-se novas estradas. Os corredores de carros e os soldados que querem fazer exercícios estão mais próximos uns dos outros, de maneira que as nuvens de pó provocadas por ambos se misturam no ar. A estrada para Tarento deixou de ser um breve interlúdio rural, e está agora rodeada de cidade a toda a volta. Há mesmo rumores de que Pompeu, tendo-se apoderado de uma vasta extensão de terrenos públicos no coração do Campo de Marte, planeia construir um enorme teatro em estuque e mármore. Isto provocou grande controvérsia porque, se for construída, a estrutura será o primeiro teatro permanente de Roma, uma cidade onde os palcos improvisados erigidos para as festividades sempre foram considerados mais apropriados do que os teatros semelhantes aos templos dos Gregos, um povo decadente que adora dramas.

 

Porque está fora das muralhas da cidade e por causa da sua extensão plana (por comparação com as sete colinas da cidade e os respectivos vales), o Campo de Marte tem sido desde tempos antigos o local de reunião de assembleias demasiado grandes (e muitas vezes demasiado turbulentas) para poderem ser acomodadas no Fórum. Desde o tempo da fundação da República que os Romanos se reúnem aqui para votar.

 

E foi assim que, de manhã muito cedo, Meto e eu partimos em direcção ao Campo de Marte. Decidi levar Belbo connosco; se Cícero tivesse razão nas suas previsões de violência, eu queria andar acompanhado por um guarda-costas. Tomámos um pequeno-almoço apressado mas extravagante de restos da festa e levámos connosco uma trouxa de comida e um odre de vinho misturado com água. O céu estava pálido com a luz da madrugada quando nos pusemos a caminho da Subura, em direcção à Porta Fontinal. Já se viam grupos de homens pela rua, todos a dirigirem-se para o mesmo sítio. Estávamos justamente a passar pelo portão quando ouvi tocar os clarins, convocando o povo a   reunir-se.

 

Mesmo à saída da Via Flamínia, entre a zona sul, a zona urbanizada do Campo de Marte, e os espaços abertos da zona norte, ergue-se a Villa Publica. Trata-se de um recinto murado muito antigo, tal como os edifícios existentes no seu interior. Para além de albergar os escritórios dos recenseadores, que mantêm os registos dos eleitores, a Villa Publica tem na cidade de Roma a mesma função que um vestíbulo tem numa casa; os embaixadores estrangeiros ficam aí alojados, bem como os generais romanos que têm de residir fora da cidade antes de fazerem as suas entradas triunfais. Esse é também o local para onde se retiram os candidatos que esperam os resultados das eleições.

 

Junto à Villa Publica, existe outro recinto murado chamado, sem ostentação, o Curral das Ovelhas. Em dias de eleições, esse espaço é dividido com cordas, formando diversas alas. Quando vão votar, os eleitores são guiados através do Curral como ovelhas em fila. Não é necessária uma grande inteligência para extrapolar as metáforas.

 

Sob o Sol nascente, os cidadãos iam-se reunindo nos campos abertos à volta da Villa Publica. Os eleitores romanos dividem-se em várias classes de acordo com a sua riqueza e, dentro dessas classes, são divididos em unidades de voto ou centúrias. Os organizadores de cada centúria procuravam persistentemente reunir os seus membros; era óbvio que muitas centúrias tinham pontos de reunião previamente estabelecidos mas, tendo em conta a dimensão da população, a confusão era ainda considerável. O tempo também não ajudava. Há vários dias que não chovia e havia imensa poeira no ar. A manhã já estava quente e era provável que aquecesse muito mais. A atmosfera não era muito diferente da de um grande piquenique num dia quente de Verão.

 

Não demorei muito a detectar sinais de suborno declarado. Reconheci uma série de tipos de má reputação por entre a multidão e observei-os movendo-se entre os chefes das centúrias, sorrindo e batendo as palmas e entregando-lhes às claras pequenos sacos obviamente cheios de moedas. Em alguns destes agentes, reconheci os contratados de Crasso, e tinha detectado pelo menos um deles na comitiva de César, no dia anterior, mas havia muitos outros cujas lealdades eu desconhecia.

 

Houve algumas instâncias dispersas de violência, mas os tumultos não se generalizaram. Vimos um agricultor e os seus filhos serem espancados por um bando de jovens. Observámos dois Optimates grisalhos e corados envolvidos num barulhento combate um com o outro (um deles apoiava Murena, o outro Silano quem poderia distingui-los, a não ser um Optimatel); os escravos das respectivas comitivas recuavam impotentes e assistiam, consternados, alarmados ou divertidos. Observámos o fim de um duelo com punhais, que terminou com ambas as partes a serem transportadas, gemendo e sangrando, pelos respectivos amigos. De uma forma geral, a multidão era mais pacífica do que eu esperara. Evidentemente, estes foram apenas os episódios violentos a que por acaso assistimos; no meio daquele ajuntamento, deve ter havido muitos mais.

 

Um tumulto de gritos aproximou-se de nós por entre a multidão e eu voltei-me e vi que era Cícero e o seu colega cônsul Gaio António que estavam a chegar. Cícero vinha rodeado pela sua escolta armada e tinha a toga aberta para mostrar a couraça que lhe cobria o peito, um último lembrete aos eleitores da pretensa traição de Catilina. Os cônsules desapareceram dentro dos portões da Villa Publica e reapareceram mais tarde no pódio embutido na parede. António anunciou que os auspícios tinham sido devidamente observados pelos augures na Villa Publica e que tinham sido declarados aceitáveis. Sem tremores de terra e com um céu completamente azul, dificilmente poderia ser de outra maneira, pensei eu, especialmente tendo em conta que, no dia anterior, o Senado deixara muito claro qual era a sua vontade nesta matéria. As eleições podiam prosseguir.

 

Pouco depois, chegaram os candidatos. Todos eles vinham acompanhados por uma grande comitiva de apoiantes, que empurravam e abriam caminho por entre a multidão. Todos eles foram ao pódio antes de desaparecerem na Villa Publica. Ouviu-se uma mistura de assobios e aplausos para Murena e Silano, os favoritos dos Optimates, que surgiram um a seguir ao outro. Quando os candidatos saíam do pódio, os combatentes grisalhos, que faziam tréguas quando os seus favoritos se encontravam no palco, voltavam a amaldiçoar-se e a bater-se.

 

Passaram pelo pódio outros candidatos, nenhum dos quais suscitou mais do que aplausos dispersos ou assobios irritados. Depois, chegou Catilina.

 

Ouvimo-lo aproximar-se muito antes de o vermos. Começou com um rugido que parecia vir desde a Porta Fontinal e que ia aumentando cada vez mais à medida que se aproximava da Villa Publica. O som era como uma parede, palpável e impenetrável, que parecia querer esmagar-nos. A princípio, era difícil dizer de que era feito era um agregado de apupos, assobios, aplausos, escárnios e maldições, reunidos num único clamor. Mas a reacção física da multidão também não era fácil de determinar. Quando a comitiva passava, os homens abriam a boca para gritar, mas estariam a amaldiçoar ou a aplaudir? Lançavam os braços ao ar, mas os punhos cerrados eram sinal de ódio ou de apoio? Através do ajuntamento, avistei Catilina e, pelo sorriso que ostentava, seria de crer que todas as vozes o aplaudiam e todos os punhos erguidos estavam às suas ordens.

 

Quando ele chegou ao pódio, o rugido tornou-se ensurdecedor. A multidão começou a entoar o seu nome: ”Catilina! Catilina!” À minha volta, os jovens saltavam, acenando. Parecia-me que a multidão o adorava, e que os apupos e as maldições não deviam ser para Catilina, mas para os seus inimigos. Entretanto, Cícero retirara-se para o canto mais afastado do pódio e desviara o rosto.

 

Catilina retirou-se para a Villa Publica com os seus rivais e a votação começou. As classes mais abastadas, que votavam primeiro, já se tinham reunido no exterior do Curral das Ovelhas. À entrada, cada eleitor recebia uma tabuinha de madeira e um estilete para escrever o nome do seu candidato; os estiletes e as tabuinhas eram recolhidos no final de cada ala, e as tabuinhas eram depositadas numa urna para serem contadas depois de todos os elementos da centúria terem votado; a escolha de cada centúria contava como um voto. Ao todo, há pouco menos de duzentas centúrias, das quais as duas classes mais ricas reclamam mais de uma centena. As classes mais baixas têm muito mais eleitores individuais, mas controlam muito menos centúrias. As classes mais pobres de todas, que provavelmente constituem a maioria dos romanos, formam apenas cinco centúrias. Muitas vezes, quando chega a sua vez de votarem, o resultado já está decidido e não lhes é permitido votar; não é de surpreender que venham às eleições mais para assistirem ao espectáculo do que para votarem, aqueles que vêm.

 

Encontrámos um lugar à sombra, e estávamos sentados encostados à parede ocidental da Villa Publica, onde eu explicava estas coisas a Meto, quando Belbo, coçando o seu cabelo cor de palha, perguntou:

 

E a que classe pertences tu, senhor?

 

Eu olhei de soslaio para o seu rosto bovino, mas Meto insistiu.

 

Sim, Papá, a que classe pertences? Nunca me disseste.

 

Porque há muito tempo que não me incomodo a votar.

 

Mas deves saber.

 

Realmente sei. Mudámos de classe este ano, graças à herança de Lúcio Cláudio. Antigamente éramos membros da Quinta Classe ou seja, da classe logo a seguir à dos pobres mas agora somos membros da Terceira Classe, a classe imediatamente abaixo dos ricos, juntamente com a maioria das famílias que tem uma quinta e uma habitação na cidade.

 

E com que centúria votamos?

 

Se votássemos, reunir-nos-íamos aos da Segunda Centúria da Terceira Classe.

 

E eu também podia votar? Eu fiz uma careta.

 

Podias-, se...

 

Quero ver.

 

Queres ver o quê?

 

A Segunda Centúria da Terceira Classe. Os outros eleitores que pertencem à centúria.

 

Para quê?

 

Papá... Bastava-lhe falar com uma certa entoação para me recordar da nossa conversa da noite anterior.

 

Muito bem. Mas não há pressa. Ainda nem sequer é meio-dia e as primeiras duas classes ainda não devem ter completado a sua votação. E, depois deles, votam os cavaleiros, que têm uma classe própria com dezoito centúrias, e só depois é que vota a Terceira Classe. Vamos beber um bocadinho de vinho e comer qualquer coisa e depois vamos à procura dos eleitores que votam connosco. Por essa altura, a multidão já terá diminuído; as pessoas vão começar a ir-se embora por causa do calor, do pó e do tédio.

 

O que não se verificou porque, quando voltei a juntar-me à multidão, ela parecia até ter aumentado. E também não havia qualquer sensação de tédio no ar, mas uma carga de excitação que era como uma rajada de vento antes da trovoada. Os homens andavam agitadamente de um lado para o outro, com o silêncio da antecipação na voz.

 

Finalmente, a Terceira Classe foi chamada a votar. Um grande grupo de homens, melhor vestidos do que muitos mas sem o aspecto reluzente dos patrícios nem a ostentação dos cavaleiros proprietários de terras e mercadores, reuniu-se à entrada do Curral das Ovelhas. A Primeira Centúria preencheu a primeira ala, a Segunda Centúria a segunda ala, e assim sucessivamente.

 

Ali disse Meto aquela é a nossa centúria, não é?

 

Sim...

 

Anda, Papá, quero ver!

 

Aproximámo-nos do ajuntamento que afunilava lentamente para o Curral das Ovelhas.

 

Mas, Meto, não há nada que ver...

 

Não são permitidos escravos, apenas cidadãos! disse um funcionário eleitoral postado à entrada do recinto. Olhava para Belbo, que acenou com a cabeça e recuou.

 

Mas não vale a pena protestei eu. Ele pode ficar connosco. Nós vamos só...

 

Por Catilina! ouvi murmurar ao meu ouvido. Ao mesmo tempo, colocaram-me na mão uma moeda acabada de cunhar.

 

Eu olhei à volta e vi o rosto de um dos organizadores da multidão que reconhecera anteriormente, um dos homens de mão de Crasso. Ele também me reconheceu.

 

O Descobridor! Pensei que tinhas saído de Roma para sempre.

 

E saí.

 

E pensei que nunca votavas.

 

E não voto.

 

Bem, nesse caso... E arrancou-me a moeda da palma da mão. Sem querer, apercebi-me de que avançava com dificuldade atrás dos outros,   rodeado pela multidão, em direcção à segunda ala do Curral das Ovelhas. Meto ia à minha frente. Olhava para baixo, para uma moeda brilhante que tinha entre o indicador e o polegar.

 

Meto, temos de...

 

Mas, Papá, estamos quase a chegar.

 

E estávamos. Antes de eu me aperceber, estávamos à entrada da ala de votação, e um funcionário do recenseamento com um ar entediado, com um rolo de pergaminho na mão, examinava Meto.

 

Nome de família? perguntou ele enfadadamente.

 

Gordiano disse Meto.

 

Gordiano, Gordiano... sim, cá está. Vocês não são muitos. E qual deles és tu... parece-me que ainda não tens idade suficiente para votar.

 

Já tenho dezasseis anos protestou Meto. Fiz ontem.

 

Ah, sim, pois tens disse o funcionário, olhando de lado para a lista. Toma a tabuinha e o estilete. E tu és Gordiano, o pater? perguntou ele, erguendo os olhos para mim.

 

Sim, mas...

 

Toma a tabuinha e o estilete. O próximo!

 

E assim, dei por mim a ser conduzido para a urna como uma ovelha. À minha frente, Meto escrevia na sua tabuinha. Continuámos a andar. No fim da fila, outro funcionário recolheu os nossos estiletes e observou-nos a depositar os votos na urna. Quando o fiz, o funcionário olhou-me com um ar estranho.

 

Saímos do Curral das Ovelhas e encontrámos Belbo à nossa espera. Eu dei um suspiro de alívio, depois ouvi um grito atrás de mim.

 

Tu, cidadão! O da barba! Voltei-me. Sim, tu!

 

O funcionário tinha tirado a tabuinha da urna e tinha-a na mão.

 

Enganaste-te, cidadão! riu-se ele. Não há nenhum Nemo na corrida para cônsul.

 

Eu encolhi os ombros.

 

Mas é nele que eu voto.

 

Meto recusou-se a dizer em quem tinha votado, protestando que o voto era secreto, mas a sua escolha tornou-se óbvia pela sua expressão desanimada quando foi anunciado que a nossa centúria votara em Silano. E foi assim que ele recebeu o seu primeiro desapontamento como eleitor.

 

O desapontamento foi ainda maior para muitos dos elementos da multidão reunidos diante da Villa Publica, quando mais tarde foi anunciado que as centúrias da Quinta Classe e dos pobres livres não seriam necessárias para determinar o resultado. Silano e Murena tinham ganho. Os Optimates mantinham o controlo sobre os consulados. Pela segunda vez em dois anos, Catilina fora repudiado nas mesas de voto. À nossa volta, ouvi murmúrios de maldições e até gritos de desespero por entre o aplauso geral, e senti uma súbita tensão no ar.

 

Sileno e Murena foram ao pódio, juntamente com Cícero e António. Seguindo a tradição, os cônsules recém-eleitos diriam algumas palavras aos cidadãos ali reunidos, mas quando avançou para falar, Murena foi abafado por uma súbita algazarra. Catilina emergira dos portões da Villa Publica.

 

Pela reacção dos que o rodeavam, dir-se-ia que Catilina era o vencedor das eleições e não um duplo perdedor. Os seus partidários correram para ele, aplaudindo e chorosos, muitos estendendo as mãos para lhe tocarem, e entoando o seu nome em uníssono: ”Catilina! Catilina!” A sua expressão era estóica, enquanto avançava a passos largos, de maxilares apertados e olhando em frente. Do alto do pódio, Cícero olhava para ele com um fino sorriso nos lábios.

 

Quando Catilina passou, Murena e Silano puderam finalmente falar. Os seus comentários foram previsivelmente banais e foram recebidos com aplausos tépidos. Depois, Cícero anunciou que as eleições para pretores se iniciariam imediatamente. Eu gostaria de ter ficado para votar pelo meu amigo Rufo, mas Meto sentiu-se subitamente desanimado e decidiu que já aprendera o suficiente sobre política para um só dia. Virámos costas à multidão e regressámos pelas ruas desertas da Subura.

 

Já em casa de Eco, Betesda observou que Meto parecia estranhamente silencioso e pensativo. Atribuiu este facto à natural depressão do dia que se segue a um grande evento como a festa da toga, mas eu sabia que a desilusão de Meto tinha origem em algo mais profundo do que isso.

 

Nessa noite, jantámos informalmente assaltando a cozinha à procura de restos do dia anterior. O calor do dia lançou toda a casa num estado de espírito de grande lassidão. Os escravos dedicavam-se indolentemente às suas tarefas, e até Betesda tinha demasiado calor para os repreender. O próprio Sol parecia preguiçoso e demorou um tempo anormalmente longo a passar para além do horizonte. O céu ganhou um forte tom azul-escuro. Meto retirou-se para o seu quarto, sozinho. Diana aconchegou-se contra a mãe e adormeceu no nosso canapé. Eco e Menénia retiraram-se para outro quarto, na parte de trás da casa, para fazerem o que quer que seja que os jovens recém-casados fazem para se distraírem nas longas e opressivas noites de Verão. Eu fiquei sozinho no jardim, o que se adequava bem ao meu estado de espírito.

 

A primeira mão-cheia de estrelas começava a brilhar no céu quando Belbo veio anunciar-me que estava um visitante à porta.

 

Para Eco? perguntei eu, pensando que certamente ele não gostaria de ser incomodado naquele momento.

 

Não, a visita é para ti, Senhor. Mas o seu aspecto não me agrada.

 

Porquê, Belbo?

 

Para já, vem com demasiados guarda-costas pelo menos, um para cada dedo além de que todos eles empunham grandes punhais, que nem sequer trazem embainhados.

 

O meu coração acelerou um pouco. Em nome de Júpiter, o que teria eu feito agora? Por que não me deixavam em paz?

 

Quem é o visitante, Belbo?

 

Não tenho a certeza. Não deu o seu nome e estava no meio dos guarda-costas, de maneira que não pude vê-lo bem. Mas a toga dele tem tons de púrpura.

 

A sério? Eu franzi os lábios, intrigado.

 

E ele também vem armado. Ou pelo menos traz uma armadura. Avistei por baixo da sua toga aquilo que me pareceu ser uma couraça...

 

Estou a ver. Sim, Belbo, suponho que é melhor eu receber esse visitante. Mas pede-lhe que deixe a escolta lá fora. Nada tem a temer dentro desta casa.

 

Belbo retirou-se. Momentos depois, Marco Túlio Cícero juntava-se a mim no jardim.

 

Gordiano! disse ele, lançando-me um olhar quente e demorado, como se eu fosse um amigo que ele não visse há muito, ou talvez um eleitor indeciso. Há tanto tempo que não te via!

 

Nem por isso. Viste-me ontem, a caminho do Arx.

 

Isso não conta, dadas as circunstâncias, não achas? Se ontem fui brusco ou distante... bem, compreenderás porquê. Não pude conversar contigo como devia e como conversarei quando tudo isto terminar.

 

Tudo isto?

 

Sabes ao que me refiro.

 

Sei?

 

Gordiano! disse ele, num suave tom de censura. Difícil,

 

como sempre.

 

O que pretendes, Cícero?

 

E tão directo!

 

Não sou um orador, como tu. Tenho de dizer aquilo que penso.

 

Oh, Gordiano! Ainda deves estar muito cansado por causa da viagem que fizeste desde a tua bela quinta. Deves sentir-te pouco à vontade aqui, longe dos campos e do mugido das vacas. Eu bem sei como os rigores do Fórum cansam um homem acredita que sim! já para não falar da provação de um dia de eleições. Mas estas eleições correram bastante bem, não achas?

 

Para aqueles que venceram.

 

Hoje, Roma venceu. Se as coisas se tivessem passado de outra maneira, todos teríamos perdido, incluindo tu.

 

Havia muitos cidadãos no exterior da Villa Publica que aparentemente tinham outra opinião.

 

Sim, ainda agora há tumultos em diversos pontos da cidade; foi sensato da tua parte teres-te retirado cedo e trancado as janelas. Os apoiantes de Catilina aproveitam qualquer desculpa para se entregarem à violência e ao saque.

 

Talvez estejam dominados pela impotência e pela frustração.

 

Certamente que não simpatizas com essa populaça, Gordiano! Um homem inteligente como tu, que agora é também um proprietário!

 

Sinto-me muito orgulhoso disso, sabes, de te ter ajudado a herdar aquilo que era teu por direito. Os deuses e Lúcio Cláudio decretaram que tu subisses neste mundo, e eu tive o maior prazer em cumprir o meu papel. A longo prazo, a maioria dos homens acaba por obter aquilo que merece neste mundo.

 

Sim?

 

Olha o meu irmão Quinto, por exemplo. Foi eleito pretor esta tarde, seguindo os meus passos!

 

Qual foi o resultado para Rufo?

 

Também foi eleito, e ainda bem! O sorriso de Cícero não parecia inteiramente fingido. Podia dar-se ao luxo de ser generoso.

 

E Gaio Júlio César? Cícero deixou de sorrir.

 

Também ele foi eleito pretor. Mas a verdade é que não é possível dizer que o não mereceu, de uma forma ou de outra, embora talvez precise de muito tempo para pagar as suas dívidas. Estiveste lá, não estiveste? Julgo ter-te avistado no meio da multidão.

 

Viemos embora cedo. O meu filho Meto queria ver as votações. Passado algum tempo, achou que já vira o suficiente.

 

Ah, os deveres da paternidade. O meu filho só tem dois anos, mas já é um orador e tanto! Tem pulmões mais fortes do que os meus!

 

Duvido, Cícero. Mas diz-me, o que vieste fazer? Não me entendas mal, não é que eu não fique satisfeito pelo facto de o cônsul de Roma vir visitar-me, ou que objecte por ter a sua escolta acampada à porta de minha casa... sinto-me profundamente honrado, claro. Mas dizes que a populaça está nas ruas. Certamente que o perigo...

 

Não estou preocupado com o perigo. Já devias saber isso, Gordiano. Não desafiei o próprio Sula no início da minha carreira? Tu estavas lá, sabes que me opus à sua tirania. Achas que eu ia permitir que uma populaça desorganizada me impedisse de desempenhar os meus deveres de cônsul? Nunca!

 

Contudo, alguma coisa deves temer, para andares com uma armadura tão pesada e te rodeares de tantos guarda-costas para onde quer que vás.

 

As armaduras libertam os homens do medo. Quanto aos meus guarda-costas, são todos excelentes jovens da classe dos cavaleiros. Seguem-me porque me amam, como amam Roma. Sim, certamente que existem perigos. Há sempre perigos, quando um homem defende aquilo que é justo... tu sabes que é assim. Mas um verdadeiro romano fixa os olhos no seu caminho e não se deixa desviar, seja por uma gentalha com paus e pedras, seja por conspiradores com tochas e punhais.

 

Apesar disso, pensei que tinhas considerado preferível que não nos encontrássemos tão abertamente; foi o que Marco Célio me indicou. Devo presumir que a tua vinda aqui esta noite assinala o fim do nosso afastamento simulado?

 

Não... exactamente disse ele.

 

Mas a crise, se é que existiu, já terminou.

 

Isso só acontecerá quando aqueles que ameaçam o Estado deixarem de o fazer.

 

Mas Catilina está acabado. Tu voltaste a derrotá-lo. Não poderá concorrer a cônsul pela terceira vez... tem demasiadas dívidas. Os seus aliados vão abandoná-lo, como o abandonarão os seus amigos que têm dinheiro. Duas derrotas seguidas significa o fim das moedas destinadas às mãos suadas dos eleitores. Catilina está acabado.

 

Estás enganado, Gordiano. O inimigo de Roma não está acabado. Por enquanto. Detectei nos olhos de Cícero um brilho de predador. O que é mais perigoso do que um javali nos bosques, Gordiano?

 

Por favor, não me proponhas enigmas como Catilina!

 

Um javali ferido. Hoje, Catilina ficou ferido, mas está longe de estar acabado. Os seus recursos são maiores do que imaginas. Os seus ”aliados”, como lhes chamas, são mais perigosos do que pensas. Tens razão, depois do que aconteceu hoje ele não poderá voltar a recorrer a fontes legítimas de financiamento, mas aquilo com que agora conta é o aço e não a prata.

 

Cícero, não venhas pedir-me mais favores disse eu, fatigadamente.

 

Por que não? Não adoras a quinta que eu consegui que fosse tua?

 

Cícero, a gratidão tem limites.

 

Não estou a falar de gratidão, Gordiano. Não apelo ao teu sentido de obrigação, mas aos teus interesses pessoais. Se Catilina não for detido, tu és exactamente o género de proprietário de terras que mais vai sofrer.

 

Cícero... Eu abanei a cabeça e levantei a mão.

 

E amas a tua família, não é verdade? Pensa neles, e no seu futuro.

 

É   precisamente nisso que eu estou a pensar! Controlei-me e baixei a voz. Estou farto de os pôr em perigo. E estou farto de ser ameaçado e intimidado.

 

A ameaça vem de Catilina.

 

Vem?

 

Cícero franziu o sobrolho, percebendo finalmente que, enquanto ele falava de generalidades, eu me referia a uma coisa bastante específica.

 

O que queres dizer?

 

Estou a falar do corpo sem cabeça que foi deixado no meu estábulo quando eu não reagi com suficiente rapidez às exigências de Célio.

 

Ah, sim, o corpo sem cabeça. Célio contou-me que tu lhe tinhas dito qualquer coisa sobre isso ontem, mas não sabia a que te referias, e eu também não sei. Deve ter sido qualquer coisa montada por Catilina...

 

Mas, se foi Catilina o responsável, e se Célio finge ser seu agente, porque razão Célio ignorava o assunto?

 

Porque, suponho eu... Cícero franziu o sobrolho.

 

Ou será que Célio sabe coisas que não te conta? Nesse caso, como podes confiar realmente nele? E, se tu não podes confiar nele, eu também não posso!

 

Cícero pensou longamente, antes de responder.

 

Gordiano, compreendo a tua preocupação relativamente a este assunto...

 

Ou talvez seja Catilina que não confia em Célio. Será isso? Terá Catilina descoberto que a lealdade de Célio era fingida? Saberá ele que Célio é um espião teu, e não seu? Isso significaria que Catilina também sabe que eu estou a agir em teu nome. O que coloca a minha família numa situação de perigo ainda maior.

 

É   óbvio que navegamos em águas profundas, Gordiano. Mas não temos maneira de nos manter à superfície, a não ser que batamos os pés! Se nada fizermos, afundamo-nos... afundamo-nos todos! O Estado é uma jangada salva-vidas. Eu conduzo essa jangada. O leme foi-me confiado. Catilina incendia-lo-á se não for detido, condenando-nos a todos. Tenho de fazer tudo o que puder para mantê-la à superfície do mar. Mas preciso da tua ajuda. Estou a estender-te a minha mão para te puxar para cima dela, se tu me estenderes a tua.

 

Que linda metáfora. Que retórica tão fluida...

 

Gordiano! Fazes-me perder a paciência! Tinha-o finalmente irritado. Eu podia contestar a sua coragem e troçar do seu comportamento pomposo, que isso não o incomodava, mas ele jamais aceitaria que eu depreciasse o seu domínio da língua. Quer queiras, quer não, quer compreendas a importância do que estás a fazer, quer não, tens de continuar a fazer o que eu te peço. Catilina é uma ameaça demasiadamente perigosa para que eu me incline perante a tua apatia.

 

É   realmente assim tão perigosa? Sob o meu tecto, pareceu-me por vezes mais sentimental do que sedicioso.

 

Gordiano, não acredito que sejas assim tão ingénuo! Subitamente, o sorriso regressou-lhe ao rosto. Oh, começo a perceber qual é o problema. Tu gostas de Catilina! Mas, claro, todos gostámos de Catilina num momento ou noutro, todos nós, e acabámos inevitavelmente por lamentá-lo. Pergunta à sombra do seu cunhado assassinado, ou à sombra do seu filho assassinado, ou às infelizes famílias dos jovens e das jovens que ele corrompeu. Antes de destruir as suas vítimas, Catilina tem de fazer com que elas gostem dele.

 

”Oh, Gordiano, sei que consideras o teu velho amigo Cícero um pouco afectado e vaidoso; sempre consideraste. Tens um olhar penetrante e imperdoável para tudo aquilo que é pretensão, é um dos teus dons e eu confesso que, em consequência dos êxitos que tive, me tornei talvez um pouco importante. Tu és capaz de ver o interior dos homens, para além dos seus véus de vaidade. Como é que pudeste não ver imediatamente o interior de Catilina? Será possível que a sua presunção seja tão enorme, tão monstruosa, que tu não tenhas, pura e simplesmente, conseguido aperceber-te dela, tal como um homem que olha para o mar não consegue ver as gotas de água? Ter-te-á ele seduzido, Gordiano?

 

Estás a dizer tolices, Cícero. Mas pelo menos as tuas metáforas são consistentes afogaste-me por completo.

 

Ele fez uma pausa e olhou para mim com astúcia. Quando baixava a cabeça com aquela inclinação, as espessas pregas de gordura do seu pescoço pressionavam-lhe o queixo como uma almofada, e os seus olhos pareciam recuar para dentro dos malares. Pensei no aspecto que ele tinha quando eu o conhecera era magro, quase frágil, com um pescoço que não parecia suficientemente robusto para conseguir segurar a sua cabeça de sobrancelhas abundantes. A sua largura aumentara proporcionalmente à sua ambição.

 

Oh, consigo imaginar como ele te trabalhou, Gordiano. Catilina sabe ver o interior do coração dos outros homens. Apercebe-se das suas necessidades e dos seus desejos e joga com esse conhecimento. Diz-me se eu tiver acertado. Ele percebe imediatamente como deve lisonjear as pessoas... cumprimentou-te por causa da quinta e da tua família. Apercebeu-se de que a tua família é pouco ortodoxa, sente que tu tens um fraco pelos que foram desapossados e privados dos seus direitos, por isso diz-te que também ele é um homem do povo e que quer abanar um pouco as coisas em Roma para dar às massas infelizes melhores oportunidades na vida. Arenga contra a injustiça dos Optimates e os seus métodos duvidosos pouco importa que o próprio Catilina também fosse um Optimate se não tivesse esbanjado a sua reputação e a sua fortuna e conquistado o desdém de todos os membros decentes do Senado. Tendo-se insinuado na tua vida pessoal e tendo-te entusiasmado com as suas posições políticas, especialmente apresentadas por forma a adaptarem-se às tuas, ele confia-te um segredo pessoal, a ti e só a ti, levando-te a pensar que confia implicitamente em ti, que tu és muito especial para ele.

 

Pensei na confissão de Catilina relativamente à Vestal Fábia e senti uma ponta de desconforto.

 

Catilina dir-te-á o que tu quiseres ouvir. Catilina será o teu confidente especial. Se lho permitires, Catilina lançará o seu encantamento sobre ti, ainda que tu mantenhas os olhos bem abertos. Admito que Catilina tem encanto. Durante anos, eu próprio fui dessa opinião, até que vi o que ele realmente era.

 

”Enquanto eu, infelizmente, não tenho encanto nenhum. Achas que eu não sei? Tu mostraste-me claramente a tua hostilidade esta noite, Gordiano. Achas-me irritante e vaidoso, e gostarias que eu me pusesse a andar. Eu aborreço-te. Não tenho encanto nenhum e nunca tive; nasci sem ele e essa é uma circunstância que não pode ser contrariada. É exactamente por isso que eu tenho de tentar apoiar-me na retórica e na persuasão ferramentas grosseiras, comparadas com o encanto natural de um homem como Catilina, que já está a meio caminho de vencer uma discussão antes de ter aberto a boca, graças ao seu belo rosto e àquele cativante, irresistível e enfurecedor sorriso. Ao lado dele, eu devo parecer muito grosseiro e estridente. Mas pensa, Gordiano! De que vale o encanto, se esconde a feia verdade? Falo-te dessa feia verdade e tu franzes o nariz. Catilina sorri e murmura-te lindas mentiras e tu achas que ele é intrigante. Gordiano, nem parece teu!

 

Poderá haver coisa pior para um homem com a minha idade do que começar a duvidar do seu discernimento? Teria Catilina lançado um encantamento sobre mim, tornando-me embotado e sonhador? Ou seria Cícero quem estava a praticar a sua magia perversa, utilizando aquilo que sabia acerca de Catilina e de mim para descobrir as palavras exactas com que poderia desconcertar-me e quebrar a minha vontade?

 

As minhas palavras fazem sentido para ti, Gordiano? Detectas a urgência que há na minha voz? Não queres continuar a fazer-me o único favor que eu te peço, receber Catilina em tua casa quando ele desejar? Fá-lo pelo bem de Roma. Fá-lo pelos teus filhos.

 

Ao ver que eu não respondia, Cícero suspirou e deixou descair os ombros. Estaria a representar ou estaria realmente cansado? E como se explicava que eu não tivesse a certeza eu, que possuía um olhar penetrante e imperdoável para a pretensão?

 

Pensa nisso, Gordiano. Quando regressares àquela quinta adorável e pacífica, pensa nisso e recorda-te de que Roma continua aqui, em perigo. E, se Roma arder, não tenhas a menor dúvida de que a conflagração se estenderá ao campo. Ele baixou o rosto, tornando mais espessas as pregas de gordura do seu queixo. Estudou-me por um longo momento, mas eu nada tinha a dizer. Não voltarei a ver-te enquanto a crise não estiver solucionada. Marco Célio será o meu mensageiro, como anteriormente. Foi um risco vir esta noite visitar-te, mas os meus vigilantes disseram-me que, neste dia, os olhos de Catilina estão pousados noutro sítio, Célio disse-me que tu hesitavas e eu esperava conseguir prevalecer sobre o teu ponto de vista se pudesse falar contigo de homem para homem. Voltou-se. As dobras rígidas da sua toga sussurraram no ar parado e quente do jardim. Vou-me embora. Ainda tenho de fazer diversas visitas esta noite, antes de me ir deitar. Ninguém está seguro com a populaça de Catilina a provocar tumultos nas ruas, mas não posso consentir que isso me detenha. Eu sei qual é o meu dever para com Roma; quem me dera que ele fosse tão simples e tão fácil de cumprir como o teu.

 

E com isso partiu.

 

Eu deixei-me estar sentado no banco ao lado da fonte. Lá no alto, as estrelas brilhavam no céu escuro. A Lua começara a subir e a sua luz prateada brilhava sobre o telhado do pórtico.

 

Já podes sair, Meto disse eu baixinho.

 

Ele saiu de trás da cortina do quarto e passou para as sombras do pórtico.

 

Betesda também ouviu? perguntei eu.

 

Não. Ouvi-a ressonar através da parede e continuo a ouvi-la. Ele avançou para o luar. Apenas tinha vestida a tanga à volta dos quadris. Ocorreu-me que já tinha idade para vestir mais qualquer coisa quando andava pela casa.

 

Óptimo. Eco e Menénia estão aparentemente a dormir, ou pelo menos demasiadamente ocupados para terem prestado atenção a vozes no jardim. Só tu e eu sabemos da visita de Cícero.

 

Como é que sabias que eu estava a ouvir? Tive o maior cuidado em não deixar que a cortina se mexesse.

 

Pois foi, mas via-se o dedo grande do teu pé esquerdo por baixo da bainha da cortina. A luz de uma estrela incidiu na tua unha. Se as circunstâncias fossem outras, esse descuido poderia ter-te sido fatal.

 

Achas que Cícero reparou? perguntou ele. Eu tive de me rir.

 

Não me parece. Senão teria chamado os guarda-costas e tu estarias coberto de punhais antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse.

 

Meto pareceu assustado, depois céptico.

 

Bem, o que achas do nosso estimado cônsul, Meto? Ele hesitou por momentos.

 

Acho que Cícero é um saco de vento. Eu sorri.

 

Eu também, mas isso não significa que não esteja a dizer a verdade.

 

Quer dizer que vais fazer o que ele te pede? Demorei tanto tempo a responder, que Meto voltou a perguntar.

 

Vais, Papá?

 

Quem me dera saber.

 

Depois das eleições, passámos mais cinco dias em Roma. Eu diverti-me mais do que esperara, passeando pelas sete colinas, visitando velhos amigos, saboreando os petiscos dos vendedores de comida dos mercados, observando as idas e vindas de homens e mulheres de todo o tipo pelas ruas da Subura e sentindo-me engolido pelo movimento interminável da vida na grande cidade.

 

Nem tudo foram prazeres. Certa manhã, quando Betesda passeava pelas lojas da Rua dos Ourives, eu fui consultar o advogado que defendia os meus direitos sobre o ribeiro, opondo-se à contestação de Públio Cláudio. Chamava-se Volumeno e o seu escritório ficava situado no segundo andar de um edifício de tijolos atarracado e feio, a pouca distância do Fórum. O edifício era todo ocupado por advogados e exalava o cheiro bolorento de pergaminho velho. As paredes do apertado escritoriozinho de Volumeno estavam cobertas de rolos de pergaminho arrumados em pequenos compartimentos. Ele próprio parecia um pergaminho, alto e direito, com o rosto comprido e um estilo seco.

 

Não tinham sido feitos quaisquer progressos no sentido de levar até aos tribunais a questão dos meus direitos de água, embora me tivesse garantido que estava a fazer tudo o que podia a meu favor.

 

Por que é que isto demora tanto tempo? queixei-me eu. Quando os Cláudios puseram em causa a minha herança, a questão era certamente mais complicada mas Cícero conseguiu resolver o caso em poucos dias, não demorou meses nem anos.

 

O canto da boca de Volumeno contorceu-se ligeiramente.

 

Então talvez prefiras que seja Cícero a tratar de todos os teus assuntos legais disse ele secamente. Oh, ele está demasiado ocupado? Francamente, eu estou a fazer tudo o que posso. Sim, se eu fosse um dos mais poderosos políticos de Roma, estou certo de que conseguiria fazer com que os tribunais despachassem este assunto, mas não passo de um honesto advogado...

 

Compreendo.

 

Não, falo a sério, se achas que consegues fazer com que o poderoso Cícero defenda este caso, não hesites...

 

Isso foi um favor especial. Se me dizes que estás a fazer tudo o que podes...

 

Oh, mas Cícero faria mais, estou certo, e melhor, e mais rapidamente...

 

Acabei por conseguir alisar-lhe as penas eriçadas antes de partir. Voltei à rua sentindo-me não tanto insatisfeito com os esforços que ele estava a fazer, como recordado da enorme dívida que tinha para com Cícero. Sem a sua ajuda e as suas relações, a questão da minha herança poderia ter sido rapidamente decidida contra mim, ou pelo menos ter-se arrastado pelos tribunais durante anos, enquanto eu permanecia em Roma e via a minha barba ficar grisalha.

 

Na noite do sétimo dia que passámos em Roma, fizemos as malas para voltar para casa e partimos no dia seguinte de manhã cedo.

 

Chegámos à quinta ao fim da tarde, alquebrados e cobertos de pó. Diana saltou imediatamente da carroça e correu de curral em curral beijando e abraçando os seus carneiros e cordeiros preferidos. Meto, que estivera quieto o dia todo, correu imediatamente até à cumeeira. Betesda foi ver todas as asneiras que os escravos domésticos tinham feito na sua ausência e depois, tendo-os censurado superficialmente, foi para o quarto depositar na caixa das jóias as suas aquisições mais recentes.

 

Eu retirei-me para o escritório e perguntei a Arato o que acontecera na minha ausência, que não fora nada de especial. O ribeiro diminuíra ainda mais, coisa que ele me garantiu que era normal para a estação do ano.

 

Eu nem sequer falaria do assunto disse ele se não me parecesse que o poço está com um problema...

 

Que género de problema? perguntei eu.

 

A água está com um sabor estranho. Reparei nisso ontem. Talvez algum gato tenha conseguido passar pelo portão de ferro, ou talvez algum animal extraviado tenha feito um buraco na parede do poço, caindo e afogando-se.

 

Queres dizer que há um animal morto dentro do poço?

 

Suspeito que sim. O gosto da água, como te disse...

 

O que é que fizeste para resolver o problema?

 

Pela forma como ele empinou a cabeça para trás, percebi que estava a falar com excessivo rigor.

 

A primeira coisa a fazer num caso como este é levantar a grelha, fazer descer um balde ou um gancho, e tentar tirar a carcaça. Afinal, os corpos mortos flutuam...

 

Fizeste isso?

 

Fiz. Mas não conseguimos tirar coisa nenhuma. A certa altura, o gancho ficou preso. Foram precisos dois homens para o tirar. Talvez algumas pedras se tenham deslocado. Pode mesmo ser que uma parte considerável da parede se tenha desmoronado. Se assim for, o mau gosto poderá resultar desse desabamento... o animal perdido pode ter sido esmagado ou ter-se afogado, compreendes? Se os danos forem alargados e até pode nem ter havido danos nenhuns pode ser grave. Se tivermos de fazer grandes reparações no poço, podemos ficar impedidos de o utilizar, e com o ribeiro tão baixo...

 

Como é que sabemos se houve danos ou não?

 

Alguém terá de descer ao fundo do poço.

 

Por que é que isso não foi feito ontem? Ou esta manhã? Entretanto, o furão ou a doninha morta, ou o que for, continua a apodrecer e a envenenar a água.

 

Ele entrelaçou as mãos e baixou os olhos.

 

Ontem, na altura em que os nossos esforços com o gancho fracassaram, já estava demasiadamente escuro para mandar alguém lá abaixo. Esta manhã, aproximavam-se nuvens de tempestade vindas do oeste e pareceu-me que era mais importante trazer os fardos de palha do campo norte para dentro do celeiro, para evitar que se molhassem.

 

Ainda havia fardos de palha ao ar livre? Pensei que já tinham sido todos arrumados.

 

Tinham, Senhor, mas há alguns dias eu ordenei aos homens que voltassem a trazer o feno para o Sol. Talvez os fardos que ainda não foram afectados pelo míldio venham a sucumbir, mas pensei que poderíamos evitar que isso acontecesse se expuséssemos o feno à luz quente do Sol.

 

Eu abanei a cabeça, duvidando novamente da análise.

 

E choveu esta manhã? Ele retorceu a boca.

 

Não. Mas as nuvens estavam bastante escuras e ameaçadoras, e ouvimos trovões aqui perto. Mas, mesmo que os escravos não estivessem ocupados com o feno, eu teria hesitado em enviar um homem ao fundo do poço com a ameaça de uma tempestade, tendo em conta o perigo. Sei valorizar os teus escravos, Senhor, e não os desperdiço.

 

Muito bem disse eu sombriamente. Ainda há tempo de mandar alguém ao fundo do poço antes de ficar escuro?

 

Ia precisamente fazer isso quando tu chegaste, Senhor.

 

Fui com Arato até ao poço, onde já estava reunido um grupo de escravos. Eles tinham feito uma espécie de armadura de corda, atando-a depois a uma corda mais comprida. Um dos homens instalar-se-ia na armadura, enquanto os outros o faziam descer.

 

Meto juntou-se a nós sorrindo, corado por ter trepado até à cumeeira e voltado. Quando lhe expliquei o que se passava, ele ofereceu-se imediatamente para descer ao fundo do poço.

 

Não, Meto.

 

Mas porquê, Papá? Tenho o tamanho ideal, sou ágil e não sou pesado.

 

Não sejas tolo, Meto.

 

Mas, Papá, acho que seria interessante.

 

Meto, não sejas ridículo. Baixei a voz. É demasiado perigoso. Nem sequer estou disposto a considerar essa possibilidade. É... Parei a tempo. Quase dizia: É para isso que servem os escravos mas depois percebi como lhe soariam essas palavras.

 

No momento seguinte, apercebi-me do que estava a pensar. Ter-me-ia eu tornado tão insensível relativamente aos homens que me pertenciam? Herdara uma quinta; teria herdado juntamente com ela as atitudes de desprezo de proprietários de escravos como Públio Cláudio ou o falecido Catão? Devem utilizar-se as ferramentas humanas até elas acabarem, diz Catão no seu livro, e depois comprar outras novas. Eu sempre desprezara homens como Crasso, que não davam qualquer valor às vidas dos escravos, mas apenas à sua utilidade. Contudo, pensei eu, dai uma quinta a um homem e vê-lo-eis transformar-se num pequeno Catão; dai-lhe minas e propriedades e navios e ele transformar-se-á, sem sombra de dúvida, num pequeno Crasso. Eu afastara-me de Cícero precisamente porque me parecia que ele se tornara exactamente naquilo que anteriormente desprezava. Mas talvez esse percurso seja inevitável na vida a riqueza torna um homem ganancioso, o êxito torna-o vaidoso e mesmo uma pequena quantidade de poder torna-o descuidado com os outros. Poderia eu dizer que era diferente?

 

Estes pensamentos atravessaram-me o espírito com a rapidez de um relâmpago.

 

Não podes descer ao poço, Meto, porque sou eu próprio que vou descer. As palavras surpreenderam-me quase tanto como a Meto.

 

Oh, Papá, agora quem é que está a ser tolo? protestou ele. Devia ser eu a descer. Sou muito mais jovem e mais flexível. Entretanto, os escravos olhavam para nós, francamente espantados.

 

Arato colocou uma mão em cada um dos nossos ombros e tomou-nos à parte.

 

Não te aconselho a fazer isso, Senhor. É demasiado perigoso. É para isso que servem os escravos. Se te desempenhares dessa tarefa, mais não farás do que confundi-los.

 

Os escravos existem para fazer o que eu lhes disser ou, na minha ausência, o que Meto lhes disser corrigi-o eu. E, enquanto eu estiver no fundo do poço, Meto verá se tu os supervisionas adequadamente, Arato.

 

Ele fez uma careta.

 

Senhor, se ficasses ferido os deuses não permitam tal tragédia! os escravos estariam sujeitos a um castigo terrível. Para seu bem, peço-te que permitas que seja um deles a desempenhar-se dessa tarefa.

 

Não, Arato, já tomei a minha decisão. Não voltes a contradizer-me. Muito bem, como é que eu me encaixo dentro desta armadura?

 

Esperaria eu provar o que quer que fosse com esta aventura? Se queria demonstrar que não era como os outros proprietários de escravos, dificilmente poderia ter escolhido uma maneira mais insensata de o fazer, porque era óbvio que os escravos se sentiam ansiosos e infelizes. Se queria provar a mim próprio que ainda era suficientemente jovem para me confrontar com o perigo sem vacilar, o melhor era ver-me ao espelho e regressar à realidade. Talvez pensasse que podia recuperar o respeito de Meto, mas na verdade estava apenas a evitar uma vez mais a afirmação da sua própria maturidade. Agi com base num impulso e só depois reflecti. Nessa altura, pareceu-me que este era o género de loucura que Catilina poderia ter feito!

 

Com um ar mais sombrio do que nunca, Arato supervisionou a mecânica da operação, testando as cordas e fixando-me a armadura nos ombros. Meto, com um ar desiludido, ficou com pouco que fazer. Os escravos tiraram a grade de ferro do poço e recuaram quando eu subi para o parapeito. Entregaram-me uma tocha. Os escravos formaram uma fila e pegaram na corda, depois foram-na soltando, mão após mão. Enquanto eu descia, passo a passo, a borda do poço foi subindo e o céu foi ficando reduzido a um ponto de luz lá no alto.

 

Não foi tão difícil como eu pensei que seria. Limitei-me a descer pela parede do poço às arrecuas, apoiando cuidadosamente um pé após outro. A corda manteve-se esticada, suportando o meu peso. Por cima de mim, via Arato e Meto espreitarem para baixo, ambos de sobrolho franzido e pestanejando por causa dos pedaços de cinza provenientes da minha tocha.

 

Senhor, tem cuidado! gemia Arato.

 

Sim, Papá, tem cuidado! ecoava Meto.

 

O buraco foi ficando cada vez mais pequeno, até ficar do tamanho de um prato.

 

Mais corda? perguntou Arato.

 

Eu olhei por cima do ombro. Continuava a não conseguir ver a água.

 

Sim, mais corda.

 

Continuei a descer passo a passo e a olhar por cima do ombro, até que finalmente o círculo da água cintilou abaixo de mim, brilhando como fogo líquido nos pontos em que era iluminado pela tocha rósea, e escuro como obsidiana onde estava coberto pela sombra do meu corpo. Pareceu-me avistar qualquer coisa lisa e pálida dentro de água, como uma grande pedra que aparecia pouco acima da superfície. As paredes a toda a volta estavam intactas. Quanto mais me aproximava, mais difícil se me tornava virar suficientemente o pescoço para ver a água.

 

Desci até me encontrar logo acima da superfície da água.

 

Mantenham a corda tensa! pedi eu.

 

Sim, Senhor! gritou Arato, cuja voz ecoou pelo poço. O seu rosto era um ponto negro no meio do pequeno círculo de luz lá no alto.

 

Tentei virar-me, dando pequenos passos até ficar voltado para a água. Quase tinha conseguido, quando o meu pé encontrou uma pedra solta na parede. Com uma pancada na água, as minhas pernas oscilaram para baixo.

 

Os escravos que estavam a segurar a corda não estavam preparados para o súbito puxão. A corda soltou-se por um instante e eu fiquei mergulhado em água até ao pescoço. Depois a corda voltou a ficar tensa, puxando-me os ombros para cima da superfície. A água salpicou-me o rosto. Eu cuspi e tossi.

 

Conseguira manter a tocha acima da água. A luz ígnea incidiu nas paredes de pedras entalhadas e na água que esparrinhava, criando a toda a volta uma mistura de luz e de trevas. Com o braço livre, apalpei à minha volta, procurando alguma coisa a que me agarrar. Havia um grande objecto ao meu lado, dentro de água, rigidamente alojado entre as paredes opostas do poço. Cedeu quando o agarrei, depois começou a balancear-se juntamente comigo. Era frio e carnudo ao toque. Eu estremeci e senti a raiva subir por mim acima.

 

Gritei não foi um grito de horror, mas um uivo cortante, como o de um cão a quem pisam a cauda. Ao ecoar na boca do poço, deve ter parecido medonho. Os escravos ouviram-no e entraram em pânico. A corda sacudiu-me fortemente os ombros e eu comecei a ser içado contra a minha vontade.

 

Gritei-lhes que parassem, mas talvez o poço tivesse retorcido as minhas palavras e eles pensassem que eu estava a pedir ajuda. Agarrei a coisa que estava dentro de água, repugnado mas não assustado. O peso dessa coisa manteve-me em baixo. Os escravos puxaram com mais força, enviando-me uma punhalada quente de dor pelas costas abaixo, mas eu agarrei-me bem à coisa que estava dentro da água. Achei que tinha percebido o que vira, mas tinha de ter a certeza.

 

Os escravos puxaram com tanta força que eu comecei a ser içado para fora da água, levando a coisa comigo. Agarrei-a com ambas as mãos, segurando igualmente a tocha, de maneira que a sua chama oscilava mesmo diante da minha cara. Antes que a agonia que sentia nos ombros me obrigasse a libertar a coisa, deixando aquele peso cair novamente dentro da água, eu tive a certeza do que tinha visto.

 

De algures lá em cima, ouvi Arato gritar:

 

Puxem!

 

Fui içado tão rapidamente, que a tocha me escorregou da mão. Tocou-me no pé e rodopiou a arder para dentro de água, onde expirou com uma explosão de vapor.

 

Puxando e esticando, os escravos içaram-me, como um deus ex machina entrando num palco. Eu andava de um lado para o outro na escuridão, com as pernas soltas e os ombros a bater contra as paredes do poço. Quase não sentia a dor nem os dentes a bater. Tinha a cabeça demasiado cheia da coisa que vira dentro de água.

 

Tratava-se de um corpo. E não tinha cabeça.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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