Biblio VT
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
CONTINUA
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que...
Acompanhemos agora Sarsi, que quer, contra a opinião do Sr. Mário, produzir o calor sem algum gasto dos corpos em atrito até ficarem quentes, teoria que Sarsi prova antes com demonstrações e depois com experimentos. No que diz respeito à demonstração, posso contestar com poucas palavras; pois, interrogando o Sr. Mário, Sarsi mesmo responde em seu lugar, e depois contesta as respostas; assim, se eu afirmar que o Sr. Mário nunca haveria respondido desta forma, Sarsi deve necessariamente silenciar,
E na verdade, em relação à primeira resposta, não posso acreditar que o Sr. Mário afirmasse que para se esquentar é necessário antes que os corpos se rarefaçam, e que, fazendo assim, se despedacem, e que as partes menores se percam, como escreve Sarsi. Desta resposta me parece entender que não aceita o raciocínio do Sr. Mário, e que, sendo necessário considerar nesta operação seja o corpo que produz o calor, seja o corpo que recebe o calor, acredito que ele queira que o corpo que produz o calor seja aquele que diminui; assim, não é o receber mas o dar calor que faz diminuir um corpo.
Como os corpos possam ficar rarefeitos sem separação alguma das partes, e como se desenvolva esta teoria da rarefação e condensação, teoria muito costumeira em Sarsi, como parece, ele haveria gostado de tê-la explicado bem mais, sendo para mim uma das mais difíceis e ocultas leis naturais.
É claro que o Sr. Mário não teria dado assim a segunda resposta, isto é, que seja necessário um gasto de partes de tal modo que antes se esquentem as partes menores, mais próprias para se esquentarem por serem sutis, e depois, por meio delas, seja esquentado o restante do corpo; porque assim a diminuição verificar-se-ia também no corpo que deve ser esquentado, e o Sr. Mário atribui esta qualidade ao corpo que deve esquentar. Devemos, porém, advertir que muitas vezes acontece ser o mesmo corpo aquele que produz o calor e aquele que o recebe; por exemplo, batendo em um prego, suas partes, fazendo atrito, produzem calor, mas é o mesmo prego que se esquenta a si mesmo. Aquilo que eu quis dizer até aqui é que o gasto das partes depende do ato de produzir calor e não de receber calor, como explicarei mais abaixo. Examinemos, por enquanto, a experiência que Sarsi acredita adequada para a demonstração, isto é, produzir calor com o atrito sem algum gasto das partes.
42. Gosto de tomar exemplos da experiência: o que aconteceria se um corpo, sem perda alguma de partes, se tornasse quente por causa do movimento? Havendo eu pesado um pedacinho de cobre, tendo tirado qualquer ferrugem ou impureza para que não aderisse a ele, por acaso, algum pó, com uma pequena balança exatíssima de banqueiro, com pesos bem pequenos (até quingentésima décima segunda parte de uma onça) e, havendo observado com cuidado o peso, transformei a marteladas o cobre em lâmina. O cobre, com as marteladas, esquentou tanto que por duas ou três vezes não podia ser pego na mão. Tendo-se esquentado muitas vezes, quis experimentar com a mesma balança e os mesmos pesos se não havia diminuído de peso; mas percebi que permanecera com o peso anterior; logo, aquele cobre esquentou por atrito, sem algum gasto de suas partes, o que Galileu nega.
Havia já escutado que coisas semelhantes acontecem com os encapadores de livros quando, por longo tempo e com muita força, comprimem na prensa os conjuntos de papel: com efeito, alguns deles experimentaram e viram que aqueles papéis pesavam depois o mesmo que antes, e que todavia permaneciam muito quentes pelos golpes recebidos, até quase queimar. A esta altura, se alguém afirmar que perdemos, é verdade, algumas pequenas partes, mas tão pequenas que quase não são percebidas por uma balança mesmo a mais pequena, eu perguntaria, então, de onde alguém ficou sabendo desta perda, porque não vejo de que outra forma poderei examinar o problema cuidadosamente. Por outro lado, se esta perda de partes é tão pequena que não pode ser percebida pelo sentido, como gerou tanto calor? Ademais, quando o ferro é alisado com uma lixa esquenta, todavia menos ou com certeza não mais do que quando é fortemente batido com um martelo; mesmo assim, a dispersão das partes é muito maior no caso do uso de lixa que no caso de marteladas.
Que Sarsi com uma balança precisa não haja encontrado diminuição de peso em um pequeno pedaço de cobre batido e esquentado mais vezes, eu acredito; mas não que por causa disto o pedaço de cobre não diminuiu, porque pode muito bem acontecer que aquele cobre tenha diminuído tão pouco a ponto de não ser perceptível com balança alguma. E antes, pergunto a Sarsi se, havendo pesado um botão de prata e depois havendo-o banhado em ouro, pesando-o novamente, acredita que o aumento seja notável e sensível. É necessário dizer não, pois que percebemos o ouro tomar-se tão sutil que mesmo no ar muito parado segura-se mui vagarosamente e muito vagarosamente cai; mesmo assim, com tais folhas pode-se dourar metais. Ademais, este mesmo botão poderá ser usado dois ou três meses, antes que o banho de ouro se gaste; e finalmente gasta-se, é claro, um pouco cada dia, até cada hora. Além disso, pegue ele uma bola de âmbar, musgo ou outras matérias perfumadas: afirmo que, usando-as no corpo por uns quinze dias, ela encherá de perfume mil salas e mil estradas, em suma, qualquer lugar onde estiver, mas isto acontecerá com diminuição da matéria, porque de outra forma não se espalharia o cheiro; porém, voltando a pesá-la, depois de algum tempo, não será encontrada nenhuma diminuição sensível. Eis, então, encontradas para uso de Sarsi, diminuições insensíveis de peso, operadas durante meses contínuos, que é muito mais tempo que um oitavo de hora que gastou martelando seu pedacinho de cobre. E é muito mais precisa uma balança de experimentador que uma balança filosófica! Acrescento, além disso, que pode muito bem acontecer que a matéria, que diminuindo produz calor, seja ainda mais sutil que a substância perfumada, pois esta é fechada em vidros e metais para não evaporar, mas o calor passa através de qualquer corpo.
Sarsi apresenta aqui uma hipótese: Se o movimento da balança não é suficiente para nos mostrar um gasto tão pequeno, como poderíeis tê-lo conhecido? A objeção é muito inteligente, mas não tanto que um pouco de lógica natural não seja suficiente para dar uma solução: e eis o desenvolvimento da questão. Sr. Sarsi, em relação a alguns corpos que se friccionam um com o outro, é certo que alguns não se gastam absolutamente, outros gastam-se enorme e sensivelmente, outros gastam-se, mas insensivelmente. Em relação àqueles que esfregando-se não se gastam nada, como, por exemplo, dois espelhos muito lisos, o próprio sentido nos mostra que não se esquentam; em relação àqueles que se gastam bastante, como, por exemplo, o ferro limando-se, temos certeza de que se esquenta; então, em relação àqueles dos quais temos dúvidas se ao friccionar-se se gastam ou não, se encontrarmos, por meio dos sentidos, que se esquentam, devemos então acreditar e afirmar que se gastam, podendo afirmar que só não se gastam aqueles que não se esquentam.
Sobre aquilo que afirmei até agora, quero, antes de prosseguir, acrescentar, como ensinamento para Sarsi, que a afirmação: Este corpo, colocado na balança, não resultou haver diminuído seu peso, então, não se gastou deforma alguma é uma proposição muito falsa, porque pode acontecer que se gaste um corpo cujo peso não só não diminua mas, pelo contrário, aumente; o que acontece sempre quando o corpo que se gasta for mais leve que o meio onde está sendo pesado; por exemplo, pode acontecer que um pedaço de madeira, por possuir muitos nós e muitas raízes, colocado na água, afunde, e supondo que pese quatro onças, e que cortando fora não a parte dos nós nem da raiz, mas a parte mais rala e por isto menos pesada que a água que sustentava todo aquele volume, pode acontecer, afirmo eu, que o restante pese mais que a água necessária para sustentá-lo. A mesma coisa pode acontecer quando ao limar o ferro friccionando dois ferros ou duas pedras ou duas madeiras, desprenda-se alguma partícula menos pesada que o ar, a qual, se fosse tirada, deixaria aquele corpo mais pesado que antes. E que tudo aquilo que estou relatando tenha alguma probabilidade e não uma simples fuga estratégica, deixo ao adversário a tarefa de prová-la. Observe-o, V. E. Ilustríssima, quebrando vidros e pedras ou alguma outra matéria, e V. E. poderá perceber, em cada parte quebrada, sair uma fumaça bem visível que sobe com o ar: argumento que demonstra como é mais leve que ele. Observei isto antes no vidro, enquanto eu ia arredondando-o com uma chave ou outro pedaço de ferro, onde, além dos muitos pedaços que saltam fora em diversas grandezas, caindo porém todos no chão, sobe sempre uma fumaça; e a mesma coisa se vê quebrando uma pedra; e, além daquilo que a vista nos mostra evidente, o olfato também nos dá um indício muito claro de que, além da fumaça, sobem ao ar também outras partes mais sutis e por isso invisíveis, sulfúreas e carboníferas, que se tornam manifestas a nós por causa do cheiro.
Atente agora Sarsi como seu raciocínio é superficial e muito pouco profundo. Nem pense ele poder chegar a algum resultado falando-nos de limitações, distinções, de acidentes, vontade própria, mediatismo primário, secundário ou outras superficialidades, porque garanto-lhe que, em vez de sustentar só um erro, cometerá cem mais graves, produzindo mais elementos falsos; mais falsos ainda do que o que me falta considerar para findar esta pequena parte. Com efeito, ele se admira de que possa acontecer que, resultando imperceptível na balança aquilo que se gasta, possa apesar disso produzir calor; depois acrescenta que, a propósito de um ferro lixado, grande parte dele gasta-se, e gasta-se muito mais quando se bate com o martelo, mas sabemos que esquenta muito mais lixando-o que martelando-o.
É muito vã esta discussão, Sr. Sarsi, isto é, querer medir a quantidade de uma coisa que não tem peso algum, coisa que é bem leve e que sobe com o ar rapidamente; e mesmo que também aquele que se converte em matéria quente, durante um esfregamento, fosse uma parte do mesmo corpo sólido, não deveria alguém admirar-se de que uma pequena quantidade daquele corpo possa rarefazer-se e ampliar-se em um espaço imenso, considerando que mesmo um pequeno pedaço de madeira pode transformar-se em uma grande massa de matéria quente, cuja chama visível é a menor parte, permanecendo muito maior a parte insensível à vista, mas bem sensível ao tato. No que diz respeito ao outro ponto, poderia ter certa consistência a questão apresentada, se o Sr. Mário tivesse declarado que todo aquele ferro que se gasta ao se lixar se transformasse em matéria quente, porque assim pareceria razoável que se esquentasse muito mais o ferro gasto pela lixa que o martelado: mas não é o pó lixado que esquenta, pelo contrário, é outra substância muito mais sutil.
43. Mas continuemos: Eu acredito que seja muito importante a qualidade dos corpos esfregados em relação a uma possibilidade maior ou menor de esquentamento, isto é, se são mais quentes ou mais frios, não sendo fácil estabelecer se tudo isto depende de muitas outras razões. Com efeito, se você esfregar entre si ou com outro pedaço de lenha dois pedacinhos de bambu, corpos muito leves e muito pouco compactos, produzirá fogo em breve tempo: o mesmo não acontecerá com outros pedaços de madeira, mais duros e mais compactos, mesmo que sejam friccionados mais tempo e com mais força até quase se consumirem. Sêneca afirma: "O fogo surge com mais facilidade do atrito de corpos quentes", declarando serem os relâmpagos muito mais numerosos durante o verão, justamente por causa do calor. Ademais, o pó de ferro jogado na chama arde, o que não acontece com pó de mármore, qualquer que seja. Por isso, se existirem no ar muitas exalações quentes, e houver atrito do ar com algum movimento violento, não percebo porque o ar não deveria esquentar e até pegar fogo; com efeito, quando o ar é muito denso e seco, e muito quente, é mais apto a pegar fogo.
Sarsi, na hora que parece produzir melhores e mais cultas explicações sobre a difícil matéria tratada, acaba, em vez, nos apresentando velhas teorias que não se encontram em contraste com as do Sr. Mário. Pois a afirmação de que contribui muito para a maior ou menor possibilidade do esquentar de um corpo ser da natureza quente ou fria, e que muitas outras mais são as causas ainda ocultas deste fenômeno, acredito eu também: mas não consigo extrair nada disso porque a segunda parte de sua teoria é oculta demais, e a primeira já muito pesquisada e conhecida, pois Sarsi não afirma outra coisa a não ser que os corpos que estão mais aptos a esquentar esquentam mais, acontecendo o contrário com os outros. A mesma coisa podemos dizer sobre a fricção de algum pedaço de lenha, isto é, que os corpos mais leves e os menos compactos esquentam com mais facilidade que os mais duros e densos, mesmo que seja maior a fricção destes últimos; eu também acredito em tudo isto, mas não entendo como isto possa prejudicar o Sr. Mário, que nunca afirmou o contrário. Não é de agora o meu conhecimento de que um pedaço de trapo pega fogo mais rapidamente que um pedaço de ferro, mesmo que um se encontre num ambiente não favorável e o outro sim.
Em relação àquilo que ele acrescenta e quer fortalecer com o testemunho de Sêneca, isto é, que no verão o ar esteja prenhe de muitas exalações secas e por isto produza muitos relâmpagos, eu concordo; mas duvido muito sobre a forma de produção destes relâmpagos, isto é, se isto acontece pelo atrito do ar com algum movimento. Eu haveria concordado com aquilo que Sarsi relata, se antes ele me tivesse demonstrado não existir na natureza algum outro modo de produzir fogo que estes dois, isto é, ou aproximar a matéria combustível a um fogo já aceso, como quando se acende uma tocha com uma vela, ou com o atrito de dois corpos ainda apagados. Mas existem outros modos, como, por exemplo, pelo reflexo dos raios solares em um espelho côncavo, ou pela refração deles em uma bola de cristal ou de água, tendo-se observado também, alguma vez, pegar fogo nas ruas, por causa do excessivo calor, palhas e outros corpos sutis, sem nenhuma fricção ou movimento, pelo contrário, justamente quando o ar está bem parado, e que, se fosse agitado pelo vento, não haveria fogo. Então, porque, se já vejo que existem outros modos de produzir fogo, não devo considerar que existam ainda outras probabilidades de produzir os relâmpagos? Por que devo atribuir tudo isto a um movimento violento, se percebo, primeiro, que sem fricção de corpos sólidos, os quais não existem nas nuvens, não há fogo algum, e, além disso, não se percebe movimento algum no ar ou entre as nuvens quando a frequência dos relâmpagos é maior? Penso que a afirmação de Sarsi não é mais verdadeira que a afirmação daqueles filósofos que atribuem o grande barulho dos trovões ao rebentar-se ou ao chocar-se das nuvens; todavia, nos relâmpagos e nos trovões não percebemos movimento algum das nuvens, nem mudança da própria figura, que deveria ser enorme num chocar-se ou rebentar-se. Deixo até de lado que estes mesmos filósofos, quando falarem depois a respeito do som, afirmarão que sua produção é devida à percussão de corpos duros, e dirão que por isso nem a lã nem os trapos produzem barulho quando batidos com força; mas depois, por necessidade, afirmarão que a neblina e as nuvens, ao se chocarem, produzirão o maior de todos os barulhos. Que filosofia amável e benigna que com tanta generosidade e prazer se acomoda aos nossos desejos e às nossas necessidades!
44. Vamos agora em frente, examinando as experiências da flecha atirada com arco e da bola de chumbo atirada com a balista, que pegaram fogo e foram destruídas no ar, segundo confirma a autoridade de Aristóteles, de muitos grandes poetas e de outros filósofos e historiadores.
Mesmo tentando Galileu ridicularizar e iludir o exemplo de Aristóteles a respeito da flecha, cujo ferro torna-se quente por causa do movimento, não vai conseguir. Com efeito, não só Aristóteles o afirma, mas inúmeros homens de grande nome nos relataram exemplos parecidos (sem dúvida a respeito de coisas presenciadas por eles ou recebidas pelos que presenciaram). Quer Galileu que agora eu passe a dar o nome de alguns entre os muitos que afirmaram tudo isto com elegância e raciocínio? Iniciarei pelos poetas, limitando meu relato àqueles cuja autoridade em ciências naturais é a melhor testemunha em questão de grande importância e de muito peso.
Ovídio, perito não só em poesia mas também em matemática e filosofia, afirma que não somente as flechas mas também as bolas de chumbo jogadas com balistas pegaram muitas vezes fogo durante o trajeto. Com efeito, escreve ele nas Metamorfoses: "Não pega fogo de forma diferente de como acontece quando a balista joga o chumbo, ele esquenta no ar e os fogos que não teve os encontra nas nuvens”. Encontramos as mesmas afirmações em Lucano, famoso pela inteligência e sabedoria: "Voam de lá fagulhas e pedras, e soltas no espaço, e dissolvidas com corpo quente bolas de chumbo". E Lucrécio, não menos filósofo que poeta, não afirma o mesmo em numerosos lugares? "... a bola de chumbo, que deve rolar por longo espaço, derrete-se" e em outro lugar: "Não acontece de forma diferente quando a bola de chumbo esquenta durante o caminho, quando pega fogo no ar, deixando cair muitas massas frias". A mesma coisa afirma Estácio, dizendo: "As balas destinadas a arder pelo céu". O que dizer depois de Virgílio, o maior dos poetas? Não confirma tudo isto duas vezes com muita eloquência? Descrevendo os jogos troianos, assim fala a respeito de Aceste: "Com efeito, voando nas nuvens líquidas, a flecha pegou fogo e marcou o caminho com chamas, desaparecendo depois, desmanchada pelos ventos leves"; e diz, alhures, a respeito de Mecéncio: "Mecêncio, tendo deposto as armas, viradas três vezes ao redor da cabeça as tiras, jogou a funda sibilante e, com o chumbo derretido, abriu a cabeça daquele que se encontrava na sua frente e o jogou estendido no chão".
Que um corpo mais duro possa ser gasto pela fricção de um corpo mais mole é provado pela água, que com gotas continuadas escava também pedras duríssimas, e as vagas, que jogando-se contra as pedras as afinam e as alisam de forma maravilhosa; experimentamos tudo isto também com os cantos das torres e das casas que ficam corrompidos pelo vento.
Então, se o mesmo ar, quando se condensa e se movimenta com grande força, pode gastar até os corpos mais duros, pode também ser gasto por corpos moles. Com certeza, o assobio que se escuta agitando afunda é prova de ar condensado; talvez foi isto que Estácio quis significar, afirmando que o ar incluído nas voltas da funda é comprimido: "... com quantas voltas o soldado armado de funda fere e fecha de todo lado o ar incluído". A mesma coisa é provada pelo granizo, que quanto mais cai do alto tanto mais cai miúdo e redondo; o mesmo acontece com gotas de chuva que são maiores quando caem de lugares baixos, menores quando caem de lugares altos, pois se gastam no ar.
É muito falso que eu ou o Sr. Mário ridicularizamos a experiência de Aristóteles, não se encontrando no texto do Sr. Mário gozação alguma, nem outra coisa, porém não acreditamos que uma flecha fria, lançada com o arco, possa pegar fogo; pelo contrário, acreditamos que, lançando-a já em chama, esfrie mais ligeiro que conservando-a parada: e isto não pode ser chamado ridicularizar, mas expor a própria teoria. Referente àquilo que ele acrescenta, isto é, que não nos foi possível demonstrar ser falsa esta experiência, porque não só Aristóteles mas muitos outros grandes homens a confirmaram, respondendo que se para demonstrar uma teoria aristotélica como verdadeira é necessário esperar que nenhum outro a tenha escrito, nem eu nem o Sr. Mário nem o mundo inteiro vão conseguir isto, pois aqueles que escreveram tais coisas acreditaram nela: porém, parece-me grande novidade que, a respeito de um acontecimento, alguém prefira apresentar hipóteses humanas em vez de experiências realizadas.
Sr. Sarsi, apresentar tantas testemunhas não adianta nada, porque não negamos nunca que muitos hajam escrito e acreditado em tais coisas, mas simplesmente afirmamos que elas eram falsas; e a respeito da autoridade em relação à falsidade ou não do fenômeno, tanto vale a vossa somente como aquela de mil outros. Contestais as experiências que produzimos com a autoridade de muitos poetas.
Eu vos respondo que, se aqueles poetas tivessem estado presentes às nossas experiências, mudariam de opinião e sem hesitar afirmariam ter escrito parabolicamente ou confessariam ter-se enganado. Mas como não é mais possível ter a presença dos poetas, que, acredito, aceitariam nossas experiências, pegai atiradores de arco e jogadores de bolas de chumbo e procurai convencê-los, apresentando tantas autoridades, que as flechas e o chumbo atirados por eles pegam fogo e derretem no ar; assim podereis esclarecer melhor a força da autoridade humana sobre os efeitos da natureza surda e inexorável aos nossos desejos. Poderíeis responder que não existem mais Acestes e Mecêncios ou companheiros tão dignos; mas ficarei satisfeito que, não com um simples arco manual, mas com uma sólida balista mecânica que não poderia ser dobrada nem pela força de trinta Mecêncios, atirasse uma flecha ou dez ou cem; e poderemos observar se, não digo que o ferro de alguma possa pegar fogo ou possa pegar sua haste, ao menos as suas penas fiquem chamuscadas, perdendo a discussão e também o vosso favor, que eu estimo enormemente. Vamos, Sr. Sarsi, terminar, e não acrediteis que eu seja contrário a ceder à autoridade e ao testemunho de tantos poetas maravilhosos, e que não acrediteis ter acontecido alguma vez que as flechas e os metais pegaram fogo; mas afirmo que a causa destas maravilhas é muito diferente daquela apresentada pelos filósofos, que atribuem às exalações e atritos do ar e outras fantasias semelhantes que são todas erradas. Quereis conhecer a verdadeira razão? Escutai o poeta, não inferior a ninguém, relatar o encontro de Rogério e Mandricardo, com o choque das próprias lanças: As hastes pegaram fogo até o céu escreve Turpin, com relato verdadeiro, assim que dois ou três caíram acesos para baixo que haviam subido à esfera do fogo.
Talvez o grande Ariosto não desse motivo de dúvida a respeito desta verdade, que ela reforça com o testemunho de Turpino, que todo mundo conhece como honesto e digno de confiança.
Mas deixemos de lado os poetas e suas hipóteses, e voltemos àqueles que consideram o atrito do ar causa deste fenômeno. Esta opinião, considero-a falsa; e raciocino sobre aquilo que vós apresentais, querendo demonstrar como os corpos muito duros , por causa do atrito com corpos moles, podem gastar-se, como o exemplo da água e do vento que, roendo e gastando os centros externos das torres resistentíssimas, e gotejando a água sempre no mesmo lugar, escavam o mármore e as pedras duras. Aceito tudo isto por ser verdade; e acrescento, além disso, não duvidar de que as flechas e as bolas de chumbo e também de pedra e de ferro, percorrendo, lançadas por artilharia, o ar com grande celeridade, podem gastar-se mais que as pedras do mar e das torres batidas pelas águas e pelos ventos.
Se para produzir uma diminuição perceptível nas pedras são necessários duzentos ou trezentos anos, para gastar flechas e bolas seria suficiente que elas permanecessem no ar dois ou três meses somente: mas não entendo como pode produzir efeito notável o tempo necessário para movimentar a mão para enviar um projétil. Ademais, torna-se difícil aplicar vossa teoria, verdadeiramente inteligente, a duas ou três coisas: uma, é que nós estamos falando do derreter-se por meio de calor, e não gastar-se por meio de batidas; outra coisa é que, no vosso caso, precisais que não seja um corpo sólido mas um corpo mole e sutil o que se gaste, isto é, o ar, que é aquele que depois vai pegar fogo. Mas as experiências por vós apresentadas provam que as pedras e não o ar e a água recebem o atrito; na verdade, acredito que o ar e a água podem bater, se o souberem fazer, mas nem por isso ficarão mais sutis. Portanto, chego ã conclusão de que é de muito pouca utilidade a discussão do exemplo do granizo e das gotas de água; aceito que elas, caindo do alto, diminuam; aceito-o, repito-o, não porque não acredite que possa ser verdadeiro o contrário daquilo que afirmais, mas porque não vejo o que tem a ver com o nosso caso.
Poderei aceitar, para vos favorecer, que a funda, com seus assobios e estouros, contenha ar condensado em seu movimento; porém, sabei que isto será uma contradição e um desastre para vossa teoria: pois até aqui haveis afirmado que o atrito é produzido por causa do movimento excessivo, formando-se em seguida a rarefação e enfim o fogo do ar, e agora, para demonstrar a razão do assobio da balista, e para dar um sentido às palavras muito obscuras de Estácio, falais em condensação; assim, aquele mesmo movimento que origina a diminuição e o fogo torna mais ralo o ar e, para ajudar Estácio e os atiradores de balista, o condensa. Mas escutemos os testemunhos históricos.
45. Mas para que o testemunho dos poetas, mesmo pelo próprio nome de poeta, não pareça suspeito a alguém (mesmo sabendo que eles falaram segundo a forma comum de pensar), passo a outros homens de grande autoridade e confiança. Suida, com efeito, nas Histórias, na parte "peridinuntes", conta: "Os babilônios, fazendo girar os ovos colocados na funda, bem entendidos em tudo aquilo que diz respeito à alimentação primitiva e à caça, e bem exercitados nos atos necessários à vida solitária, conseguiram cozinhar, por meio daquele movimento, um ovo cru". Assim afirma ele.
Agora, se alguém me pedir a causa de acontecimentos tão extraordinários, escute o filósofo Sêneca, que entre outros é aprovado por Galileu, quando raciocina filosoficamente a respeito de tudo isso. Com efeito, Sêneca, seguindo o parecer de Posidônio, afirma: "Qualquer coisa no ar diminui, seca e esquenta". E, depois, segundo sua própria opinião: "O movimento do ar não é constante mas todas as vezes que se esquenta mais por causa do movimento é impulsionado a correr". Mais abertamente afirma isto alhures, quando, procurando as causas do relâmpago, fornece esta explicação: "O relâmpago verifica-se quando o ar rarefeito transforma-se em fogo nas nuvens e não encontra a força de ir para longe" (escute, Galileu, o que segue e reflita a propósito): "Você não se admirará, acredito, se o movimento torna o ar rarefeito e a rarefação o faz pegar fogo; desta forma derrete-se a bola jogada pela funda e, pelo esfregamento do ar, origina-se o fogo ".
Não sei se isto podia ser relatado de forma mais eloquente e mais clara. Então, quem queira prestar fé aos melhores poetas ou aos filósofos, veja, não importa quem você seja e duvide a respeito desta matéria, que o ar pode gastar-se com o movimento e também esquentar tanto que por causa deste calor derreta até o chumbo. Com efeito, quem poderia pensar que homens, entre os mais eruditos, quando falam a respeito de coisas que na prática militar eram de uso cotidiano, hajam querido com tanta singularidade e vergonha mentir? Eu não sou um que consegue marcar os sábios com tanta desonra.
Não posso evitar admirar-me novamente de que Sarsi insistia em provar com testemunhos aquilo que também posso verificar com experimentos. Os testemunhos são examinados em coisas duvidosas passadas e que não são mais atuais, e não em coisas que duram até hoje; é necessário que o juiz procure através de testemunhos saber se é verdade que ontem Pedro feriu João, e não se João está ferido, porque isto ele pode verificar e ver com os próprios olhos. Mas eu afirmo que também nas conclusões, nas quais não se pudesse chegar a uma investigação, eu não daria maior importância ao raciocínio dos muitos em vez dos poucos, porque muito bem sei que o número daqueles que, nas coisas difíceis, raciocinam bem é muito menor do que aqueles que raciocinam mal. Se raciocinar sobre um problema difícil fosse a mesma coisa que carregar pesos, então muitos cavalos carregariam mais sacos de trigo que um cavalo só, e eu concordaria mesmo que a opinião de muitos valesse mais do que a de poucos; mas o raciocinar é como o correr, e não como o carregar. Assim, um cavalo de corrida sozinho correrá sempre mais do que cem cavalos frisões. Por isso, quando Sarsi me apresenta tanta multidão de testemunhos, não me parece reforçar muito suas teorias, pelo contrário, parece nobilitar a teoria do Sr. Mário e minha, mostrando que nós raciocinamos melhor que muitos outros homens bem acreditados.
Se Sarsi quer que eu acredite em Suida, isto é, que os babilônios cozinhassem os ovos movimentando-os rapidamente com a funda, eu acreditarei; mas afirmarei que a causa deste fenômeno é muito diferente da que foi imaginada, e demonstrarei a verdade assim: "Se nós não conseguimos efetuar alguma coisa que os outros conseguiram efetuar, significa que nos faltou aquilo que originou o sucesso dos outros, e se nos falta só uma coisa torna-se óbvio que aquela coisa é a causa do fenômeno. Mas não faltam ovos para nós, nem fundas, nem homens fortes que as façam girar, e os ovos não cozinham, pelo contrário, se estiverem quentes esfriam rapidamente; e pois que não nos falta outra coisa a não ser a Babilônia, então ser babilônio é a causa do cozinhar os ovos, e não o atrito do ar", segundo aquilo que eu queria provar. É possível que Sarsi, correndo a cavalo, nunca haja observado quanta brisa sopra em sua face por causa da contínua mudança de ar? E se o tiver percebido, acreditará em coisas acontecidas dois mil anos atrás, na Babilônia, e referidas por outros, do que em coisas presentes que ele mesmo pode comprovar? Peço a V. E. Ilustríssima que faça ver uma vez a Sarsi, em pleno verão, congelar o vinho através de um movimento bem rápido, sem cujo movimento ele não o faria de outra maneira.
Quais possam ser as razões de Sêneca e dos outros para relatar aquele fenômeno que é falso, deixo o senhor mesmo julgá-lo.
Ao convite que Sarsi me faz para escutar com cuidado aquilo que Sêneca conclui, perguntando-me se era possível explicar alguma coisa mais clara e sutilmente, eu concordo plenamente e confirmo que não era possível contar, com tanta habilidade e clareza, uma mentira. Mas não gostaria que ele procurasse, como está fazendo, colocar-me, por educação, na necessidade de acreditar naquilo que reputo falso chamando de mentirosos aqueles homens que são a nata dos eruditos e, o que é mais perigoso, soldados valorosos; porque eu tenho certeza de que eles acreditavam estar dizendo a verdade, e assim suas mentiras não são uma desonra; e enquanto Sarsi afirma não querer ser daqueles que ofendem homens sábios não acreditando neles e contradizendo-lhes as palavras, eu afirmo não querer ser daqueles tão mal agradecidos para com a natureza e para com Deus, que, havendo-me eles dado sentidos e raciocínio, eu queira pospor dons tão grandes às falsidades de um homem e, às cegas e estupidamente, crer naquilo que se ouve contar, e tornar serva a liberdade de meu raciocínio àquele que pode errar tanto quanto eu.
46. Não deixarei de lado aquilo que Galileu poderia apresentar contra isto: poderia dizer, com efeito, que nunca força de fundas ou arcos foi tanta de igualar o impulso de uma espingarda ou de uma máquina para destruir muralhas: por isso, se as bolas Jogadas por estas máquinas não se derretem mesmo tendo sido acrescentado o fogo da pólvora, que já deveria ser suficiente para fazê-las derreter, com muito mais razão podemos pensar que os exemplos relatados sejam invenções de poetas. Mas se Galileu pode com facilidade contestar assim, não poderá provar suas palavras com outra tanta facilidade. Pelo contrário, sei muito bem que as bolas de chumbo jogadas por bombardas derretem-se no ar. Homero Tortora, moderno e cuidadoso escritor de assuntos franceses, afirma que uma vez foi inútil para destruir os muros a grande força das bolas jogadas pelas máquinas de guerra, porque, sendo antes pequenas e de ferro, depois aumentadas com chumbo derretido, tiveram efeitos maiores: "Explodindo elas contra os muros, pois o chumbo derretia no ar, só alcançava o muro a pequena bola interna de ferro, grande quanto uma avelã". Ademais, eu mesmo escutei, pela boca daqueles que o haviam presenciado (homens de muita confiança), afirmarem que uma pequena bola de chumbo atirada por uma espingarda no braço de outro foi tirada não mais deforma redonda mas oval, semelhante ao fruto do carvalho. Isto pode ser comprovado também com exemplos diários, pois as bolas de chumbo atiradas inutilmente pela espingarda e misturadas entre as roupas dos inimigos não guardavam a forma primitiva mas eram encontradas amassadas, em pedaços, e destruídas. Isto prova que, tornando-se mais ralas por causa do calor, foram atiradas em vão.
Sarsi continua, segundo o estilo usual, querendo provar com os relatos alheios aquilo que acontece hoje em dia e que pode ser observado por experiência; e como para dar autoridade àqueles arqueiros encontrou homens importantes, assim, para fazer acreditar no derretimento das modernas bolas de espingarda e de artilharia, encontrou um historiador moderno não menos digno de fé e de autoridade como qualquer outro antigo. Não é indigno a um historiador apresentar de um efeito natural verdadeiro uma razão não verdadeira, porque ao historiador pertence o efeito, enquanto a causa pertence ao filósofo. Assim, acreditando eu no Sr. Homero Tortora, a propósito das bolas de artilharia que, por terem sido revestidas com chumbo, produziram pouco efeito ao destruir os muros inimigos, ousarei não aceitar a explicação que ele, tirando-a da filosofia comum, nos apresentou. Espero que o próprio historiador, como até agora acreditou aquele que encontrou escrito por tantos homens importantes, cuja autoridade foi suficiente para fazer acreditar em todas as palavras deles, assim escutando meus raciocínios, mude a opinião ou ao menos queira verificar com experimentos qual seja a verdade. Acredito, então, no Sr. Tortora, quando afirma que as bolas de ferro cobertas de chumbo, nas artilharias de Corbel, não tiveram resultado, e que o interior delas fora encontrado sem o revestimento de chumbo; até aqui chega o campo do historiador. Não acredito, porém, na explicação filosófica, isto é, que o chumbo se derretesse e que por isto fosse encontrado só o interior de ferro; mas acredito que, chegando com aquela força extrema que o canhão lhe proporciona para superar o muro, a cobertura de chumbo naquela parte que permanecia comprimida entre o muro externo e o interior da bola de ferro se amassasse e se quebrasse, e que acontecesse o mesmo ou pouco diversamente com a parte oposta, amassando-se a parte sobre o ferro. Assim, o chumbo todo, desfigurado e estragado, se dispersasse por todos os lados, chumbo que, sujado pelos detritos do muro, podia ser encontrado com muita dificuldade, e às vezes não era procurado com todo aquele cuidado necessário a quem quisesse pesquisar se ele fora excluído ou simplesmente quebrado; e o chumbo servindo quase de proteção para a bola de ferro, logo depois de dar e receber uma batida menor, ingratamente era estragado e destruído, não se encontrando mais nem o cadáver. Sabendo que o Sr. Homero se acha em Roma, se por acaso ele se encontrar com V. E. Ilustríssima, pediria a V. E. ler-lhe aquele pouco que escrevi a respeito e aquilo que escreverei em seguida; porque gostaria muito de ter a estima de uma pessoa tão importante na nossa idade.
Afirmo, então, que se observarmos em quanto tempo a bola vai do canhão ao muro, e aquilo que é necessário operar neste espaço de tempo para fazer derreter o chumbo, será de admirar-se que alguém queira persistir na opinião de que isto possa acontecer. O tempo é muito menor que uma pulsação, tempo necessário para produzir o atrito do ar, acender o fogo, derreter o chumbo; mas, se colocarmos a mesma bola de chumbo no meio de um forno ardente, ela não se derreterá nem em vinte pulsações: será ofício de Sarsi, então, persuadir alguém de que o ar em atrito e aceso possui um calor enormemente maior do que o do forno. Ademais, a experiência nos mostra que uma bola de cera atirada por uma espingarda pode passar através de uma tábua, demonstrando que ela não se derrete no ar: será necessário, então, que Sarsi mesmo explique porque o chumbo, derrete e a cera não. Ademais, se o chumbo derrete, chegando a algum lugar, com certeza terá pouco efeito; assim, me admiro muito de que estes artilheiros não hajam ainda pensado em fazer bolas de ferro que não se derretam com tanta facilidade; mas continuam atirando com bolas de chumbo, cujo interior de ferro só resiste, e naquelas que resistem encontra-se uma profunda marca mostrando que a bola está amassada, mas não derretida.
Nas aves mortas com espingarda usando chumbinhos, encontramos grãos de chumbo inalterados; toca a Sarsi demonstrar como se derretem os chumbos de quinze ou vinte libras cada e não aqueles que são a trigésima milésima parte de uma libra.
Que todos os dias se encontrem entre a roupa dos inimigos bolas de formas diversas, poderei acreditar, sendo que algumas se amassam na armadura, permanecendo assim entre a roupa; outras podem haver-se chocado de relance com alguma coisa e por isso podem ter adquirido uma forma alongada, atingindo sem força a roupa de um outro, permanecendo ali sem machucá-lo; em suma, numa pequena batalha podem acontecer mil acidentes, mas não o derretimento das bolas; porque, se existisse derretimento, seria necessário que o chumbo, perdendo-se em gotas menores que a água (como Sarsi bem sabe), caindo de lugares altíssimos e com grande velocidade, deveria perder-se completamente assim nenhuma parte seria encontrada. Deixo de lado a outra conclusão de que a flecha e a bola, acompanhadas pelo ar ardente, deveriam, especialmente durante a noite, mostrar uma linha brilhante como a de um foguete, exatamente da forma que Virgílio descreve a flecha de Alceste, que marcou todo o seu caminho com chamas; todavia, não se percebe nada disso a não ser poeticamente, apesar de os outros acidentes noturnos, como a luz de estrelas cadentes, serem facilmente percebidos pelo grande brilho.
47. Não vemos isto acontecer diariamente. Na realidade, nem os autores por nós lembrados afirmaram que todas as vezes que a funda lança o chumbo este costuma derreter pelo movimento, mas simplesmente que isto havia acontecido não uma única vez; e por esta razão esta coisa tão insólita quase foi considerada como um milagre. Nós, mais acima, falamos que para gerar fogo por meio do atrito do ar é necessário grande quantidade de exalações do mesmo ar. Assim, acontece não raramente nos cemitérios durante as noites de verão que o ar, movimentado pelo aproximar-se de uma pessoa ou pelo soprar de um pouco de vento, corrompido pelas exalações secas e quentes, pega logo fogo. E neste caso, qual é o atrito de corpos duros? Todavia, aquele ar pega fogo pelo movimento e atrito muito leves. Isto é o que Aristóteles quis dizer afirmando: "Quando é impelida e movimentada desta forma, em qualquer lugar que chegue, sendo bem temperada, muitas vezes pega fogo". Estas palavras demonstram com clareza que isto não acontece a não ser nas circunstâncias que relatamos mais acima. Assim, se alguma vez acontecer que o estado do ar seja tal que agite abundantemente estas exalações, afirmo que as bolas de chumbo lançadas com grande força pelas fundas esquentarão o ar, com o próprio movimento, e com ar esquentado, pegarão fogo; e não existe razão para que Galileu faça experimentos a respeito, afirmando-nos que tudo isto não acontece voluntariamente, mas por acaso; e é muito difícil procurar o acaso quando queremos. Depois, se alguém afirmar que as bolas lançadas pelas máquinas de guerra pegam fogo, não pelo atrito do armas por um fogo propulsor com o qual elas são jogadas, mesmo que não seja para mim muito persuasivo que grande massa de chumbo seja derretida por um fogo que a toque só por muito breve tempo, acredito haver demonstrado aqui suficientemente que, por causa desses exemplos, Galileu não pode fugir aos testemunhos de poetas e filósofos.
O derretimento das bolas de chumbo, que quatro versos acima Sarsi disse ser confirmado com exemplos cotidianos, agora ele afirma acontecer tão raramente que, sendo insólito, é considerado quase milagre. Este voltar atrás denota claramente que ele sabe estar necessitando de ajuda; e esta necessidade confirma continuamente sua própria inconstância, querendo ora uma coisa, ora outra: uma vez afirmando que para esquentar o ar é suficiente o movimento de um ventinho, ou apenas a chegada de uma pessoa viva a um cemitério de mortos; outra vez (como afirmou mais acima e replicou no fim desta asserção) quer que um movimento muito forte, ou uma abundância de exalações, ou uma grande rarefação de matéria, ou se há outra coisa ainda que possa originar este fenômeno; eu concordo com este último requisito, mais que com todos os outros, tendo certeza de que não só este acendimento mas outros maravilhosos e ocultos fenômenos naturais são produzidos quando existem requisitos suficientes. Gostaria de saber a que propósito Sarsi me pergunta, depois de ter afirmado que as chamas nos cemitérios se acendem pela simples chegada de uma pessoa ou por uma pequena brisa, onde se encontra aqui o potente atrito dos corpos sólidos? Falei bem claramente que o atrito suficiente para acender o fogo é só aquele provocado pelos corpos sólidos; agora não entendo qual a lógica de Sarsi em deduzir destas minhas palavras que qualquer que seja o acendimento não pode ser originado senão de tal atração. Respondo mais uma vez a Sarsi que o fogo pode ser produzido por muitos meios, entre os quais o atrito e a fricção de dois corpos sólidos; e já que este atrito não pode ser produzido por corpos sutis e fluidos, afirmo que os cometas e os relâmpagos, as estrelas cadentes, e também as chamas dos cemitérios, não pegam fogo pelo atrito nem do ar, nem dos ventos, nem das exalações, pelo contrário, cada um destes incêndios é produzido na maioria das vezes nas maiores calmarias.
Poderíeis talvez dizer-me: "Qual é, então, a causa destes fogos?" Eu vos responderia, para não provocar novas discussões, que a desconheço, mas sei muito bem que jamais nem a água nem o ar podem quebrar-se nem pegar fogo nem esquentar, por não serem matérias quebráveis nem inflamáveis. Se atear fogo a um só fio de palha ou a um chapéu de estopa, o fogo não para até que toda a palha e a estopa, mesmo sendo cem milhões de carros, não estiverem queimadas; e se ateasse fogo a um pedacinho de madeira queimaria toda a casa e depois toda a madeira do mundo que lhe estivesse contígua, se não se corresse logo para apagá-lo; quem poderia duvidar que o ar, tão sutil e todo esquentado sem separação, pegando fogo em uma pequena parte, não pegasse fogo em tudo?
Sarsi chega até ao ponto de afirmar com Aristóteles que, se alguma vez acontecer que o ar esteja tão cheio de exalações muito quentes, e com os outros requisitos mencionados, então as bolas de chumbo ficarão derretidas, não só as da artilharia e das espingardas mas também as atiradas com a funda. Então, este devia ser o estado do ar na época em que os babilônios cozinhavam os ovos; assim era, por sorte dos sitiados, a situação do ar durante a batalha da cidade de Corbel; e, sendo tal, pode-se, então, alegremente ir contra as espingardas: mas porque enfrentar semelhante situação é coisa de sorte e que não acontece tão frequentemente, Sarsi afirma que não podemos recorrer aos experimentos, já que estes milagres não se produzem por nossa vontade, mas por vontade do acaso, que é muito difícil de encontrar. Tanto que, mesmo que o Sr. Sarsi tivesse feito experiência disto mil e uma vezes, em todas as estações do ano e em qualquer lugar, e as tivesse visto contrárias às palavras daqueles poetas filósofos e historiadores, isto não teria importância, e deveríamos continuar acreditando nas palavras deles e não em nossos olhos. Se eu encontrasse para vós um tipo de ar com todos aqueles requisitos que afirmais ser necessários, e que apesar disto não permita cozinhar ovos e derreter bolas de chumbo, o que diríeis, então, Sr. Sarsi? Porém, sou muito generoso e sempre ficará a desculpa de afirmar que vos falta algum requisito necessário. Bem inteligentemente vos deslocastes a lugar seguro quando afirmastes ser necessário a este fenômeno um movimento violento, grande abundância de exalações, uma matéria muito sutil e "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado.”: aquele “Se alguma outra” é o que me intriga, e para vós é uma pedra de salvação, um asilo, uma imunidade. Eu haveria gostado de suspender a causa e deixar de lado tudo aquilo que não dissesse respeito ao cometa, acreditando que, naquele tempo de sua duração, Aristóteles e vós me concederíeis que o ar, encontrando-se apto a atear-lhe fogo, se encontrasse também apto a derreter o chumbo e cozinhar os ovos, parecendo-me que tivestes procurado em ambos os fenômenos a mesma disposição interna; então gostaria que entrássemos mesmo no assunto das fundas, ovos, arcos, espingardas e artilharias e esclarecêssemos este problema; observaria se, sem se preocupar com cometas, o tempo oportuno seria mesmo o meio do verão, quando o ar está cheio de relâmpagos, originando-se todos estes fogos da mesma fonte; e duvido que, mesmo que não se verificasse nestes tempos o derreter-se das bolas e o cozinhar-se dos ovos, não concordaria comigo e dir-me-íeis que falta aquele "Se alguma outra matéria levasse ao mesmo resultado”. Se me explicardes o que seja esta “Se alguma outra”, eu me esforçarei para pesquisá-la; se não, passarei por cima disto, o que, segundo meu parecer, será prejudicial para vossa teoria, se não em tudo, ao menos nesta parte, isto é, que enquanto vamos procurando a causa natural de um efeito vós vos limitais a querer que eu aceite que esta causa é tão rara que, mesmo vós a colocais entre os milagres. Agora, como nem no movimento das fundas, nem no dos arcos, nem nas espingardas, nem nas artilharias nós não percebemos nunca verificarem-se estes fenômenos muito discutidos já, ou, se este fenômeno se verificou, foi tão raramente que devemos considerá-lo milagre, e como tal atribuí-lo mais ao relato alheio que considerá-lo verdadeira prova, por que, então, afirmo eu, se as coisas estão assim, não deveis vós aceitar que, verdadeiramente e não por efeito milagroso, os cometas não podem pegar fogo pelo atrito do ar, e limitar-vos a considerar milagre se alguém vo-lo conceder que, uma vez cada mil anos, ele pegue fogo por atrito, existindo naquele momento todas aquelas circunstâncias necessárias que vós procurais?
Em relação ao problema que Sarsi coloca e resolve, isto é, que alguém poderia talvez afirmar que não é por causa do atrito mas por causa do fogo muito forte que as impulsiona que as bolas das espingardas e da artilharia se derretem, eu prefiro estar entre aqueles que se opõem, afirmando que elas não se derretem nem daquele nem de outro modo sequer. Com referência à resposta do problema, não sei por que Sarsi não haja apresentado aquela que é a mais própria e mais clara, afirmando que as bolas e as flechas atiradas com fundas e arcos, onde não existe fogo, revelam, abertamente, a falsidade da questão. Esta resposta, parece-me, teria sido muito mais de acordo com o problema que aquela apresentada por Sarsi, isto é, que o tempo que a bola passa em contato com o fogo é muito breve, o que é verdade, mas é igualmente verdade que é muito mais breve o tempo que ela gasta em sua viagem para derretê-la com o atrito do ar.
Não sei o que responder quanto à sua última conclusão, porque não entendo em absoluto o que ele quer significar com a afirmação de que lhe é suficiente ter mostrado que eu, através destes exemplos, não consegui fugir ao testemunho dos poetas e filósofos, cujos testemunhos, tanto escritos como relatados em mil textos, nunca eu procurei fugir deles, mas consideraria carente de raciocínio aquele que tentasse uma coisa parecida. Eu afirmei que os relatos deles são falsos, e ainda agora os julgo assim.
48. Mas contesta ainda: apesar de se aceitar que alguma vez as exalações possam pegar fogo com o movimento, não se entende como não se gastem logo que tiverem pegado fogo, como se vê cotidianamente acontecer com os relâmpagos, as estrelas cadentes e outros meteoros semelhantes. Eu acredito, ao contrário, que tudo isto possa ser entendido facilmente, se, tomando o exemplo daqueles fogos que foram encontrados pela habilidade e pesquisa dos homens, raciocinar-se igualmente sobre os produzidos pela natureza. Os nossos fogos são de dúplice espécie: uns, secos e ralos e não aderentes por não terem cola, os quais, logo que recebem o fogo, queimam com grande brilho e grandes chamas imediatas, mas com fogo breve e rápido, quase sem resíduo algum; outros, compostos por matéria mais resistente e fundidos juntos com piche líquido, de longa duração, com chama contínua, nos iluminam durante as trevas noturnas. Por que não poderia acontecer algo de semelhante, então, naquelas regiões altíssimas? Com efeito, ou a matéria leve é tão rala e seca que não é mantida unida por liga alguma de umidade e pega fogo com brilho repentino e rápido, como sendo destinada a morrer logo ao nascer, ou é escorregadia e grudenta e, e por acaso pega fogo, não se apaga logo, mas vive mais tempo que seu líquido e do alto brilha para os mortais que a olham. Vê-se claramente, de tudo isto, como possa acontecer que os fogos acesos no ar não se apagam imediatamente, mas brilhem por muito tempo, percebendo-se, assim, que o ar pode pegar fogo, especialmente se existem nele aqueles elementos que são imprescindíveis para produzir o calor do atrito, isto é, o movimento impetuoso, a abundância das exalações, a rarefação da matéria e qualquer outra coisa que produza o mesmo efeito.
Leia V. E. Ilustríssima aquilo que resta até o fim desta teoria, a propósito da qual não tenho muito a dizer, pois falei muito a respeito mais acima. Assim, preocupar-me-ei mais com esta questão, isto é, como Sarsi. para manter que o fogo do cometa possa durar meses e meses, mesmo que os outros no ar, relâmpagos, faíscas, estrelas cadentes e coisas semelhantes, os considere rapidíssimos, seja obrigado a admitir duas espécies de matérias inflamáveis: umas, leves, ralas, secas e sem algum elemento úmido; outras, escorregadias, grudentas, e por isto ligadas por meio de algum elemento úmido. Sarsi quer que as primeiras produzam o fogo rápido, as segundas o fogo perene, como acontece com o cometa. Mas aqui aparece uma clara contradição: pois, se assim fosse, os relâmpagos e as faíscas deveriam, como acontece com a matéria rala e leve, formar-se nas partes mais altas, e os cometas, sendo esquentados em matéria mais grudenta, encorpada e por conseguinte mais pesada, deveriam formar-se nas partes mais baixas: todavia. sucede o contrário, porque as faíscas e os relâmpagos não se formam altos da terra nem mesmo um terço de milha, assim como nos certifica o pequeno intervalo de tempo que passa quando vemos o relâmpago e escutamos o barulho do trovão. Mas, que os cometas sejam indubitavelmente sem comparação muito mais altos, mesmo que ele não o demonstrasse suficientemente, verificamo-lo através de seu movimento do oriente para ocidente, semelhante ao das estrelas. E seja suficiente tudo isto em relação a estas experiências.
Resta agora que eu, conforme a promessa feita acima a V. E. Ilustríssima, relate um pensamento meu sobre a tese "O movimento é causa de calor", mostrando de que modo ela possa ser verdadeira.
Antes, porém, é necessário raciocinar sobre aquilo que nós chamamos "calor", cujo conceito duvido muito que seja considerado como universal, porque acredita-se que ele seja um mero acidente, qualidade secundária ou característica que realmente resida na matéria com a qual nós queremos esquentar-nos.
Portanto, afirmo estar bem em condição de sair deste aperto, concebendo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições; porém não consigo, mesmo esforçando-me, imaginá-la branca ou vermelha, amarga ou doce, sonora ou muda, perfumada ou não, considerando-a possuidora destas características: pelo contrário, se não possuíssemos os sentidos para nos ajudar, o raciocínio ou a imaginação não chegariam nunca a alguma conclusão. Assim, eu considero que estes cheiros, sabores, cores, etc., em relação ao sujeito onde nos parecem residir, não são outra coisa que puros nomes, mas residem em vez no corpo sensitivo, porque se tiramos a animação todas as outras qualidades anulam-se completamente; havendo nós imposto a ele nomes característicos e diferentes dos outros acidentes, acidentes primários e reais, é como se quiséssemos acreditar que estas qualidades sejam verdadeira e realmente diversas das outras.
Eu acredito que poderei explicar, com algum exemplo, muito mais claramente este meu conceito. Eu estou, neste momento, movimentando uma mão sobre uma estátua de mármore, e agora sobre um homem vivo. No que diz respeito à ação da mão, em relação à mão, ela é a mesma seja sobre um seja sobre outro objeto, que é daqueles acidentes primários, isto é, movimento e contato, nem lhe atribuímos outros nomes: porém o corpo animado, que recebe estas operações, recebe sensações diversas, conforme as partes que estão sendo tocadas. Por exemplo, mexendo embaixo da sola dos pés, sobre os joelhos ou embaixo das axilas, sente-se, além do contato comum, outra sensação, para a qual pusemos o nome particular de cócega, cuja sensação é inteiramente nossa e não da mão em absoluto; e parece-me que seria um grande erro afirmar que a mão, além do movimento e do contato, possa possuir outra faculdade diversa desta, isto é, fazer cócega, como se a cócega fosse um acidente que residisse na mão. Um pedaço de papel ou uma caneta, esfregado levemente sobre qualquer parte do nosso corpo, em relação a esta ação, faz a mesma coisa, isto é, movimento e contato; porém em nós mesmos, se o contato se verifica entre os olhos, nas narinas, excita uma cócega quase intolerável, enquanto nas outras partes do corpo quase não se sente. Esta cócega é contida em nosso corpo e não na caneta, e, removendo o corpo animado e sensível, ela não é outra coisa que puro nome. Agora, de semelhante e não maior existência acredito que possa haver muitas outras qualidades que são atribuídas a corpos naturais, como sabores, cheiros, cores e outras.
Um corpo sólido é, como dizemos, bem material, movimentado e aplicado sobre uma parte qualquer de minha pessoa, produz em mim aquela sensação que nós chamamos tato, que, mesmo ocupando todo nosso corpo, parece residir principalmente nas palmas das mãos, e especialmente nas pontas dos dedos, por meio dos quais percebemos as pequenas diferenças de áspero, liso, mole, duro, quando, com as outras partes do corpo, não conseguimos distingui-las tão bem. Destas sensações, algumas nos são mais gratas, outras menos, segundo a diversidade das figuras dos corpos tangíveis, lisas ou ásperas, agudas ou obtusas, duras ou moles, e este sentido, sendo mais material que os outros, sendo originado pela solidez da matéria, está em relação à constituição interna da Terra. E, sendo que alguns desses corpos separam-se continuamente em pequenas partes, umas delas, mais graves que o ar, descem, e outras, mais leves, sobem; e pode ser que nasçam daqui outros dois sentidos, enquanto aquelas ferem duas partes do nosso corpo muito mais sensíveis que nossa pele, que não sente o contato de matérias muito sutis, ralas e moles: e aqueles pequenos corpos que descem, recebidos sobre a parte superior da língua, penetrando, misturados com a sua umidade, com sua substância, geram sabores, agradáveis ou não, segundo a diversidade dos contatos das várias figuras destas pequenas partes, e conforme sejam poucos ou muitos, mais ou menos rápidos; os outros, que sobem, entrando pelo nariz, ferem aquelas pequenas membranas que são o instrumento do olfato, e aqui são recebidos, da mesma forma, seus contatos e passagens, de nosso agrado ou não, conforme as figuras deles sejam de um modo ou de outro, e os movimentos lentos ou rápidos, e estes ínfimos, poucos ou muitos. E resultam ser muito bem colocados em relação ao lugar, à língua e às narinas: a língua estendida, embaixo, para receber aquilo que desce, e as narinas, colocadas de forma a receber o que sobe: pode ser que sejam aptos a excitar os sabores, por certa analogia, os fluidos que descem por meio do ar, os perfumes e os elementos quentes que sobem. Resta ainda o elemento aéreo dos sons, os quais chegam a nós indiferentemente, de baixo, do alto, de lado, estando nós colocados no ar, cujo movimento em sua região verifica-se em todas as direções; e o ouvido é colocado o mais possível em posição apta a receber tudo; e os sons, então, são produzidos e escutados por nós quando (sem outras qualidades sonoras ou transonoras) um tremor frequente do ar encrespado com ondas muito pequenas movimenta a membrana de certo tímpano, existente em nosso ouvido. Depois as maneiras externas, aptas a produzir este encrespar do ar, são muitas; talvez sejam reduzidas em grande parte ao tremor de algum corpo que se chocando no ar produz encrespamento, e através do ar, com grande velocidade, procedem as ondas, cuja frequência origina a agudez do som e a sua gravidade. Mas que nos corpos externos, para excitar em nós os sabores, os cheiros e os sons, seja necessário mais que as grandezas, figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos, eu não acredito; acho que, tirando os ouvidos, as línguas e os narizes, permanecem os números, as figuras e os movimentos, mas não os cheiros, nem os sabores, nem os sons, que, fora do animal vivente, acredito que sejam só nomes, como nada mais é que nome a cócega, tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz. E, da mesma forma que aos quatro sentidos são relacionados os quatro elementos, assim acredito que a propósito da vista, sentido mais importante que todos, a relação verifica-se com a luz, mas com aquela proporção de primazia que existe entre o finito e o infinito, o temporal e o instantâneo, o quanto e o indivisível, a luz e as trevas.
Dessas sensações e das coisas relativas a elas eu não pretendo entender muito, e para explicar aquele pouco que entendo, ou melhor, para colocá-lo por escrito, não seria necessário muito tempo, por isso passo por cima.
Voltando ao meu primeiro propósito sobre este argumento, havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas nos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, levado a creditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentados com velocidade enorme. Estes pequenos corpos encontram nosso corpo e o penetram com a sua maior sutileza, e o contato deles, realizado na passagem através de nossa substância e percebido por nós, resulta ser aquilo que nós chamamos calor, grato ou ingrato, segundo a multidão e a velocidade maior ou menor daqueles pequenos corpos, que nos afetam e nos penetram. Esta penetração torna-se agradável quando por meio dela é facilitada nossa transpiração, e desagradável quando por meio dela origina-se uma grande divisão e solução de nossa substância. Em suma, a operação do fogo, por sua parte, não é outra coisa que, por meio de movimento, entrar com sua sutileza máxima em todos os corpos, dissolvendo-os, mais cedo ou mais tarde, segundo a multidão e velocidade dos elementos ígneos e da densidade e raridade da matéria destes corpos; dos quais existem muitos que, no próprio desfazer-se, passam, na maior parte, em outros pequenos corpos ígneos, continuando a solução até encontrar matérias solúveis. Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo. E, aceitando que esta sensação realize-se em nós na passagem e contato das pequenas partes ígneas através da nossa substância, é claro que, se eles permanecessem parados, a sua ação tomar-se-ia nula. Com efeito, podemos perceber que uma quantidade de fogo, retido nos recantos de uma pedra, não nos esquenta, apesar de segurá-lo na mão, porque ele está parado; mas uma vez colocada a pedra na água onde por causa da sua gravidade pode-se movimentar melhor do que no ar, as pequenas partes ígneas, escapando e encontrando nossa mão, a penetram e nós podemos sentir o calor.
Porque para excitar o calor não é suficiente a presença das partes ígneas, mas é necessário o movimento também, então parece-me que foi afirmado com muita razão que o movimento havia de ser a causa do calor. Este é aquele movimento por causa do qual pegam fogo as flechas e as outras lenhas e derretem o chumbo e os outros metais, enquanto as pequenas partes do fogo, movimentadas com velocidade ou por si mesmas, ou, não sendo suficiente a própria força jogadas pelo vento impetuoso das máquinas, penetram em todos os corpos e algumas delas mudam-se em outras pequenas partes ígneas voadoras, outras mudam-se em pó finíssimo, outras derretem-se e tornam-se fluidas como água.
Mas toda esta teoria considerada pelo senso comum, isto é, que, movimentada uma pedra, ou um ferro, ou um pedaço de madeira, podemos nos esquentar, foi uma afirmação muito vã. Ora, a fricção de dois corpos duros, quer solvendo uma parte em pequenas partes ígneas e voadoras, quer abrindo a saída aos pequenos ígneos contidos, coloca-os finalmente em movimento, onde, encontrando nossos corpos e por eles penetrando e passando, e a alma sensitiva, percebendo o contato de sua passagem, sente aquela sensação agradável ou desagradável, que nós chamamos depois calor, queimação ou "esquentamento". E às vezes, enquanto a diminuição e o atrito permanecem e são contidos entre todas as partes pequenas, o movimento deles é temporal e a ação somente calorífica: depois, chegando à derradeira e importantíssima solução em átomos realmente indivisíveis, cria-se a luz por meio do movimento ou, queremos dizer, expansão e difusão instantâneas, e potente pela sua, não sei se deva chamá-la, sutileza, leveza, imaterialidade ou outra condição diferente de todas estas e ainda sem nome, apta, afirmo eu, a encher espaços imensos.
Eu não gostaria, Ilustríssimo Senhor, de avançar demais em um oceano infinito, onde não poderia depois voltar ao porto; nem gostaria, enquanto procuro remover uma dúvida, de dar motivo a levantar cem delas, como receio que tenha acontecido, ao menos em parte, com aquele pouco afastamento meu da beira da água: quero, para isto, reservar outra ocasião mais oportuna.
Galileu Galilei
O melhor da literatura para todos os gostos e idades