Biblio "SEBO"
Quando os pais de Bridei decidem mandá-lo viver com o druida Broichan, o jovem sabe apenas que abandona o lar para aprender as artes da guerra e da erudição. Não tem consciência de que no reino de Fortriu, devastado por lutas internas, um conselho de anciãos está secretamente a arquitectar um plano para garantir um futuro melhor em que ele desempenhará um papel central. Sendo o único rapaz a viver na remota casa do druida, Bridei cedo aprende a conviver com o medo e a solidão. Mas quando acorda a meio de uma noite de inverno gelada e encontra uma criancinha na soleira, recolhe-a e agradece aos deuses essa dádiva de uma companhia, sem perceber até que ponto esse gesto vai determinar o seu próprio destino e alterar perigosamente os planos do conselho.
CAPÍTULO UM
O druida estava à entrada, imóvel como uma figura esculpida em pedra escura, observando os cavaleiros a subirem a encosta. A noite estava a chegar. Para lá do bosque de carvalhos, via-se o brilho suave do Lago da Serpente. À luz do crepúsculo, as gralhas recolhiam, fazendo ouvir a sua linguagem entrecortada, secreta. Era Outono. A festa do Equinócio já passara. O ar estava azul, tão frio que custava a respirar.
Os guerreiros aproximaram-se da entrada e, uns a seguir aos outros, desmontaram. A princípio, parecia que não tinham trazido o rapaz. O druida escondeu um misto de desapontamento, frustração e ira. Foi então que Cinioch, o último a desmontar, disse:
- Toca a andar, rapaz, mexe-te - e Broichan viu o pequeno vulto a cavalo. Viera sentado atrás de Cinioch. Estava bem agasalhado por tecidos de lã. Os outros ajudaram-no a desmontar e fizeram-no avançar até ao druida, para uma verificação rigorosa.
Tão pequeno. Teria cinco anos, como dissera Anfreda na carta ao avisá-lo da sua escolha? Ainda era muito pequeno para ser enviado para Fortriu, que ficava tão longe de casa, e também era muito pequeno para aprender. O druida sentia a fúria aumentar. Esforçou-se por controlar a respiração.
- Eu sou Broichan - disse, olhando para baixo. - Bem-vindo a Pitnochie.
O rapaz levantou os olhos e examinou o rosto de Broichan, depois o manto escuro, o bordão de carvalho com desenhos intrincados e o cabelo preto, cheio de tranças pequenas, presas por fitas coloridas. Mas o rapaz tinha as pálpebras semicerradas; estava a dormir em pé. Gwynedd era longe, a duas luas de jornada.
O druida observou-o em silêncio a endireitar os ombros, a erguer o queixo, a respirar fundo e a franzir as sobrancelhas, concentrando-se.
- Eu sou Bridei, filho de Maelchon - disse o rapaz com voz pouco segura mas clara. Em seguida, respirando fundo novamente prosseguiu, esforçando-se por não dizer disparates: - Que a... A QUe Brilha ilumine o teu caminho. - Olhou para Broichan. Tinha os olhos azuis como duas celidónias; via-se no olhar que tinha medo, era evidente, mas aquela amostra de gente não se deixava intimidar e, graças aos deuses, Anfreda ensinara ao filho a língua dos Priteni. A tarefa de Broichan seria mais fácil. Talvez, afinal de contas, ele não fosse demasiado novo apesar dos quatro anos.
- Que a Guardiã das Chamas aqueça o teu coração - disse Broichan, respondendo apropriadamente. O druida escrutinou as feições miúdas de perto. O queixo firme era o de Maelchon, assim como o porte altivo e aquela vontade de ferro que lhe mantinha os olhos abertos apesar do sono e lhe recordava as palavras certas naquele mundo estranho onde acabava de acordar. Os doces olhos azuis, os cabelos castanhos encaracolados, a testa franzida, eram de Anfreda. O sangue dos Priteni corria com força nas veias daquela criança. A mãe fizera uma boa escolha. O druida estava satisfeito.
- Vem - disse Broichan. - Vou mostrar-te onde vais dormir. Cinioch, Elpin, Urguist, bom trabalho. Tendes comida à espera lá dentro.
O rapaz seguiu Broichan em silêncio quando este entrou na casa sob os olhares curiosos dos servos e se dirigiu para o salão, onde estavam dois anciãos, Erip e Wid, e alguns cães enormes, perto da lareira. Os animais levantaram os focinhos e rosnaram. O rapaz hesitou, mas não disse nada.
Erip e Wid tinham em frente, sobre uma mesa, um tabuleiro de jogo e algumas peças esculpidas em osso. Os olhos de Bridei foram atraídos pelas sacerdotisas, guerreiros e druidas esculpidos em osso, todas do tamanho de um dedo mindinho. Hesitou.
- Bem-vindo, rapaz - disse Erip com um sorriso desdentado. Gostas de jogos?
Ele acenou afirmativamente.
- Nesse caso, estás aqui bem- disse Wid, coçando a barba branca. - Somos os melhores jogadores de Fortriu. Recantos do Corvo, Parte o Muro, Avançar e Recuar, somos peritos. És parecido com a tua mãe, miúdo.
Os olhos azuis do rapaz olharam, inquiridores, para o ancião.
- Chega - disse Broichan. - Anda comigo, rapaz. - Tinha de lembrar a Wid e a Erip que a educação do rapaz era da sua exclusiva responsabilidade. A nova vida de Bridei começava a partir dali; o rapaz caminharia sem o fardo de saber quem era. Teriam tempo para isso quando ele crescesse; Teriam uns dez, quinze anos, se os deuses lhes sorrissem. Broichan tinha de transformar a criança num homem, pronto a desempenhar o relevante papel que lhe cabia no futuro de Fortriu. A educação de Bridei tinha de ser perfeita- Na realidade, era uma vantagem ele ser tão novo. Quinze anos seriam à justa.
Aqui é o teu quarto - disse Broichan, colocando uma vela em cima de uma prateleira. Bridei olhou para o quarto com a cama estreita, para a arca e para a pequena janela quadrada que dava para os vidoeiros sussurrantes e para uma mancha de céu escuro. - Pareces cansado. Dorme. Amanhã começamos a tua educação.
Em Pitnochie, as pessoas estavam sempre ocupadas. Bridei tornou-se especialista em evitar Mara, a governanta de rosto severo e Ferat, o cozinheiro sempre irritado, quando davam ordens às suas infelizes ajudantes, limpavam energicamente o pó ou viravam um carneiro no espeto. Também Wid e Erip estavam sempre a fazer alguma coisa. Além disso discutiam muito um com o outro, mas nunca se zangavam, simplesmente discordavam em muitas coisas.
Bridei também andava sempre ocupado. As aulas de Broichan eram difíceis. Começavam pelo conhecimento das plantas, das árvores e dos animais, e incluíam a prática disciplinada do silêncio e da concentração. Bridei era uns anos mais novo do que os rapazes que iam para o bosque aprender a ser druidas, disse Broichan, mas já tinha idade suficiente.
Durante uns tempos, Bridei à noite não era capaz de adormecer e só lhe apetecia chorar. Porém, em breve se começou a esquecer da mãe, o pai e os irmãos mais velhos. As coisas pequenas ficaram: o cinto do pai, largo, de pele escura, com uma fivela de prata em forma de cavalo. Um perfume suave a violetas ou flores de jardim, que associava à mãe. Quando essas memórias começaram a desaparecer, recordava-se das palavras de despedida do pai: Obedece ao teu pai adoptivo em todas as coisas. Obedece, aprende e não chores.
As estações passaram e Bridei seguiu à risca as instruções do pai. De certo modo, sentia-se satisfeito por poder corresponder às suas expectativas. Erip e Wid, que também desempenhavam um papel na sua educação, explicaram-lhe o que era a adopção: como ajudava as famílias a constituir alianças e como fazia dos rapazes homens fortes e mais úteis quando regressavam a casa. O jovem perguntou a Broichan por que razão a sua família o escolhera a ele e não a nenhum dos irmãos.
- Porque tu eras o mais inteligente - disse o druida.
- Quando é que volto para casa?
Broichan fitou-o com os olhos escuros e impassíveis.
- Só os deuses é que podem responder a essa pergunta, Bridei - disse o druida. - Não te sentes bem aqui em Pitnochie?
- Sinto, meu senhor - respondeu o jovem, e dizia a verdade, porque gostava das aulas. Porém, às vezes perguntava a si próprio por que razão estava ali.
- Então não faças novamente essa pergunta.
Erip, o careca, e Wid, o nariz de falcão, rapidamente se tornaram amigos de Bridei. Ambos sabiam muitas coisas. Durante o primeiro Inverno, Bridei aprendeu o jogo com as pequenas figuras esculpidas. Wid ensinou-o a fazer um corvo, um veado e uma lebre com a sombra dos dedos na parede, colocando uma vela por trás. Estavam todos a rir-se das imagens quando Broichan, impassível, projectou uma imagem na parede que não podia ter sido feita com as mãos em frente de uma vela - qual seria o homem que, com dez dedos apenas, conseguia imitar um dragão cuspindo fogo, de asas a bater, perseguindo uma hoste de guerreiros aterrorizados?
Na Primavera, perto da festa da Harmonia, Broichan foi para a floresta rezar e meditar sozinho. O druida esteve ausente durante três dias e na sua ausência os dois idosos ensinaram ao filho adoptivo de Broichan a engolir uma caneca de cerveja de um só trago. Da primeira vez, Bridei vomitou tudo nas lajes do chão e os cães é que lamberam a porcaria toda. O druida regressou com um brilho estranho nos olhos e com uma palidez que não era habitual. Broichan não falou do tempo em que estivera ausente. Porém, descobriu rapidamente o que acontecera na sua ausência. Na noite seguinte, quando Bridei chegou à sala para cear, Erip e Wid tinham desaparecido.
Bridei não se apercebia de que se sentia só. As palavras de despedida do seu pai significavam que ele tinha de aceitar o que lhe aparecesse pela frente; tinha de aguentar e seguir em frente. Erip e Wid eram amáveis, mas já não estavam ali. Tinha de aprender a lição, grochan dizia que se aprendia com tudo.
As lições de Brochan eram, geralmente, acerca de padrões: os que podiam ser vistos, como os das folhas dos vidoeiros que inchavam lentamente e depois se abriam por completo, verdejantes, e a seguir ao Verão começavam a ficar castanhas e quebradiças; o modo como se enrugavam e depois se transformavam em esqueletos frágeis, perdendo-se depois no solo rico da floresta, alimentando a árvore a que tinham pertencido. O modo como as folhas novas esperavam, escondidas nas trevas, como num sonho que não pode ser explicado. Havia outros padrões por trás delas, encadeados uns nos outros, tão grandes e intrincados que Bridei sentia que só quando fosse mais velho é que os conseguiria compreender. Porém, agarrava-se a eles e escutava com atenção, concentrava-se no seu pai adoptivo do mesmo modo que um animal jovem observa os seus progenitores, aprendendo as grandes lições: caça ou passarás fome, esconde-te ou serás apanhado, voa ou cairás.
No decurso daquele primeiro ano, a criança manteve-se sempre junto do druida alto e severo, ao longo de cada um dos rituais que marcavam a passagem das estações. Primeiro, Portal, o mais secreto de todos, a entrada no tempo das trevas, o tempo de descanso, quando a Mãe de Tudo lança grandes sombras sobre a terra, gela a erva e os lagos e as noites são tão longas que todos têm saudades do sol.
Na cerimónia do Portal, um animal foi imolado, para que todos vissem, em cima da velha pedra. Broichan não pediu ao seu filho adoptivo que empunhasse a faca; ele próprio se encarregou disso, mas exigiu que Bridei assistisse a tudo sem pestanejar. O sangue do galo espalhou-se. O jovem não gostou do som que o animal fez ao morrer, apesar de o druida ter sido rápido. Mas aquele ritual era necessário. Mãe de Tudo assim o exigia, em toda a região de Fortriu. Depois, Broichan invocou os espíritos dos antepassados para o festim. A mesa tinha lugares que lhes eram destinados. Se fechasse os olhos, Bridei conseguia vê-los, sombras pálidas de guerreiros terríveis, de mulheres magras, e, aqui e ali, uma criança silenciosa.
A seguir foi o Solstício do Inverno, a festa da Que Brilha. Naquela cerimónia, a presença de Mãe de Tudo ainda era forte, mas a partir dali a sua influência diminuiria dia após dia já que o Sol cada vez aparecia mais cedo a leste. Em redor da casa foram pendurados pequenos ramos dourados com folhas de azevinho brilhante e bagas vermelhas como sangue; em breve a vida rebentaria, aqueles eram os primeiros sinais. Se, quando chegasse a noite do Solstício, A Que Brilha estivesse completamente cheia, isso mostraria que a deusa abençoava a casa e providenciava o seu sustento. Haveria colheitas exuberantes e cordeiros gordos; as árvores curvar-se-iam sob o peso dos frutos e os bebés novos medrariam. Ocorreu a Bridei que, apesar de Pitnochie ter cereais, ovelhas e árvores de fruto, não tinha bebés nem outra criança além dele próprio. Para Mara, a governanta, a casa de Broichan era uma casa de homens.
Depois do Solstício foram os outros festivais: a Dança das Virgens, sagrada para Todas as Flores, deusa das coisas que crescem: Harmonia, a festa do equinócio; Renascimento, sobre o qual Broichan não falava muito, excepto para dizer que em outros lugares, com outras gentes, a festa tinha outro significado e que Bridei tomaria conhecimento dos pormenores quando fosse mais velho. No festival de Renascimento os dias eram quentes, as flores perfumavam o ar, as abelhas zumbiam, os pássaros cantavam e Broichan permitiu que os guerreiros visitassem a aldeia a sul de Pitnochie, privilégio que raramente lhe era concedido. Bridei nunca fora à aldeia. Broichan disse-lhe que não havia razão para que ele fosse além da casa e do jardim. Depois, foi a vez do Solstício de Verão, quando a Guardiã das Chamas estava no auge; o festival das colheitas da Reunião; e Medida, quando as trevas e a luz se equilibravam antes de o ano chegar ao fim, antes de um novo Portal. Bridei observava e aprendia, recordando todas as noites antes de dormir, na tranquilidade do seu pequeno quarto, os rituais, praticando os movimentos compassados que Broichan empregava, tentando o lançamento do círculo, os cumprimentos e as despedidas solenes. A princípio, o petiz esforçava-se devido às palavras de despedida do pai, porque sabia que era o que esperavam dele. Porém, mais tarde, aprendia porque tinha sede, porque sentia um fascínio pelas coisas misteriosas e poderosas que Broichan lhe revelava. Quanto mais descobria, mais queria descobrir. Os rituais eram um bom exemplo. Não era apenas uma questão de fazer aqueles gestos. Broichan explicara isso desde o início. Bridei precisava, tanto quanto possível, de conhecer os deuses, amá-los e respeitá-los; e de compreender o verdadeiro significado dos festivais, de modo a que esse saber lhe ficasse profundamente inscrito no corpo, lhe corresse nas veias, estivesse presente na sua própria respiração. Esta aprendizagem durava a vida inteira, porque a busca de uma ligação mais pura entre carne e espírito, homens e deuses, este mundo e o Outro, era incessante. Segundo Broichan, era um mistério maravilhoso e terrível, e seriam de facto velhos antes de o compreenderem.
Na Primavera do sexto aniversário de Bridei, chegou Donal. Donal era um guerreiro com uns símbolos terríveis, azuis, desenhados nas faces e no queixo, e outros, em forma de anéis entrelaçados, sobre os músculos salientes do antebraço. Tinha os olhos muito juntos, um maxilar intimidante e uma maneira de sorrir que fez com que Bridei lhe sorrisse imediatamente. Montavam juntos, Bridei em Pearl, a pequena e mansa égua que Donal lhe trouxera, e o guerreiro em Lucky, um cavalo magro e malhado de uma cor estranha. Era uma escolha pouco vulgar para um cavalo de guerra, mas Donal achava que não; Lucky transportara-o ao longo de três batalhas com os celtas, uns patifes com cabelos cor de cenoura, e nem homem nem cavalo tinham ficado com um arranhão sequer. Bem, Donal ficara com um dente ou dois partidos e Lucky com um pequeno corte numa orelha, mas estavam ali os dois, sãos e salvos, cavalgando pelos bosques com o filho de um druida. Era sorte, ou não era?
- Filho adoptivo - corrigiu-o Bridei.
- O que é isso?
- Broichan não é meu pai, está só a ensinar-me. Quando for maior, vou para casa - respondeu Bridei não muito seguro, mas sem conseguir imaginar o que o seu pai adoptivo poderia querer mais dele.
- Ah sim? - foi tudo o que Donal disse. Poderia significar talvez sim, ou talvez não; era uma resposta segura, o tipo de resposta que assegurava que Donal ficaria mais tempo em casa do druida do que os dois anciãos.
- Quero ir a galope - disse Bridei, tocando nos flancos de Pearl com os calcanhares. Os dois companheiros mergulharam na sombra dos carvalhos ao longo da encosta por cima do lago. Era difícil para Donal, um homem alto em cima de um cavalo grande, igualar o passo de Pearl num terreno como aquele, e foi Bridei que o levou até um local onde a encosta se abria abruptamente num emaranhado de sarÇas e espinheiros. Os carvalhos cresciam na berma daquela fissura, mas, no interior sombrio, só havia árvores pequenas, difíceis de distinguir porque cresciam de lado, secas, esquisitas. O nevoeiro cobria a fenda apesar do dia límpido; sentia-se uma calma terrível, que inspirava medo.
- Onde estamos? - perguntou Donal, aproximando-se de Bridei, passando uma perna por cima do pescoço do cavalo e deixando-se escorregar para o chão, com grande à-vontade. - Estou com um mau pressentimento. É melhor não nos demorarmos por aqui.
- Há ali um caminho - disse Bridei. - Repara.
O trilho era difícil de distinguir porque os fetos e os arbustos quase o escondiam. A bruma pairava, mais baixa do que a altura de um homem, por cima daquele carreiro serpenteante, estreito, de terra batida: a fenda era artificial.
Donal hesitou.
- Já tinhas vindo aqui, rapaz? - perguntou ele. Bridei abanou a cabeça.
- Não gosto nada disto - resmungou o guerreiro, fazendo um pequeno sinal com os dedos. - Se formos por aqui, ainda damos com um grupo dos Boa Gente a querer divertir-se, e no dia seguinte acordamos num reino estranho, do qual nunca regressaremos.
- Só uma olhadela? - pediu Bridei, porque aquilo lhe parecia uma aventura. - O cavalo do jovem estremeceu e torceu as orelhas.
- Não se dá uma olhadela a um sítio destes - disse Donal, tenso, montando de novo. - Isto é uma daquelas portas de que se fala, tenho a certeza; olha para aquelas pedras, além, estão de guarda a qualquer coisa, foram ali colocadas por gente como tu e eu para impedir que outros entrem, ou é um aviso para que as pessoas como tu e eu não vão até lá. Vamos embora, rapaz.
Bridei não era teimoso; não lhe ocorreu desobedecer. Além do mais, era evidente que Pearl queria tanto ir para casa como Donal. No caminho de regresso, aquele vale escondido não saía da mente de Bridei, como um enigma por resolver.
Havia uma maneira boa e outra má de fazer perguntas ao druida. A má era fazê-las à mesa, o que equivalia a um franzir de sobrancelhas, um sorriso enigmático e o silêncio. Bridei estava a aprender que algumas perguntas nem sequer se faziam: perguntas sobre a sua mãe, por exemplo, ou sobre a razão de não poder ir à aldeia onde, segundo tinham dito os homens, havia rapazes mais ou menos do seu tamanho. Essas perguntas não tinham resposta. O local ideal para fazer perguntas era uma aula, e as perguntas tinham de estar relacionadas com o tópico do dia.
Felizmente, naquela fase da educação de Bridei, Broichan estava a lidar com encantamentos e magias caseiras. Bridei já sabia que havia três tipos de magia. A magia profunda, relativa à terra e ao céu, às correntes e às chamas, ao sonho lento e ao coração das coisas, era a que mais tempo levava a aprender e a mais conhecida. A grande magia, usada pelos feiticeiros mais poderosos e, às vezes, pelos druidas. A grande magia era perigosa; podia alterar o curso da guerra e derrubar reis. Já ia sendo rara. Finalmente, a magia da lareira, a que ele estava a estudar. A magia da lareira podia ser executada por qualquer pessoa desde que houvesse cuidado. Um pequeno erro e podia acabar tudo mal; um homem podia pôr tudo de pernas para o ar, por assim dizer, se não aplicasse apropriadamente o feitiço. As pessoas normais, como os aldeões, por exemplo, utilizavam-na para aplacar ou evitar as presenças más que saíam dos bosques em noites de lua cheia, ou que se agarravam aos barcos de pesca em dias de nevoeiro, no meio do lago.
O rapto de bebés, por exemplo. Todos sabiam que um recém-nascido não estava seguro enquanto não lhe fosse colocada uma chave por baixo da almofada no berço: aquele pequeno feitiço assegurava que os Boa Gente não levariam a criança, deixando no seu lugar um boneco feito de paus e de erva. A chave prendia a criança à casa. Ou as portas, que tinham que ser protegidas de espíritos metediços. Havia outras maneiras de o fazer, podia-se enterrar sal, ou umas ervas especiais, por exemplo, ou pregar pregos de ferro na madeira.
Broichan e o rapaz estudaram aquilo vários dias, e Bridei ficou a saber por que razão os arbustos de zimbro cresciam à entrada das casas, no Vale, e por que razão havia círculos brancos em frente das portas, no chão. Eram feitiços básicos e fáceis de executar, mas eram poderosos e eficazes. A floresta abrigava muitas formas de vida. Os lobos espreitavam os viajantes solitários; os javalis eram capazes de matar um caçador com as suas presas. Estas ameaças podiam ser resolvidas com bom senso e habilidade. As raposas apareciam nos galinheiros e as águias roubavam cordeiros. Uma boa vigilância e uma boa administração podiam manter a maioria daqueles perigos afastada. Os camponeses sofriam sempre algumas perdas; a natureza era assim, para que tanto os homens como os animais pudessem sobreviver.
Os animais não deviam ser subestimados, mas podiam ser controlados. Com os Boa Gente, a conversa era outra. Boa Gente. O nome era enganador. As pessoas utilizavam-no, segundo Broichan, para não os ofender.
- Eles têm outros nomes, sabes, Bridei? - disse o druida, muito sério, quando estavam ambos sentados num banco de pedra em frente das cinzas da lareira da noite anterior. A luz do dia começava a infiltrar-se, fria e pura, através dos vidros coloridos da janela redonda da sala do druida, desenhando padrões vermelhos, violetas e azuis nas lajes do chão. Bridei aconchegou a capa em redor do pescoço e enterrou as mãos nas suas pregas. O jovem não queria que o druida visse que estava a tremer de frio. - Nomes que eu não pronuncio fora de portas porque irritar aquela gente é convidá-la à maldade.
Os seus nomes verdadeiros são... disse Broichan, transformando a voz num sussurro - os Urisk, que moram na espuma por trás da queda de água e que seguem os homens à noite, chorando a sua solidão; os Tarans, espíritos de bebés que morreram no berço; ou os Anjos da Morte. Há muitos, todos diferentes e todos perigosos à sua maneira. Muitos são bons e nós damos-lhes nomes bons. Em si, já são uma protecção contra o mal.
Bridei acenou com a cabeça, esperando que o druida não o ouvisse a bater os dentes.
- Devem ser sempre respeitados - disse-lhe Broichan, muito sério. - Respeitados e temidos; não acrescento dignos de confiança porque eles não entendem o termo como nós. Os nossos conceitos de lealdade e confiança são, para eles, incompreensíveis. os homens sensatos sabem que tais seres são importantes no esquema das coisas. Somos todos interdependentes, plantas e criaturas, pedras e estrelas, Boa Gente e humanos. Agora - disse Broichan, pondo-se de pé - levanta-te, fecha os olhos e diz-me quais foram os feitiços que viste e que protegem a minha casa de visitantes indesejados.
Bridei levantou-se. Não estudara aquilo, não fizera nenhuma visita de inspecção, não se preparara. Porém, o que se esperava dele era que observasse, que aprendesse, e sempre, em todos os momentos do dia. Com os olhos bem fechados, Bridei viu mentalmente a casa comprida, baixa, de pedra cinzenta, o telhado de colmo escurecido pela chuva e pelo gelo, os pesos de pedra seguros pelas grandes cordas; viu o espaço em redor, as plantas, os carreiros, depois as portas, as aberturas, as divisões, os cantos. O jovem enumerou tudo o melhor que pode: zimbro, fetos e alecrim, um carreiro de pedras brancas em círculo, uma caixa com pedras por baixo dos degraus da entrada. Três pregos na porta das traseiras, em triângulo. Grinaldas de folhas e espinhos por cima das portas, uma trança de alho.
E? - perguntou Broichan.
Bridei hesitou. Depois respirou fundo e continuou: A janela, aquela especial - é redonda como a lua cheia. Representa a bênção da Que Brilha. Os vidros são coloridos para que... os Boa Gente não vejam onde é a entrada.
- E?
E... coisas normais, que não são mágicas. Mara deixa malgas de leite lá fora e Ferat deixa um pão por baixo das sorveiras bravas, para que os Boa Gente não façam mal às vacas e aos cavalos.
- Mais nada? Uma pausa.
- Estamos sempre a aprender - disse Bridei. Era uma das frases preferidas do seu pai adoptivo. - Mas por agora não me lembro de mais nada e tenho uma pergunta para fazer, meu senhor.
- Podes abrir os olhos, filho - disse o druida. Bridei pestanejou e viu, aliviado, que o seu pai adoptivo estava a pôr lenha na lareira. Broichan acendia a lareira com facilidade; só precisava de dizer umas palavras em voz baixa e de estalar os dedos compridos. Os toros de pinho acendiam-se, pegavam e depois ardiam intensamente. O calor espalhava-se pela divisão, chegando aos dedos dormentes, ao nariz gelado e aos ouvidos doridos de Bridei.
- Senta-te, rapaz e faz lá a tua pergunta.
- Que quer dizer uma pilha de pedras brancas na berma de um carreiro? Quer dizer que podemos passar, ou não?
As suas mãos começavam a aquecer. Broichan deu um estalo com os dedos e um dos homens da cozinha trouxe-lhes um tabuleiro com papas de aveia, leite e um jarro de hidromel.
- Toma o pequeno-almoço, Bridei - disse o druida com um brilho distante nos olhos e com as sobrancelhas levemente franzidas. Diz-me uma coisa: Donal levou-te para sítios onde não devias ir?
Com uma colher de papas de aveia a meio caminho da boca, Bridei corou.
- Não, senhor. Eu é que o levei e não fomos pelo carreiro que tinha as pedras. Donal disse que era melhor não irmos, os cavalos estavam assustados. E disse-me que eu devia perguntar-lhe o que era aquilo.
- Antes de voltares lá, queres dÍzer? - perguntou Broichan, mas o druida não parecia zangado.
- Se não quiser, não volto, meu senhor. Conhece o local? Broichan deitou um pouco de hidromel na sua caneca, ignorando
as papas de aveia. O druida bebeu um gole, pensou e pousou o grande recipiente.
- Primeiro, quero fazer-te outra pergunta - disse ele.
Era evidente que a aula ainda não tinha terminado. Bridei pousou a malga no tabuleiro e esperou, imóvel.
- Tu és observador. Distingues logo o que protege a casa de intrusos. Quero que penses novamente na tua resposta e que desta vez não respondas à pergunta como uma criança que recita o que aprendeu, responde como um druida, com as tuas faculdades mentais.
Bridei pensou. O jovem não sabia qual era a resposta que Broichan queria. Talvez a pista estivesse na própria pergunta.
- Não são só os Boa Gente - disse ele, pensando nas possibilidades. - Há outras espécies de perigos, contra os quais não podemos usar feitiços.
- Continua - disse Broichan.
- Donal ensina-me a montar - disse Bridei, pensando em voz alta - mas também é uma espécie de guarda. Há muitos homens armados nas redondezas. Eu sei que o senhor conjura brumas e faz feitiços nas árvores para que eles se afastem, e também sei que traz sempre consigo uma faca escondida. Pouca gente aqui vem. Eu acho que existe perigo. O senhor raras vezes sai daqui, apesar de ser o druida do rei. Erip diz que o senhor é o homem mais infu... infru... influente de Fortriu.
- Que quer dizer isso? Influente?
- Consegue que as pessoas façam o que o senhor quer - tentou Bridei.
- Ah! - O som feito por Broichan parecia quase uma risada, mas de alegre não tinha nada. Bridei calou-se, preocupado por a sua resposta, aparentemente, ter desagradado ao druida.
- Quem dera que assim fosse - acrescentou Broichan, enchendo uma colher com papas de aveia e levando-a à boca. O druida fez uma careta à comida fria, em cuja superfície já se estava a formar uma película cinzenta. - Quem me dera que a sabedoria prevalecesse sobre a confusão e a ignorância, Bridei. Um druida, por mais influente que seja, não chega para curar as feridas de Fortriu.
Esquecido o pequeno-almoço, Bridei pensou nas palavras do druida.
Mas o senhor consegue fazer fogo, mudar o tempo, e sabe muitas coisas, encantamentos e feitiços, plantas e animais - disse o jovem. - Não é mais poderoso do que qualquer homem? Não é mais poderoso do que qualquer rei?
Broichan fitou-o com os seus olhos escuros, de falcão.
As tuas papas estão a ficar frias - disse ele. - Acaba de comer.
Nem o mais bravo dos guerreiros vai para a batalha de estômago vazio. Isso é que Donal te devia ensinar.
Bridei já se estava a habituar à maneira de falar de Broichan. Engoliu as papas geladas e guardou os pensamentos para si próprio, suspeitando que o perigo não vinha dos Boa Gente com os seus truques e as suas coisas estranhas. O perigo vinha do mundo dos homens.
Bridei terminou o pequeno-almoço e deixou a sala sem uma resposta à sua pergunta. Quando chegou aos estábulos à hora marcada, a égua preta do druida, Sibel, esperava, selada, ao lado da pequena Pearl e do grande Lucky. Broichan e Donal, embrenhados numa conversa, calaram-se quando Bridei se aproximou.
- Leva-nos ao local de que falaste, rapaz - disse o druida. Mostra-nos as pedras, a bruma, a entrada. Aproxima-te com cautela. Aplica os teus ensinamentos. Não queremos perder-nos; podes deixar que o teu cavalo encontre o caminho, mas tens de o ajudar e não podes deixar de ouvir o coração da terra por baixo dos teus pés, assim como o que se passa por cima de ti e à tua volta. Tens de percorrer sempre a floresta como fazendo parte dela, Bridei, não como um intruso. Desse modo, não precisarás de feitiços. Vamos?
Estava uma bela manhã. O ar outonal era frio e seco; vinham aí as primeiras geadas. Os carreiros estavam cheios de folhas castanhas, douradas, avermelhadas, ocre, dispostas em pilhas relativamente grandes, como se fossem o tesouro acumulado por um dragão. Continuavam a cair à medida que a brisa agitava os ramos, ali um murmúrio amarelo, além uma lágrima tão vermelha como uma gota de sangue. Ouvia-se os cascos dos cavalos bater suavemente no chão. Bridei conseguia ver a nuvem provocada pela respiração de Pearl e também a sua, mais pequena. O jovem sentia-se feliz por poder usar, finalmente, o seu chapéu de pele de ovelha.
Atento às instruções do druida, Bridei seguia com cuidado e olhava em volta. Havia coisas estranhas naquela floresta, apercebeu-se o jovem, coisas que pensava ver pelo canto do olho, mas que depois se perdiam quando olhava para elas. Manchas encarnadas que não eram folhas; movimentos súbitos que não eram pássaros. Arbustos onde no dia anterior só havia rochas cobertas de musgo; sons que pareciam gargalhadas, ou canções, em locais muito afastados das casas mais próximas. Bridei estremeceu. O nome Boa Gente era um nome amistoso, simpático, mas o que Broichan dissera deles nada tinha a ver com isso.
Os cavaleiros passaram por baixo de grandes carvalhos e pararam na orla de uma súbita fenda na encosta. Bridei desmontou. A pequena pilha de pedras continuava no mesmo sítio. No outro lado do carreiro estava outra, idêntica. Entre ambas, o carreiro íngreme, envolto no seu xaile vaporoso, mergulhava nas profundezas do vale escondido.
Os outros dois cavaleiros desmontaram. Donal segurou nas rédeas. Broichan, protegendo os olhos com uma das mãos, observava Bridei, impassível.
- Agora, tu é que sabes, rapaz - disse o druida. - Interpreta os sinais e diz-nos o que devemos fazer.
- Continuamos - respondeu de imediato Bridei com o coração a bater descompassado, ao mesmo tempo excitado e temeroso. Pearl teve medo de continuar, da última vez, mas hoje não, está a ver?
- Mesmo assim - disse Broichan - deixamos aqui os cavalos à guarda de Donal. Os perigos de que ele nos pode proteger não nos vão seguir num lugar tão sobrenatural. Por outro lado, há certas forças nestes bosques que gostam muito de carne de cavalo e este vale envolto em bruma parece ser um sítio do seu agrado. A tua pequena Pearl estará mais segura aqui com um guerreiro de Fortriu do que lá em baixo, por mais vontade que tenha de te seguir.
Donal parecia satisfeito por ficar fora daquela expedição. Prendeu os três animais e em seguida sentou-se encostado ao tronco maciço de um carvalho com as pernas compridas esticadas por cima das raízes da árvore, parecendo descansar. Mas era uma ilusão; o olhar nos olhos semicerrados e a posição estratégica da faca, ao alcance rápido da mão, eram familiares a Bridei. Donal também lhe dera algumas lições que não tinham nada a ver com cavalos.
Enquanto descia o carreiro íngreme atrás do druida, Bridei tinha a sensação estranha de que as plantas rasteiras e os arbustos espinhosos se afastavam para ele passar; que o espesso tecido de vegetação decidira, naquele dia, permitir a entrada de intrusos. Perguntou a si próprio se aquilo se deveria a um feitiço de Broichan, porque sabia que o druida tinha um domínio considerável sobre as forças da natureza. Porém, não havia sinais de magia. Broichan caminhava muito simplesmente pela encosta abaixo, com muito cuidado, o bordão numa mão, a outra mão segurando a orla do manto para não tropeçar. Se estava a lançar um feitiço, não precisava de usar as mãos, nem de dizer nada. A magia, pensou Bridei, já lá estava.
O jovem não sabia ao certo o que ia encontrar: homens pequenos escondidos por trás de cogumelos venenosos, talvez, ou carantonhas, de dentes compridos, vindas do subsolo, ou os Urisk surgindo da bruma, de olhar triste e mãos estendidas. Porém, naquele momento, a única coisa que Bridei via era o vapor cinzento-azulado e o carreiro sempre a descer, mergulhando cada vez mais naquele universo espesso.
Finalmente, a descida cessou e, como que à mercê do feitiço de um druida, a cortina de bruma dissipou-se e os dois companheiros viram-se à beira de uma lagoa escura e profunda. Mais um passo e as suas águas teriam engolido o homem e o rapaz. Bridei quase perdeu o equilíbrio. Subitamente, Broichan ficou muito quieto. À medida que a bruma se desvanecia, a paisagem ia-se revelando: pedras atarracadas cobertas de líquen, espalhadas pela margem, como animais preparando-se para beber a água escura; uma trepadeira enrolando-se em tudo, as suas folhas em forma de flecha muito escura, as suas flores minúsculas, de um branco puro. Para além daquilo, a terra estava nua; não havia fetos, ou arbustos, nenhuma vegetação suavizava as margens da lagoa, ou orlava as rochas, excepto aquela trepadeira luxuriante que encontrava caprichosamente o seu próprio caminho. O silêncio era total. Não se ouvia um único pássaro, nenhum animal se agitava no solo, nenhuma mosca perturbava a superfície espelhada daquela lagoa escura. Parecia um outro mundo, um reino inexplorado pela mão humana, tão silencioso que Bridei ouvia o bater do seu próprio coração.
- Este buraco chama-se Vale dos que Caíram. - A voz de Broichan era um sussurro. Porém, naquele lugar silencioso, soou como um grito. - Conto-te a sua história a caminho de casa. Olha para a água, Bridei, chega-te aqui.
Bridei sentiu as mãos do druida nos seus ombros. O facto de Broichan estar atrás dele, sólido e forte, fê-lo sentir-se muito melhor.
O jovem olhou para as águas escuras da lagoa e para os seus próprios olhos, que, reflectidos, o fixavam. Também conseguia ver Broichan, severo e alto, com a sua capa negra, o seu rosto branco. E por trás de Broichan - Bridei fechou os olhos com força e voltou a abri-los. Teria mesmo visto? Um machado assobiando pelo ar, cintilando, mortal, e a mão do druida erguendo-se para o agarrar pela lâmina cortante, sangrenta e...
- Cuidado, rapaz - disse Broichan, segurando com força nos ombros de Bridei. - Não confundas uma visão com a realidade. Respira como eu te ensinei, lenta e firmemente. Aqui há muita coisa para ver e nem todos os olhos vêem as mesmas imagens. Na verdade, muitos vêem apenas a água, a luz e um peixe ou dois. O que é que te alarmou tanto?
Bridei não respondeu. Estava a olhar para a superfície da água porque nela via, agora, uma sucessão de imagens. A lagoa emitiu uma luz vermelha e prateada e mostrou-lhe uma batalha, não a sua totalidade, apenas algumas partes, as mais terríveis, que construíam o todo: homens gritando, homens com medo, homens incrivelmente corajosos que continuavam a lutar com os maxilares esmagados, com os membros partidos e os rostos a escorrer sangue. Homens com feridos e mortos às costas, tentando pô-los a salvo apesar da perseguição tenaz e vingativa do inimigo. Um pequeno cão fielmente de guarda ao corpo enroscado do seu dono, o pêlo manchado com o sangue do seu amigo e o olhar desolado. Uma mão decepada, uma cabeça sem corpo, jovem, furiosa, o filho de alguém, o irmão de alguém. O inimigo prosseguia como uma vaga gigantesca gritando o seu triunfo, levando tudo na frente. Depois da sua passagem, Bridei viu o vale limpo de destroços humanos, vazio, à excepção de uma mágoa tão grande, tão profunda, que nunca mais ninguém o percorreu. Agora, era um reino de brumas e de sombras, morada de espíritos inquietos.
As imagens tornaram-se acinzentadas, escureceram ainda mais, desvaneceram-se e ficou apenas a água. Bridei respirou fundo; o jovem perguntou a si próprio se teria mesmo respirado enquanto olhava para a lagoa.
- O Espelho Negro - disse Broichan, libertando o seu filho adoptivo e acocorando-se junto de uma das pedras gastas. Subitamente, Bridei apercebeu-se de que estas, sete ao todo, eram sábios antigos, vigiando aquele vale guardado pela bruma: os sete druidas.
- Ver-me-ás utilizar isto de vez em quando, mas não aqui; eu uso o que me pertence, que é de bronze e de obsidiana, e não o levo para fora das paredes da minha casa. Como viste, este local só admite quem quer, e raramente quer. Em princípio, tu poderias ver alguma coisa e por isso foste chamado. Podes dizer-me o que viste?
Bridei olhou para ele, surpreendido.
. Não viu?
Eu vi o que vi - disse Broichan. - Não ouviste o que te disse?
Pode ter sido a mesma coisa, ou talvez não. Diz-me o que viste.
Vi uma batalha - disse Bridei, estremecendo. Subitamente, o jovem não queria falar do assunto, queria montar com Donal, que o Sol brilhasse, queria pensar apenas no pão e no queijo do jantar. - Foi horrível. Golpes, gritos, mortes. Sangue por toda a parte.
- Foi há muito tempo - disse Broichan no caminho de regresso.
Os netos daqueles guerreiros estão mortos e enterrados e as netas destes são hoje anciãs. O seu sofrimento terminou há muito.
- Foi uma injustiça - disse Bridei.
- Uma injustiça a coragem ser recompensada com a morte? Talvez, mas a guerra é assim mesmo. Como sabes que os que morreram eram os nossos, Bridei? Talvez os vencedores fossem os nossos e os corajosos vencidos os nossos inimigos. Que me dizes a isto?
Bridei não respondeu de imediato. O jovem nunca vira uma coisa tão horrível e tão doentia como aquelas imagens de carnificina e morte e esperava não voltar a vê-la.
- Não devia ter acontecido - disse ele finalmente. - Foi uma injustiça. O líder deles devia tê-los salvo. Devia ter retirado a tempo.
- Tê-lo-ias feito, se fosses tu o líder?
- Teria planeado as coisas como deve ser. Tê-los-ia salvo.
- Uma batalha não se trava para salvar homens, trava-se para se ganhar. Um líder sabe que perde guerreiros e os guerreiros contam morrer chegada a sua hora. Faz parte da natureza dos homens lutarem uns com os outros. Porém, tens razão, filho. As coisas podem ser mais bem feitas, muito mais e a chave está no planeamento. Ah, finalmente, chegámos. O passeio fez-me fome; pergunto a mim próprio se Donal tem qualquer coisa que se coma.
Donal, um veterano, não os desapontou. A sua bolsa da sela tinha pão escuro, queijo salgado e umas pequenas maçãs e eles comeram numa elevação por cima do Lago da Serpente, onde os cavalos podiam pastar. Broichan comeu frugalmente apesar da sua conversa acerca da fome; o druida era reservado em tudo.
- O Vale dos que Caíram - disse ele finalmente, olhando para lá das águas prateadas, na direcção dos montes escuros no outro lado foi, em tempos, um lugar de uma tal calamidade que as pessoas, desde então, olham para ele com referência e repulsa. Houve lá uma batalha; isso já tu sabes.
- E morreram muitos homens - disse Bridei, perdendo abruptamente o apetite pela maçã estaladiça que estava a comer.
- Uma comunidade inteira - disse Broichan - pais, irmãos, maridos, filhos, homens de muitas aldeias, a norte e a sul do Grande Vale. Lutaram todos corajosamente; tu viste apenas o fim, os últimos momentos de um conflito que durou desde a sementeira à colheita. As nossas forças já estavam derrotadas; o inimigo tinha conquistado as ilhas ocidentais, as terras ao longo da costa e marchava para leste como uma praga, pareciam decididos a devastar o próprio coração de Fortriu, a só parar quando o último dos nossos guerreiros morresse. Viste o resultado. Os nossos homens caíram ali, até ao último. Quando o inimigo se foi embora apareceu outro exército, as viúvas, os órfãos, os velhos, para recolher os seus e enterrarem-nos. Depois, alguém ficou a guardar o local, mas ninguém sabe quem é. As pessoas dizem que, de noite, se ouve um cão a uivar.
- Um lugar bem triste - comentou Donal.
O Vale dos que Caíram não foi apenas um cenário de morte e de derrota - disse Broichan - contém a essência dos homens de Fortriu que morreram naquele dia. Cada um daqueles guerreiros levava no coração o amor pela sua terra, pelos seus, pela sua fé. Não devemos, nunca, esquecer isso, apesar da tristeza das suas mortes.
- Meu senhor - perguntou Bridei - quem era o inimigo? Os olhos deles eram estranhos, assustaram-me.
Donal respondeu por Broichan, em tom amargo.
- Os Celtas, malditos sejam, aquela raça maldita do outro lado do mar. A invasão foi comandada pelo velho rei. Hoje, quem os governa é o neto, Gabhran. Rei de Dalriada. Bah! - Donal cuspiu para o chão.
- Não passa de um intruso, sempre a meter-se onde não é chamado. Já nos chega um rei; não precisamos que aquele habitante dos pântanos venha para aqui para nos roubar.
Broichan olhou de soslaio para o guerreiro e Donal calou-se.
- Não falemos de reis - disse suavemente o druida. - Bridei há-de estudar esse assunto e há-de ser ajudado por especialistas, mas mais tarde. Ele ainda agora começou a arranhar a superfície daquilo que deve saber.
Bridei pensou nas palavras do druida enquanto acabava a refeição e regressavam a casa pela floresta. O jovem queria fazer uma pergunta a Broichan, uma pergunta que lhe ocupava frequentemente os pensamentos. O seu pai adoptivo dizia mais tarde, falava em futuro, em todas as coisas que Bridei tinha de aprender. Porém, Broichan nunca dizia porquê, o que seria de Bridei uma vez terminada a sua educação. Regressaria a Gwynedd, para a sua família, que já começava a esquecer? Tornar-se-ia num druida como Broichan, severo e alto, sempre a pensar em coisas sérias? Ou o druida queria dizer outra coisa qualquer? Talvez estivesse destinado a ser um guerreiro como os do Espelho Negro. O jovem estremeceu ao recordar as imagens que vira. Não podia fazer uma tal pergunta, assim sem mais nem menos.
- Diz-me uma coisa, Bridei - disse Broichan, interrompendo-lhe os pensamentos - sabes nadar?
A pergunta era totalmente inesperada. Porém, Broichan estava sempre a surpreendê-lo.
- Não, meu senhor, mas gostava de aprender.
- Óptimo. Vamos precisar dos serviços de Donal durante o Inverno, nesse caso, para que te possamos ensinar enquanto o tempo ainda está quente. E a remar, também. Ainda bem que não caíste na lagoa. As suas águas são muito frias e muito profundas.
- Obrigado, meu senhor. - Não havia mais nada para dizer. Se alguém caísse no Espelho Negro, teria de certeza mais em que pensar do que no risco de afogamento.
- Entretanto - disse o druida, preparando-se para subir mais uma vez para o seu cavalo - o Inverno é propício à aprendizagem dos números, dos códigos, dos jogos e da música e acho que Donal pode utilizar o salão para te treinar, para que sejas um pouco mais autónomo. Eu sou capaz de me ausentar durante algum tempo. Porém, fica descansado, que vou nomear outros tutores.
- Sim, meu senhor. - Uma coisa era certa, pensou Bridei. Não ia ter tempo para se aborrecer.
Anos mais tarde, Bridei perguntaria a si próprio se Broichan se teria esquecido de que o seu filho adoptivo ainda não tinha seis anos. O jovem sentia-se inclinado a pensar que não. O druida, simplesmente, queria avaliar a sua capacidade de absorção de informação, de resistência, de obediência, e instituíra um programa intensivo. Os dias eram totalmente preenchidos. O jovem cavalgava com Donal, passava muito tempo a aprender a lutar com duas facas, com uma e com os punhos, a montar e a desmontar com rapidez, tal como vira o guerreiro fazer. De tarde, Broichan administrava-lhe os conhecimentos druídicos a começar pelo Sol, pela Lua e pelas estrelas, os seus percursos e significados, o alinhamento das pedras e os sinais mais antigos espalhados por Fortriu, entraram profundamente no estudo das divindades e dos espíritos, dos rituais e das cerimónias. Tal como o druida dissera, até ali ainda só tinham arranhado a superfície. À noite, Bridei adormecia com as lições enredadas e retorcidas na cabeça e com o corpo moído de cansaço. O jovem comia como um cavalo e crescia a olhos vistos. Algum tempo antes do Solstício do Inverno. Broichan ausentou-se para comparecer no conselho do rei. Os territórios dos Priteni estavam divididos em quatro partes: Fortriu, onde Pitnochie estava localizado, o reino de Circinn a sul, os territórios mais distantes dos Caitt e as Ilhas Pequenas. Quando Bridei perguntou onde se enquadrava Gwynedd, o reino do seu pai, no meio daquilo tudo, Broichan sorriu.
- Gwynedd é outra terra, Bridei - disse o druida. - O povo do teu pai não pertence aos Priteni. Não te lembras do tempo que demoraste a chegar aqui?
Bridei não disse nada. As suas recordações começavam a desvanecer-se.
- Haverá representantes de dois reis no conselho - disse-lhe Broichan. - As nossas terras estão divididas; foi um dia negro aquele em que Drust, filho de Girom, se tornou cristão e o seu reino de Circinn se separou de Fortriu. Aqui, no norte, fomos abençoados com um rei fiel aos antigos deuses. Drust filho de Wdrost, conhecido como Drust, o Touro, governa todos os territórios do Grande Vale. Quando dizem que sou o druida do rei, é de Drust, o Touro, que falam. Drust é um homem bom.
Bridei desejava que Broichan não se ausentasse. O seu pai adoptivo não sorria muito; não brincava nem jogava como os dois anciãos que se tinham ido embora. Porém, Broichan sabia muitas coisas interessantes e estava sempre pronto para as partilhar. O druida ouvia quando Bridei queria explicar qualquer coisa, não era como Mara, que estava sempre ocupada, ou como Ferat, que nem sequer parecia ouvi-lo. Broichan tinha sempre tempo para Bridei e apesar de raramente o elogiar, o jovem aprendera a reconhecer uma certa expressão, de agrado, nos olhos escuros do seu pai adoptivo. Bridei desejava que Broichan ficasse em casa.
Chegou o dia. No pátio, Sibel estava selado e pronto; quatro homens de armas seguiriam com o druida, como escolta. Donal ficaria em Pitnochie.
Vou trabalhar muito, meu senhor - disse Bridei, antes de Broichan subir para o seu cavalo.
Eu disse alguma coisa? - disse Broichan com um quase sorriso.
Eu sei que darás o teu melhor, filho. Não negligencies o trabalho intelectual em prol do treino físico. Agora, tenho de ir, adeus, Bridei.
- Boa viagem, meu senhor - disse Donal, segurando as rédeas de Sibel. - Eu tomo conta do rapaz.
- Adeus - murmurou Bridei, sentindo-se subitamente muito esquisito. Prometera ao seu pai que não choraria. O jovem assistiu à partida de Broichan rodeado pelos seus guardas, à sua passagem pelos carvalhos nus e pela margem do lago. Os quatro companheiros tinham uma longa jornada pela frente até Caer Pridne, a grande fortaleza de Drust, o Touro.
- Muito bem - disse Donal, tentando animá-lo. - Que tal as espadas, hoje? Tenho uma pequena, que és capaz de conseguir levantar com facilidade. Que te parece?
A lição de esgrima manteve Bridei ocupado durante algum tempo e enquanto durou não houve na sua mente lugar para outra coisa que não força, equilíbrio e concentração. Só na parte de tarde, quando o céu ficou mais escuro, se formou uma cortina de chuva e os seus braços lhe começaram a doer em protesto contra o trabalho árduo da manhã é que Bridei sentiu a tristeza invadi-lo. Donal estava a fazer qualquer coisa com os homens de armas, Mara tratava da roupa, resmungando que não conseguia secá-la e Ferat estava danada com a lenha molhada. Não havia ninguém com quem conversar.
O pequeno quarto de Bridei era a seguir aos alojamentos de Donal e dos homens de armas. Porém, na prática, o guerreiro dormia geralmente no corredor, à saída do quarto do jovem, argumentando que os outros ressonavam e não o deixavam dormir. Pela minúscula janela, por onde mal cabia um esquilo, Bridei avistava uma nesga do lago por entre os ramos de um vidoeiro. Por vezes, o jovem conseguia ver a Lua através dela e deixava uma oferenda no parapeito: uma pedra branca, uma pena ou um talismã feito de ervas e plantas. Broichan ensinara-lhe a importância da lua, como aquele astro governava as marés dos oceanos e dos corpos dos homens, das mulheres e dos animais, ligando-os aos ciclos da natureza. A Que Brilha era poderosa, tinha de ser reverenciada.
Naquele dia não se via a Lua, apenas as nuvens e a chuva, como se fossem lágrimas de uma tristeza infinita. Bridei deitou-se na cama e olhou para a janela, um pequeno quadrado na parede de pedra. O jovem sabia o que Broichan diria: A. autopiedade é uma perda de tempo e o tempo é precioso. Usa-o para aprender. Em seguida, o druida falaria da chuva, do seu papel nas estações e como o elemento da água era como a Lua nas suas variações. Havia uma lição para aprender em tudo o que acontecia, mesmo quando as pessoas se ausentavam e deixavam saudades. Porém, naquele momento, Bridei não queria aprender. Sem o seu pai adoptivo, nada parecia estar certo em Pitnochie.
O jovem sentou-se de pernas cruzadas em cima da cama e recitou o conhecimento para si próprio até as pálpebras começarem a fechar. Em seguida, levantou-se e tentou equilibrar-se numa perna apenas, com um braço atrás das costas e com um olho fechado, o método que os druidas utilizavam para meditar. Em seguida, dobrou os cobertores cuidadosamente, de modo que os cantos condissessem na perfeição, tirou tudo o que tinha na arca e voltou a arrumar tudo de maneira diferente. Depois, limpou as botas e afiou a faca, mas ainda não eram horas de jantar.
Bridei foi até à janela e olhou para a chuva a cair. O jovem pensou no dia que passara e na expressão dos olhos de Broichan quando o druida se despedira, pensou no Vale dos Que Caíram, naqueles homens todos mortos antes do seu tempo e no futuro triste das suas famílias. Bridei perguntou a si próprio o que custaria mais: partir ou ficar.
O treino de combate de Bridei aumentou. Donal ensinou-o a agarrar um adversário, a imobilizá-lo, deu-lhe equilíbrio, força e velocidade e também o ensinou a cuidar das armas. Bridei aprendeu a usar o arco e a acertar no centro do alvo nove em cada dez vezes. Donal começou a afastar cada vez mais o alvo e a acrescentar graus de dificuldade, como uma distracção no momento do disparo, por exemplo, ou ordenando-lhe subitamente que fechasse os olhos. As aulas nunca eram maçadoras. Devido às instruções cuidadosas do guerreiro quanto à limpeza e lubrificação das lâminas, manutenção das flechas e do arco, Bridei apercebeu-se de que aquele Donal comprido e esquisito era à sua maneira, tão disciplinado como o severo druida.
As tardes, que antes eram passadas com Broichan a recitar o conhecimento, ou a estudar os mistérios, eram agora passadas com os seus próprios esquemas e projectos. Bridei tinha estudado os elementos e fazia os possíveis para se recordar de tudo o que Broichan lhe ensinara não só as palavras do conhecimento que por vezes ele não compreendia bem, mas também o seu significado escondido. As fases da Lua governavam as águas e as águas eram como as marés do espírito, fortes e flexíveis. A água significava tempestades, cheias, chuva para as sementeiras; significava lágrimas salgadas. A água podia rugir numa grande torrente, podia cair fragorosamente por um precipício abaixo, ou podia jazer imóvel e silenciosa, à espera, como o Espelho Negro. Depois, o fogo, poderoso e consumidor. O calor de uma lareira podia manter um homem vivo, mas a sua fúria também podia matá-lo. A dádiva especial de Guardiã das Chamas aos homens era o fogo no coração: a coragem, capaz de arder mesmo perante a morte. O ar estava frio, uma promessa de neve, e transportava o aroma dos pinheiros. O ar suportava o voo das águias, bem acima do Grande Vale. Bridei compreendia o que as águas sentiam quando olhava para a extensão das terras de Fortriu em toda a sua grandeza. A sua terra. O seu lugar. A terra estava viva sob os seus pés, um corpo vivo, conhecedor, do qual tudo saía - os veados, as águias, os esquilos, os salmões brilhantes, os corvos de olhos vivos, os homens, as mulheres, as crianças e os outros, os Boa Gente. A terra é que o amparava e quando chegasse a sua hora, levá-lo-ia. A terra era capaz de fazer uma casa, ou abrir um trilho; a terra cobria o longo sono dos guerreiros. Até as coisas mais pequeninas tinham significado: um graveto queimado, uma pequena pedra branca, uma pena, uma gota de chuva.
Quando saía sozinho, Bridei tinha de obedecer a certas regras, podia trepar a Cicatriz da Águia desde que tivesse cuidado, podia percorrer os bosques até ao segundo rio, a sul, mas não se podia aproximar da aldeia ou aventurar-se a pé na floresta até ao Vale dos Que Caíram. Quando perguntava a Donal a razão, o guerreiro dizia simplesmente: "não é seguro." Como o guerreiro, invariavelmente, era sensato e amável, Bridei aceitava as regras. O jovem suspeitava que a recusa tinha a ver com os Boa Gente. Além do mais, tinha sempre presente as palavras do seu pai: Obedece, aprende. Bridei percorria os trilhos, trepava as rochas e subia às árvores e até encontrou a toca de um texugo, um ninho de águia abandonado e uma queda-de-água gelada com frágeis filigranas afiadas como facas, mas não encontrou vivalma.
Uma tarde, tudo mudou abruptamente quando regressava de uma caçada. Bem, não exactamente de uma caçada; o jovem transportava o arco a tiracolo e levava a sua faca no cinto, mas não era sua intenção usar uma coisa ou outra. Poucos dias antes matara um coelho, mas Donal estava presente. Para seu grande alívio, o tiro matara o animal imediatamente, não precisara de usar a faca. Bridei, que tinha muito tempo para pensar, sabia que podia ter sido diferente.
Naquele dia, levara as armas consigo porque fazia sentido, mais nada. Donal e os outros não andavam sempre com uma faca na bota? Tudo o que Bridei queria era subir até aos últimos vidoeiros e sentar-se nas pedras junto da grande queda-de-água a que chamavam Véu da Dama a observar as águias. As montanhas já tinham um manto de neve e as águas do lago reflectiam o tom cinzento-escuro do céu. Os chamamentos das aves eram lamentosos, ecoavam pela floresta, chamando e respondendo lugubremente. Talvez o frio as obrigasse a chamar assim; como encontrariam comida no Inverno, com as bagas enrugadas nos arbustos castanhos e as ervas amortalhadas por baixo da neve? Talvez se limitassem a chamar para engrandecer aquele espaço grandioso, vazio. No fim de contas, chegara a hora do Inverno; as criaturas selvagens sabiam-no tão bem como Bridei. O Inverno era a época em que a terra dormia, a época dos sonhos, a época da preparação para o que viria a seguir, uma das primeiras lições de Bridei. Era no Inverno que os rapazes da sua idade abriam a imaginação às vozes que nas outras estações se mantinham abafadas devido às diversas ocupações. Aprendia-se com tudo: especialmente com os sonhos.
O Véu da Dama não estava gelada; o seu caudal era demasiado pesado, demasiado aberto, não se deixava abraçar pelo gelo. Na base, as poças tinham cristais minúsculos e as plantas estavam geladas. Bridei trepou pelas rochas até ao topo. Por momentos, o jovem ficou a observar o céu, mas não viu nenhuma águia. O jovem praticou a posição numa só perna, perguntando a si próprio qual dos seus olhos veria melhor. Após algum tempo, os seus pés começaram a ficar dormentes e as orelhas a doerem apesar do gorro de pele de ovelha e Bridei decidiu pegar na aljava e no arco e regressar a casa. Ferat devia ter bolos de aveia e o jovem tinha fome.
Num dos lados e abaixo da queda-de-água havia um maciço rochoso que demarcava a encosta; em redor cresciam arbustos de azevinho, escuros e de folhas lisas. Bridei tinha dado dois passos ao longo do carreiro na base das rochas quando ouviu um estalar muito leve, insignificante. O jovem parou, gelado. Havia algo ali perto por baixo das árvores, algo que também se imobilizara, algo que o seguia, que o espreitava. Um javali? Um gato selvagem? O coração de Bridei começou a bater com toda a força. Os pés do jovem queriam correr. Para o seu tamanho, Bridei era muito rápido; não levaria muito tempo a chegar ao dique de pedra que delimitava as terras de Broichan, onde havia um guarda. O seu corpo estava pronto, mas a sua mente disse-lhe que não. E se fossem os Urisk? Os Urisk não precisavam de correr, quando viam uma pessoa, se queriam essa pessoa, colavam-se a ela como uma sombra, por mais rápida que ela fosse. A única maneira de lhes escapar era por meio de um truque: ficar absolutamente imóvel. Desse modo, ficava invisível. Bridei era capaz de ficar muito tempo imóvel.
Então, o estalar do graveto transformou-se no som de um passo nada furtivo. O jovem virou-se e viu um homem todo vestido de castanho e cinzento, um homem difícil de localizar na floresta, ainda por cima no Inverno. O homem tinha um capuz com dois buracos para os olhos e um arco na mão. Enquanto Bridei olhava para ele, petrificado, o estranho colocou uma flecha no arco e preparou-se para o esticar.
Não havia tempo para correr nem um lugar para se esconder. Bridei decidiu que não gritaria nem pediria misericórdia porque era filho de Maelchon, um rei. O assaltante deu um passo em frente, apontou e puxou a corda. Bridei encostou-se à rocha, tenso, com o coração a bater como um tambor. O jovem sentia a rudeza da rocha por trás de si, as fendas e as rachas, mas também o musgo húmido. Uma parte da terra... O homem esticou o arco e Bridei recuou para o interior do maciço rochoso, para a segurança de uma gruta minúscula e estreita. O jovem recuou o mais possível, tentando ficar invisível, fora de alcance.
No exterior, o homem praguejou violentamente. Bridei esperou, tentando não se esquecer de respirar. Através da abertura, o homem meteu uma espada, procurando, brandindo. Bridei encostou-se ainda mais à rocha, fazendo-se ainda mais pequeno. A espada moveu-se, agressiva, mas parecia que o seu dono não conseguia manobrá-la como queria porque a abertura era demasiado estreita, de tal modo que Bridei perguntou a si próprio como conseguira passar por ela.
- Raios partam o miúdo do druida! - resmungou uma voz. Precisamos de fumo...
Então, Bridei ouviu outros sons e percebeu que o homem estava a apanhar gravetos, folhas, fetos, coisas que ardessem. A maioria devia estar molhada, mas Bridei vira as fogueiras de Broichan, que ardiam com um simples estalar de dedos e aproximou-se cautelosamente da passagem para tentar ver qualquer coisa. O homem estava mesmo a apanhar lenha com movimentos rápidos e resolutos. Não valia a pena pedir ajuda. Se aquele guerreiro tivesse uma pederneira, o fumo encheria o seu esconderijo muito antes de qualquer guarda chegar ali. Se não queria morrer naquele buraco, ou sair para a morte certa, Bridei teria de arranjar um meio de se salvar.
No espaço reduzido da pequena gruta, o jovem tentou colocar uma flecha no arco. As suas mãos tremiam e não havia espaço para puxar totalmente a corda do arco. Naquele momento, o homem estava de joelhos, talvez já estivesse a fazer fogo. Como alvo, estava demasiado baixo. A faca: Bridei podia usá-la como Donal e os outros faziam, lançando-a. Nunca tentara, mas não queria dizer que não fosse capaz. Bridei pousou o arco e levou a mão à bainha. Teria uma oportunidade, uma apenas, depois de o homem acender a fogueira e recuar para ver o resultado do seu trabalho. Uma oportunidade. Depois, teria de sair, com chamas e tudo. Talvez as folhas não ardessem. Talvez falhasse o alvo. Não, era filho de um rei, não falharia.
Um fio de fumo começou a erguer-se à entrada da gruta e um cheiro pungente entrou no pequeno espaço onde o jovem estava, fazendo-o quase tossir. O fio transformou-se numa fita, numa coluna, numa pequena nuvem e, subitamente, ouviu-se um estalar. O assassino vestido de cinzento pôs-se de pé e virou-se, expondo o dorso durante um longo momento. Bridei apontou, calculou e lançou a faca, ao mesmo tempo que ouvia o som de passos a correr e o grito de uma voz familiar. Ao mesmo tempo que a faca girava satisfatoriamente através da cortina de fumo, apareceu uma forma no campo de visão de Bridei, uma silhueta grande, furiosa, que caiu sobre o homem vestido de cinzento. O jovem deixou de ver um e outro. A faca tinha desaparecido. Bridei encolheu-se. As chamas crepitavam em frente da abertura, ouviam-se homens a gritar e metal contra metal. Em seguida, um gorgolejar e um suspiro. As chamas começaram a morrer; alguém pisava a fogueira. Bridei ouviu alguém dizer:
- Mataste-o.
A pequena gruta estava cheia de fumo; Bridei tinha os olhos e o nariz a arder e doía-lhe o peito de tanto tentar não tossir. O jovem fechou os olhos e os lábios com força. Havia algo de errado. Tinha morrido alguém. A sua faca matara alguém. Donal, provavelmente. Donal viera em seu socorro e em vez de esperar, como devia, Bridei lançara a faca sem olhar primeiro, sem calcular os riscos, como Donal lhe ensinara. Cometera um erro grave. O jovem começou a tremer e a chorar como um bebé, sem conseguir parar.
Vozes no exterior.
- Está mesmo morto. Partiu o pescoço, o maldito.
- Mais valia tê-lo deixado vivo; fazíamo-lo falar, quem o mandou, quem é que lhe pagou. Por que é que...? Donal?
Em seguida, um som arrastado, o som de alguém a tentar levantar-se, mas sem o conseguir. Era cada vez mais difícil não tossir. Bridei precisava de fungar; o seu nariz parecia uma fonte.
- O que é isso? Estás a sangrar como um porco! O homem feriu-te?
- É só um arranhão. Vai atrás dos outros, despacha-te!
Passos, muitos, metal contra metal e depois o silêncio, ou quase; Bridei ouvia a sua própria respiração e os seus próprios soluços mas também ouvia a de outra pessoa. Donal estava vivo, mas estava em dificuldades.
- Bridei? - chamou o guerreiro, pouco mais do que um sussurro.
- Onde estás, rapaz? Responde, raios te partam!
A voz de Donal era estranha, talvez estivesse zangado. Um guerreiro não se esconderia como um cobarde, não teria atingido o alvo errado e não se poria a chorar. Bridei descobriu que não era capaz de se mover ou de falar.
- Bridei! - tentou gritar Donal. O jovem já conseguia vê-lo um pouco, um ombro, o velho justilho de pele, a mão do outro braço a agarrá-lo e o sangue a escorrer-lhe por entre os dedos. - Bridei, maldito rapaz, se te deixaste matar, eu... eu... - A voz do guerreiro enfraqueceu; Bridei nunca o ouvira falar daquela maneira, como se a vida estivesse a esvair-se-lhe do corpo mais depressa do que a areia a escorrer por uma ampulheta.
O jovem esgueirou-se por entre as rochas, pisou o monte de folhas e gravetos e apareceu, pequeno e imóvel, ao lado de Donal. Tentou não ver a silhueta do outro homem jazendo a pouca distância com a cabeça num ângulo estranho. Donal estava sentado no chão; os seus olhos estavam fechados e o seu rosto estava da cor das papas de aveia da semana anterior. Havia muito sangue no ombro e no antebraço e o guerreiro tinha a faca de Bridei na mão direita.
- Peço desculpa - disse Bridei solenemente, fungando ao mesmo tempo com força. - Eu queria ferir o outro homem, o que me estava a tentar matar.
Os olhos de Donal abriram-se. A sua boca distendeu-se numa careta e o guerreiro quase se levantou, mas voltou a deixar-se cair com um gemido.
- Todas as Flores seja bendita! Onde estavas, meu maroto... ali? Como é possível? Nem um cachorro ali cabe, quanto mais um tipo grande como tu! Não acredito!
Era verdade. A abertura não parecia suficientemente larga para deixar passar um dos seus ombros, quanto mais o resto. Não admirava que o homem não o tivesse conseguido atingir com a espada... Bridei sentiu-se subitamente esquisito ao pensar na lâmina para cima e para baixo e deixou-se cair ao lado de Donal.
- Conta-me lá o que aconteceu. - A voz de Donal mudara de novo, parecia verdadeiramente zangada, mas Bridei sentiu que não era consigo. - Conta-me tudo, os pormenores todos, tudo o que viste.
- Tu estás a sangrar - disse Bridei. - Eu sei fazer um penso, Broichan ensinou-me. Primeiro, trato-te do ferimento e depois conto-te tudo a caminho de casa. Tens de pôr aí uma cataplasma de absinto e arruda, beber hidromel e ir para a cama cedo. Estou a dizer o que o meu pai adoptivo diria.
Donal olhou para ele em silêncio.
- Desculpa se te feri - disse Bridei uma vez mais, sentindo o lábio inferior a tremer.
- Oh, tudo bem - disse Donal com a voz novamente constrangida. - O ideal é rasgar uma camisa ou duas. Terá de ser a tua, eu não consigo tirar a minha por causa do ombro. Mas tens de vestir imediatamente a jaqueta, está muito frio. E despacha-te, sim? O hidromel soa-me bem ao ouvido.
CAPÍTULO DOIS
Fora um erro, disse Donal. O tipo e os companheiros queriam fazer mal a Broichan, não a Bridei. Bridei sabia que havia ali algo de errado, vira a expressão dos olhos semicerrados do homem, vira os seus dedos esticarem a corda do arco. Broichan tinha inimigos. Um homem que é amigo de todos não precisa de guardas nem de fechaduras nas portas. Talvez aqueles atacantes fossem os inimigos do druida, mas era a ele que queriam matar. Por que razão, não sabia. O seu pai era um rei, era verdade, mas Gwynedd ficava muito longe, tinha os seus próprios conselhos, as suas próprias guerras, estava muito afastado dos reinos dos Priteni. Além do mais, o seu pai mandara-o para longe. Se tivesse alguma importância, a sua família não o teria deixado partir. Aquele ataque não fazia sentido.
O homem que Donal matara estava enterrado num canto do redil. Os outros, avistados pelos guardas de Broichan a partir dos seus pontos de vigia, tinham escapado para a floresta apesar da enérgica perseguição dos homens de armas do druida. O caso ficou sem explicação, a sua missão e origem um mistério. Donal amaldiçoou o tipo por o ter obrigado a matar; preferia tê-lo ferido um pouco e apertado com ele para conseguir a verdade de uma maneira ou de outra, mas era demasiado tarde; o homem vestido de cinzento só contaria a sua história aos vermes.
Bridei ficou proibido de sair sozinho, teria de levar, pelo menos, dois guardas e só quando fosse absolutamente necessário. As cavalgadas diárias foram reduzidas porque Donal andava muito ocupado. As trocas de palavras em voz baixa eram frequentes e todos os homens andavam vigilantes. Mara resmungava para cima da celha de lavar roupa. Ferat praguejava enquanto depenava os gansos e Bridei aprendia palavras novas que não repetia. O jovem passava muito tempo no estábulo, tratando de Pearl e falando com ele porque o seu corpo quente e os seus olhos meigos eram uma boa companhia, aliás como todos os cavalos. As tardes eram passadas a estudar. Bridei tentava não reparar na solidão da casa, na sua pequenez, na sua falta de força, na sua quase impossibilidade de lutar, não pensar em Broichan e no tempo que faltava para o druida regressar a casa.
Na ausência do druida, a casa não observou o ritual do Portal para assinalar a entrada no tempo das trevas apesar de Fidich ter matado um carneiro, já que era necessário um sacrifício. Mara disse que mais tarde, no Lago da Serpente, haveria uma grande pira de troncos de pinho, de freixo e de carvalho. Bridei teria gostado de ir ver as pessoas saltarem a fogueira, como Mara lhe dissera que fariam. Porém, não valia a pena maçar Donal; sabia que a sua resposta seria negativa. Assim, tudo o que o jovem fez foi colocar nos degraus da cozinha uma tigela de hidromel e um prato de bolos de aveia. Em sinal de respeito, o jovem convidava os mortos a partilharem as oferendas da casa, dava-lhes as boas-vindas naquela noite em que as barreiras caíam e os mundos se fundiam. No dia seguinte, o hidromel e os bolos tinham desaparecido; o prato tinha apenas algumas migalhas.
A noite do Portal passara. Em breve chegaria o Solstício de Inverno. O conselho do rei há muito que devia ter terminado, mas não havia notícias de Broichan. As noites ficaram cada vez mais compridas. As candeias ardiam na cozinha e no salão durante o dia, iluminando uma casa sempre cheia de fumo porque a lareira estava sempre acesa, salvo quando estavam todos a dormir. Mara disse qualquer coisa sobre a fuligem e encomendou mais óleo. No seu pequeno quarto, Bridei deixava-se ficar debaixo dos cobertores com a candeia a arder na parede de pedra e tentava concentrar-se no conhecimento. Era como se o seu pai adoptivo se tivesse ido embora para sempre. Quando regressaria Broichan?
Três dias antes do Solstício de Inverno, a neve caiu. O ar chamara-a desde manhã cedo; não havia engano, aquela calma, aquela sensação estranha e enganosa de calor, como se as nuvens suaves quisessem atenuar o abraço do Inverno apesar de estarem a tapar o Sol. Bridei estava na rua a ajudar os homens a mudar as ovelhas de um campo para outro. Os guardas mantinham-se vigilantes nas partes mais altas das terras de Broichan; as suas silhuetas robustas e as suas feições azuladas por causa do frio eram nitidamente visíveis sob os carvalhos nus na orla da floresta. No Inverno, os turnos de vigia eram mais curtos; havia sempre homens a entrar em busca de carne assada e de cerveja; outros a vestirem mais roupa, capas de pele, capacetes de pele, botas pesadas, prontos para mais uma batalha contra o frio. Ferat andava tão ocupado que não tinha tempo para resmungar. O homem tinha dois ajudantes, ambos demasiado aterrorizados com o temperamento do cozinheiro para fazerem outra coisa que não fosse trabalhar a toda a velocidade e rezarem para não cometerem qualquer erro.
A neve começou a cair quando as últimas ovelhas passaram para o outro campo, conduzidas pelos cães extremamente excitados. O trabalho de Bridei era sentar-se no muro de pedra, na abertura, e assegurar-se de que os animais eram devidamente separados. O lado agrícola dos negócios de Broichan era comandado por um homem chamado Fidich. Era evidente que o homem tinha sido guerreiro, em tempos, porque os desenhos que tinha no rosto eram quase tão elaborados como os de Donal e também tinha sinais nas mãos, curvas e espirais, desde os punhos às pontas dos dedos. Fidich tinha uns ombros fortes, uma expressão severa e uma perna direita que acabava logo a seguir ao joelho. O homem caminhava com a ajuda de uma muleta de freixo e conseguia percorrer o terreno difícil da herdade com uma rapidez incrível. Fidich vivia sozinho numa cabana num dos extremos dos campos murados. Não havia ovelha que parisse um cordeiro, ou porco que fugisse para um local proibido, que Fidich não soubesse. Porém, a falta da perna apresentava algumas dificuldades e por isso é que um rapaz no portão dava jeito.
- Muito bem, rapaz, foi a última! - gritou Fidich por cima dos latidos dos três grandes cães. Bridei fechou o portão e aferrolhou-o. As ovelhas que tinham ficado no outro lado, relegadas para um Inverno junto dos arbustos raquíticos, vivendo do que conseguissem encontrar, ficaram confusas, mas depois afastaram-se como se nada de anormal tivesse acontecido.
Primeiro, a neve mostrou a sua presença através de flocos isolados, caindo numa dança lenta, graciosa. Quando os homens, o rapaz e os cães começaram a descer a encosta a caminho de casa, os flocos transformaram-se em farrapos, pousando na lama gelada do carreiro. No lago, a encosta coberta de árvores começou a desaparecer por trás de uma nuvem baixa. O vento levantou-se e os pinheiros responderam gemendo. Quando Bridei e os seus companheiros chegaram a casa, os cães já tinham uma camada branca sobre os pêlos cinzentos hirsutos e o vento soprava com força. Virando-se para a encosta, Bridei não conseguiu ver o campo onde tinham estado a trabalhar, ou as ovelhas, ou os guardas a andarem de um lado para o outro. Estava tudo branco.
- Está a preparar-se uma das antigas - comentou Fidich. - Não vou ficar; tenho de chegar a casa enquanto consigo encontrar o caminho. Vai ser uma noite difícil para os rapazes que estão de vigia.
- É verdade - disse um dos homens. - Só um louco tentaria vir até aqui com uma tempestade destas; aposto que andaria em círculos e acabaria por se sentar para descansar. Nunca mais se levantaria. Tens a certeza que não ficas para comer uma bucha?
- Não, tenho de acender a lareira e os bolos de aveia estão à minha espera - disse Fidich, como sempre.
Até no salão, em frente da lareira, estava frio. Bridei não tinha pressa de ir para a cama porque sabia que o seu pequeno quarto estaria gelado. Estavam todos muito calados. Mara estava a coser à luz da candeia; Ferat estava sentado num banco a olhar, abstracto, para uma caneca de cerveja. A maior parte dos homens já tinha ido para os respectivos alojamentos. Donal estava sentado à mesa a trabalhar nalgumas flechas. Na sua frente tinha uma variedade de facas pequenas e outras coisas, penas, fio e madeira. O guerreiro assobiava por entre os dentes. Bridei sentou-se a seu lado, demasiado cansado para fazer outra coisa que não olhar.
A porta da cozinha abriu-se de repente, fazendo com que todos erguessem as cabeças. Uma rajada de vento entrou pelo salão dentro, fazendo com que o fogo crepitasse. Donal pegou na sua maior faca e levantou-se, ao mesmo tempo que os outros homens de armas corriam para bloquear a passagem entre a cozinha e o salão. Mara colocou o seu grande corpo em frente de Bridei, impedindo-o de ver fosse o que fosse.
- O que...? - foi tudo o que Ferat teve tempo de dizer antes de a porta se fechar violentamente e os homens de armas recuarem para deixar passar duas figuras, uma amparando a outra. Uma era Cinioch, que estivera de guarda junto do muro e a outra, pálida como a morte, de lábios azulados e coberta de arranhões e equimoses devido a uma longa corrida no escuro, era Uven, um dos homens de armas que viajara com Broichan até ao conselho do rei.
Bridei sentiu-se na obrigação de fazer qualquer coisa. O jovem foi buscar uma das capas penduradas junto da lareira da cozinha, encheu uma caneca de cerveja e colocou-a nas mãos trémulas de Uven. Mara deu um pontapé na confusão de cães que rodeavam a lareira do salão. Donal aproximou o banco do fogo, ao mesmo tempo que os outros ajudavam o viajante meio gelado a sentar-se. Uven estava incapaz de falar; o seu corpo era percorrido por espasmos e a caneca tremia de tal maneira nas suas mãos que a cerveja se entornou. Finalmente, o homem conseguiu beber e um pouco mais tarde comer um pouco de papas de aveia a ferver, feitas por Ferat.
Que bom - conseguiu murmurar Ferat, recuperando um pouco
de cor. O homem olhou para Donal. - Mensagem - disse ele. Urgente. Particular.
Bridei - disse Donal - vai para a cama. Toca a andar.
O que é que aconteceu? - perguntou o jovem, apercebendo-se
da falta de força da sua voz, alta e irregular. Uma boa criança não desobedecia a uma ordem e ele considerava-se uma boa criança. Porém, tinha de saber a verdade. - Trata-se de Broichan?
Todos olharam para ele em silêncio e Uven murmurou:
- O tempo escasseia, Donal.
- Bridei - disse Donal, acocorando-se e fixando o jovem - isto é assunto de homens e tu ainda não és um homem. Hás-de ser, um dia, e bem grande, mas até lá ajudas melhor Broichan se fizeres o que te dizem. Pega na tua vela e vai para o teu quarto. Depois de saber o que se passa, vou ter contigo e conto-te tudo. Prometo.
O jovem deitou-se e esperou. Os cobertores amenizavam um pouco o frio do quarto, mas não o que sentia na alma, mais áspero do que o do Inverno. Broichan estava morto. Não havia outra explicação para tanta urgência, tanto segredo! Donal pensava protegê-lo ao dar-lhe a noticia com gentileza. Porém, não seria nenhuma novidade. O que estava a acontecer era apenas a parte seguinte do mesmo velho padrão, Tem-se uma coisa, gosta-se dela e subitamente, desaparece. Talvez fosse melhor nem sequer gostar. Bridei perguntou a si próprio se Broichan teria olhado para os olhos do assassino, se vira os seus dedos a esticar a corda do arco. Broichan devia ter enfrentado a morte tranquilamente, pensou ele. Existe ensinamento em tudo, teria ele dito. Uma corrente de ar fez tremer a chama da vela; as sombras treparam pelas paredes, não de veados, águias e lebres, antes de fantasmas, visões, recordações do Outro Mundo. Talvez o druida estivesse entre elas. Bridei não choraria. Mandá-lo-iam embora para Gwynedd, certamente. Por mais que tentasse, não conseguia imaginar-se longe dali.
Algum tempo depois, Donal bateu-lhe à porta e sentou-se calmamente a seu lado na cama estreita. À luz da vela, os desenhos do seu rosto ganhavam vida própria, como manifestações de um mundo espiritual. Bridei esperou pelas palavras de que estava à espera.
- O teu pai adoptivo está metido em sarilhos - disse Donal. - Doente e longe de casa.
- Doente? - Bridei sentiu a esperança a acordar dentro de si, algures, uma chama minúscula fazendo os possíveis para não se apagar.
- Muito doente, Bridei; não te vou mentir. Parece que alguém tentou matá-lo com umas ervas. Mas ele está a recuperar. Sabes como é, um druida é o seu melhor médico. Porém, não pode ficar onde está; temos de o ir buscar.
- Temos?
A expressão severa de Donal suavizou-se. O guerreiro olhou directamente para Bridei.
- Eu e alguns dos rapazes. É uma viagem muito longa, Bridei; até à costa, perto da corte do rei, em Caer Pridne, ida e volta. Temos de partir antes que a neve tome conta de tudo.
- Eu podia ajudar - disse Bridei, endireitando os ombros num esforço para parecer mais alto.
- Eu sei, rapaz e também sei que, se deres um passo fora das fronteiras de Pitnochie, Broichan despede-me assim que souber, mas se te queres ver livre de mim...
- Só quero que não te vás embora - disse Bridei num murmúrio.
- De facto - disse Donal - quero dizer-te uma coisa. Não posso levar Líífky e ele fica com saudades minhas quando me ausento. Preciso que o escoves, que lhe contes uma anedota ou duas para que ele não se sinta muito infeliz. Far-me-ás um grande favor. Eu sei que é difícil.
Bridei acenou com a cabeça. Havia um certo consolo nas palavras do guerreiro.
- E se não voltares? - não conseguiu o jovem deixar de perguntar.
- Não voltar? - Donal ergueu as sobrancelhas, espantado. - Eu, Donal, herói de mais batalhas do que dedos tu tens nas mãos e nos pés? É claro que volto! Que estás para aí a dizer? Que não sou capaz de dar conta do recado? - Bridei viu a sombra de um sorriso no rosto do guerreiro apesar das palavras duras.
Bridei olhou para Donal e abanou a cabeça. Um momento mais tarde o jovem estendeu a mão e o guerreiro apertou-lha com firmeza.
Nós vamos trazê-lo são e salvo, Bridei, dou-te a minha palavra.
Donal?
Sim, meu rapaz?
É muito difícil envenenar um druida. - O jovem e Broichan
eram capazes de identificar as ervas pelo cheiro com os olhos vendados. O druida nunca errava.
Donal acenou severamente com a cabeça.
Também já pensei nisso.
Quem o poderá ter feito?
- É o que tenciono descobrir - disse Donal. - Mas cada coisa a seu tempo. Broichan recuperará melhor em casa contigo a seu lado e nós a vigiarmos. Deixo a casa nas tuas mãos, Bridei. Reza pelo teu pai adoptivo. Achas que és capaz?
- Sim - murmurou Bridei. O jovem conseguiu não chorar quando Donal se despediu, conseguiu assistir de olhos secos à partida do seu amigo, de madrugada, com mais quatro homens, bem agasalhados e armados até aos dentes. Se, porém, chorou depois de Donal desaparecer, sozinho no seu quarto, só ele e as sombras o podiam dizer.
Solstício do Inverno: as águas do lago escuras como tinta, os montes azulados sob o céu sombrio, os ramos dos pinheiros curvados sob o peso até não poderem mais, a neve caindo no chão numa avalancha de pó e os galhos retrocedendo, fortes, elásticos. As ovelhas agrupadas em redor umas das outras em busca de calor. O fumo saindo da chaminé, erguendo-se preguiçosamente e ficando a pairar por cima da casa; os cães, relutantes em sair pela manhã. A água da vala meio gelada e Fidich quebrando o gelo com um bordão para que o gado pudesse beber.
Bridei ajudara a alimentar as ovelhas presas no redil. O jovem fizera uma visita aos porcos e passara algum tempo no estábulo alimentando Pearl e contando umas anedotas a Lucky. As piadas não eram lá muito boas, mas Lucky parecera ficar satisfeito. Pearl estava inquieto: talvez sentisse que o tempo era de mudança. Naquela noite, o mundo daria novamente a volta na direcção da luz, apesar de ser difícil de acreditar com um dia daqueles.
Apesar da ansiedade por Broichan e pelos homens que o tinham ido buscar, as pessoas da casa compreendiam a importância daquela noite. Os homens tinham cortado um pesado tronco de carvalho e tinham-no levado para junto da lareira. Bridei, acompanhado por dois guardas, apanhara uma boa provisão de ramos de azevinho, de hera e de gravetos de pinheiro. Com a ajuda de Mara, o jovem fizera uma série de grinaldas e as portas ficaram todas com a sua coroa. Ferat salpicou o grande tronco com hidromel e com farinha e Bridei engalanou-o com fiadas de folhas brilhantes de hera. Ao fim da tarde, apagaram o fogo, colocaram o tronco cerimonial na lareira e reuniram-se todos em redor dele, ao frio. As luzes foram todas apagadas; a casa ficou na escuridão com excepção de uma única vela. Franzindo o sobrolho, muito concentrado, Bridei presidiu ao ritual apesar de não se recordar das palavras todas. O jovem contou a história do Solstício do Inverno, a que dizia que a deusa embalara nos braços toda a noite um ancião ferido até ele se transformar numa criança de cabelos dourados e voar para o céu, que o Sol saíra da escuridão e que a esperança renascera. A vela foi apagada. Em seguida, Fidich fez faísca com a pederneira, acendeu uma mecha e pôs um pavio a arder. Com aquilo, acenderam um pequeno pedaço de madeira carbonizada, restos do tronco do Solstício do ano anterior. Em breve, o velho tronco dava vida ao novo e o calor espalhou-se pelo salão. Bridei deu a volta ao círculo, pondo fim ao ritual e em seguida todos se descontraíram e gozaram o resto da noite.
Ferat sorria quando apareceu com a comida, a cerveja e o hidromel, os bolos e os queijos cuidadosamente armazenados. Mara encheu um cesto para os infelizes que estavam de guarda. Uven, recuperado, já ia na terceira caneca de cerveja. O som das conversas, o cheiro dos cozinhados de Ferat, os risos e as piadas deram à casa uma nova vida, reflectindo o ritual a que tinham assistido. Bridei, porém, ficou subitamente cansado; o jovem bebericou o hidromel com água que lhe deram, mordiscou o seu bolo e, sub-repticiamente, deu-o ao cão mais próximo.
- Boa noite - disse ele para ninguém em particular, mas como um dos homens estava a contar uma história e toda a gente se estava a rir, ninguém o ouviu. Também ninguém reparou que o jovem foi para o seu quarto, enrolou-se nos cobertores e, de costas para a festança que ia no salão, adormeceu, a conclusão ideal para um dia longo e cansativo. Porém, a Mãe de Tudo ainda não terminara o seu trabalho. Antes de afrouxar o seu abraço sobre a terra, queria dar uma última oportunidade a Bridei, uma mudança ao mesmo tempo difícil e espantosa. Naquela noite de Solstício, a vida do jovem ia sofrer uma transformação mais profunda do que alguém poderia imaginar.
Bridei acordou sobressaltado, com o coração a bater. O jovem não se recordava de ter sonhado, apenas que lhe parecera urgente acordar. A casa estava silenciosa. Através da pequena janela quadrada, a Lua olhava para dentro do quarto, o seu brilho azulado transformando aquele vulgar pequeno quarto num palácio maravilhoso, num reino de superfícies ilusórias e sombras secretas. Silêncio total; até se ouviriam os passos de um rato, tal era o silêncio. No entanto, algo o chamava, algo lhe puxava pela mente, algo vital, urgente.
Tremendo, Bridei afastou os cobertores, colocou a sua curta capa por cima da camisa de noite e, abrindo a porta com o máximo cuidado, percorreu descalço o corredor até ao salão.
Na lareira, a lenha ainda ardia alegremente; o tronco do Solstício duraria uns bons sete dias. Mara dormia placidamente numa cadeira com a boca ligeiramente aberta e o xaile em redor dos ombros. Dois homens de armas, Elpin e Uven, estavam estendidos em dois bancos perto do fogo e os cães estavam deitados no soalho entre eles. Os animais levantaram as cabeças quando Bridei passou por eles e depois voltaram a adormecer.
A cozinha estava vazia; Ferat tinha ido para a cama depois de deixar tudo pronto para o dia seguinte. O brilho do fogo seguia Bridei, contornando a sua pequena sombra no chão de pedra, na sua frente. Ao aproximar-se da porta da rua, a sombra subiu para a parede, assumindo uma forma improvável, alta e torta. O pesado ferrolho de ferro estava fechado, coisa que Mara fazia geralmente depois da saída do último turno de guardas. Durante o dia, a porta ficava sempre desaferrolhada porque havia sempre gente a entrar e a sair na casa de Broichan. O frio entrava pelas frinchas; Bridei sentia-o nos dedos dos pés. O jovem estremeceu novamente. Aquele algo, fosse ele qual fosse, que o acordara e o levara até ali naquela noite fria de Inverno, estava a dizer-lhe que devia sair. Lenta e cuidadosamente, Bridei puxou o grande ferrolho e abriu a pesada porta de carvalho. A neve cobria tudo, o silêncio era total e o luar era azul, maravilhoso. A paisagem parecia mágica. Os escuros troncos de carvalho pareciam velhos druidas, estóicos e fortes, ao frio; os graciosos e esbeltos vidoeiros pareciam espíritos da floresta, sonhando com as belas capas verde-prateadas que a Primavera lhes daria para tapar a sua nudez. Ao longe, o lago brilhava como um espelho de prata polida, mostrando à Lua a sua imagem encantadora, remota e sábia.
iistava um frio de rachar. Os pés do jovem começavam a ficar dormentes. Provavelmente, estavam a ficar azuis. Bridei olhou para eles e lá estava o que o levara ali. Num dos degraus, mesmo ao lado de um dos seus pés descalços, estava um pequeno cesto parecido com o que Mara utilizava para ir buscar lenha. Porém, aquele não era feito de vime de salgueiro. Aquele era feito de toda a espécie de coisas: de penas, de ervas, de frágeis esqueletos de folhas, de pequenos ramos com bagas vermelhas, de casca, de picancilho e de flores que não deviam existir a meio do Inverno. O cesto estava forrado com penugem de cisne e tinha duas asas feitas de junco entrançado, com pedras furadas entrelaçadas. Aquele cesto não era de fabrico humano e a silhueta que estava no seu interior era... muito pequena. Extremamente pequena e, provavelmente, devia estar cheia de frio. Bridei ajoelhou-se, mal se atrevendo a respirar enquanto a Lua iluminava aquele presente, como que mostrando-lhe o que acabava de lhe dar. A silhueta minúscula parecia estar a dormir, tinha uma espécie de gorro forrado de pele branca na cabeça e estava tapado até ao queixo com um cobertor de muitas cores. O seu rosto era branco como a lua, tão pálido como a pele de uma lebre de Inverno. Os bebés não deviam ser encarniçados e feios? Aquele tinha delicadas pestanas escuras, uma boca cor-de-rosa e um olhar solene. Bridei ficou a olhar para ele, fascinado. Um irmão. Um pequeno irmão. Nunca mais estaria sozinho. Com o coração a bater, o jovem levantou-se e olhou para o disco prateado no céu. As suas mãos moveram-se em sinal de reconhecimento e reverência; era evidente que estaria em dívida com ela para sempre.
- Obrigado - murmurou ele, fazendo uma vénia como o seu pai adoptivo lhe ensinara. - Eu olho por ele, prometo. Juro pela minha vida.
Bridei estendeu um braço para pegar no cesto e parou. O bebé estava acordado. Os seus olhos, olhando para ele muito sérios, brilhavam como a lua, eram incolores, mas tinham todas as cores. Eram olhos de sonho, profundos como um poço, sem fim, como uma história mágica. Talvez fossem azuis, mas como nenhum outro azul do mundo. A pequena personagem mexeu-se e uma mão, do tamanho de uma bolota, saiu do cobertor e estendeu-se para algo invisível.
- Olá - disse Bridei, debruçando-se para meter de novo o braço da criatura debaixo do cobertor porque, se ele próprio estava a tremer de frio, não estaria o miúdo a sentir o mesmo? A mão minúscula agarrou-se ao seu dedo, com força.
O coração de Bridei estava a comportar-se de modo estranho, como se quisesse saltar-lhe do peito.
Prometo que ficarás aqui em segurança.
Só depois de levar o cesto e o seu ocupante para dentro de casa e de fechar a porta é que Bridei se lembrou que tinha de agir rapidamente. Aquela casa era um lugar de ordem e disciplina, um sítio onde tudo estava sintonizado com a vida de Broichan e com a sua personalidade. Nenhum dos que vivia ali, Mara, Ferat, Donal ou os outros, falava de uma provável família. Nem sequer Fidich, que vivia na sua própria casa tinha mulher, ou filhos para aprenderem as lides do campo. A casa de Broichan não era sítio para crianças. Aquele recém-nascido não seria recebido de braços abertos. Na verdade, seria, muito provavelmente, mal recebido porque não havia dúvida que o presente fora-lhe dado por eles, pelos Boa Gente. A Lua guiara-os até à porta de Bridei. Enquanto uma criança enjeitada seria aquecida, alimentada e entregue a um casal qualquer sem filhos de uma das aldeias dos arredores, um filho da floresta não teria a mesma sorte. Bridei sabia o que as pessoas diziam; um tal presente era considerado uma maldição, não uma bênção.
Ainda bem que já tinha alguma instrução druídica. O cesto estava no chão da cozinha, oval, escuro. O rosto da criança era um círculo branco, translúcido, como se transportasse alguma da luz do Luar. Os olhos estavam abertos e seguiam Bridei enquanto o jovem percorria a divisão, à procura. Uma chave, precisava de uma chave para fazer um talismã que, supostamente, manteria a criança a salvo, em casa. Se fizesse com que não o roubassem, não faria também com que os da casa quisessem ficar com ele? O jovem rezou para que assim fosse. Tinha de haver uma chave algures. Tinha de se despachar; se o bebé começasse a chorar e alguém acordasse, voltaria a pôr o cesto na rua e o seu pequeno irmão morreria gelado, como ia acontecendo com Uven. Depressa, tinha de parar de andar de um lado para o outro e usar a cabeça, como diria Broichan... Bridei imobilizou-se e concentrou-se. Uma chave, vira uma chave pequena, com um palhetão retorcido na ponta... Sim, a caixa dos temperos, o precioso cofre de teixo de Ferat tinha uma chave e o jovem sabia onde a cozinheira a escondia - mesmo por trás do jarro do óleo. Bridei tirou-a do gancho e, movendo-se silenciosamente com os pés descalços, colocou-a no imterior do cesto, entre o cobertor e a penugem. A chave ficou no fundo escondida, secreta. Ninguém mandaria o bebé embora.
O que Bridei mais queria era esconder o precioso presente no seu quarto, onde ninguém o veria. O jovem não conseguia deixar de olhar para as feições minúsculas e perfeitas, para os olhos estranhos ao mesmo tempo inocentes e inteligentes, os pequenos dedos, delicados como pétalas. Porém, o seu quarto era muito frio. Além do mais, Bridei sabia que os recém-nascidos, tal como os cordeiros, precisavam de muitos cuidados. Tinham que ter sempre leite quente. Como é que se arranjavam no Inverno? Devia haver muitas outras coisas que ele desconhecia. O jovem levou o cesto para o salão e pousou-o no chão perto dos cães adormecidos. Um dos animais rosnou suavemente e Bridei mandou-o calar.
Bridei estendeu as mãos para o cesto com cuidado, como se fosse pegar em ovos, e tirou o bebé, quente e que não pesava mais do que um coelho. A criança tinha uma espécie de capa forrada com pele e por baixo um vestido de lã tão bem tecido, tão delicado, que devia ser teia de aranha, ou de lanugem de cardo. A parte de baixo do bebé estava envolta num volumoso e prático pano de lã. Apesar de estar molhado, Bridei não sabia o que havia de fazer visto que não tinha um substituto. Assim, o jovem pegou no bebé ao colo, embalou-o um pouco e os dois olhos límpidos e estranhos fixaram-no, como se estivessem a decidir o que pensar dele. Do gorro tinha-se escapado um caracol, negro como o carvão, que lhe caía sobre uma das sobrancelhas.
- Fica descansado - disse Bridei em voz baixa. - Eu não te abandono, conto-te uma história todas as noites e mantenho-te a salvo dos Urisk, prometo.
Talvez os Boa Gente tivessem enchido a barriga do bebé de leite antes de o deixarem à disposição da Lua. De qualquer modo, só quando o sol de Inverno, com a sua luz fraca, começou a iluminar o soalho do quarto através das frinchas da porta é que ficou com fome e começou a chorar, acordando instantaneamente a casa. Os cães começaram a ladrar, os homens grunhiram e espreguiçaram-se e Mara, com uma mão na cabeça, levantou-se lentamente e deu dois passos em direcção ao local onde Bridei acordara em sobressalto com o bebé a chorar nos braços, junto da lareira. Os olhos perspicazes de Mara olharam para o pequeno e estranho cesto, para a penugem de cisne, para o pequeno vestido forrado a pele. Em seguida, fixaram o recém-nascido, que já parecia um bebé como qualquer outro, esfomeado, mas com uns olhos notáveis, pálidos, límpidos, as mãos delicadas e o caracol por cima das sobrancelhas. Então, Mara olhou para Bridei. O jovem apertou o bebé contra o peito. Era melhor que não tentassem tirar-lhe o irmão mais novo.
Mara fez um movimento antigo com os dedos, repelindo o demónio Atrás de si, os homens fizeram o mesmo.
Corvo Negro, salva-nos - disse ela, acocorando-se. – Que andaste a fazer, Bridei? Dá-me cá isso.
Bridei agarrou-se ao bebé com força.
Não percebes? Usa a cabeça, rapaz. Não vês o que isso é? Pensa no que o teu pai adoptivo diria. Dá-mo, depressa. Quanto mais tempo ficar dentro destas quatro paredes, pior será para todos nós. Com Broichan quase a morrer e longe de casa, só nos faltava mais isto.
Elpin estendeu os braços para pegar na criança. A sua expressão era a de uma pessoa forçada a tocar em algo repulsivo, ou perigoso; como uma víbora, por exemplo.
Bridei afastou-se.
- Ele só quer leite - disse ele por cima do barulho. Quem diria que uma coisa daquele tamanho era capaz de tanta algazarra? O jovem sentia os gritos vibrantes através do frágil corpo da criança. - Shhh, shhh, pronto, já passou - murmurou Bridei.
- Leite, ha? - disse Mara. - Onde é que achas que vamos arranjar leite a meio do Inverno, com as vacas e as ovelhas só pele e osso? perguntou ela com as mãos nas ancas, sólida como um cão de guarda ao ver aproximar-se um intruso.
- É melhor pô-lo onde estava e já - disse Elpin. - Dizem que, se fizermos isso, os... os Outros vêm e levam-no outra vez. Se não ficarmos com ele muito tempo, claro.
- Está muito frio lá fora - disse Uven com ar duvidoso. - O bebé é muito pequeno.
- Que se passa aqui? - Ferat tinha sido acordado pelo barulho e aparecera com os cabelos desgrenhados e com o olhar de um homem que está cheio de dores de cabeça. - De onde é que isso veio, rapaz? Deixa-me ver... pronto... - Com um gesto hábil, o cozinheiro tirou a criança dos braços de Bridei e aproximou-se da lareira do salão para o poder examinar melhor. O homem parecia saber o que estava a fazer; após um escrutínio às feições vermelhas e enrugadas, o cozinheiro pôs o bebé de encontro a um dos seus ombros, deu-lhe umas pequenas pancadas na base das costas e, miraculosamente, o choro parou, transformando-se numa série de soluços queixosos.
- Está cheio de fome - disse Ferat. - E cheira mal que se farta. Mara, arranja uns panos lavados, sim? Rapaz, vai avivar a lareira da cozinha, precisamos de água quente.
Os outros, mudos, olhavam para ele. Não estavam a reconhecê-lo.
- Vamos embora, toca a andar - ordenou Ferat, já com a sua voz habitual. - O bebé está cheio de fome! Que diria Broichan se soubesse que a superstição e a imaginação nos fizeram tratar um bebé pior do que um cordeiro? Que vergonha!
- Isso é muito bonito - disse Mara - mas como é que o vamos alimentar? Além disso, não sei se Broichan concordaria. Não está certo, não acredito que estejas a pensar... ?
Bridei tossiu para aclarar a voz.
- Fui eu que o encontrei. Se o meu pai adoptivo ficar zangado, eu assumo a responsabilidade, mas não podem pôr outra vez o bebé lá fora à neve. Ele morre.
- A mim parece-me mais uma garota, não parece nada um rapaz
- disse Ferat, sempre a dar pancadinhas no traseiro do bebé. Apesar de nascerem todos muito feiinhos, Mara é capaz de ter razão. Vejam como ela é pálida, agora que deixou de berrar? Pestanas compridas como as de uma vitela e uma boca que parece um botão de rosa. Parece saída de uma história; acho que é um belo presente. Mara dir-vos-á se é uma rapariga quando lhe mudar os cueiros.
- Eu? - retorquiu Mara, irada, mas colocou o bebé em cima da mesa e tirou-lhe os panos sujos. Ferat tinha razão, era uma rapariga. Bridei ficou sem saber o que pensar.
Lavada e com cueiros limpos, que Mara lhe arranjara, a criança ficou nos braços da governanta enquanto Ferat fazia o que podia com água quente e mel. Pouco tempo depois, a minúscula rapariga mamava a mistura num pano enrolado mergulhado previamente numa tigela e começava a acalmar-se. Uven e Elpin observavam; nenhum deles parecia ter que fazer. Ferat, na cozinha, chamara os seus ajudantes e tratava do pequeno-almoço enquanto falava.
- Isso não a vai manter calada durante muito tempo - disse ele por cima do barulho dos tachos e das panelas. - Cinioch não disse que tinha uma prima que tinha acabado de perder um bebé? Sabes quem é, aquela que foi para Ilha Negra para se casar e cujo marido morreu ainda ela estava prenha. Ela está na aldeia na margem do lago, foi para casa da irmã para parir. O bebé não medrou; enterraram-no um dia ou dois depois. Não me lembro do nome da rapariga.
- Brenna - disse Uven. - Uma coisinha muito tímida. Triste história.
É verdade - disse Mara - muito triste, mas útil no fim de contas.
Quer dizer, se ficarmos com esta. - A governanta franziu o sobrolho na direcção do bebé mais uma vez no colo de Bridei, ao mesmo tempo que lhe espremia mais umas gotas de água com mel para dentro da pequena boca. Os olhos da criança olharam para ela, muito claros.
Uven! - gritou Ferat. - Onde está Cinioch?
De guarda.
Está bem. Come qualquer coisa, então, e vai ter com ele. Diz-lhe que venha falar comigo assim que puder. Precisamos de uma ama; quanto mais tarde, pior. Pode ser que Brenna seja o que precisamos.
Só se for maluca - resmungou Mara. - Amamentar um desses?
Bridei, porém, sentiu que as palavras da governanta não eram totalmente sentidas porque, senão, por que se daria ao trabalho de alimentar o bebé e de acenar encorajadoramente com a cabeça cada vez que a criança engolia? O pequeno cesto permanecia vazio junto da lareira com a chave bem escondida no interior. Era verdade o que Broichan lhe dissera. Por vezes, a magia caseira era a mais forte de todas.
O dia pareceu muito longo. Cinioch tomou o pequeno-almoço à pressa e partiu para o lago. A princípio, o bebé manteve-se tranquilo, mas mais tarde desatou a chorar, de tal maneira que acabou por perder as forças. Não havia meio de a criança beber a água com mel. Bridei pegou nela e, por sua vez, deu-lhe umas palmadas na base das costas. À medida que o dia ia avançando, o bebé ia ficando mais pesado. Os seus soluços angustiavam o jovem.
Ao princípio da noite, Cinioch regressou com uma jovem pálida, embrulhada em xailes por causa do frio, o nariz e os olhos vermelhos, as feições engelhadas e a tremer apesar da quantidade de roupa. Porém, assim que viu a criança nos braços de Ferat, tirou a capa, o xaile, deu três passos, pegou no bebé e levou-o ao peito.
- Pobrezinha - murmurou ela, e o bebé respondeu com um soluço débil. - Vou levá-la para um canto sossegado, se mo mostrarem - acrescentou a jovem. - Esta coisinha está esfomeada, mas nós vamos já tratar do assunto. Enquanto as mulheres iam para junto da lareira do salão, Bridei ficava na cozinha e momentos depois a voz do bebé deixava de se ouvir, substituída por sons de sucção, desesperados, Finalmente, o silêncio. O jovem deixou sair um grande suspiro; Ferat, mexendo a sopa, acenava com a cabeça, satisfeito.
- É melhor acrescentarmos um pedaço de carneiro ao espeto disse o cozinheiro. - As mulheres, quando estão a amamentar, comem como cavalos. O teu pequerrucho vai ficar bom, rapaz, vais ver.
No bosque, em frente da casa de Broichan, enquanto o dia morria, duas silhuetas conversavam.
- Pronto - disse a primeira. - Ele levou-a para dentro, ninguém a veio pôr cá fora outra vez e o choro parou. A miúda tem cá uns pulmões!
- Ganhei a aposta - disse a outra. - Eu disse-te que eles ficavam com ela.
- Obra de Bridei, sem dúvida. Aquela criança é esperta para a idade, para um humano. Um feitiçozito qualquer que o druida lhe ensinou, sem dúvida... Se não, não teriam ficado com ela. Devem ter percebido logo ao primeiro olhar que a miúda era dos nossos.
O outro olhou para ele de soslaio.
- E não é. Mas pronto, passámos a nossa responsabilidade para A Que Brilha. Acabou-se.
O primeiro deu uma risada cristalina.
- Não me parece. Isto ainda agora começou. Aqueles dois têm um longo caminho pela frente, longo e difícil, e nós vamos estar sempre por perto. Todos nós queremos o mesmo fim para isto, até o druida. É claro que o método utilizado vai deixá-lo surpreendido.
- Vamos para casa. A noite foi longa. Estou farto destes humanos. São tão tolos, tão lentos de compreensão.
- A noite mais longa - disse solenemente o primeiro. - Noite de lua cheia, noite de mudança, o começo de uma grande jornada.
- A jornada de Bridei.
- Dele, dela e de todos nós. Caminhamos para uma nova era, nem mais nem menos. No entanto, os pés que percorrem o caminho são pequenos. Esperemos que não vacilem. Esperemos que não falhem.
A magia parecia estar a aguentar-se. Brenna instalou-se, comportando-se como se pertencesse à casa há muito tempo. A jovem tinha um feitio calmo e um olhar triste, o que não era de admirar numa viúva de apenas dezanove anos que tinha perdido o seu primeiro filho à nascença. Mara recusou-se a partilhar o seu quarto com ela, declarando que não tencionava acordar sempre que a criança chorasse para mamar. Assim, Ferat mandou os seus assistentes limparem um pequeno armazém e Brenna instalou-se com os seus poucos pertences com carente gratidão. Durante a noite, o bebé dormia a seu lado, não na sua estranha cama feita com magia da floresta, mas num berço de carvalho com ramos e folhas esculpidos na cabeceira e nos pés. O fazendeiro Fidich, surpreendera todos aparecendo uma manhã com ele, dizendo, timidamente, que era a sua contribuição para o bem-estar da enjeitada. Mara murmurara algo acerca de queimar o velho para que a sua influência desaparecesse por completo antes que Broichan regressasse. Bridei tratou de o levar para o seu quarto numa ocasião em que a governanta estava ocupada com qualquer coisa e agora jazia no interior da sua arca, sempre com o seu talismã-chave.
Ferat não ficou nada contente quando, um dia, precisou de condimentos e não conseguiu abrir o seu pequeno cofre. O cozinheiro deitou as culpas para os seus ajudantes, amaldiçoando-os enquanto tentava abrir a caixa com uma faca, arranhando a madeira. Quando viu que o conteúdo estava intacto, acalmou-se miraculosamente. Como cozinheiro, Ferat considerava aquela colecção de noz-moscada, canela, cardamomo e pimenta infinitamente mais preciosa do que a caixa polida que a albergava e reconheceu de má vontade que o desaparecimento da chave teria sido acidental; quem se daria ao trabalho de a roubar e deixar a caixa? O cozinheiro parecia outro homem desde a chegada do bebé.
- Ela precisa de um nome - dissera Bridei no segundo dia, enquanto comiam no conforto do salão aquecido. Brenna devorava um generoso pedaço de carneiro com bolinhos de massa que Ferat lhe servira, ao mesmo tempo que embalava o bebé num braço. Este estava acordado, as suas pequenas feições estavam calmas e os seus olhos límpidos observavam a ama por trás das generosas pestanas pretas. Apesar de estar a ser bem alimentada, as suas faces continuavam tão pálidas como no primeiro dia; a sua compleição era branca como o leite. A pequenita chorava muito pouco, o que não era de surpreender visto que as suas principais necessidades se limitavam à comida e Brenna tinha a situação controlada. De facto, agora que estava a obter todo o leite de que necessitava, não parecia precisar mais do seu irmão mais velho. Bridei sabia que não devia ter ciúmes. O jovem sentou-se no banco ao lado de Brenna; de vez em quando, olhava para o bebé, o bebé olhava para ele, Bridei sabia que a pequenita o reconhecia e que compreendia a promessa que lhe fizera à luz do luar. Talvez não precisasse dele naquele momento, mas quando precisasse, ele estaria presente.
- Devíamos dar-lhe um nome - repetiu ele, com ele já no pensamento, um nome adequado à sua palidez, aos seus cabelos escuros como o carvão e aos seus olhos muito especiais.
- Ah - disse Mara - agora queres um nome? Ficas a saber uma coisa. A esta espécie de crianças não se dá o nome da mãe, ou da avó.
- Por que não? - perguntou Bridei.
- Porque não é um dos nossos - disse Mara. - Provavelmente, nem devemos ser nós a dar-lhe um nome. Se calhar já tem um, esquisito, como a gente que o deixou aqui. Que Corvo Negro nos proteja! - acrescentou ela, fazendo um sinal com os dedos.
Brenna falava pouco, quase só para dizer por favor e para agradecer. A sua voz era suave, quase apologética.
- Que nome gostarias de lhe dar, Bridei? - perguntou ela ao jovem, Bridei tocou com um dedo no queixo frágil do bebé; a pequena estendeu as mãos pequeninas e a sua boca distendeu-se no que poderia parecer um sorriso.
- Tuala - disse ele firmemente - um nome antigo, de uma história. Significa princesa do povo. Broichan há-de gostar.
- Mas não há-de gostar de ouvir crianças a chorar pela casa, ainda por cima doente - disse Mara secamente. - Princesa, ha? Pobrezinha, não há-de ser grande princesa se ficar aqui connosco. Só se for princesa da pocilga.
- É um nome bonito - murmurou Brenna.
- Sim - disse Uven. - Fica-lhe bem. Pára com isso, Mara. Estás tão embeiçada pela criança como nós.
Assim, a enjeitada recebeu um nome, a casa de Broichan ficou com mais duas residentes e Bridei, lembrando-se de que o seu pai adoptivo estivera perto da morte, aplicou-se ainda mais nos estudos num esforço para que Broichan não ficasse desapontado, mesmo que não ficasse contente com as duas residentes extra. Era difícil treinar as artes de combate sem Donal; assim, o jovem ajudava Finich nas lides do campo. De tarde, aperfeiçoava a arte de contar histórias, ocasião em que a pequenita tinha tendência para estar acordada e Brenna, que ainda se cansava com facilidade após o seu recente parto e a morte do bebé, deixava de boa vontade Tuala com Bridei e retirava-se para o seu minúsculo quarto para descansar.
O jovem já sabia bastantes histórias porque as histórias estavam na base da sabedoria druídica com as suas interpretações, os seus símbolos, os seus códigos. Sempre que contava uma, o seu significado parecia diferente. Bridei não contava a Tuala histórias de batalhas, de sangue, de monstros, fantasmas, mortes ou desgostos antigos, contava-lhe histórias engraçadas, tolas, fermentadas com episódios de feitos heróicos e sonhos tornados realidade. Quando não se recordava de alguma coisa, inventava. Tuala era uma ouvinte excelente. A pequenita estava cada vez mais calma e ouvia-o com atenção. Os seus olhos brilhantes seguiam o movimento das suas mãos quando ele ilustrava um acontecimento dramático; a sua vozinha contribuía com um gorjeio aqui, um guincho ali. Algumas histórias, no entanto, punham-na a dormir. Quando assim acontecia, Bridei transformava a história numa canção e cantava-a em voz baixa, ao mesmo tempo que baloiçava o berço. O jovem não sabia onde as aprendera, apenas que não fora Broichan que lhas ensinara.
Hee-o, wee-o fiandeira vem, fiandeira vai. Tece uma teia fina e delgada Para envolver a minha princesa
Hee-o, wee-o
Penas do corvo mais negro Penas do cisne mais branco Agasalhai o meu querido bebé
Hee-o, wee-o
folhas do sabugueiro, do vidoeiro e do teixo
Fazei uma grinalda
Para coroar os cabelos da minha amada.
Ao adormecer, Tuala parecia sorrir.
O druida chegou num dia claro. O vento frio, soprando de nordeste, empurrava as aves na sua frente. Os viajantes tinham-no nas costas ao passarem pelo caminho que rodeava o lago escuro, que serpenteava pelo meio dos carvalhos e que ia dar à casa de Broichan. Bridei sentia um nó no estômago devido ao nervosismo. Havia muito que esperava aquele dia; na verdade, fizera uma marca, todas as noites, na parede de pedra do seu quarto, até ao dia em que Broichan e Donal, supostamente, estariam de regresso. Porém, naquele momento, a sua ansiedade misturava-se com o medo. E se o seu pai adoptivo lançasse um simples olhar ao bebé e decretasse a sua partida? Ninguém se atrevia, nunca a desobedecer a Broichan. As pessoas da casa não tinham exactamente medo dele. Simplesmente, o druida era poderoso e sábio, tinha sempre razão.
Naquele dia, no entanto, Broichan não parecia nada poderoso. O druida caminhava pelo carreiro acima pesadamente apoiado no seu bordão, com Donal de um lado e um tipo chamado Enfret do outro. O druida parecia ter encolhido, parecia menos alto e menos largo do que Bridei se lembrava e estava pálido, quase tão pálido como Tuala, cuja pele tinha a cor da lua. Porém, uma coisa não mudara: os olhos escuros de Broichan chamejavam, ferozmente inteligentes.
- Bem-vindo a casa, meu senhor - disse Mara, quando os viajantes chegaram à porta principal. A mulher sorria, o que era raro.
- Bem-vindo, meu senhor - repetiu Ferat por trás dela. - É bom ver-vos a pé. Donal, Enfret - disse o cozinheiro, acenando com a cabeça para os dois homens. Mais abaixo, no carreiro, os outros homens de armas caminhavam ao lado de um cavalo bem carregado.
- Deveis querer uma boa caneca de cerveja e uma bucha, sem dúvida - acrescentou ele. - O dia está frio.
O leve toque de nervosismo no tom de Ferat não se comparava com a boca seca, a paralisia e a ansiedade de Bridei, de pé ao lado de Mara. Naquele momento, Tuala estava no quarto de Brenna a mamar. O jovem rezou para que a pequenita não emitisse qualquer som; pelo menos enquanto o seu pai adoptivo tivesse aquele aspecto severo e cansado, pelo menos enquanto não conseguisse pensar no que havia de dizer.
- Bridei! - saudou Donal com um largo sorriso, avançando para dar uma grande palmada no ombro do seu jovem amigo. Bridei devolveu-lhe o sorriso, sentindo a sua angústia a abrandar um pouco; tinha ali o seu aliado, finalmente. - Cresceste, rapaz. Vede como ele está grande e forte, meu senhor!
Broichan olhou para o jovem com os seus olhos escuros, o rosto pálido e os longos cabelos grisalhos. As suas feições tinham mais rugas do que nunca e continuavam de tal modo a ser comandadas pela disciplina que era impossível adivinhar o que lhe ia na mente.
- Bridei - disse ele, muito sério. - Sinto-me feliz por estares bem. Tenho a certeza que prestaste atenção aos teus estudos.
Sim, meu senhor. - Depois da chegada de Tuala, Bridei decidira comportar-se como os adultos, fazer parte de uma casa concentrada nas necessidades e exigências de um ser minúsculo. Naquele momento, abruptamente, voltava a ser uma criança. - Fiz o possível.
Não esperava menos. Agora vou para os meus alojamentos por um bocado. Donal, ajuda-me, sim? Não, não preciso de nada - disse ele com um gesto levemente irritado, pouco habitual, na direcção de Ferat e de Mara - Talvez água. Os homens, porém, agradecerão o que lhes derdes; foi uma longa viagem. O perímetro continua a ser guardado? Quantos homens estão no muro norte?
Já estavam no interior da casa e Broichan continuava a fazer perguntas enquanto caminhava na direcção dos seus alojamentos, sempre apoiado no braço de Donal.
- Eu vou verificar tudo, meu senhor - disse Donal calmamente.
- Vinde, agora estais em casa, podeis descansar. Deixai esses assuntos connosco.
- Descansar, descansar - murmurou amargamente o druida. Há duas luas que não faço outra coisa. Não me posso dar a esse luxo. Os dias passam e não consigo pensar. Tempo, é tudo o que peço, tempo suficiente... malditos intrometidos.
Como todos os bebés, Tuala dava a conhecer a sua presença quando tinha necessidade. A voz infantil explodiu subitamente num protesto que a voz suave de Brenna tentou acalmar imediatamente. Pouco depois, Broichan apareceu no salão com umas manchas violetas sob os olhos, os nós dos dedos brancos agarrando com força no bordão e parou diante de todos sem dizer nada. Do pequeno quarto onde estavam a pequenita e a ama não vinha agora qualquer som. À mesa, Donal e os homens que o tinham acompanhado estavam, também eles, espantados. Bridei estivera a contar-lhes as novidades com Ferat e Mara a assistirem, ambos decididos a deixarem o jovem arcar com a tempestade.
Parecia que Broichan não ia fazer a pergunta e, assim, Donal fê-la pelo druida.
- Digam-me que não estou a ouvir a voz de uma criança - disse ele. - Tens um segredo que não nos queres contar, Mara? - Como piada, não tinha piada nenhuma. Ninguém, sequer, sorriu.
Mara olhava para Bridei, assim como Ferat. O silêncio instalou-se. Um momento mais tarde, Brenna, com a criança nos braços, corada e com os cabelos em desordem porque também estivera a dormir, apareceu na soleira da porta e estacou, olhando para onde o druida estava, alto e severo. ?
Bridei pôs-se de pé.
- Meu senhor - disse ele com a coragem que conseguiu reunir
- esta é Brenna. E o bebé é a Tuala. Eu ia contar-vos...
- Traz aqui a criança.
O tom de voz de Broichan era tal que Brenna, corando ainda mais, avançou sem hesitar e estendeu a criança para que o druida a examinasse. Os olhos escuros deste semicerraram-se. Das dobras do xaile saiu a pequena mão de Tuala, qual flor, numa espécie de saudação e a pequenita emitiu um gorjeio que podia significar qualquer coisa. A boca de Broichan cerrou-se. O druida escrutinou o bebé de perto sem lhe tocar.
- Muito bem, Bridei - disse ele finalmente com voz neutra. - Ouvirei as tuas explicações em privado. Vamos - disse ele, virando-se e afastando-se. Bridei apressou-se a segui-lo. Nas suas costas, ninguém disse uma palavra.
Os aposentos de Broichan não eram o domínio confortável de um rico proprietário de terras, se bem que o druida fosse, de facto, um homem de recursos. O quarto era uma divisão que estava de acordo com o que ele era na verdade: um estudioso, um místico, um filósofo. A sua disciplina, a sua clareza de espírito, a sua paixão pelo saber, estavam patentes naquele espaço ordenado, naquele santuário privado. A única pessoa que ali entrava quando Broichan estava ausente era Mara. As prateleiras de pedra tinham filas de jarros, de garrafas, de cadinhos e de frascos cada um no seu devido lugar, cada um brilhando à luz das velas e das chamas da pequena lareira - uma concessão à sua doença porque o druida estava habituado ao frio. Broichan tentava permanentemente controlar o corpo com a mente. A enxerga tinha cobertores de lã e roupa branca lavada, mas era estreita e dura: Bridei sabia que os pequenos confortos existentes naquele espaço tranquilo se deviam mais a Mara do que ao próprio Broichan. Havia uma mesa de carvalho e dois bancos. Os pergaminhos estavam armazenados numa armação e o material de escrita, as penas de ganso e os frascos de tinta estavam numa prateleira à parte. Junto da pequena janela estava pendurada uma trança de alhos. Aqui e ali viam-se ervas secas penduradas, exalando uma fragrância doce e umas bagas secas numa tigela indicavam que Broichan já tinha tentado começar a trabalhar. Mara talvez conseguisse fazer com que ele descansasse, mas não seria fácil. A capa do druida estava devidamente pendurada num prego; as botas estavam junto da lareira. O quarto estava impecável; não se via um grão de poeira.
Broichan fechou a porta depois de Bridei entrar e colocou-se junto da mesa, onde apoiou as mãos. Bridei enfrentou o seu pai adoptivo absolutamente imóvel, uma coisa em que era bom, mesmo quando o coração ameaçava saltar-lhe do peito, como naquele momento. O jovem abriu as mãos, tentando descontrair-se e fez o mesmo com as feições.
- Deixa-me que te diga o que estou a ver. - A doença não mudara a voz do druida, que soou profunda e poderosa, como um sino. Estou a ver uma criança que não tem nada que estar no interior das quatro paredes de uma habitação humana; uma criança cujos olhos visionários emitem perigo a cada piscadela. Vejo a gente robusta desta casa a olhar para esta criança com expressões de carinhosa indulgência. E vejo uma jovem que está aqui sem o meu convite.
- Eu...
Broichan ergueu ligeiramente uma das mãos e as palavras de Bridei morreram-lhe na boca.
- Ainda não acabei - disse o druida calmamente. - Vejo mais uma coisa: vejo o meu filho adoptivo, um rapaz que prometeu portar-se bem durante a minha ausência, que prometeu fazer o que eu lhe pedi. - Os seus olhos, escuros como a meia-noite, fixaram-se em Bridei. Era cada vez mais difícil manter a imobilidade. Parecia que Broichan já tinha decidido. Tuala sairia daquela casa ao anoitecer, morreria de frio e de fome na floresta, choraria, choraria, mas ninguém iria em seu socorro. Não. Bridei cerrou os punhos com tanta força que as unhas se lhe cravaram nas palmas das mãos. Concentra-te. Lembra-te. Estamos sempre a aprender. O jovem manteve-se imóvel, respirou profundamente como lhe tinham ensinado, enfrentou o olhar do druida e, subitamente, apercebeu-se de que aquele interrogatório não era a propósito de Tuala e dos Boa Gente, era a propósito da sua pessoa, mas não o que fizera, antes por que razão o fizera. Tudo o que tinha a fazer era fornecer a explicação correcta, que se coadunasse com o modo como Broichan via o mundo. Podia fazê-lo, tinha apenas de manter-se calmo como o próprio Broichan e falar, falar, não como uma criança, antes como um druida.
- Meu senhor - começou ele - Tuala - o bebé - apareceu aqui à meia-noite do Solstício. A lua, a brilhar através da minha janela acordou-me. Saí da cama, abri a porta da rua e ela estava nos degraus.
O druida franziu o sobrolho.
- E onde estavam os outros membros da minha casa enquanto tu vagueavas durante a noite?
- Estavam a dormir, meu senhor. Foi depois do ritual.
- Estou a ver. Continua.
- Eu... eu senti que era uma dádiva, meu senhor. Uma dádiva para... - não para mim, quase disse o jovem - para todos nós. Um sinal de confiança. A Que Brilha quis que ficássemos com Tuala, que a salvássemos.
- Bridei - o tom de voz de Broichan era severo - não me digas que foste louco ao ponto de não reconheceres a criança. As crianças humanas não têm aqueles olhos, aquela pele, ou aquela expressão solene e inteligente. Ela não é nenhuma rapariga da aldeia; ela é um dos Boa Gente.
- Sim, meu senhor - disse Bridei, apercebendo-se de que era a primeira vez que alguém lhe dizia aquilo com tantas palavras. - Mas ela tinha frio. Se a deixasse lá fora, morria.
Seguiu-se uma pausa.
- Uma criança humana não teria sobrevivido, certamente - reconheceu Broichan.
- Sim, meu senhor - disse Bridei, fazendo um esforço para imitar o tom calmo e pausado do druida. - Eu sei que Tuala pertence aos Boa Gente. Eles trouxeram-na para aqui com um objectivo. A Que Brilha acordou-me para que eu a encontrasse. Foi de propósito. Era suposto ficarmos com ela. - Bridei não conseguiu evitar que a sua voz vacilasse um pouco. - Tuala é um bebé muito bom, meu senhor, quase nunca chora. E não tem para onde ir.
- Imagino que ela apareceu aqui dentro de alguma coisa? Num cesto?
- Sim, meu senhor.
- Onde está? - perguntou Broichan em voz monótona. Bridei sentiu os olhos a picar; o jovem cerrou os dentes.
- Responde-me. - A voz do druida parecia um dobre a finados.
Está no meu quarto - respondeu Bridei num sussurro.
Vai buscá-lo.
Bridei não olhou para os outros, não podia, enquanto se dirigia ao seu quarto e regressava com o pequeno berço debaixo do braço. Apesar disso, reparou neles, imóveis, como se fossem feitos de pedra, a olhar:
Donal com as suas feições muito sérias, estupefactas, Enfret e os outros homens de armas totalmente surpreendidos, Ferat ansioso Mara carrancuda e a suave Brenna com o bebé nos braços: Tuala, que se tornara rapidamente no centro em redor do qual tudo girava. Era tão pequenina...
Com passos de chumbo, Bridei regressou ao quarto do seu pai adoptivo. O jovem tinha dificuldade em controlar os pensamentos, de tal modo eles se atropelavam na sua mente. Tuala só o tinha a ele, mais ninguém. Os outros só gostavam dela por causa do talismã e assim que Broichan o anulasse esquecê-la-iam. A sua gente queria-a tanto como a sua própria família - não tinha notícias dela desde que chegara àquela casa. Porém, tinha o seu pai adoptivo, Donal e os outros. Tinha um lar. Tuala não tinha nada.
Bridei aproximou-se da porta. Podia pedir, claro; podia chorar e pedir como uma criança que era. Seria fácil, chorar; o jovem sentia as lágrimas no canto do olho enquanto olhava para o cesto feito de folhas e de erva que tinha nas mãos, para as estranhas flores de Inverno sempre frescas, para as pedras entretecidas nas pegas. Quem seria capaz de derrotar a magia de um druida? A chave continuava escondida no fundo, a única hipótese de sobrevivência de Tuala. Bridei engoliu em seco. As lágrimas seriam pura perda de tempo; pedir seria sinal de fraqueza. Um druida escuta argumentos racionais, lógicos, comprovativos.
Broichan estava junto da pequena lareira. A sua expressão não traía fosse o que fosse.
- Põem-no em cima da mesa - disse o druida.
Bridei fez o que lhe ordenava. O cesto parecia muito pequeno; Tuala tinha crescido.
- Meu senhor, posso falar? - perguntou o jovem.
O silêncio de Broichan pareceu ser um indicativo de consentimento.
- Espero que não desfaça o feitiço - disse Bridei, esforçando-se por parecer confiante apesar de lhe tremer o lábio. - Eu sei que acha
que fiz uma coisa errada e lamento se o irritei. Porém, não lamento ter trazido Tuala para dentro de casa e não lamento ter feito o feitiço para a manter a salvo. Tenho a certeza de que agi bem. Tenho a certeza absoluta.
Broichan suspirou. O druida estendeu um braço na direcção do cesto minúsculo, percorrendo as suas linhas mas sem lhe tocar.
- Bridei - disse ele após alguns momentos - tu ainda és muito novo apesar de falares como falas, não sabes nada sobre o mundo dos homens; não sabes nada das dificuldades por que passamos para evitar que a nossa terra caia no caos, das estratégias que têm mais a ver com os actos irreflectidos dos da nossa espécie do que com as maquinações dos Boa Gente. Para lá do Vale existe um reino, cujas franjas tu ainda nem sequer tocaste. A tua educação ainda agora começou rapaz. E é muito importante; tão importante que não podemos permitir que nada interfira com ela. Eu não me posso dar ao luxo de ficar doente; a minha casa não se pode dar ao luxo de perder tempo com uma criança, especialmente uma criança que transporta nos ombros tanta incerteza. Dar abrigo ao Outro é convidar o perigo, Bridei, é convidar o inesperado.
Bridei engoliu em seco.
- Um homem deve aprender a lidar com a surpresa, meu senhor - conseguiu ele dizer. - Pelo menos, é o que Donal diz. É importante, em combate.
Os lábios de Broichan retorceram-se.
- Os Boa Gente têm poderes muito mais perigosos do que um súbito joelho na garganta, ou um pontapé bem colocado no tornozelo - disse o druida. - Esta criança pode parecer muito doce e inofensiva. Porém, não sabes o que será quando crescer. A sua influência pode minar tudo aquilo por que eu luto... - Broichan calou-se, como se tivesse dito mais do que tencionava.
- Meu senhor - disse Bridei. - Eu trabalho até não poder mais, estudo tudo o que quer que eu estude, faço tudo o que quiser...
- Pára imediatamente. - Os olhos de Broichan brilhavam perigosamente. - Eu não faço acordos com crianças. Cuidado com as palavras que dizes porque podem ser um fardo terrível quando te esqueceres da sua solenidade. E se eu te disser que quero que queimes o cesto e que devolvas a chave ao seu proprietário? Que me prometes, então?
O rosto de Bridei corou, não de vergonha, mas de ira, uma ira involuntária misturada com qualquer coisa ainda pior, o sentimento de que irritara o seu pai adoptivo. Para ele, a opinião do druida significava tudo, ou quase tudo.
Eu cumpro a minha promessa - disse ele, sentindo, para seu horror uma lágrima a correr-lhe pela face. - Eu não sei o que quer eu seja: um druida, um guerreiro ou um estudioso, mas sei que tenho de estudar e estudarei tudo o que me mandar; mais ainda, se possível. Meu senhor... Eu quero que Tuala fique em Pitnochie. Por que não pode ela ficar? Foi A Que Brilha que a trouxe.
Seguiu-se um silêncio prolongado. Broichan virou-se para o fogo, a mão a descansar na parede ao lado da lareira. O quarto estava silencioso. O pequeno cesto continuava em cima da mesa. Uma ou duas das suas penas tinham caído em cima da superfície polida da madeira.
Eu posso ensinar coisas a Tuala - disse Bridei. - Números, histórias, canções. Posso ensiná-la a andar a cavalo. Nos meus tempos livres, claro.
- Claro - disse Broichan, severamente. O druida continuava a olhar para o fogo. - Não gosto nada disto, Bridei. Não estava nada à espera desta recepção - disse ele, virando-se e sentando-se à mesa cuidadosamente, como se fosse um ancião. Bridei reparou na palidez do seu rosto, no modo como os seus punhos se cerravam, como se tivesse dores.
- Meu senhor?
- Sim, Bridei, o que é? Dá-me um pouco de água, sim?... Obrigado, rapaz.
- Não vai morrer, pois não? Eles não...?
Pelos lábios do druida passou o fantasma de um sorriso, que logo desapareceu.
- Todos nós morremos, Bridei, mas não, os meus inimigos não conseguiram. Eu também fiz uma promessa, uma promessa que exige de mim mais quinze anos neste mundo, talvez vinte, e tenciono tirar o melhor partido possível deles. Não me posso distrair. Não me posso desviar do meu caminho e arranjar problemas de que não necessito, assim como não espero que os que partilham a minha casa comigo o façam.
- Eu só fiz o que a Lua me pediu - disse Bridei. - Deixei entrar um Pedacinho de floresta. Não se lembra? Um dia, disse que tudo está ligado. O Vale, as criaturas, as coisas que crescem! Se magoamos uma delas, as restantes enfraquecem. Salvar Tuala foi uma coisa boa, boa para todos nós.
- Estou a ver que te ensinei bem - murmurou Broichan.
Portanto, criamo-la, como uma raposa órfã, e depois soltamo-la?
- Não, meu senhor. Criamo-la e deixamos a porta aberta. Broichan bebeu um pouco da água que Bridei lhe dera. As suas sobrancelhas estavam franzidas e havia rugas profundas que lhe iam do nariz aos cantos da boca cerrada. Inesperadamente, os lábios esticaram-se e o druida deu uma risada.
- Se eu quisesse que fosses um místico, Bridei, ter-te-ia mandado para a floresta, onde aprenderias muito mais - disse o druida. -. Apesar disso, tu já falas como um druida.
Bridei esperou. O seu coração continuava a bater com força, mas num dos seus cantos a esperança começava a tremeluzir.
- Dá-me a chave - disse abruptamente Broichan.
Não era possível prever o que o druida ia fazer. Com o coração a bater novamente com toda a força, Bridei avançou, meteu a mão no pequeno cesto, tirou a chave e colocou-a na palma estendida de Broichan.
- Agora, pega no cesto.
Bridei pegou no cesto e colocou-se ao lado da lareira como se tivesse nos braços a própria Tuala. O jovem sentia as lágrimas muito próximas, prontas a sair, inundando-lhe as faces e demonstrando que não passava de uma criança, incapaz de evitar os actos dos poderosos, mesmo quando eram terrivelmente errados.
- Um homem não chora, Bridei - comentou Broichan, como se fosse capaz de ler os pensamentos de Bridei. A chave continuava na sua mão aberta. - Pelo menos sem uma boa razão.
- Não, meu senhor - murmurou Bridei. O jovem sabia o que ia acontecer: não contente em queimar o berço de Tuala, a sua herança, a única ligação com a sua gente, Broichan ia obrigá-lo, a ele, a fazê-lo, como castigo pelo que fizera.
- Doem-me os ossos - disse Broichan. - Sobe para o banco, rapaz. Põe o berço na prateleira de cima, a seguir às caveiras dos ratos. Cuidado. Mara já vai ter muito trabalho comigo, não precisa de tratar ainda por cima dos teus ossos partidos. Pronto. Desce.
Bridei obedeceu. Pelo menos, não seria queimado. Porém, a questão da chave mantinha-se. Os olhos do rapaz viram os longos dedos de Broichan fecharem-se sobre o pequeno objecto de ferro e meterem-no na bolsa que tinha no cinto.
Muito bem - disse Broichan. - Isto fica comigo a partir de hoje, o que significa que a responsabilidade é minha, assim como as decisões. Se no futuro achar que a devo mandar embora, fá-lo-ei, BRridei E não quero discussões. Não vivi estes anos todos e aprendi o que aprendi sem conseguir antecipar de certo modo o futuro e tomar as devidas decisões. A intuição diz-me que a criança representa uma ameaça para nós. Por outro lado, suspeito que é demasiado tarde para nos livrarmos dela. A chave e o cesto podem separar-se, por agora. A chave devia ser devolvida e o cesto devia ser queimado, mas duvido que isso fizesse com que a nossa gente mudasse a sua atitude para com a criança. Não há dúvida de que a aceitaram, a princípio, por causa do feitiço que tu fizeste. Porém, como ela está cá em casa desde o Solstício, desconfio que Tuala já teve tempo para fazer os seus próprios feitiços. Se a mando embora, arranjo lenha para me queimar; crio a discórdia, quando é essencial termos aqui um santuário para que possas aprender. E para que eu possa sarar. Os meus inimigos, desta vez, foram espertos, quase me mataram. Porém, não voltará a acontecer.
- Foi veneno? - perguntou Bridei. Apesar da alegria inesperada que sentia por ter ganho a batalha, o jovem não se esquecia de que a luta ainda não acabara, uma luta que quase custara a vida a Broichan.
- Foi uma coisa extremamente subtil, com um pouco de beladona. Uma combinação quase imperceptível ao gosto e ao olfacto. O homem pensou ser esperto. Talvez demasiado esperto. Poucos têm a habilidade e os conhecimentos para fazer uma tal poção.
- Sabe quem foi? - perguntou Bridei, quase sem respirar.
- Mais ou menos. Vou estar vigilante daqui para a frente. Muito bem, eu ia entrar em meditação quando a voz da criança me perturbou. Tuala tem bons pulmões. A chave fica comigo, Bridei, não te esqueças nunca. O futuro dela não está nas tuas mãos, está nas minhas.
- Sim, meu senhor e... - O que é, meu filho?
- Obrigado por a deixar ficar e... sinto-me muito feliz por estar de regresso a casa. Agora que está em Pitnochie, vai melhorar. - O jovem não tentou abraçar o seu pai adoptivo, nem dar mostras de qualquer outro gesto de afecto. Com Broichan, muito simplesmente, não se faziam coisas daquelas. Bridei esperava que as suas palavras e o seu rosto tivessem dito ao druida como estava contente por não ter tido necessidade de desafiar abertamente o seu pai adoptivo. Bridei sabia que nunca teria permitido que o cesto fosse parar ao fogo, nunca teria permitido que Tuala fosse posta ao frio e à neve, teria lutado por ela com unhas e dentes como um animal selvagem a defender as suas crias. Ao fazê-lo, teria ido contra tudo o que o seu pai adoptivo lhe ensinara.
- Vai-te lá embora - disse Broichan. - Algo me diz que nos vamos arrepender deste dia. Espero sinceramente estar enganado.
CAPÍTULO TRÊS
- Não me apanhas! - gritou Tuala, ao mesmo tempo que Pearl passava a correr por entre os troncos cinzentos e brancos dos vidoeiros como uma sombra.
Era bem verdade, pensou Bridei, perseguindo-a no seu cavalo. Blaze fora um presente de Broichan no seu décimo primeiro aniversário e Tuala reclamara imediatamente Pearl para si própria. Quase não fora necessário ensiná-la a montar. A pequenita tinha uma vivacidade estonteante, uma leveza que transportava consigo para toda a parte. As pessoas desviavam o olhar e quando voltavam a olhar ela já não estava onde deveria estar. Na casa de Broichan já todos estavam habituados. Ninguém se preocupava com a possibilidade de Tuala se perder ou meter em sarilhos. Era como se a pequenita transportasse consigo os seus próprios feitiços de protecção.
Apesar disso, Tuala usava um disco ao pescoço, tal como Bridei. Broichan insistira. Aqueles discos de osso, com sinais gravados que honravam A Que Brilha e que pediam a sua bênção, eram um testemunho solene da aderência da casa aos costumes dos antepassados. Usar um disco daqueles era uma honra, uma prova de confiança. As pessoas da casa não tinham ficado surpreendidas quando Broichan dera a Bridei o seu próprio talismã. A concessão de um talismã a Tuala, cujo papel na casa estava por definir fora, porém, inesperada. Porém, jogava um jogo que estava para além da compreensão das pessoas normais e não havia dúvida de que sabia o que estava a fazer. Bridei achava que Tuala não precisava de um disco da lua. Para o jovem, era evidente que a pequenita tinha a força e a protecção da Que Brilha desde a noite do Solstício, quando a encontrara à sua espera, metida no cesto de penas de cisne e banhada pela luz do luar. Mais de seis anos se tinham passado, mas a sua pele continuava a ter aquela palidez estranha, translúcida, e os seus olhos continuavam a ter aquela tranquilidade límpida e solene. Se a Lua tivesse uma filha, pensou Bridei, seria muito parecida com Tuala.
- Anda! - gritou ela, mais longe, à sombra dos vidoeiros cheios de folhas. Bridei tocou com os calcanhares nos flancos de Bae e o cavalo correu em perseguição de Pearl. A Primavera ia avançada, não havia nuvens no céu e os dois jovens iam a caminho de Estrela da Águia.
A habilidade natural de Tuala para montar permitia-lhe dispensar a sela e as rédeas e a jovem agarrava-se à égua como se o animal fosse uma extensão de si própria. No entanto, Bridei esforçara-se, fiel à sua promessa. O jovem montava Bae na perfeição e o cavalo, um belo baio com uma mancha branca na testa, era rápido e obediente. O animal e o cavaleiro seguiram os movimentos rápidos da cauda prateada de Pearl, o som débil dos seus cascos, o rosto branco e os cabelos negros da pequena amazona, desviando-se das árvores de casca pálida, trepando as veredas, contornando as pedras cobertas de musgo e passando a vau ribeiros pouco profundos até chegarem à base da subida íngreme que ia até ao topo da Cicatriz. Quando lá chegaram, Pearl pastava num tufo de erva junto da maciça parede de rocha e Tuala não se via em lado nenhum.
Não era necessário prender os cavalos; ambos conheciam o percurso e não se perderiam. Bridei desmontou e começou a trepar. Tuala devia estar longe; a jovem parecia um esquilo a trepar. O topo da Cicatriz da Águia era um maciço rochoso muito grande, talvez fosse apenas uma rocha monumental, ou talvez fossem muitas; as suas fendas e rachas, os seus lugares secretos eram o lar de muitas criaturas, Bridei, ao longo dos anos, conseguira explorar apenas alguns deles. Sempre que subia até ali, o caminho parecia-lhe sempre ligeiramente diferente. Talvez a rocha gostasse de brincar, tal como os carvalhos em redor da casa do druida. Segredos da terra, que não eram para ser partilhados com os mortais: aquele sítio estava cheio deles.
O jovem gostava de estar no topo de Cicatriz da Águia, onde se sentia profundamente o passado, sob os pés; o Grande Vale estendia-se na sua frente, encostas íngremes envoltas no manto púrpura e verde dos pinheiros e no lenço mais leve dos vidoeiros, abrigando a longa e cintilante fita do Lago da Serpente. Naquele local, Bridei sentia-se entre a terra e o céu, sentia o coração da rocha por baixo dos pés e o sopro do vento no rosto, sentia-se uma águia.
Naquele dia, Tuala chegara antes dele e ficava de braços abertos, ao mesmo tempo que dizia para si própria: Fotlaid, Fidach, Fib, Circinn Caitt, Ce... Fortrenn, Fotlaid... - os nomes dos sete filhos de Pridne, de quem os Priteni descendiam. As sete casas, ou tribos, tinham os seus nomes. Fora Bridei que lhos ensinara e a jovem assegurava-se de que não se esqueceria deles. Tuala colocara-se no topo da rocha mais alta, num ponto que não era maior do que uma tigela de papas de aveia. Bridei avistou a sua pequena silhueta contra o pálido céu de Primavera, os cabelos negros flutuando ao vento, os olhos cheios de luz. Por trás dela estava a escarpa íngreme virada a sul. As pessoas chamavam-lhe Mergulho do Morto. Ainda bem que Tuala não tinha vertigens. A jovem girava, girava, como se imaginasse que o mundo é que girava à sua volta.
- Pára, Tuala - disse Bridei suavemente. - Estás a pôr-me tonto. - O jovem subiu para as rochas planas, mesmo por baixo dela.
A jovem parou instantaneamente, tal como o jovem esperava, e ficou imóvel, em perfeito equilíbrio, solene e firme. Bridei é que se sentia ansioso, como se estivesse a perder o equilíbrio.
- O que é que estás a fazer, afinal? - perguntou ele com uma calma estudada. - A tentar voar?
Tuala desceu do seu pináculo e sentou-se ao lado dele de pernas cruzadas. A jovem usava uma longa túnica simples, de lã, e por baixo umas calças para poder montar. Estas tinham pertencido a Bridei; era difícil imaginar que já fora daquele tamanho.
- Eu gostava de poder voar - disse Tuala. - Às vezes, penso que consigo.
Bridei estava a desembrulhar a comida que tinha levado consigo: grossas fatias de pão de aveia e ovos cozidos. O jovem passou o odre de água a Tuala.
- Se tencionas tentar - disse ele - talvez seja melhor pores-te em cima de um banco, ou de um barril, em vez de no topo de uma montanha.
Tuala olhou solenemente para ele.
- Sei que não cairia - disse ela. - Pelo menos, acho que não.
- Tu és uma rapariga, não és um pássaro - respondeu Bridei.
- Às vezes, sou um pássaro - disse a jovem, prendendo o cabelo atrás da orelha com uma mão muito branca.
- Que queres dizer?
- Em sonhos. A Lua nasce, acorda-me e eu voo através da floresta. É tudo prateado; está tudo vivo e à espera.
Bridei não respondeu. Tuala aparecera em Pitnochie havia tanto tanto tempo que, por vezes, o jovem quase se esquecia de que ela era... diferente. Então, a jovem dizia coisas como aquela.
- Picar, cravar as garras, comer - disse Tuala, abstracta, mordendo um pedaço de pão. - Planar, caçar. Depois, a Lua põe-se e fica tudo escuro outra vez.
- Nos sonhos é diferente. - Não era grande coisa, como resposta, e Bridei sabia-o. - Tens de ter mais cuidado. Imagina se cais e... e ? partes uma perna. Só voltarias a montar Pearl depois do Verão. - Não lhe diria que vários homens tinham morrido quando desciam de Cicatriz da Águia. Ela pouco mais era do que um bebé, comparada consigo. - Promete-me que serás mais sensata, Tuala.
- Prometo.
A resposta foi quase instantânea; infelizmente, pensou Bridei, a ideia de sensatez de Tuala era diferente da sua.
- O que é que gostavas de ser? - perguntou-lhe Tuala.
- Que queres dizer?
- Que ave gostavas de ser, se pudesses?
- Uma águia - disse Bridei imediatamente. - Planaria sobre o Grande Vale e veria tudo, vigiaria tudo. Tu serias um corvo, com os cabelos dessa cor.
Tuala abanou a cabeça.
- Uma coruja - corrigiu-o ela, muito séria.
- Sabias que as corujas vomitam os ossos, as patas e os bicos das vítimas? As caudas, os pêlos e...
Tuala deu-lhe um pequeno empurrão.
- Estou a comer - disse ela. - E as águias, que até roubam cordeiros? Mara disse-me que, uma vez, houve uma águia que até roubou um bebé.
- Faz parte do equilíbrio da natureza - disse Bridei. - Alguns dão a vida para que outros possam sobreviver. Se respeitarmos isso, tudo faz sentido.
Os dois jovens comeram em silêncio, escutando os sons da vida selvagem do Vale: os gritos das aves por cima das suas cabeças e dos outros animais no solo, o sussurro das árvores à passagem do vento, o restolhar furtivo de algo no interior de uma fenda da rocha. Mais longe ouvia-se um som mais doméstico, Fidich chamando os cães e estes a responderem. O fazendeiro andava nas colinas a inspeccionar Os cordeiros.
Sabes uma coisa, Tuala? - Bridei passou-lhe um ovo acabado de descascar e pegou noutro. - Quando eu era pequeno, como tu, não podia vir até aqui acima sozinho. Broichan não me deixava.
Eu não vim sozinha - disse Tuala. - Tu vieste comigo.
Sim, claro, mas então eu não te tinha a ti, nem nenhum irmão mais velho para tomar conta de mim.
Tuala abriu a boca. Bridei sabia que ela ia dizer-lhe que era capaz de tomar conta de si própria, muito obrigada.
- Mas não era por causa disso - continuou ele, rapidamente. Naquele tempo era perigoso andar pelos bosques. Havia inimigos. Uma vez, tentaram matar-me. E também tentaram matar Broichan. Nesse tempo, eu só saía acompanhado por dois guardas.
- Como é que tentaram matar-te? - perguntou Tuala com os olhos muito abertos.
Bridei começou a sentir-se arrependido de ter iniciado aquele tópico da conversa.
- Oh, não foi grande coisa - disse ele, muito depressa. - Talvez seja melhor voltarmos...
- Com uma espada? Com um feitiço? Tentaram apanhar-te numa armadilha?
- Com uma flecha - disse Bridei.
- Mataste-os?
- Não. Donal é que os matou. Não quero falar sobre o assunto.
- Por que é que tentaram matar-te?
- Não sei. Nunca ninguém me disse. De qualquer modo, já passou. Foi há muito tempo. Fosse qual fosse o perigo, já passou. Costumava haver cinco guardas no muro do lado norte e agora só há um. E podemos sair. Por isso, considera-te com sorte.
Tuala olhou para ele muito séria.
- Tu é que te podes considerar com sorte - corrigiu-o ela. - Podias ter morrido e eu não estaria aqui.
Bridei estremeceu.
- Não foi a sorte que me salvou naquele dia - disse ele, recordando-se. - Foi outra coisa.
- Donal?
- Ele ajudou, isso é certo, mas houve outra coisa. Foi como se a terra se tivesse aberto para me esconder. Até Donal achou estranho.
- A terra salvou-te - disse Tuala com a sua voz límpida.
Protegeu-te para que pudesses continuar.
As palavras da jovem provocaram um arrepio na espinha de Bridei. O jovem fez uma pilha com as cascas dos ovos e não disse nada.
- Já passou, Bridei - disse Tuala, como se fosse ela a mais velha e ele o mais novo.
De regresso a casa, Bridei conduziu os dois cavalos para o estábulo e tratou de Bae, ao mesmo tempo que Tuala fazia um trabalho aceitável, esfregando o pêlo de Pearl. A jovem tinha de se pôr em bicos dos pés para chegar ao pescoço do animal; felizmente, Pearl pareceu compreender a situação e baixou a cabeça para que a criança lhe escovasse a crina.
- Que pena ela não poder fazer o mesmo por ti - comentou Bridei, olhando para os caracóis de Tuala, emaranhados pelo vento. À saída para o passeio, a jovem tinha os cabelos devidamente penteados pelas costas abaixo, mas estes pareciam ter vida própria. A quantidade de fitas que a jovem perdia era motivo de brincadeira. Tuala afastou os cabelos do rosto com as duas mãos.
- Queres que trate disso? - perguntou Bridei.
Tuala colocou-se junto do jovem, de costas voltadas para ele. A jovem meteu a mão na bolsa do seu cinto, tirou um pequeno pente e colocou-o nas mãos de Bridei. Não eram precisas palavras; o ritual já era antigo.
- Está quieta. - Bridei tinha habilidade para aquela tarefa porque estava habituado aos cavalos. O jovem sabia como pentear os cabelos de Tuala sem a magoar. Quanto à criança, mantinha-se perfeitamente imóvel, quase como se estivesse gelada, uma pose que ele próprio se esforçara por conseguir através do controlo da respiração, da meditação e da força de vontade, mas que Tuala conseguia sem o menor esforço. Os seus dedos trabalharam sistematicamente, penteando os longos cabelos que iam até à cintura.
- Tens uma fita? - perguntou ele, sorrindo. Tuala abanou a cabeça com uma expressão pesarosa.
- Perdi-a.
- Deixa estar, que eu tenho uma - disse o jovem, metendo a mão na algibeira e tirando uma fita amarela, das muitas que guardava para ocasiões semelhantes. Tuala deixava-as por toda a parte. Bridei atou a fita com força em redor dos cabelos da jovem e fez um laço que ficou parecido com uma borboleta. - Pronto. Aguenta-te assim durante um bocado, caso Broichan te veja. Está bem, Bridei.
Depois do regresso de Broichan da corte do rei, onde quase morrera, as coisas tinham mudado em Pitnochie. Continuava a haver um certo número de homens de armas que patrulhavam os limites das terras do druida e que o escoltavam sempre que ele se ausentava. Porém, eram menos e o número de outro tipo de gente aumentara. Brenna ficara; o seu temperamento suave e tranquilidade natural contrabalançavam o volátil Ferat e a severa Mara. Fidich tornou-se visitante frequente, sentando-se timidamente na cozinha e falando com quem estivesse por perto acerca da tosquia, da ordenha ou dos muros. Aquilo não era normal porque, habitualmente, o fazendeiro retirava-se logo para a sua pequena cabana assim que o dia terminava, aparentemente satisfeito com a sua solidão. Donal reparou, friamente, que as visitas de Fidich incluíam, geralmente, uma conversa breve com Brenna, apenas algumas palavras, perguntando-lhe se ia bem e trocando com ela as pequenas notícias do dia.
Fora preciso muito tempo para que Brenna perdesse o olhar triste que tinha. Tuala tinha ajudado; as exigências da pequenita tinham-na obrigado a esquecer os seus problemas. No entanto, era cada vez mais evidente que as visitas frequentes de Fidich estavam a devolver a cor às faces de Brenna. Ambos eram tímidos. Talvez, com o tempo, saísse dali alguma coisa.
Havia outra presença. Pouco depois de Broichan ter regressado a casa ainda doente do envenenamento. Bridei entrara uma noite no salão à hora do jantar e encontrara os dois anciãos, Erip e Wid, aninhados a um canto e debruçados sobre um tabuleiro de jogo tal como na primeira noite, quando chegara a Pitnochie. O jovem cumprimentara-os, espantado.
- Pensei que nunca mais regressariam!
Erip, o gordo, o careca, dera uma risada, ao mesmo tempo que movia subtilmente um pequeno guerreiro no tabuleiro, provocando um silvo de aborrecimento por parte de Wid, o alto, o da barba branca.
- Quem, nós? - respondera Erip. - É preciso mais do que um druida do rei para nos manter longe daqui, rapaz. Andámos a viajar, mais nada. Bem, bem, o que tu cresceste. O que é que o Ferat te tem andado a dar de comer, tomates de boi...? - O ancião calara-se, talvez por ter avistado Mara no outro lado da sala. - Bem, não interessa. O que interessa é que estamos aqui para ajudar na tua educação Bridei.
- Ah! - respondera o jovem, perguntando a si próprio qual seria a sua especialidade para além dos tabuleiros de jogo e da bebida.
Os dedos de Wip tinham pairado por cima de uma pequena sacerdotisa de pedra.
- Erip é especialista em geografia - dissera ele. - Territórios, linhas de costa, tribos e chefes tribais. O meu campo é a estratégia: ver o que vai na mente dos homens, saber o que eles querem antes de eles próprios saberem. Espero que estejas preparado para trabalhar arduamente, Bridei - dissera o ancião, pegando na sacerdotisa, colocando-a noutro ponto do tabuleiro e erguendo as sobrancelhas para Erip com uma expressão cuidadosamente maliciosa.
- Malditos comandantes - resmungara Erip, olhando prolongadamente para o tabuleiro e erguendo depois as mãos, derrotado. Estão sempre adiantados.
Erip e Wid tinham-se instalado como se nunca dali tivessem saído. Agora, seis anos mais tarde, os dois homens continuavam alojados no fundo do aquartelamento dos homens, engordavam cada vez mais com os cozinhados de Ferat e tinham provado que eram capazes de ensinar, para além de se meterem em sarilhos.
De facto, o tempo disponível era escasso. As lições começavam logo a seguir ao pequeno-almoço e continuavam até o Sol se pôr sem contar com as vigílias nocturnas, que faziam parte do método de ensino de Broichan, com os ocasionais rituais ao amanhecer e com os estudos posteriores e anteriores às lições, efectuados durante os tempos livres de Bridei. O termo tempos livres era uma anedota, na verdade. Por vezes, depois do jantar, o jovem só tinha tempo de contar uma história a Tuala antes de adormecer, completamente exausto. No entanto, Bridei contava sempre uma história à sua pequena irmã. As histórias faziam parte da promessa que lhe fizera. Bridei sabia o que era estar na cama às escuras, à espera do sono, sem uma história que o acompanhasse nos sonhos. O jovem tivera muitas noites assim e habituara-se a elas. Porém, jurara a si próprio que Tuala nunca se sentiria tão só.
Quando se levantava, de madrugada, Bridei trabalhava com Erip e depois com Wid. Cada vez mais, à medida que o conhecimento de Bridei sobre o reino de Fortriu se intensificava, as suas montanhas e vales, os seus lagos e rios, as suas baías e ilhas, os dois homens ensinavam-no juntos e as suas aulas transformavam-se em discussões acesas a três vozes porque os dois anciãos encorajavam Bridei a dar a sua contribuição. Com Erip o jovem aprendia a história dos Pritnei, as linhagens reais, a natureza dos seus vizinhos e dos seus inimigos. Os do norte descendiam dos sete filhos do antepassado original, Pridne. O nome Priteni vinha dele, um nome que abarcava todos os habitantes de Fortriu, os de Circinn a sul e os dos territórios desconhecidos no norte distante, a tribo selvagem conhecida pelo nome de Caitt. Nas ilhas para lá da costa norte vivia um povo que se chamava a si próprio Folk, muito simplesmente. Os Folk também eram do sangue dos Priteni e eram fortes em virtude do seu isolamento, tinham o seu próprio rei e o seu próprio governo.
Fortriu e Circinn tinham sido um reino único, unido pelo amor aos velhos deuses, forte e confiante, mas a situação alterara-se aquando da eleição do último rei porque os chefes tribais não tinham conseguido chegar a acordo quanto ao candidato. O reino dividira-se com o cristão Drust, filho de Gkom, conhecido como o Javali, a subir ao trono do reino sulista de Circinn e Drust, o Touro, guardião das velhas tradições, a subir ao trono de Fortriu, que se estendia desde a fortaleza de Caer Pridne e de Grande Vale, no nordeste, até à última linha de defesa contra os celtas, a sudoeste. A agitação era constante entre estes dois reinos.
As aulas de Wid tinham a ver com jogos de poder, conselhos, leitura de expressões e gestos dos políticos, coisas que podiam ou não ser ditas em determinadas companhias, coisas difíceis de testar em Pitnochie. Era fácil adivinhar em que estava Fidich a pensar, por exemplo, enquanto bebia uma caneca de cerveja e fazia de conta que não estava a olhar para Brenna, ou com que sonhava Donal enquanto polia a sua espada e assobiava uma velha marcha.
- Preciso de praticar - protestou Bridei. - Estamos sempre a falar de assembleias e de conselhos de reis, mas tudo o que eu vejo é esta casa e esta herdade. Como é que eu vou aprender como deve ser se fico aqui fechado toda a vida? - Bridei não costumava queixar-se, obedecia sempre àqueles que respeitava. Porém, a manhã fora longa.
- Toda a vida? - perguntou Wid com as sobrancelhas em arco
- Um ancião de... o quê? Doze anos? Podes ter a certeza que vais ter uma hipótese, em breve. Se Broichan não te deixar viajar, há-de trazer-te aqui um pedaço do mundo para tu veres. Talvez ainda não, mas em breve. Tem paciência. Ele tem as suas razões.
Wid? - disse Bridei.
- Sim, meu rapaz?
- Tenho estado a pensar. O que é que eu vou ser quando isto tudo acabar? Quando a minha educação acabar? Vou ser um estudioso? Um conselheiro? Não devia conhecer um pouco o meu povo de Gwynedd? Suponho que hei-de voltar um dia para a corte do meu pai.
- Talvez - disse Wid com um pequeno sorriso. O jovem já lhe tinha feito aquelas perguntas, mas não daquela maneira, tão directa. Havemos de falar de Gwynedd, de Powys, o seu vizinho e de outras terras ainda mais distantes, mas, para ti, Fortriu é mais importante. E a educação de um homem nunca acaba. Já devias saber isso.
- Mas eu não sou de Priteni - disse Bridei. - Não quero parecer desrespeitoso, gosto de aprender o conhecimento e a história do norte, mas...
- A tua mãe era de cá - disse Wid calmamente.
- A minha mãe? - Bridei estava espantado; há muito que não pensava nela. - Ela era de Fortriu? Então talvez eu tenha família aqui, tios, tias e primos. Por que é que Broichan não me disse? O que é que sabes dela?
- Muito pouco - respondeu Wid, começando a enrolar e a atar os pergaminhos. - O nome dela era Anfreda, é a única coisa que te posso dizer. Não te lembras?
Bridei ficou alguns momentos em silêncio. Finalmente, disse:
- Eu tinha quatro anos quando vim para aqui. Na verdade, não me lembro de ninguém. Talvez do meu pai, um pouco, mas dos outros não.
- Mestre Broichan pode dizer-te mais.
- Ele não fala dela. Creio que não sabe.
- Paciência - disse Wid - tudo tem o seu tempo. Vamos ver o que se passa com o nosso jantar?
Depois das aulas da manhã era a hora de Donal. Bridei tornara-se competente com a espada e o bordão, eficiente com as facas e era capaz de despistar um perseguidor dissimulado. O jovem melhorara a perícia com o arco, de tal modo que a única diferença para Donal era que tinha de usar um arco mais pequeno. Bridei aprendera, no decurso das incursões de Verão às águas geladas do Lago da Serpente, a nadar o suficiente para ser capaz de nadar para terra em caso de acidente a bordo de um barco qualquer em que estivesse a navegar e sabia remar perfeitamente. Assim que teve tamanho suficiente para passar de Pearl para Bae, aprendeu a saltar, a deslizar de lado na sela, a apanhar um objecto qualquer do chão e a lançar uma lança a galope. Bridei gostava das aulas de Donal; o tempo passava depressa. O jovem gostava de ter oportunidade de treinar com alguém do seu tamanho, mas a aldeia continuava proibida. Tanto Donal como Broichan diziam que continuava a não ser seguro ir até lá.
Por vezes, Donal acabava a aula mais cedo e Bridei tinha algum tempo livre antes da aula com o seu pai adoptivo, a parte mais custosa do dia. Esses momentos eram-lhe preciosos. Tuala estava à sua espera, imóvel, à sombra dos carvalhos, na orla do relvado onde Donal e ele praticavam o manejo da espada, ou empoleirada num muro de pedra perto do estábulo, enquanto os dois praticavam com as facas e os bordões. A jovem levava-o a ver cogumelos curiosos que tinha encontrado, ou contava-lhe qualquer coisa que ouvira a Brenna, ou demonstrava-lhe ainda como tinha ensinado um dos cães a ir buscar uma bola que ela lançava. Pelo seu lado, Bridei falava-lhe um pouco do que aprendera na parte da manhã: reis e tribos, batalhas e grandes viagens. Em seguida, cedo demais, eram horas de ir ter com Broichan. Tuala não podia assistir às aulas do seu pai adoptivo, estas tinham lugar nos alojamentos do druida e ela estava proibida de entrar neles.
- Broichan não gosta de mim - disse ela a Bridei um dia, quando estavam sentados à sombra dos carvalhos, vendo Fidich a cortar lenha junto do estábulo. Não era uma queixa, era apenas uma declaração de facto.
- Ele não está habituado a crianças - disse-lhe Bridei. - Não sabe falar contigo, mais nada. As coisas melhorarão à medida que fores crescendo.
- E tu?
- Eu o quê?
- Ele está habituado a crianças. Tu estás aqui desde pequenino, ele fala contigo, ensina-te e deixa-te entrar no quarto especial dele.
- Quando eu tinha a tua idade não me deixava entrar. Tens de lhe dar tempo.
Tuala abanou a cabeça.
- Ele não gosta de mim. Se gostasse, também me ensinava. Brenna diz que eu preciso de aprender a coser e a cozinhar, mas o que eu quero é aprender o que tu aprendes: quero saber coisas sobre o mundo.
Bridei evitou dar-lhe a resposta óbvia: Tu és uma rapariga. Se bem que fosse verdade, não lhe parecia de modo nenhum a resposta certa. Nem nos seus pensamentos mais fantasiosos conseguia vê-la a coser e a cozinhar.
- Eu ensino-te o mais que puder - disse-lhe o jovem. Tuala torceu um talo de erva entre os seus pequenos dedos.
- És capaz de me ensinar a vedar?
Bridei sentiu-se subitamente gelado, apesar de não saber bem porquê.
- Que sabes tu sobre a arte de vedar? - perguntou-lhe ele.
- Sei que Broichan veda com um espelho de bronze. Sei que as mulheres sábias e os druidas são capazes de o fazer. Conseguem ver o que está a acontecer. E o que aconteceu. Gostava de tentar. Acho que era capaz. - Havia uma nota estranha no tom da sua voz.
- Para quê, Tuala? - Bridei pensava saber qual seria a resposta. A jovem inclinou a cabeça; as cortinas de cabelo lustroso caíram-lhe para o rosto, quase escondendo o pequeno rosto.
- Para os poder ver - murmurou a pequenita.
- Quem?
- Os que me deixaram aqui. A minha família. Acho que era capaz de os ver.
Bridei sentiu um baque no coração.
- Agora, nós é que somos a tua família - disse o jovem gentilmente.
- Tu és - concordou Tuala, erguendo para ele uns olhos tristes.
- Mas Broichan não. Ele não me quer aqui.
- Ele disse...? Não é preciso dizer. Bridei, ensinas-me?
- Como? Ele tem o espelho fechado à chave e... bem, tenho a certeza que não me deixaria. É uma arte secreta, é precisa muita preparação e pode ser perigoso se a coisa for feita de modo errado. Ele podia ensinar-te, mas eu não. Só tentei umas duas vezes e a coisa não correu muito bem. Broichan disse que não tinha importância. As outras disciplinas é que são importantes.
Tuala ficou em silêncio durante alguns momentos. Os seus dedos teciam um minúsculo cesto de erva. Finalmente, a pequenita disse:
Este conta a meu favor. Vou ter que ensinar a mim própria.
Bridei franziu o sobrolho.
Tem cuidado. Já te disse que é perigoso, como todas as artes mágicas. De qualquer modo, não tens um espelho.
Acho que sou capaz de arranjar um - disse ela, colocando o cesto minúsculo entre as raízes do grande carvalho. - Vais chegar atrasado à aula.
De regresso a casa, o jovem sentiu que ela estava a observá-lo, se bem que tivesse ficado onde estava, à sombra das árvores. Por vezes, preocupava-se com Tuala. Ora andava pelos bosques como uma coisinha selvagem, ora falava como uma avó. No entanto, só tinha seis anos. Com sorte, no dia seguinte já andaria interessada com outra coisa qualquer e a ideia de vir a ser vidente já lhe teria desaparecido da cabeça.
Broichan estava à sua espera.
- Vieste a correr - observou o druida.
Bridei tentou normalizar a respiração. Não pediria desculpa. De facto, não estava atrasado. O jovem não queria entrar numa discussão sobre como passar os seus tempos livres.
- Sim, meu senhor - disse ele após um momento, com voz firme e respirando com normalidade.
- Senta-te - disse Broichan.
Bridei sentou-se no banco oposto ao seu pai adoptivo, no outro lado da mesa de carvalho, em cima da qual estava uma série de hastes de vidoeiro, cada qual com uma marca diferente esculpida. Bridei teve o cuidado de não os mudar de sítio, representavam um presságio.
- Diz-me o que vês. - A voz de Broichan era profunda e ressonante, um som pleno de mistério e autoridade. O rosto do druida estava calmo, como sempre, os olhos estavam encovados e os cabelos, entrançados, caíam-lhe pelos ombros. O jovem viu madeixas grisalhas.
Bridei estudou as hastes de vidoeiro. O jovem começara a estudar aqueles sinais muito cedo; por ocasião do seu primeiro Verão em Pitnochie, o seu significado básico já lhe era familiar e naquela ocasião já sabia que havia tantas maneiras de os interpretar como estrelas havia no céu. Um intérprete qualificado não procurava apenas descobrir um significado, procurava seleccionar o que era relevante entre uma miríade deles.
- Procura uma resposta para uma pergunta especial? - perguntou ele a Broichan, examinando a disposição das hastes, os locais onde se interceptavam e os que tinham ficado por cima ou por baixo dos outros. Evidentemente, a pessoa que as tinha lançado é que estava mais bem posicionada para interpretar o padrão; não havia dúvida de que Broichan já o tinha feito.
O druida acenou com a cabeça.
- A pergunta é complexa e a resposta, por seu turno, tem muitas ramificações. Como tu a vais ver em termos mais simples, pode ser que tenhas uma resolução simples. A pergunta foi acerca de líderes e lealdades, uma pergunta difícil sobre o próprio Fortriu.
Bridei pensou durante algum tempo, focando e desfocando a visão nas pequenas hastes de vidoeiro, tentando ver para além do padrão de linhas e símbolos que marcavam as suas superfícies pálidas.
- Vejo dois animais - disse o jovem - um touro e um javali, cada um com os seus. Inimigos vindos de Leste e de Sul, atacando-os e tentando meter-se entre eles. Porém, há aqui uma haste que se junta aos dois. Uma águia. A águia mantém-nos juntos, ligando as duas partes. E vejo aqui uma outra meio escondida, por baixo. A sombra.
- E?
- Um movimento inesperado e tudo pode cair: o javali, o touro e a águia.
- Deixando apenas a sombra - disse Broichan, muito sério. E, sozinha, a sombra não consegue nada. Obrigado, Bridei; podes meter as hastes no teu saco e enquanto o fazes, testemos a eficácia das lições de história do teu tutor. O simbolismo, aqui, é óbvio. Digamos que reflecte os anos vindouros, os próximos dez, talvez, ou quinze. Como interpretas esta imagem de touros e javalis?
- O touro deve ser o nosso rei, Drust, filho de Wdrost, porque o touro é a sua insígnia; Erip disse-me que as pedras que rodeiam a sua grande fortaleza têm quase todas a sua imagem. O javali é Drust, filho de Girom, monarca de Circinn, o que quer dizer que as duas tribos que se vêem no presságio são os dois reinos dos Priteni: nós, os de Fortriu, que seguimos a verdadeira fé dos nossos antepassados, e os do Sul, os cristãos.
Assediados por inimigos, ambos - disse Broichan, meditativo.
Sim, até uma criança via. Circinn tem dificuldade em defender as suas fronteiras contra a barbárie vinda de Sul. Quanto a nós, enfrentamOs vaga após vaga de celtas, decididos a conquistar cada rocha, vale, lago e rio a que chamamos nossos. No entanto, somos um povo forte, Bridei, um povo sofredor. Que significado dás à água que anula a distância tão tenuamente? Os chefes tribais dos Priteni têm ideias próprias e os seus reis também são teimosos. Unir o javali e o touro parece-me tão improvável como emparelhar dois veados selvagens e esperar que eles trabalhem em equipa.
As hastes de vidoeiro já estavam metidas no seu saco de pele de cabrito. Bridei apertou-o com um cordão de pele e colocou-o na prateleira. Mais acima, um berço minúsculo, murcho e desbotado, na sombra. O jovem sentou-se e apoiou o queixo numa mão, pensativo. A resposta tinha de ser muito bem pensada, ou mais valia ficar calado.
- Penso que - disse Bridei - para Fortriu, o mais importante é a águia. É um bom símbolo, para um rei, melhor do que o touro, ou o javali, se bem que estes sejam fortes à sua maneira. A águia voa acima de tudo: sobrevoa o Grande Vale, para lá do Vale até às ilhas ocidentais, para norte até às terras dos Caitt e para sul até Circinn. A águia consegue sobrevoar os reinos governados pelos dois reis; a sua visão é total, forte e indivisível. Ou deve ser. Não quero parecer desleal ao rei Drust, claro.
- Não - disse Broichan suavemente - e se estivesses noutra companhia, sei que não dirias o que disseste. Não há dúvida de que Wip te avisou para os perigos da má interpretação. Aqui, em Pitnochie, entre amigos, podes falar livremente. Os teus sentimentos são admiráveis, Bridei. Todos nós gostaríamos de ver os Priteni unidos como antes de o flagelo da nova religião ter varrido o Sul e ter envenenado a mente de Drust, o Javali. Agora, claro, temos dois reis, dois reinos e duas fés. Isto enfraqueceu-nos muito e a tua águia não altera o facto de este cismo ter alterado a nossa capacidade de resistir a incursões Amadas. Os celtas instalaram-se a Oeste; já existe uma nova geração nas aldeias onde moraram os nossos avós e as botas deles pisam solo sagrado para nós. Cada vez que nos atacam aproximam-se mais um POUCO. Seremos capazes de deter uma ofensiva maior? Duvido. Viste a sombra da sua crueldade no Vale dos Que Caíram, Bridei. Não podemos permitir que cheguem ao Vale; não podemos permitir a repetição daquele morticínio de homens bons, a poluição da nossa terra. Infelizmente, os nossos reis mostram relutância em se sentar à mesa do conselho. Por que o fariam? Um continua leal à antiga doutrina de Fortriu, mas o outro é um traidor à fé que o viu nascer.
- A águia - disse Bridei - significa mais do que eu disse. Os homens que morreram, os que vi no Espelho Negro naquele dia, o meu pai adoptivo disse que eles nunca tinham deixado de acreditar em Fortriu, mesmo depois de saberem que iam morrer. Eu acho que a águia é isso, a ligação no presságio: a faísca que temos cá dentro, que faz de nós uma parte desta terra, o que recebemos dos nossos antepassados, o que damos aos nossos filhos, fazendo-nos fortes mesmo quando perdemos, fazendo de nós parentes uns dos outros, quer sejamos do Norte ou do Sul e seja qual for a nossa fé. Talvez, se todos se lembrassem disso, pudéssemos enfrentar o invasor, se ele vier outra vez. Naquele dia, no Vale dos Que Caíram, não compreendi, ainda era uma criança.
- No número de anos, sim - disse Broichan, olhando para Bridei com uma expressão estranha. - E ainda és. Muitos homens ver-te-iam como uma criança, mesmo agora.
Bridei sentiu as faces corarem. O jovem não disse nada.
- A tua interpretação do presságio, porém, foi a de um homem disse o seu pai adoptivo. - O cerne da questão, claro, reside na religião. Se a nossa terra cair às mãos do invasor, será porque aquele fraco de Circinn abriu as fronteiras aos missionários que pregam a doutrina da cruz. Se nós também fizermos o mesmo, Bridei, talvez mereçamos desaparecer. Se virarmos as nossas costas à sabedoria dos nossos antepassados, merecemos sobreviver?
- Meu senhor, não acreditais que o nosso povo é capaz disso, pois não? - protestou Bridei. - Pôr de lado a Mãe de Tudo, A Que Brilha e a sabedoria que governa cada escolha que fazemos nas nossas vidas? Aqui, no norte, somos fiéis à nossa fé. Drust, o Touro, nunca fará como o outro rei, permitir que o seu povo abandone os velhos costumes. Erip até disse... - O jovem parou.
- O que é que Erip disse?
- Que o rei Druste ainda observa o sacrifício do Portal. No Poço das Sombras. Ele disse que enquanto as mulheres sábias forem até à costa em vigília à Mãe de Tudo, o rei faz uma oferta ao Que Não Tem Nome, a força mais sombria de todas, que mora para lá e por baixo do Outro Mundo. Um sacrifício com carne viva.
- Erip disse isso?
Insinuou que Wip disse-lhe que certas coisas não deviam ser ditas em voz alta, mesmo quando na companhia de amigos.
Tanto Erip como Wip têm razão. Devias tirar isso da tua mente, por agora. Em breve terás outros assuntos com que te ocupar. Vamos ter visitantes no Solstício de Verão.
- Por isso - disse Bridei a Tuala alguns dias mais tarde - tenho de pôr em prática tudo o que aprendi. Era ao fim do dia e os dois jovens estavam sentados num canto sombrio do salão, tentando não chamar a atenção para que ninguém mandasse Tuala para a cama. Tudo - continuou ele. - Esta gente que vem aí é gente que anda pela corte; inteligente, subtil, manhosa. Muitas vezes, aquilo que dizem que querem de nós não corresponde à verdade. Muitas vezes, o que dizem não é o que querem dizer. É uma gente interessante. Gente que conhece o mundo. Broichan diz que é uma oportunidade que eu tenho de pôr em prática o que Erip e Wip me ensinaram.
- Um exame - disse Tuala, acenando sabiamente com a sua pequena cabeça. - Um julgamento.
Bridei franziu o sobrolho.
- Não diria tanto. Eles são amigos de Broichan, tanto quanto sei. É mais uma oportunidade.
- Um teste - repetiu Tuala, não se deixando abalar.
- Bem, talvez, mas vai ser bom ver outros rostos por aqui. Tuala não respondeu. A jovem andava muito calma. Havia dias que não havia excursões solitárias ao bosque em busca de flores selvagens escondidas, de ninhos de tordos ou de cogumelos. Subitamente, Bridei recordou-se de que, desde que se sabia que teriam visitantes em Pitnochie, Tuala passava a maior parte do tempo perto de casa, ou do pátio, esperando por ele como uma pequena sombra silenciosa.
- Está tudo bem contigo? - perguntou ele, apercebendo-se da sua excitação e antecipação.
Tuala acenou com a cabeça e não disse nada. A jovem estava abraçada a si própria, como se estivesse cheia de frio. Os seus olhos adquiriram uma expressão longínqua que não era usual, mas que também não era rara, como se tivessem segredos que um rapaz vulgar não podia aspirar a partilhar.
- Tens a certeza? Outro aceno.
- Se alguma coisa te perturba, deves dizer-me - disse ele, pouco convencido.
- E digo, Bridei - respondeu a jovem num tom de voz baixo, remoto.
- Estás cansada. Tens umas olheiras enormes. Que tal uma história e depois vais para a cama? - Tuala dormia agora no quarto minúsculo que pertencera a Brenna e que antes disso era um pequeno armazém. Finalmente, Mara cedera e partilhava agora de boa vontade o seu quarto com Brenna, mais uma mudança surpreendente que ocorrera em Pitnochie depois da noite do Solstício de Inverno.
- Sim, por favor - respondeu Tuala, aproximando-se, encostando-se a ele e descansando a cabeça na manga da túnica dele.
- Então está bem - disse Bridei. - Mas não adormeças antes de eu acabar.
- Sim, Bridei. - A voz da jovem estava mais quente, mas havia algo no modo como ela se agarrava ao braço do rapaz, como uma trepadeira trepando por uma árvore, que deixou Bridei pouco à vontade.
- Qual é a história que queres?
- Aquela em que me encontras à luz do luar - sussurrou ela.
- Outra vez? - Bridei contara-lhe aquela história tantas vezes que se tornara num ritual.
- Hmm.
- Era uma vez um rapaz... - chamado Bridei... - que pensava estar sozinho. A sua vida não era muito má, na verdade; tinha um lugar para dormir, o suficiente para comer e estava a ser educado. Porém, faltava-lhe algo e nem sequer Bridei sabia o que era. - uma família...
- Sim, mas ele só soube isso mais tarde. Bridei era bom rapazinho. Fazia os trabalhos de casa, esforçava-se e tentava agradar a toda a gente. Então, na noite do Solstício de Inverno, tudo mudou.
- A Lua apareceu na sua janela.
- Sim, A Que Brilha acordou-o e ele saiu à rua apesar de estar muito frio... - tanto que até a coruja estava escondida...
- tanto que as lágrimas dos Urisk se transformavam em gelo no momento em que lhes saíam dos olhos... - tanto que as árvores tremiam...
- tanto que as orelhas e o nariz de Bridei começaram a doer no momento em que ele abriu a porta da rua; tanto que gelava os dedos dos pés se ele fosse suficientemente louco para sair descalço, mas foi o que Bridei fez. Quando ele olhou para baixo, para ver se os dedos dos seus pés ainda lá estavam, viu o que a Lua lhe tinha deixado.
- Um bebé.
- Exactamente; um pequeno bebé muito estranho, todo enrugado, tão feio como uma maçã velha...
- Não era nada! Bridei riu-se.
- Estava só a ver se estavas a ouvir. Não, o bebé era lindo, a espécie de bebé que só A Que Brilha deixaria como presente na noite do Solstício de Inverno. O bebé estava num pequeno berço feito com coisas da floresta: tufos de erva, folhas de árvores...
- penas de corvo, penas de coruja...
- azevinho...
- bagas verdes, teias de aranha...
- e pedras com buracos, entretecidas nas pegas...
- Bridei?
- Hum?
- Onde está o berço? - A jovem nunca lhe fizera aquela pergunta.
- Estava guardado - respondeu ele, não mentindo, mas relutante em dizer a verdade pura. Bridei nunca lhe falara na chave nem no feitiço que fizera para fazer com que ela conseguisse um lar. - Mas agora já deve estar desfeito; no fim de contas, foi há seis anos.
Tuala acenou com a cabeça.
- Continua - disse ela.
- Portanto, Bridei pegou no cesto com o bebé lá dentro e meteu-o dentro de casa.
- Porque estava muito frio na rua.
- Muito, muito frio. Bridei manteve o bebé quente até os outros acordarem, depois chegou Brenna, o bebé ganhou um lar e Bridei nunca mais ficou só.
- Tinha uma família - disse Tuala com um grande bocejo.
- É verdade - concordou Bridei - e agora são horas de ir para a cama. Até amanhã. Bons sonhos, Tuala.
A jovem desprendeu-se do braço dele e levantou-se a esfregar os olhos.
- Toca a andar - disse ele. - Estás a dormir em pé.
- E se naquela noite o céu estivesse cheio de nuvens? - perguntou ela subitamente. - Nunca me terias encontrado.
- Mas não estava.
- Sim, mas podia ter estado.
- Nesse caso, quem te pôs à porta não te teria posto.
- Eles não quiseram saber de mim. Ter-me-iam deixado enregelar, como os pássaros que caem das árvores no Inverno.
- Quiseram, sim - disse ele, fixando-a. A expressão da jovem era alarmantemente vazia; não era um olhar adequado ao rosto de uma criança. - Por isso é que te entregaram a mim, para que tomasse conta de ti. Porque sabiam que podiam confiar em mim e por isso é que eu te estou a mandar para a cama, para que durmas o suficiente. Toca a andar, eu levo-te.
A noite do Solstício do Verão seria de lua cheia, o que era uma conjunção auspiciosa. À medida que o festival se aproximava, a casa de Broichan começava a sofrer mais uma metamorfose. Os hóspedes esperados eram quatro: três homens e uma mulher. Como amigos pessoais do druida, não poderiam ficar alojados com os homens de armas. O celeiro de paredes de barro foi limpo o melhor possível - os ratos não desapareceram - e os homens instalaram-se, deixando os seus alojamentos para os visitantes masculinos. Erip e Wid queixaram-se dos ossos e das costas e foram dispensados de se mudar. Bridei, para sua delícia, ficou a um canto do celeiro, perto de Donal. O seu pequeno quarto seria cedido à Mulher Sábia de visita, de nome Fola. Os que conheciam a sua reputação, chamavam-lhe Fola a Feroz, mas de maneira a que Broichan não ouvisse.
Na cozinha, um domínio sempre em movimento, o passo ainda ficou mais rápido. Ferat queria que as oferendas da sua mesa reflectissem a condição de Broichan de druida mais antigo e de proprietário de terras de importância considerável. Do lago vieram as trutas para serem fumadas; das caves saíram os queijos; fizeram-se chouriços de sangue; a carcaça de um novilho foi salgada; planeou-se a confecção de pudins e a caixa dos condimentos ficou mais leve.
Preparando-se para a visita, os tutores de Bridei tornaram-se exigentes. Onde antes havia quase sempre tempo para um passeio, para um jogo, para uma troca de notícias, não havia agora tempo para nada senão para estudar, para comer e para dormir.
Tuala observava e escutava. A jovem era especialista em não dar nas vistas, misturava-se com as sombras como se estivesse realmente noutro sítio qualquer. A pequenita colocava-se à sombra dos carvalhos enquanto Bridei e Donal praticavam com os bordões. As feições tatuadas de Donal e a capa de pele davam-lhe um aspecto feroz, mas Bridei, com os cabelos castanhos atados num rabo-de-cavalo e os olhos azuis semicerrados, constituía um verdadeiro desafio para o seu tutor. O jovem quase conseguiu derrubar Donal com um golpe rápido do bordão ao nível do joelho, mas este conseguiu esquivar-se no último momento, bloqueando o golpe e contra-atacando. Bridei oscilou, tentou equilibrar-se e conseguiu. Mestre e aluno apertaram as mãos, sorrindo. O assalto terminara, mas Tuala não se mexeu. Naquele dia não haveria tempo para conversar com Bridei, no dia seguinte também não e nem no outro a seguir. Broichan ia mandar chamar imediatamente o seu filho adoptivo e mantê-lo-ia ocupado até à hora de jantar. Aquilo era de propósito, para evitar que ela pudesse dizer a Bridei que se ia embora. Não era justo. Broichan devia saber que ela não diria ao jovem; ele é que a obrigara a prometer. Não havia necessidade de lhe roubar aqueles pequenos presentes, aqueles pequenos períodos de tempo com Bridei, não havia necessidade de lhe roubar aquele tesouro.
Tuala tinha medo de pouca coisa. A jovem gostava de todos os animais, até dos ratos que havia no celeiro e dos pequenos insectos no telhado de colmo; não tinha medo das aranhas e dos morcegos e respeitava os animais mais perigosos, como os lobos, as serpentes e os javalis. Broichan, porém, enchia-a de terror profundo, a jovem ficava entorpecida, gelada, muda, sempre que o druida olhava para ela. Tuala era muito bem capaz de ir sozinha para o bosque, era capaz de trepar à mais alta das árvores, escalar a rocha mais íngreme; estava habituada a atravessar com passos pequenos e confiantes o campo murado onde estava o touro cobridor, de grandes cornos. Os cães eram amigos devotos de Tuala e os homens de armas gostavam dela. Mara tolerava-a; Brenna atendia às suas pequenas necessidades com ternura firme.
Ferat era uma fonte certa de bolos de mel, se bem que, como dizia o cozinheiro, Tuala não comesse mais do que uma carriça.
Porém, com Broichan era diferente. Não era que ele falasse muito com ela. A maioria das vezes, o druida agia como se ela não estivesse ali. Porém, a jovem sentia o seu desagrado; sentia que ele não confiava nela. A jovem sentia a sua força e isso metia-lhe um medo terrível.
O druida mandara chamá-la depois de anunciar pela primeira vez que teriam visitantes. Brenna levara-a à presença de Broichan depois de uma penteadela rápida e da passagem de um pano húmido pelo rosto. Era a primeira vez que Tuala entrava nos aposentos privados do druida. O quarto estava cheio de coisas interessantes, mas o bater do seu coração dizia-lhe que não podia olhar para elas como devia ser. Bridei saíra a cavalo com Donal e estariam fora todo o dia. A jovem desejou que o seu irmão estivesse ali com ela.
Brenna mantinha-se de pé com as mãos atrás das costas. Tuala encostou-se o mais possível às suas saias, tentando fazer-se invisível. O druida estava de pé junto da lareira, alto, muito alto no seu manto negro. Os seus olhos eram tão escuros como dois abrunhos e a boca era fina, como se ele estivesse zangado, ou com dores. Tuala vira Donal cerrar a boca daquela maneira quando Ijicky lhe dera um coice sem querer e lhe fizera um alto na canela do tamanho de um ovo. O quarto estava iluminado por uma série de velas; a sua luz fazia brilhar misteriosamente as garrafas nas prateleiras, revelando coisas que pareciam serpentes, formas enrugadas com rostos de duende ou quantidades enormes de lesmas verdes e gordas. Também havia frascos de pedra tapados, utensílios de ferro e recipientes de argila cozida. O cheiro a ervas era pungente. Tuala começou a dizer algarismos para si própria para afastar o terror. A jovem já sabia contar até cinco: Bridei ensinara-a.
- família no Vale? - disse Broichan, mas Tuala perdera a maior parte da frase.
- Sim, meu senhor - respondeu Brenna, parecendo um pouco nervosa. - A minha mãe e a minha tia - a mãe de Cinioch - vive em Cumeeira de Carvalho, no cruzamento para Cinco Irmãs.
- Um sítio isolado - comentou Broichan. - Tanto melhor. Tuala olhava para as mãos dele; os dedos eram longos e ossudos e
havia um anel de prata com a cabeça de uma serpente num deles. A serpente tinha olhos verdes. A jovem pestanejou e pareceu-lhe que a serpente lhe respondera.
- Como se porta a criança? - perguntou o druida, fixando subitamente Tuala, perscrutando. A jovem encostou-se a Brenna, mas não havia maneira de escapar àquele olhar. Se o fizesse, seria um sinal de fraqueza. Assim, tinha de aguentar, ser corajosa, como Bridei. Tuala não desviou o olhar.
Porta-se bem, meu senhor. - Brenna não pareceu ficar preocupada com a pergunta e afastou Tuala um pouco para que a jovem pudesse ser inspeccionada. - Tuala é muito calma, nunca faz asneiras. Toda a gente gosta dela.
- Hum - disse Broichan, meditativo. - Não deixa de ser quem é: diferente, chama a atenção e neste momento não nos podemos distrair.
- Por causa dos visitantes, meu senhor? - Brenna estendera o braço para pegar na mão de Tuala; o calor era reconfortante. - Eu consigo mantê-la afastada enquanto eles estiverem aqui. Ela pode dormir comigo e com Mara...
Broichan silenciou-a com um gesto de mão erguida.
- Não é o facto de ela poder perturbar os meus hóspedes que me preocupa. O que me preocupa é a interrupção de Bridei.
O insulto atingiu o coração de Tuala. A jovem não sabia o que significava interrupção, mas parecia-lhe uma coisa má e seria incapaz de fazer mal a Bridei. Bridei era a família dela.
- Eu nunca... - começou ela, mas fechou logo a boca perante o olhar de Broichan.
O druida falou com Brenna como se não houvesse mais ninguém no quarto.
- Estás despedida desta casa até à lua nova a seguir ao Solstício de Verão. Vais visitar a tua mãe e levas a criança contigo. Ferat arranja-te um cesto de comida, um presente para a tua família. Não precisas de me agradecer, mereceste-o. A criança não pode sair de casa da tua mãe e tem de ficar lá dentro com muito juízo. Não quero ouvir histórias acerca dela pelo Vale fora. Conto com a tua discrição, Brenna. Ouvi dizer que temos noivado daqui a pouco tempo?
As faces pálidas de Brenna ficaram da cor de uma romã.
- É verdade, meu senhor - murmurou ela. - Fidich fazia tenÇão de falar convosco depois disto tudo. Da visita, quero dizer...
Nesse caso, digo mais qualquer coisa, para além das instruções.
Se tudo correr como planeado, quero ver-te bem instalada, com alguns melhoramentos, na cabana de Fidich, que de momento é pouco confortável. Se não... - O druida não acabou a frase. - Tenho a certeza que compreendes a necessidade de cautela neste assunto.
- Compreendo sim, meu senhor - disse Brenna. - Quanto mais não seja para bem de Tuala. Quando quereis que a gente vá?
O druida franziu o sobrolho.
- Infelizmente, neste momento não posso dispensar Cinioch para te escoltar, mas assim que não precisar dele podeis ir. Mara está a par das minhas intenções neste assunto, assim como Ferat e Donal, mas mais ninguém deve saber. Estamos entendidos?
- Sim, meu senhor - respondeu Brenna. - Mas...
- Mas o quê? Suponho que as instruções são claras.
- Meu senhor, Tuala e Bridei são muito chegados. Não se pode dizer uma coisa a um sem que o outro saiba no dia seguinte.
A boca de Broichan transformou-se de novo numa linha fina.
- Nesta casa existe uma prioridade - disse ele - que é a educação de Bridei. O que vai acontecer aqui no Solstício de Verão é crucial para o futuro dele. Não pode haver distracções. Vais para casa da tua mãe, levas a criança contigo e assim que estiverdes a caminho eu informo o rapaz. Será um teste à sua maturidade. Até à hora da partida, não quero ouvir falar mais do assunto. Estamos entendidos?
- Sim, meu senhor - disse Brenna. - Não direi uma palavra, prometo. Mas...
- Podes ir. - Broichan virou-lhe abruptamente as costas e ficou a olhar para a lareira apagada.
- Sim, meu senhor. - Tuala sentiu o alívio na voz de Brenna; mão na mão, as duas dirigiram-se para a porta. O coração da pequenita continuava a bater com toda a força. O que ouvira era muito mau, muito mau. Iam mandá-la embora e não poderia dizer nada a Bridei. Como era possível? Ela dizia-lhe sempre tudo.
- Deixa a criança.
Sobressaltada com a súbita ordem, Brenna largou a mão de Tuala e, após um momento, debruçou-se, prendeu-lhe uma madeixa atrás da orelha e murmurou:
- Porta-te bem - antes de sair rapidamente porta fora, fechando-a atrás de si.
Subitamente, o quarto pareceu muito maior e muito escuro. A silhueta alta do druida erguia-se acima de Tuala como uma sombra, como um espectro, como um feiticeiro saído de uma das histórias de Bridei.
A jovem podia ver a serpente do anel a olhar para ela; a sua língua bifurcada saía e entrava-lhe da boca. Tuala esperou com as mãos atrás das costas para que Broichan não visse que tremiam. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o druida virou-se mais uma vez para ela e sentou-se num banco. Tuala já não precisava de levantar tanto a cabeça para olhar para ele. A expressão severa do druida não mudara.
- Fala - disse ele. - Percebeste alguma coisa do que eu disse? A boca de Tuala ficou subitamente seca e a sua língua inchada, estranha. A jovem não conseguia dizer uma palavra e tinha absoluta necessidade de fazer uma necessidade, mas não tinha coragem de pedir àquele homem. Tuala conseguiu acenar com a cabeça.
- Então diz.
- Eu... eu... - Tuala estava incapaz de falar. Era como se lhe tivessem feito um feitiço, um encantamento de silêncio, no pior momento possível.
Broichan suspirou.
- Que o Corvo Negro me proteja das crianças - disse ele. Vamos lá a ver se a gente se entende. Já te ouvi falar muitas vezes. Eu sei que és capaz de falar e de entender, mas vou-te explicar com a maior simplicidade possível. Tu vais-te embora e se fores obediente e fizeres o que Brenna te disser, pode ser, repito, pode ser que voltes a esta casa quando as visitas do Solstício se forem embora. Ah, vejo que compreendes; os teus olhos dizem-no com clareza. E também vejo que te importas. É evidente que vês esta casa como o teu lar; mais nenhuma casa em Fortriu te teria recebido.
- Sim, meu senhor. - A voz de Tuala era um sussurro, parecia o vento a passar pela erva seca.
- Sabes de que trata a educação de Bridei? Um aceno de cabeça.
- Não me parece, pelo menos na totalidade. O meu filho adoptivo não pode ter a sobrecarga de uma rapariga que lhe ocupa tempo e lhe distrai a mente do caminho penoso e real para o qual se está a preparar. Bridei vai passar a estar mais tempo com outras pessoas, aqui em Pitnochie e noutros sítios. Se eu vier a saber que te metes no caminho dele, farei com que saias daqui para sempre. Compreendeste?
A jovem tremia como varas verdes, atingida por algo muito forte, que não conseguia evitar: ira ou terror, ou talvez as duas coisas.
- Sim - disse ela, apesar de não ter entendido bem as palavras, mas consciente do seu significado.
- Tu não és nada a Bridei - disse Broichan. - Foi a sua amabilidade que permitiu que viesses para esta casa, pelo menos durante algum tempo. Mais nada.
Tuala respirou fundo e cerrou os punhos atrás das costas.
- Bridei é a minha família. - A sua voz soava muito baixo naquele quarto tão grande. - Eu não conto mentiras à minha família.
Broichan abanou a cabeça, muito sério.
- Isso não é verdade. A tua família, se a tens, vive lá fora, na floresta. Bridei é um rapaz de bom coração que teve piedade de ti, como teria de um cordeiro órfão. Bridei não é teu parente.
- Nem seu!- gritou Tuala, perdendo as estribeiras por causa da dor. Broichan esperou um momento antes de falar novamente.
- Bridei é meu filho adoptivo - disse ele em tom neutro. - Foi-me confiado por razões que tu não podes compreender.
Aquilo exigia uma resposta.
- E eu fui confiada a ele - murmurou Tuala. Era bom que ele acabasse com aquilo rapidamente e a mandasse embora, ou ela desgraçar-se-ia e deixaria uma poça no chão e então ele acabaria por acreditar que ela não passava mesmo de uma criança.
Os olhos de Broichan semicerraram-se.
- A Lua deixou-me aqui - disse Tuala. - Mostrou-lhes o caminho quando eles me trouxeram. A Lua acordou Bridei e ajudou-o a encontrar-me. A Que Brilha encarregou-o de olhar por mim. Eu é que sou a família dele. Eu. - A jovem mordeu o lábio, lutando contra as lágrimas.
- Escuta-me, Tuala. - Era a primeira vez que Broichan dizia o nome dela. A jovem já tinha perguntado a si própria se ele se lembraria de qual era. - Tu sabes o significado da palavra destino?
A jovem acenou com a cabeça.
- Diz-me qual é.
- Diz nas histórias - respondeu Tuala. - As que Bridei me conta quando vou para a cama. Destino é quando as coisas acontecem. Batalhas, viagens, casamentos e reinos. Lutar contra dragões, encontrar tesouros, descobrir segredos.
Broichan olhou para ela, muito sério; os seus olhos tinham perdido alguma da sua ferocidade enquanto a jovem falava.
- Estou a ver que Bridei tem cuidado da tua educação - disse ele. O druida tinha as longas mãos entrelaçadas no colo; Tuala viu a pequena serpente de prata a erguer a cabeça, olhando para ela.
- Eu gostava de aprender mais - arriscou ela, encorajada por ter conseguido responder satisfatoriamente à pergunta. - Sobre as estrelas, as tribos e outras coisas que Bridei está a aprender. Ele não me pode ensinar tudo, anda sempre ocupado.
Os lábios do druida apertaram-se.
- No teu caso, muita educação só pode levar à infelicidade - disse ele. - Seja qual for a vida que te espera, não precisas deste tipo de conhecimento. É melhor dedicares-te às artes domésticas e ter esperança num bom casamento e isso pode arranjar-se em devido tempo.
Tuala ficou silenciosa. A jovem sentiu que nas palavras do druida havia um grande insulto, mas não sabia exactamente qual. O sentimento de dor, porém, era inquestionável.
- Tuala - disse o druida - aproxima-te. Senta-te aqui ao pé de mim. Deves estar a pensar, suponho, por que razão falei em destino. Tu vês Bridei como teu amigo, como teu companheiro de brincadeiras porque, no fim de contas, ele, em muitos aspectos, é um rapaz, apesar de já ter doze anos e tu seres ainda quase um bebé. Não fica mal a um rapaz sentir compaixão pelos fracos, mas só até certo ponto. É muito bom um rapaz ser obediente aos costumes antigos, agir de acordo com o que ele pensa ser um pedido da Que Brilha. Porém, não penses que ficaste em Pitnochie simplesmente porque Bridei desejou que a casa te desse abrigo. Tu ficaste porque eu decidi não te mandar embora. Tu não és um dos nossos e nunca serás. O teu destino está inteiramente nas minhas mãos, Tuala. Nunca te esqueças. Nos meus planos para o futuro, o único que conta é Bridei. Se pensas que estás em dívida para com ele, se desejas que ele viva a vida o melhor possível, então terás de fazer o que eu digo. Bridei tem um destino. Compete-me, a mim, assegurar que ele seja educado correctamente; que nada nem ninguém se meta no futuro planeado para ele.
Tuala engoliu em seco.
- Então, por que razão ainda aqui estou? - coaxou a jovem, sentindo a garganta a arder, o que a obrigava a falar quando o silêncio seria mais seguro. - Se sou má para ele, por que me deixou ficar?
- Não estás a ouvir o que eu estou a dizer - disse Broichan. - Por uma questão de dever: o dever do rapaz para com os deuses, como nós o entendemos. Numa decisão destas, nós pesamos os argumentos e chegamos a uma situação de compromisso. Eu não posso pôr de parte a história do teu aparecimento aqui, do envolvimento da Que Brilha. Aceito a convicção do meu filho adoptivo, de que tem uma certa obrigação. Na verdade, até seria perigoso menosprezá-la. O que tu tens de compreender é que se gostas do rapaz e se queres que ele consiga ir o mais longe possível, tens de seguir as minhas instruções e as minhas instruções, neste momento, são que vás para casa de Brenna por uns tempos e que não digas nada a Bridei. Ele ficará ao corrente de tudo em devido tempo.
A pequena serpente começou a mover-se através da mão de Broichan. O druida não parecia aperceber-se. O animal silvava, a língua bifurcada em miniatura saía da sua pequena boca. Tuala colocou a sua própria mão aberta junto da do druida, muito maior, e a serpente passou para a sua palma, fixando-a com os seus pequenos olhos verdes. Apesar do seu tamanho, era pesada e transportava em si o calor do corpo do druida. Tuala teria sorrido para a sua graciosidade, para a sua perfeição, não fora o sentimento, qual pedra fria, que sentia no coração.
Broichan também olhava para a serpente. A sua expressão não mostrava surpresa. O druida disse:
- Isto basta para demonstrar com uma clareza espantosa a tua Diferença. Tu cresceste entre nós e pensaste ser aceite, não há dúvida, mas esta casa pertence a um druida, minha filha. O que acontece aqui não é um reflexo da conduta ou atitudes do mundo dos homens. À medida que fores crescendo, isto tornar-se-á cada vez mais claro para ti. É muito possível que Bridei, inocente como era, não te tenha feito nenhum favor ao recolher-te naquela noite. O seu acto de compaixão afastou-te, efectivamente, dos dois mundos: do reino da tua verdadeira família, o mundo da magia e do mundo dos mortais, ao qual nunca poderás pertencer. De facto, o desejo dele de te providenciar um abrigo privou-te de um verdadeiro lar.
- Não! - gritou Tuala, pondo-se de pé, e a pequena serpente, assustada, enroscou-se em redor do seu pulso. - Bridei nunca faria nada para me magoar! Nunca faria uma coisa má, é impossível!
Broichan olhou para ela. O druida estendeu uma mão e a serpente passou para o dedo dele e transformou-se novamente num anel de prata. Os olhos verdes transformaram-se de novo em vidro, olhando sem ver para a pequena silhueta de Tuala.
- E tu nunca farias nada para o magoar - disse o druida calmamente. - Nunca farias nada que o prejudicasse, pois não, Tuala? Faz o que te peço, então. Agora e no futuro. É melhor para Bridei e é melhor para todos.
Tuala olhou para ele em silêncio. Por momentos, o druida parecera-lhe amigável, alguém com quem poderia falar, alguém capaz de ter coisas interessantes para lhe dizer. No entanto, abruptamente, Broichan voltou a ser quem era e ela sentiu-se enganada. O seu medo regressou, roubando-lhe a capacidade de falar.
- Tens de me prometer - disse Broichan.
- Prometo. - Parecia que o mundo lhe tinha saído do corpo, apesar de todos os seus esforços para o manter dentro de si. - Se assim quer, eu vou. E não digo nada a Bridei.
- Óptimo. De facto, não tens outra hipótese.
- Mas não lhe vou mentir - disse Tuala, incapaz de se conter. Eu não digo mentiras e a Bridei muito menos.
Broichan sorriu ligeiramente.
- Nesse caso tens de ter muito cuidado com o que dizes - disse ele. - Sabes o que acontecerá se cometeres um erro, Tuala. Acredita no que te digo. Eu não possuo o grau de compaixão do meu filho adoptivo. Se vejo um inimigo, seja sob que disfarce for, ataco imediatamente, antes que ele tenha tempo de me causar qualquer dano. Bridei ainda não aprendeu a necessidade de agir assim.
Tuala sentiu frio. O druida parecia estar a dizer que ela era má; que não devia ser amiga de Bridei. Aquilo era errado, tão errado que ela não compreendia como podia haver quem pensasse daquele modo. Bridei era a melhor pessoa do mundo. A própria Que Brilha não ordenara que Tuala fosse para junto dele, para que fosse a sua família? A jovem olhou para os olhos encovados de Broichan e sentiu um arrepio.
- Eu não sou um inimigo - murmurou ela.
- Ainda não - disse Broichan.
CAPITULO QUATRO
Apesar de saber que era pouco provável, Bridei viu-se a antecipar uma chegada como as que ocorriam nas velhas histórias, os hóspedes chegando a Pitnochie com belas roupas, homens de armas, acompanhantes e cavalos carregados de pertences. O jovem pensou nos estandartes, nas armas brilhantes, nas sedas e nos adornos.
Porém, os quatro visitantes chegaram com austeridade, separados por alguns dias e cada um com o seu estilo próprio. Donal andava a testar a capacidade de Bridei para seguir pistas e mantinha-o na floresta havia quatro dias, da alvorada ao anoitecer. Quando regressaram a casa, com as pernas a doer, cansados e com os estômagos a protestar, Tuala não estava em lado nenhum que se visse. Devia estar a dormir, sem dúvida, perdendo-se assim a oportunidade de uma história. No fim de contas, ainda bem. Bridei duvidava de que conseguisse arranjar a energia suficiente. Provavelmente, adormeceria antes de a princesa olhar, sequer, para o sapo. Tudo o que lhe apetecia era comer qualquer coisa e ir para a cama. O jovem já estava a dormir quando a sua cabeça atingiu a palha da esteira ao lado de Donal, no celeiro. Na manhã seguinte, os hóspedes começaram a chegar a Pitnochie.
A recepção não foi grande coisa. O que Broichan fazia, fazia-o com discrição, com um olho na protecção da sua privacidade e na preservação dos seus interesses. O primeiro a chegar foi um homem de meia-idade, seco e duro de aspecto, de cabelos grisalhos cortados curtos e com um rosto no qual as responsabilidades tinham aberto muitas rugas. Os seus olhos, porém, eram vivos, inteligentes, cinzentos como o cabelo, assim como o traje de lã: nada de sedas ou peles. O homem chegou com dois acompanhantes, uns tipos grandes, sólidos e a sua bagagem era constituída por um par de sacos atados às selas dos cavalos dos seus guardas. Os três homens vinham bem armados. Bridei sabia o suficiente para reconhecer uma boa espada quando a via e para apreciar um machado de guerra bem afiado. Como os dois guardas ficaram alojados no celeiro com os homens de armas de Donal, havia possibilidade de comparação. O nome do nobre era Aniel, conselheiro da casa do rei Drust. Bridei sabia que não devia fazer muitas perguntas, mas tinha dificuldade em conter-se. Havia tanta coisa que queria saber.
À hora do jantar falou-se dos celtas e da ameaça a ocidente. Bridei estudara detalhadamente a situação com os seus tutores; fizera mapas na areia, com pedras e gravetos, imaginara exércitos dispostos na parte de cima e de baixo do Vale, aprendera coisas acerca do inimigo e a história das suas incursões destrutivas. A imagem que tinha na cabeça, porém, tinha pouco a ver com os estudos. Desde que os vira no Espelho Negro que os conhecia, não como um inimigo com quem era preciso combater e lidar, como outro saqueador local qualquer, mas como a força que procurava extinguir a chama que ardia no coração de todos os filhos de Fortriu. Eram fortes, cruéis e não tinham escrúpulos. Naquele dia longínquo, no Vale dos Que Caíram, tinham matado homens em fuga, tinham-nos dizimado sem piedade. Bridei nunca se esqueceria das imagens que vira.
Tuala não apareceu ao jantar e Brenna também não. Bridei não ficou surpreendido; Broichan achara que Tuala era demasiado nova para se sentar àquela mesa, naquela companhia, sem dúvida, e tinha-a mandado para a cama mais cedo, com Brenna para lhe fazer companhia. Era uma pena, realmente. Tuala teria gostado de ouvir porque Aniel conhecia o mundo e Tuala gostava de saber coisas. Além do mais, não iria ter uma história antes de adormecer, mais uma vez.
Broichan estava à cabeceira da mesa. À sua direita estava Aniel e à sua esquerda Bridei, um lugar difícil porque, sempre que Bridei levantava os olhos da comida, dava de caras com uns olhos cinzentos e perspicazes. Era evidente que estava a ser examinado e o jovem sentia que aquela situação se iria repetir quatro vezes antes de a visita ficar concluída. Os dois guardas estavam colocados por trás de Aniel, de pé, e um deles levou à boca um pedaço de comida de cada prato antes de o seu senhor começar a comer. Ainda bem que Ferat estava ocupado na cozinha; teria ficado profundamente ofendido. Quanto a Broichan, limitou-se a erguer as sobrancelhas ao ver aquele sinal de desconfiança. Bridei lembrou-se de que o seu pai adoptivo quase morrera uma vez envenenado, à mesa de um amigo. Um homem tinha de aceitar que havia perigo em toda a parte.
A seguir estavam sentados Erip e Wid e mais abaixo Donal, Uven e o resto dos homens. Mara tivera pena de Ferat e, de rosto impassível, ajudava a transportar os pratos de e para a cozinha.
- Foi uma sorte chegar aqui a tempo - dizia Aniel. - A minha missão a Circinn foi longa e árdua e o desafio não veio apenas do mau estado das estradas nem dos caprichos do tempo. Aprendi a lidar e a contar com as duas coisas. O que me demorou foi a recepção que me fizeram e a teimosia dos meus anfitriões. Devo dizer que não estou morto por regressar a Caer Pridne. Uma breve estadia em Pitnochie é bem-vinda. Espero recuperar as minhas forças antes de dar as más notícias ao rei.
- Portanto, Drust, o Javali, não se deixou comover? - perguntou Wid, com a boca cheia de pão.
Aniel sorriu secamente.
- Mostrou-se Inflexível, sim, mas não tem grande força de vontade. Os seus conselheiros servem-no mal; envenenam-lhe a mente com falsos relatórios, assegurando, assim, que ele se mantenha contra qualquer reconciliação com o nosso povo. Drust tem doninhas fedorentas como conselheiros. Talvez, no seu coração, ainda haja uma chama da verdadeira linhagem real, mas falta-lhe a força para a alimentar e assim os seus conselheiros fazem com que as decisões sirvam os seus próprios interesses. Não admira que a fé cristã tenha ganho raízes em Circinn. A corte é corrupta, o rei vacila, baniu as mulheres sábias e despediu os druidas. Se ainda existem alguns rituais naquele reino, e eu tenho razões para acreditar que não foram totalmente proibidos, a sua observância é secreta, clandestina.
- A fé continua a existir, portanto - disse Wid, tirando um pedaço de carne da barba. - Enquanto existir uma brasa por baixo das cinzas, basta um ligeiro sopro para reacender a chama.
- É preciso fazer com que o fogo não se apague por completo acrescentou Erip.
- Quanto a isso - disse Broichan, que se mantivera silencioso durante a maior parte da refeição - há muitas estratégias em curso, como sabemos. Um homem aqui, outro ali, homens que conseguem atravessar rapidamente terreno difícil e passar mensagens com clareza. Porém, eu gostava de ter mais qualquer coisa. Um aliado na própria casa do Javali seria útil.
- Um espião na fortaleza dos missionários cristãos dava jeito aventurou-se a dizer Donal. - Descobrir o que fazem, como se infiltram e quem são os seus amigos. A maior parte dos clérigos vêm de Erin, segundo ouvi dizer. Gostaria de saber se eles têm aliados em Dalriada. Se assim for, podemos ser atacados pelos dois lados.
- O rei de Circinn quererá pressionar a paz com os celtas? - perguntou Bridei, incapaz de ficar calado mais tempo.
Aniel olhou para ele.
- Broichan disse-me que tu sabes que nós falamos aqui livremente, uma coisa que seria impensável fora da casa de um amigo de confiança - disse ele. - Gostaria de responder à tua pergunta com um não inequívoco, Bridei. Drust, o Javali, não tem governado Circinn como o reino merece. Um homem que abandona a fé dos seus antepassados e deixa que o seu povo vire as costas a tudo o que está certo não é digno de confiança, seja ou não rei.
- Infelizmente precisamos dele - disse Broichan. - Ou dos soldados dele, pelo menos. Os chefes tribais de Circin podem ter atraiçoado o seu juramento à Guardiã das Chamas, mas não se esqueceram da importância de manter os seus bem treinados guerreiros. Isso é certo: as suas próprias fronteiras a sul estão longe de ser seguras. Britons aqui, Angles ali; parece que todos querem um pedaço da nossa terra. Para montar uma ofensiva contra Dalriada, o nosso rei precisa das forças do norte, mas também precisa das de Circinn.
- É verdade - disse Aniel, cruzando os braços. - Discuti esse delicado assunto com Drust, o javali, ou tentei, mas não vejo grandes possibilidades. A atmosfera não foi nada cordial. Ele precisa de forças consideráveis na fronteira do sul, reconheço. Apesar disso, esperava que ele estivesse preparado para começar a planear o futuro.
- Eu estava à espera, pelo menos, de um acordo para que nos pudéssemos reunir em conselho - disse Broichan.
- Fiz os possíveis.
- Ninguém duvida, meu amigo - disse o druida. - O rei enviou-te porque tinhas grandes hipóteses de influenciar Circinn. O facto de os teus esforços não terem conseguido um acordo é a prova do estado desesperado em que estamos.
- Se os celtas decidem atacar nesta estação, ou na próxima, só conseguiremos aguentar até um determinado ponto - disse Donal amargamente - e pode não ser o ponto que queremos. Eu gostava de ver uma ofensiva bem planeada, não uma simples retaliação. Fica-me atravessado na garganta o facto de a nossa própria gente não levantar um dedo para nos ajudar.
- Todos nós queremos os celtas fora daqui - observou Aniel. Porém, expulsar Gabhran e as suas forças para Erin é um grande desafio, um objectivo a que aspiramos. Não será conseguido tão cedo, com a nossa terra amargamente dividida como está. Expulsar a fé Cristã e reconquistar os corações do povo de Circinn para os verdadeiros costumes é capaz de ser um desafio ainda maior. Enquanto as terras dos Priteni não estiverem novamente unidas, não penso que seja possível.
Seguiu-se uma pausa. Britei até sentiu que era capaz de ouvir as pessoas a pensar.
- Meu senhor? - aventurou-se ele.
- Sim, meu rapaz? - O olhar cinzento de Aniel era agudo. Tal como Broichan, era um homem para quem as palavras vãs não faziam sentido.
- Pergunto a mim próprio - se o sul não nos quer ajudar nesta luta contra Dalriada, por que não procuramos outros aliados? Poderíamos começar - o rei poderia começar - a planear o futuro, pelo menos.
- E quais são os aliados que tens em mente? Os amigos de confiança são poucos e estão longe nos dias que correm como, sem dúvida, os teus tutores te disseram.
- Sim, meu senhor. - Britei debatera várias vezes aquele assunto com Erip e Wid e não particularmente longe. - A tribo das Ilhas Pequenas, que se chama a si própria Folk, muito simplesmente. Eles são bons em combate, segundo me disseram, e são nossos parentes. Podíamos perguntar-lhes. Eu sei que nem sempre fomos aliados, mas talvez o conseguíssemos com reféns. E... - hesitou o jovem.
- Continua, rapaz.
- E os Caitt - disse Bridei, esperando que o conselheiro do rei não se risse.
Aniel ergueu um sobrolho.
- Já agora mais vale arranjar um exército de gatos selvagens comentou ele. - O antigo nome deles reflecte a sua verdadeira natureza. Quem, no seu perfeito juízo, se atreveria a cruzar aquela fronteira como emissário? Bem se podia dar por feliz se regressasse inteiro e sem uma mensagem de agradecimento.
- Mesmo assim - disse Bridei, contente por Aniel não se ter rido dele - sabemos que são da nossa raça, seguem os velhos costumes do Sol e da Lua e são lutadores. São combatentes ferozes e dedicados. Ninguém lhes ameaça as fronteiras. Talvez, sejam ou não gatos selvagens, tenham algo para nos ensinar.
- Esse argumento é bom - disse Aniel - mas é falso. A natureza do território deles é que os salva de uma invasão. Exceptuando os despenhadeiros e os abismos a noroeste, o Grande Vale, comparado com a terra deles, parece uma pradaria.
- Além disso - acrescentou Wid - como já disse a Bridei, os Caitt estão tão divididos como nós. Como não têm invasões para lhes aguçar os dentes, combatem uns contra os outros, príncipe contra príncipe, chefe tribal contra chefe tribal, tribo contra tribo. Seria preciso um líder extraordinário para fazer daquela gente uma força coerente. Um líder que, infelizmente, não temos.
- O rei Drust, o Touro, não seria capaz? - perguntou Bridei. - No silêncio que se seguiu, o jovem percebeu que fizera uma pergunta a mais.
- É tarde - disse Broichan ao seu visitante - a tua jornada foi longa. Podemos falar em particular em frente de um jarro de hidromel, talvez, mas depois vais querer retirar-te.
Aniel ignorou-o por completo.
- Jogas, Bridei? - perguntou ele. - Corvo que chega e vem, talvez, ou Bater contra a parede?
- Sim, meu senhor.
- Óptimo. Temos tempo para um jogo antes de irmos para a cama, se o meu anfitrião o permitir. - Os olhos inteligentes encontraram os do druida durante um momento e Broichan inclinou a cabeça num gesto de consentimento. Segundo as leis da hospitalidade, não podia fazer outra coisa. - Não há nada como um desafio mental para terminar o dia. - acrescentou Aniel, pondo-se de pé. - Vai ser bom para ti teres um oponente diferente, que te dê luta. Se quiseres, claro.
Bridei hesitou ligeiramente, imaginando Tuala acordada, sozinha e inquieta, desejando ouvir a sua história. Ultimamente, a jovem parecia diferente; algo a preocupava, algo que ela escondia. Aquilo preocupava Bridei porque não tinham segredos um para o outro. Broichan olhava para ele. Broichan, pensou ele, conhecia-o demasiado bem. Aquilo era, na verdade, um desafio. Durante aquela série de visitas, cada palavra sua seria pesada, cada decisão medida. Por que razão, não sabia. A única coisa que sabia era que era importante, tão importante que não se podia dar ao luxo de dar um passo em falso.
- É uma honra jogar convosco, meu senhor. - Bridei foi buscar o tabuleiro e colocou-o em cima de uma pequena mesa enquanto Erip ia buscar as peças de osso e Donal e Uven os bancos. Terminada a refeição, os homens de armas, sozinhos ou aos pares, retiraram-se, pela cozinha, para o seu abrigo temporário no celeiro. Donal ficou, sentado no banco junto da parede, e Broichan instalou-se na sombra, perto da lareira. A uma distância discreta de Aniel, um dos guardas permanecia, vigilante.
O jogo foi demorado. À medida que ia progredindo dos primeiros assaltos para manobras mais sérias, que envolveram a perda do porta-bandeira, do campeão e do sacerdote, tornou-se evidente para Bridei que, apesar de ter conseguido anteriormente derrotar Erip e Wid, e não havia dúvida de que os dois anciãos eram bons estrategas, ia precisar de muito mais subtileza e astúcia para vencer o conselheiro do rei. Apesar das palmas das mãos molhadas e, por vezes, do bater do seu coração, Bridei estava a gostar da luta. Porém, o rosto pálido de Tuala e os seus olhos sombrios não lhe saíam da cabeça. O jovem prometera-lhe que iria ter com ela todas as noites para lhe contar uma história. Àquela hora já devia estar a dormir. Era evidente que não devia estar acordada; já passava da meia-noite. Tinha de se concentrar...
- Ah - disse Aniel suavemente - se eu fizer este movimento, e este, penso que o teu chefe tribal é apanhado na armadilha. E já não tem o druida para lhe arranjar uma saída.
Chegado àquele ponto, Bridei tinha Erip de um lado e Wid do outro a murmurarem-lhe sugestões. Broichan não se movera nem abrira a boca.
Concentração. A posição parecia perdida: o seu druida capturado e a maior parte dos seus homens de armas fora do tabuleiro. O seu chefe tribal estava orgulhosamente só, do tamanho do dedo mindinho de um homem e cercado quase por todos os lados pelos guerreiros de osso de Aniel. Nos cantos do tabuleiro, as mulheres sábias, dele e do inimigo, observavam a situação. As mulheres sábias eram personificações da deusa, da Que Brilha... A Que Brilha, fazedora de caminhos, descobridora de futuros...
- Uma situação insustentável - disse Aniel. - Mais vale aceitares a derrota, Bridei. Tu jogas muito bem e ainda só vais, no fim de contas, no teu décimo ano de vida, segundo me diz Broichan, mas suponho que já passa da hora de ires para a cama.
Aquilo era um insulto, se bem que expresso de modo muito amável. Tens de deixar passar os insultos, era uma das lições de Donal. Quando um adversário em combate grita coisas como filho de uma porca gorda, ou selvagem, não te podes irritar, ou levas com uma lança na barriga antes de teres tempo de estalar os dedos. Tens de deixar passar e continuar. O que queria dizer, segundo Donal, que se devia gritar em troca algo como cabelos-de-cenoura, ou violador-de-mulheres e espetar-lhe primeiro a lança.
Portanto, olha cuidadosamente para o tabuleiro e pensa nas mulheres sábias. A tua, pequena e solene no seu vestido com capuz, feito de osso, tão branco como a Lua. No lado oposto, ou quase, a de Aniel, idêntica excepto na cor porque as suas peças tinham um tom suave, um tom de terra castanho-dourado devido à origem do osso. Erip e Wid tinham caído num silêncio total.
Bridei fez avançar a sua Mulher Sábia em direcção à outra. Erip susteve a respiração e Wid assobiou baixinho.
- Um movimento de sacrifício - observou Aniel. - Tens a certeza?
- Eu só faço um movimento pela certa - disse Bridei.
- Custa-me muito fazer isto. - Aniel pegou na sua peça e fê-la avançar para atirar com a pequena sacerdotisa de Bridei para fora do tabuleiro. - Por vezes, este jogo chega a faltar ao respeito aos deuses. Esperemos que eles tenham sentido de humor. Penso que acabou.
- Ainda não - disse Bridei, estendendo a mão para mover uma peça insignificante, um soldado desconhecido, para o quadrado à esquerda. - Penso que o vosso chefe tribal não tem saída, agora.
Aniel semicerrou os olhos. Erip e Wid aproximaram-se ainda mais. Era verdade. Fosse qual fosse o movimento do conselheiro do rei, o resultado só seria um: o chefe tribal de Bridei atiraria com a Mulher Sábia do seu oponente para fora do tabuleiro e, no movimento seguinte, o seu humilde lanceiro liquidaria o chefe tribal de Aniel, vencendo o jogo. Bridei esperava que Aniel não ficasse ofendido e que Broichan não ficasse aborrecido. A julgar pelas suas expressões, Erip e Wid estavam contentes.
Nas feições tranquilas de Aniel apareceu um olhar carregado, a juntar às muitas rugas da sua fronte já aborrecida. O conselheiro do rei olhou para o tabuleiro como qualquer jogador no momento da derrota, procurando um factor esquecido que lhe permitisse ainda chegar ao triunfo. Aniel olhou para Bridei e, um momento mais tarde, desatou a rir.
- Não fiques desesperado, rapaz, não te vou morder. Já fui derrotado, mas nunca por um miúdo da tua idade, confesso. Muito bem, muito bem mesmo. Devo estar mais cansado do que pensava. Diz-me, como é que preparaste o golpe? Foi um movimento invulgar; legal, claro, mas fora das regras convencionais do jogo.
- Foram Erip e Wid que me ensinaram a jogar. Aprendi os lances todos com eles. - Bridei lançou aos seus tutores um olhar de reconhecimento respeitoso. - Por vezes, sou capaz de ir mais longe do que o que me ensinam. Quer dizer, isto não é só um jogo, pois não? É o mundo real, só que em ponto pequeno: guerreiros, líderes e deusas, e as coisas que acontecem na vida real ajudam a formar uma estratégia. Ou ao contrário. Lembrei-me que A Que Brilha é a iluminadora dos caminhos, a portadora de dádivas inesperadas e subitamente vi o lance, mais nada. Obrigado pelo jogo, meu senhor.
- O prazer foi meu - disse Aniel suavemente. - Jogarei novamente contigo quando tiveres quinze anos. Se praticar todos os dias, talvez seja capaz de te vencer. Vem, meu amigo - disse o conselheiro, levantando-se e dirigindo-se ao silencioso Broichan - conversemos um pouco e vamos depois dormir. Tens aqui um rapaz que promete muito.
- Sim - disse Broichan, não dando a entender se concordava com o conselheiro em relação a Bridei ou em relação à hora de dormir.
No dia seguinte, Donal programou o tiro ao arco como primeira tarefa do dia e Bridei não teve tempo de procurar Tuala como era sua intenção, para lhe pedir desculpa por não lhe ter, mais uma vez, contado uma história. A lição de tiro ao arco transformou-se num desafio porque um dos guardas de Aniel tinha fama de ser um bom arqueiro e queria prová-la contra quem quisesse. Quando soube, Ferat mandou-Lhes o pequeno-almoço em cestos cobertos: pão de cevada fresco, mel numa caneca e fatias de carneiro frias do jantar do dia anterior. Os seus assistentes fizeram uma segunda viagem por causa da cerveja. Ninguém se podia queixar da hospitalidade.
Alguns dos homens não estavam presentes, claro, porque o perímetro da propriedade de Pitnochie tinha de estar permanentemente guardado, mas a maioria estava, desejosa de se juntar à competição. Os alvos foram colocados e os arqueiros dispararam aos pares. Um a um, os vencidos eram eliminados. À medida que o torneio ia prosseguindo, os alvos iam ficando menores e mais difíceis. A multidão de espectadores aumentou à medida que os vencidos iam aumentando; também se tornou mais barulhenta com a excitação. O guarda de Aniel, Breth, era muito bom. O homem era alto e tinha ombros largos, estava na força da vida e vê-lo preparar-se, esticar o grande arco de madeira de teixo, apontar e disparar era uma maravilha. Era como observar um animal selvagem a cair sobre a presa, ou um barco a correr à frente do vento. Até ali não tinha falhado uma única vez o alvo, mas Donal também não, assim como Enfret e Bridei.
Fidich, atraído, abandonara o que estava a fazer e encarregara-se dos alvos. Erip e Wid tinham-se aventurado e eram espectadores; os homens de armas tinham-lhes ido buscar uns barris vazios para se sentarem, mas os dois anciãos passavam a vida a levantar-se e a gritar como os restantes quando uma seta atingia o alvo. Mais tarde, Aniel e Broichan, sempre com o guarda-costas do conselheiro atrás, como uma sombra, apareceram a alguma distância para assistir. Bridei olhou de relance na direcção dos carvalhos onde Tuala devia estar sentada como sempre que ele e Donal praticavam no pátio, perto do estábulo. Porém, a jovem não estava lá e Bridei ficou preocupado.
- É a tua vez, Bridei - disse Enfret.
Daquela vez, o alvo era uma pinha colocada em cima do muro, no extremo do campo, a uma distância de trezentos passos. Ainda bem que as ovelhas estavam nas pastagens de Verão, mais acima.
Bridei colocou uma seta no arco, esticou, apontou semicerrando os olhos e largou a corda. Um silvo, o som de uma pequena pancada e a pinha desapareceu do muro.
- Grande tiro, rapaz - disse Breth. - Gostaria de poder dizer que sou o teu tutor. O arco também é mais pequeno e mais fácil de esticar.
- É claro que é mais pequeno, e tem menos força - observou Donal friamente. - Usavas um arco grande quando tinhas a idade dele?
- O tipo não se lembra - troçou Enfret. - Foi há muito tempo.
- A última parte do torneio devia ser apenas para homens - disse Breth. - Não vim para aqui para competir com crianças. Só com homens, com arcos do mesmo tamanho. Só assim é que é justo.
- Tens medo que o rapaz te vença com aquele arco pequeno? perguntou Uven. - Vá lá, dá ao rapaz uma hipótese.
Fidich estava a colocar um alvo novo, uma colher de prata, brilhante segura por um fio preso a um ramo baixo de um carvalho solitário. O Sol reflectia-se no metal brilhante, atingindo os olhos do arqueiro. A brisa fazia o objecto oscilar.
Breth foi o primeiro a disparar e atingiu o fio, que era o resultado desejado. A colher caiu e alojou-se entre as raízes do carvalho. Todos aplaudiram, até Donal; fora um tiro formidável. Fidich voltou a prender a colher ao fio.
Enfret disparou a seguir e falhou. A sua seta cravou-se, vibrando no tronco da grande árvore. O arqueiro murmurou qualquer coisa em voz baixa; não uma praga, notou o jovem, mas um pedido de desculpas. Um homem não devia intrometer-se de ânimo leve com os poderes de um carvalho.
Donal disparou a seguir. A seta fez a colher rodopiar na ponta do fio, mas não caiu.
- Agora é contigo, Bridei - disse ele.
Bridei sabia que era capaz. Depois, seria outro alvo e depois outro e a determinada altura, ou humilhava Breth, vencendo, ou Breth seria o vencedor e ele seria o galante vencido. Todos o desculpariam por causa da sua juventude. Na verdade, não era justo. Bridei olhou para o local onde estava Broichan, pálido no seu manto escuro, observando ao lado de Aniel. Talvez fosse melhor, pensou o jovem, não vencer. Breth era um hóspede, um homem com uma reputação a defender. Seria uma vergonha perder publicamente, com o seu companheiro e Aniel como testemunhas. A sua satisfação momentânea compensaria a derrota humilhante do outro? Além do mais, Breth tinha razão. O seu arco era mais fácil de esticar. Por outro lado, era muito feio mentir e perder de propósito era a mesma coisa que mentir. Tuala saberia. Apesar dos seus seis anos, a pequenita tinha o dom de nunca mentir. No entanto, Tuala não estava ali, o seu local favorito, à sombra da sua árvore favorita, estava vazio.
Bridei esticou o arco. A brisa, favorecendo-o, amainara; o alvo estava quase estacionário. Toda a gente se calara. Bridei olhou para Donal, à espera de um qualquer sinal. Os lábios do guerreiro esticaram-se levemente num pequeno sorriso e a sua cabeça abanou tão levemente que ninguém se apercebeu. Podia querer dizer: É melhor falhares, mas também podia querer dizer: O problema é teu, não me peças que te ajude. Não interessava. Bridei sabia que tinha razão. Não se conseguia a lealdade de um homem, não era possível fazer com que ele fizesse o que devia fazendo-o parecer fraco aos olhos dos amigos. Por vezes, sabia bem ganhar, mas outras não. Era preciso saber quais eram os desafios vitais e os que podiam ser sacrificados em prol de um bem melhor. Bridei apontou para a colher de prata como se estivesse a apontar para um raio de luar por entre a folhagem escura de um carvalho e libertou a corda. A seta atingiu a colher com um som metálico e caiu no chão, junto da árvore. O vento voltou a soprar quase imediatamente, tornando o alvo praticamente invisível no meio do restolho das folhas, mas era possível ver que o fio estava intacto.
- Pouca sorte, Bridei! - disse Erip. - Foi quase!
Donal, que estava a par das leis da hospitalidade, foi o primeiro a felicitar Breth e a sugerir que voltassem a competir noutro dia, talvez com espadas, ou novamente com os arcos, ou ainda em combates de luta livre. Os outros homens aproximaram-se, dando grandes palmadas nas costas do visitante. Breth sorria, sentindo o orgulho salvo, apertando uma mão aqui, dizendo uma piada ali. O torneio fora bom e o rapaz portara-se bem tendo em conta a idade. Um futuro grande arqueiro. Donal era um excelente tutor.
Depois de todos terem abandonado o local, Bridei e Donal começaram a juntar as setas e a desmantelar os vários alvos.
- Bridei? - perguntou Donal.
- O que é?
- Terás disparado abaixo das tuas capacidades?
Bridei já tinha a resposta preparada, consciente de que lha fariam. Donal conhecia-o demasiado bem para acreditar naquele tiro falhado.
- Serias capaz de encorajar um aluno teu a fazer algo errado? perguntou ele.
- Depende - respondeu Donal.
- A minha resposta é igual.
- Pode ser a diferença entre a vida e a morte, um dia - observou o guerreiro. - Para ti, não para o outro.
- Se fosse uma questão de vida ou de morte, não teria falhado disse Bridei. - No entanto, se fosse uma questão de orgulho a coisa seria diferente. Nesse caso, teria de tomar uma decisão.
- Hum - disse Donal, arrancando uma seta do chão e acrescentando-a às que já levava. - Eu não teria feito o que tu fizeste. Não teria sido capaz.
- Não tiveste que o fazer. De qualquer maneira, falhaste - disse Bridei, rindo.
O sorriso de Donal mais parecia uma careta.
- Espera até aquele Breth ver do que eu sou capaz com um cajado. Nem vai perceber o que lhe acertou na cabeça. E agora toca a andar: as aulas não acabaram só porque o conselheiro do rei está cá. Aqueles dois malandros devem estar à tua espera com uma dose de história obscura. Põe-te a andar.
- Donal?
- Sim?
- Tens visto Tuala? Nós temos andado ocupados, mas ela ontem não apareceu ao jantar nem na noite anterior e também não tenho visto Brenna. E hoje de manhã também não a vi.
- Quanto a isso - disse Donal uns momentos depois - a miúda não está em Pitnochie. Foi visitar a família. Brenna levou-a.
Bridei estacou. O tom de voz de Donal era casual e a resposta fora demasiado fácil.
- Visitar a família? - repetiu o jovem, tentando tirar algum sentido daquilo. - Que família? A família de Tuala está aqui. Qual é a ideia de Broichan?
- Calma, rapaz. Broichan deu umas férias a Brenna, uns dias para ir ver a mãe à Cumeeira de Carvalho, mais nada. Tuala foi com ela e levaram Cinioch como escolta. Já lá devem estar.
- Ele mandou-a embora - disse Bridei, apercebendo-se de que tinha os punhos cerrados e tentando descontrair-se, mas não conseguindo evitar que a ira fosse aumentando. Não admirava que Tuala andasse calada e triste. Não admirava que parecesse guardar um segredo qualquer. Que ameaça lhe fizera Broichan para a silenciar? Devias ter-me dito - acrescentou o jovem.
- E quebrava a promessa que fiz ao teu pai adoptivo? Ele pediu-nos para não te dizer nada, Bridei, até Tuala estar bem longe. A seu tempo, ele ter-te-ia dito, se tivesses esperado.
- Porquê? - perguntou Bridei. - Por que a mandou ele embora?
- Para que não te distraísses em frente dos hóspedes. Estas visitas são muito importantes, Bridei. O teu pai adoptivo quer que causes boa impressão. Não cerres os dentes dessa maneira, pões-me nervoso.
- Ela estava triste, não queria ir.
- Tuala disse isso?
Não podia, ou podia? Desconfio que Broichan a obrigou a não
dizer nada. Ela só tem seis anos, Donal. Sem uma história, ela não consegue adormecer. O escuro mete-lhe medo.
- Brenna está com ela.
E vai perder a festa do Solstício de Verão. Vai perder o ritual.
A boca de Donal torceu-se.
- Se calhar, era o que Broichan queria. Deixa lá, Bridei, o assunto tem pouca importância, é uma coisa de nada nos planos do teu pai adoptivo. Bridei?
Bridei já ia a caminho de casa. O jovem queria saber tudo; o seu pai adoptivo devia-lhe pelo menos aquilo. Maldito Broichan e os seus esquemas misteriosos! Não se tratava uma criança como se fosse uma coisa descartável. Não se mandava uma criança embora assim, sem mais nem menos, para que ela se sentisse só e assustada. Especialmente, não se obrigava uma criança a esconder segredos dos amigos. Iria ter com Broichan e diria o que tinha a dizer e se o seu pai adoptivo não gostasse de ouvir, tanto pior.
Com a raiva a esvaziar-lhe a mente, com excepção das palavras que ia dizer, Bridei caminhou em direcção a um dos cantos da casa. Subitamente, o jovem parou. Em frente da porta estava um grupo de cavaleiros, seis, que deviam vir de leste, escondidos do seu campo de visão por causa dos vidoeiros entre a casa e o caminho que ia dar ao lago. Broichan estava a dar-lhes as boas-vindas; Aniel estava próximo, com um dos seus guardas. Os recém-chegados eram guerreiros, tinham os rostos tatuados com símbolos de guerra. Os homens estavam vestidos como qualquer homem de armas em trânsito, com capacetes de pele, couraças, capas de feltro, túnicas resistentes, calças azuis escuras, botas de montar flexíveis e manoplas. Todos eles estavam armados e traziam um cavalo de carga pouco carregado. As suas montadas eram sólidas e vivas.
Um dos homens, alto e de cabelos encaracolados, tinha desmontado junto dos degraus e estava a falar com Broichan. O guerreiro interrompeu o que estava a dizer quando Bridei apareceu.
- Ah, este deve ser o teu filho adoptivo. Os meus cumprimentos, Bridei! O meu nome é Talorgen de Raven's. É um prazer conhecer-te, finalmente. Eu fui amigo da tua mãe até ela meter na cabeça casar com Maelchon e ir para sul.
Outra vez a sua mãe. Bridei apertou a mão do homem. Talorgen tinha um sorriso tão desarmante que era impossível não sorrir também e não lhe dar as boas-vindas de boa vontade.
- Eu tenho um filho da tua idade - continuou Talorgen. - O nome dele é Gartnait. Desenrasca-se com o arco e a espada, mas não é tão inteligente como tu. Pelo menos é o que tenho ouvido dizer.
- É pena não o terdes trazido convosco, meu senhor - disse Bridei.
- Noutra ocasião - disse Talorgen. - A mãe dele queria-o em casa e é difícil discutir com ela.
- Vem - disse Broichan. - Vou mostrar-te os teus aposentos. Os teus homens ficarão no celeiro com os meus. Bridei, importas-te de os levar ao estábulo e pedir a Donal para os instalar? - Os olhos escuros do druida perscrutavam o rosto do seu filho adoptivo.
Era evidente, pensou Bridei, que o seu rosto ainda espelhava a raiva que sentia, se bem que os modos amigáveis de Talorgen a tivessem amenizado. O jovem devolveu o olhar e manteve-o durante alguns momentos para se assegurar de que Broichan compreendia que ele estava zangado e por que razão. Em seguida, Bridei virou-se para os homens de Talorgen e conduziu-os ao estábulo e depois ao celeiro. O que tinha a dizer tinha de esperar.
Ao anoitecer daquele dia chegou o terceiro hóspede de Broichan. Quando Bridei pensava em druidas, geralmente imaginava o seu pai adoptivo, o único da espécie que conhecia: um homem de mente incisiva e inteligência assustadora, um homem cujos poderes terrenos eram contrabalançados por um respeito profundo pelos mistérios. O jovem ouvira falar de outra espécie de druidas, a espécie que aparecia nas velhas histórias, habitantes das profundezas das florestas, homens tão embebidos no conhecimento, em tal harmonia com a magia que pareciam loucos aos olhos do mundo exterior, como se estivessem com um pé neste mundo e outro no outro. Uist era um daqueles druidas e chegou montado numa égua branca como o leite, que andava com um passo delicado, dançante, ao mesmo tempo que agitava a cauda acetinada. Uíst tinha cabelos brancos, selvagens e entrançados como os de Broichan, mas não com tanta perfeição; as tranças tinham penas, gravetos, sementes e escapavam-se delas tufos de cabelo, formando uma auréola em redor da cabeça. O homem tinha um cheiro almiscarado, como se fosse um animal da floresta. Era difícil descrever as feições de Uist porque a cor dos seus olhos estava sempre a mudar, o rosto ora era uma coisa ora era outra, como se o druida estivesse permanentemente a fazer pequenos ajustes para que nunca ninguém se recordasse dele. Uist parecia velho, mas mantinha-se direito e descontraído, uma das mãos segurando um grande cajado de vidoeiro com a pedra polida na ponta, verde clara, sarapintada como um ovo de
galinha castanha, e três penas brancas atadas por baixo com um fio prateado. O seu traje flutuava; agitava-se de modo estranho quando Uist se mexia, como se o tecido tivesse vida própria, para além da do seu proprietário. Aqui e ali estava rasgado, como se o druida tivesse andado pelo meio do tojo. A égua, porém, não tinha quaisquer arranhões. O seu pêlo brilhava.
Uist não fez qualquer tentativa para conversar fosse com quem fosse, nem cumprimentou qualquer membro da casa, salvo o seu anfitrião. Quando lhe ofereceram uma cama nos alojamentos dos homens, com Talorgen e Aniel, disse que o seu único tecto, há muito tempo, era a copa dos carvalhos e as estrelas, que passaria as noites na floresta e que só toleraria os dias no interior da casa de Broichan se fosse absolutamente necessário. O druida tinha necessidade das mãos da Mãe de Tudo por baixo de si e os olhos da Que Brilha a olharem para ele. Se não, teria de sair de Pitnochie no espaço de dois dias, ou ficaria maluco.
- Queres dizer, mais do que já és - comentou Talorgen com um sorriso e as sobrancelhas hirsutas do velho druida franziram-se.
A observação pareceu a Bridei muito pouco cortês, mas Uist limitou-se a dizer:
- Meu amigo, eu abandonei a tua espécie de sociedade há anos e não tenho saudades nenhumas. A música, talvez, mas à parte isso, as cortes dos reis não me atraem. A vida ao ar livre agrada-me e agrada àqueles que me sussurram ao ouvido durante a noite. Mas podes ficar descansado; não vou uivar à lua.
Bridei estava à espera do momento ideal para apanhar Broichan sozinho. Porém, assim que o jantar terminou, o seu pai adoptivo e os três hóspedes retiraram-se para os aposentos de Broichan e este fechou a porta com firmeza. Furioso ou não, o jovem não podia interromper aquele conselho privado. Mais tarde, Talorgen saiu, instalou-se junto do fogo e em breve Donal, Uven e dois outros homens discutiam com ele a situação com os celtas, o que fez com que todos mudassem a posição das facas, das canecas e das tigelas em redor da mesa num plano estratégico, uma expedição para lá das ilhas, escorraçando os invasores para Erin, a terra daqueles descrentes. Talorgen combatera recentemente contra as forças de Gabhran; o seu território de Fonte do Corvo ficava a oeste de Pitnochie, muito mais perto das aldeias inimigas. O nobre tinha informações acerca das posições actuais dos celtas que Donal desconhecia e o que ele contou sobre as escaramuças ferozes dos seus homens com as forças avançadas deles deixou toda a gente petrificada. Quando a reunião terminou, as candeias estavam a apagar-se e era hora de todos irem para a cama. Parecia que Bridei deixara passar a hora de falar a sós com o seu pai adoptivo. Porém, ao passar pelos aposentos de Broichan para ir buscar uma vela antes de ir para o celeiro, o druida abriu a porta e saiu.
- Tu tens qualquer coisa para me dizer - disse Broichan. Aquilo não era uma pergunta.
A ira de Bridei não era tão feroz como antes. Talorgen dissera-lhe que podia aparecer em Fonte do Corvo assim que Broichan lhe desse autorização e a perspectiva de viajar para longe de Pitnochie e poder pôr em prática as suas técnicas de combate com Gartnait, o seu filho, era tão excitante que a sua disposição melhorara. Porém, não esquecera a injustiça nem a necessidade de uma confrontação.
Não havia mais ninguém por perto e Broichan tinha fechado a porta, deixando os seus influentes hóspedes no interior do quarto.
- Mandastes Tuala embora - disse Bridei, usando a técnica que o seu pai adoptivo lhe ensinara para manter a voz calma e o corpo descontraído, apesar de sentir a cólera a regressar. - Eu percebi que ela se sentia infeliz e vós proibiste-la de me dizer fosse o que fosse. Não foi justo.
Broichan esperou em silêncio, olhando firmemente para o seu filho adoptivo.
- Creio que mereço uma explicação - disse Bridei. Broichan não disse nada. Os seus silêncios eram enervantes, mas ao longo dos anos de educação Bridei aprendera a lidar com eles.
- Por que razão está esta gente aqui? - perguntou ele, decidindo que era preciso uma pergunta directa. - Por que razão não podem ver Tuala? Tendes vergonha dela?
Broichan cruzou os braços.
- Estás zangado - observou ele. - Controla a respiração. Disciplina os olhos. Tens de aprender a esconder esses sentimentos porque numa sala de conselho não é nada bom mostrá-los.
Bridei achava que estava a controlar perfeitamente os seus sentimentos. Pelo menos não estava a gritar e atirar coisas como Ferat fazia às vezes.
- Importais-vos de responder às minhas perguntas? – perguntou o jovem.
Os meus hóspedes estão aqui para te conhecerem, para te observarem e para avaliarem o que aprendeste até agora. É da maior importância que lhes mostres as tuas melhores qualidades. Tuala regressará quando eles se forem embora. Não é apropriada a presença, neste momento, de uma rapariga nesta casa. Tuala não pertence aqui.
- Tuala faz parte de Pitnochie - disse Bridei. - Tanto como eu. Qualquer coisa passou pelas feições pálidas de Broichan. Bridei não percebeu o que era.
- Pensava que já eras um homem, Bridei - disse o druida. Esta noite demonstraste que continuas a ser uma criança. Vai para a cama. Este assunto é trivial e tu vais precisar de toda a tua energia nos dias que se seguem. Não se fala mais no assunto. - Com aquelas palavras, Broichan abriu a porta, entrou para o quarto e a conversa terminou. Era profundamente insatisfatório, mas Bridei sabia que não conseguiria mais nada do seu pai adoptivo.
Deitado no celeiro, rodeado de homens a ressonar, Bridei contou mentalmente uma história, silenciosamente, sentindo que estava, de certo modo, a cumprir a sua promessa, apesar de Tuala não ter hipótese de o saber. Era uma vez...
Brenna dissera-lhe:
- Não vás para lá dos arbustos de azevinho. Não quero andar à tua procura pelo bosque, está cheio de lobos.
Porém, Tuala não conseguia obedecer. Aquilo, ali, era diferente; não era justo. A casa era pequena, fumarenta e a mãe de Brenna olhava para ela com olhos semicerrados, desconfiados. A tia de Brenna ainda era pior. Evitava o olhar de Tuala e estava o tempo todo a fazer aquele sinal com os dedos, um sinal que significava que ela pensava que Tuala era uma coisa má, uma coisa malvada. A própria Brenna também se sentia subjugada. A sua mãe não aprovava a hipótese de ter Fidich como genro sem aquela perna e por ele tratar das terras de outro homem e não as suas. Na primeira noite, Brenna chorara na cama.
A única coisa igual era a floresta. Ali, em Cumeeira de Carvalho, a caminho dos picos chamados Cinco Irmãs, as árvores envolviam a cabana como uma capa. O pai de Brenna tinha vivido como madeireiro, cortando árvores e transportando os respectivos troncos ao longo do lago numa barca. O homem morrera na floresta quando, por acidente, um freixo lhe caíra em cima. Tuala achou que era justo, mas não disse nada.
Os irmãos de Brenna tinham seguido a profissão do pai, até que tiveram a oportunidade de vender os seus serviços ao rei Drust, o Touro, como soldados. Um bom machado podia servir para muitas coisas. A partir de então, a casa passara a ter apenas mulheres e, com a chegada de Tuala, palavras iradas e azedume. Todas as manhãs, assim que terminava o magro pequeno-almoço, Tuala saía e ia para um local onde as folhas escuras e espinhosas do azevinho faziam uma cortina, escondendo a casa dos bosques. A jovem sentava-se ali um bocado a observar até ter a certeza de que Brenna já não andava à sua procura e então escapava-se, com cuidado para não rasgar a saia ou prender os cabelos nos espinhos. Mais acima, a jovem encontrara um pequeno buraco por entre as raízes de um velho carvalho, uma árvore semelhante à sua favorita, em Pitnochie. Quando se metia nele, ficava do seu tamanho exacto e era como se fizesse parte da árvore e a árvore parte dela. Se escutasse com atenção, quase conseguia ouvir um coração a bater, forte e profundo; uma voz imensa, lenta, velha, que lhe dizia coisas sábias e maravilhosas. Que coisas teria visto aquela árvore ao longo daqueles anos todos naquela encosta, firme, com as suas raízes, dando sombra às pequenas plantas com a sua grande copa? Quantos animais teria alimentado, a quantos viajantes teria dado abrigo? Aquela árvore devia ter assistido a inúmeras histórias de amor, de expedições, de viagens, histórias de grandes batalhas, vitórias gloriosas, derrotas amargas: aquela árvore antiga guardava tudo na sua memória monumental e murmurava-o a Tuala quando a jovem se escondia no meio das suas raízes. Por vezes, por trás da narrativa do carvalho, a jovem discernia outras vozes mais altas, etéreas e trocistas, ou baixas e furtivas, restolhando, e tentava calá-las.
À noite, Tuala contava a si própria as histórias que a árvore lhe contara enquanto Brenna soluçava. Não estava certo. Nada daquilo estava certo. Porém, Tuala sabia que tinha de ser boa, acontecesse o que acontecesse. Se não se portasse bem, Broichan não a deixaria regressar e teria de ficar naquele sítio para sempre, um sítio onde ninguém era feliz e onde não tinha Bridei.
Brenna fora muito firme quanto à questão de ela não ser vista por ninguém. Tinham efectuado a viagem de manhã cedo, sem esperar pelo nascer do Sol e Tuala levava uma capa com capuz para esconder o rosto. A cabana de Cumeeira de Carvalho raramente tinha visitantes porque estava num local isolado. No entanto, Brenna fora muito clara.
Broichan disse que ninguém te pode ver. Eu não posso exigir que fiques dentro de casa, seria demasiado para uma criança de seis anos. Porém, não podes falar com estranhos. Nem uma palavra, compreendes? Se vires alguém, entras imediatamente. É muito importante, Tuala. Se atrais as atenções, ficamos as duas metidas num grande sarilho.
- Está bem, Brenna - disse Tuala sem convicção, reparando nas olheiras por baixo dos olhos vermelhos da jovem. - Eu porto-me bem.
No terceiro dia, Tuala estava no seu local habitual, acocorada entre as raízes do carvalho com um ouvido encostado à base do tronco, escutando de olhos fechados. A voz lenta e profunda da árvore entrava-lhe na mente. Então, subitamente, a jovem tomou consciência de que algo mudara. Tuala abriu os olhos.
Havia outra coisa qualquer sentada no mesmo sítio, alguém pouco maior do que ela, vestida de cinzento, encapuzada, uma silhueta silenciosa, sombria, sentada um pouco mais longe, confortavelmente encostada a um pequeno arco de raízes emaranhadas. Fosse quem fosse, aparecera sem fazer ruído. Tuala sentiu um arrepio. Seria um dos Boa Gente, um dos que a deixara à porta de Bridei a meio da noite? Enquanto olhava, imóvel, a silhueta virou a cabeça para revelar o rosto de uma anciã, não um rosto semelhante ao de Wid, todo enrugado, antes um rosto pequeno, forte, de nariz adunco e olhos tão escuros como contas de obsidiana polidas. Tuala não conseguia perceber se era uma mulher ou outra coisa qualquer. Fiel à promessa que fizera a Brenna, manteve a boca fechada.
- Bom dia - disse a estranha.
Parecia indelicado responder com o silêncio. Tuala acenou com a cabeça.
- Um óptimo local para escutar: ainda bem que o descobriste. E é um óptimo local para uma viajante descansar os pés. Não te importas de o partilhar comigo, pois não?
Tuala abanou a cabeça.
- Tu és cuidadosa - disse a estranha. - Compreendo. Permite que me apresente. O meu nome é Fola. Não sou da tua espécie; suponho que deve ser óbvio. Porém, não fugiste.
Tuala sentiu um baque no coração. Não sou da tua espécie... aquilo queria dizer que aquela mulher era um dos habitantes da floresta, um daqueles seres manhosos que deixavam vislumbrar uma mão branca ou o batimento de uma asa, a sombra de uma capa leve como uma teia de aranha ou uns cabelos prateados e que depois, quando uma pessoa olhava outra vez, desapareciam como se nunca ali tivessem estado Não; não podia ser. Ela tinha vindo da floresta, ela era um dos Outros Aquela mulher, Fola, pertencia ao mundo dos homens e pensava ter tropeçado numa criança pertencente aos Boa Gente. A necessidade de uma explicação assomou aos lábios de Tuala: Eu vivo com os humanos, vivo na casa de um druida, mas a jovem engoliu-a.
- Não falas, hoje? - perguntou Fola calmamente. - Suponho que me compreendes, apesar de tudo. Eu tenho muitas coisas interessantes para dizer; faz parte do meu trabalho ensinar aos jovens tudo o que sei e que posso. O mundo está a mudar rapidamente. Se não falarmos das coisas, esquecemo-nos delas.
Tuala acenou novamente com a cabeça. A jovem ouvira aquele mesmo argumento da boca de Bridei. O jovem dissera-lhe que, no sul, muita gente já não respeitava os deuses; que as pessoas não queriam saber da sabedoria dos antepassados.
- Aqui, na floresta, não sabes essas coisas, suponho - continuou Fola, cruzando as pequenas mãos nos joelhos. Para uma mulher adulta ela era notavelmente pequena; tão pequena que chegava a ser perturbador. Em Pitnochie, eram todos maiores do que Tuala, até Bridei.
- A História é preciosa; os rituais são preciosos. Se não quisermos saber da História e dos rituais, deixamos de saber quem somos disse Fola. - Se não quisermos saber dos nossos antepassados, das histórias, ficamos à deriva, sem identidade. Que idade tens, criança? Talvez a pergunta seja estúpida; vocês não contam o tempo como nós.
Tuala ergueu uma mão aberta, cinco dedos, e o polegar da outra mão.
- Ah. Seis anos. Uma idade excelente. Com um ano, ainda conseguimos ouvir a magia da terra, do céu e do oceano nas suas formas verdadeiras e puras; com mais um, começamos a compreender as coisas de outra maneira: a lógica, o discernimento, os números, a linguagem e os sinais. Ou podemos, se formos humanos e nos derem oportunidade. Os meus alunos mais novos não são mais velhos do que tu. Estou a ver que estás interessada; os teus olhos brilham. Gostavas de aprender coisas?
Tuala acenou vigorosamente com a cabeça. As suas mãos estavam enclavinhadas uma na outra. Aquilo era excitante; mal podia esperar para contar a Bridei.
Se, ao menos... - disse Fola, pensativa. - Se, ao menos, houvesse lugar para ti, o que não aprenderíamos, tu e eu... Nunca tentaria tal coisa, claro. Não tenhas medo. Não há nada mais cruel do que afastar uma criança daquilo que ela conhece e ama apenas porque acreditamos que é o melhor para ela. Os meus alunos estão comigo porque querem. Só podemos aprender se empenharmos o nosso coração. É claro, algumas pessoas dizem que a educação de uma rapariga é um desperdício.
- Não é nada! - disse abruptamente Tuala, recordando que a recusa de Broichan quanto às suas aspirações a deixara profundamente ferida. - Eu queria aprender e podia ter aprendido. Erip e Wid não se importavam, mas não me deixaram! - A jovem fechou a boca com força, mas era demasiado tarde. Quebrara a promessa que fizera. Falara com uma estranha.
Algo nas suas palavras fizera brilhar o olhar de Fola.
- Quem é que não te deixou? - perguntou ela cuidadosamente.
- Podes dizer, querida, eu não faço mal a ninguém.
- Broichan - sussurrou Tuala. Seguiu-se outra pausa. Então, Fola perguntou:
- E quem é esse Broichan? O teu pai? Tuala abanou a cabeça.
- Não, é o pai adoptivo de Bridei. Bridei está a ser educado, passa o dia todo a aprender, mas quando perguntei a Broichan se eu também podia, ele ficou zangado comigo. Ele disse que o que eu tinha de saber era cozinhar e coser, mas eu não sou boa nessas coisas. Não é justo.
- Em que coisas é que és boa?
- Não sou boa em desporto, nem na luta. Bridei aprende as duas coisas: ele é o melhor arqueiro de Pitnochie. Eu sou boa amazona. Bridei ensinou-me. E tenho a certeza que era capaz de fazer o que disse - rituais, história, números e línguas. O que eu quero é sentar-me ao lado de Bridei enquanto Erip e Wid lhe ensinam coisas. Não faço barulho. Não interrompo nada. Mas Broichan não me deixa. Bridei tenta ensinar-me coisas, mas anda tão ocupado que não tem tempo.
- Interessante - disse Fola. - Ter-me-ei enganado a teu respeito? Acerca do que és?
Com relutância, Tuala abanou a cabeça.
- Mas é evidente que não vives nos bosques.
Tuala abanou novamente a cabeça, apercebendo-se de que já tinha dito mais do que devia. Porém, a anciã não achava. Talvez Fola não fosse quem dizia ser. Talvez fosse um inimigo tentando apanhá-la numa armadilha. Não tinham tentado matar Bridei uma vez, havia muito tempo?
- Como é que te chamas, pequena?
- Tuala. - Já não fazia diferença.
- Um nome esplêndido, um nome de princesa. Creio que esse tal Broichan se enganou a teu respeito. Os homens são propensos a isso, mesmo os mais inteligentes. Diz-me uma coisa: Se vives em Pitnochie, que estás a fazer aqui sozinha a meio caminho de Cinco Irmãs, em território de lobos?
- Também está sozinha em território de lobos - respondeu-lhe Tuala.
- Eu sou crescida e sou responsável pelos meus actos. Só respondo perante os deuses - disse Fola calmamente. - Tu, segundo acabas de me dizer, tens seis anos e não és o duende que eu pensava que eras, és um membro da casa de um druida. Diz-me uma coisa, ele mandou-te embora?
Um aceno de cabeça.
- Pois, já percebi. Um problema. Ele recebeu-te, não se importou de quebrar as regras, mas tornar o assunto público é outra questão. Os homens são assim, escravos das convenções.
Havia um ponto que tinha de ser esclarecido.
- Não foi Broichan que me recebeu, foi Bridei. A Que Brilha mostrou-lhe o sítio onde eu estava.
Fola escutava atentamente.
- Bridei - disse ela pensativamente. - O rapaz? Tuala acenou com a cabeça.
- Ele é maior do que eu - disse ela - e é muito bom em tudo. Broichan disse que eu o atrapalhava, que lhe perturbava a educação.
- Ai disse? Bem, talvez tenha uma certa razão. Portanto, ficas aqui até depois do Solstício de Verão, não é?
- Como é que sabe? - perguntou Tuala. - E como é que sabe que Broichan é druida?
- Sou uma Mulher Sábia, Tuala. A minha função é saber coisas. E agora - disse ela, pondo-se de pé e agitando a sua longa capa cinzenta - tenho de ir. Espero que os lobos não tenham fome. Ah, tenho aqui uma coisa que é capaz de te agradar. Onde é que ela está?
Ela tinha um saco atado com uma corda. - Está aqui - disse a
Mulher Sábia, metendo a mão numa bolsa e tirando-a com uma coisa felpuda, cinzenta e inegavelmente viva. - Encontrei-o no caminho disse Fola. - Eu já tenho um gato, Shade, que não está para aturar usurpadores. Vais gostar deste; é uma gata e tem uma risca, o que demonstra que é independente.
Tuala olhou para o pelo suave do animal, para o seu nariz cor-de-rosa, para os grandes olhos, estranhos, e apaixonou-se. A jovem estendeu os braços e apertou o gatito, sem qualquer tipo de luta, apesar do tempo que estivera preso no saco, contra o peito. A cauda do pequeno animal parecia uma escova de pêlos longos e sedosos.
- Ela não é uma gata do campo, é selvagem, é uma criatura da floresta - disse Fola. - Creio que ela gosta de ti, tal como gostou de mim. Cada um com o seu igual. E agora tenho de ir; Pitnochie ainda é longe.
Tuala, absorta a olhar para o seu presente inesperado levou um momento a reagir.
- Pitnochie? Vai para Pitnochie?
Fola acenou com a cabeça, curvando os lábios num pequeno sorriso.
- É verdade. Conheço muito bem o teu druida, mas ainda não conheço o rapaz, o filho adoptivo dele. Quanto a ti, foste uma surpresa total. Tens alguma mensagem para ele?
Tuala tinha muitas. Para Bridei: Tenho saudades tuas. Tenho saudades das histórias. Para Broichan: Quero ir para casa. Não podia enviar nenhuma delas. Segurando no gato com uma mão, Tuala meteu a outra na bolsa do seu cinto e tirou uma fita em tempos azul mas que agora estava desbotada. Os seus cabelos estavam livres e caiam-lhe pelos ombros abaixo.
- Importa-se de dar isto a Bridei? Mas não quando Broichan estiver presente, ele não quer que eu lhe mande mensagem nenhuma.
- Dou-lha, só?
- E diga-lhe que eu sou feliz aqui.
- És capaz de mandar a esse teu amigo uma mensagem falsa? Perguntou Fola. De repente, a Mulher Sábia pareceu-lhe mais alta e a sua expressão severa, tão severa como a de Broichan.
Tuala não disse nada. Encostada ao seu peito, a pequena galinha sentia-se quente e confortável; o animal ronronava e a jovem sentia a sua vibração em todo o corpo.
- Tu não és nada feliz; basta olhar para ti e a tua amiga também sente - disse Fola. - Tu não queres estar aqui, queres ir para casa. Tu não queres cozinhar nem coser, queres ser uma estudiosa. Por que é que as coisas não são o que deviam ser?
- Eu não quero que ele se preocupe comigo - disse Tuala, muito séria. - Só porque eu me sinto triste não é razão para ele também estar. E... - Não, guardaria aquilo para si, custasse o que custasse. Não podia falar da promessa que fizera a Broichan, da qual dependia todo o seu futuro em Pitnochie.
- Muito bem - disse a Mulher Sábia, guardando a fita e colocando o saco às costas. - Eu digo-lhe que estive contigo e que tu me disseste para lhe dizer que pensas nele e que estás ansiosa por regressar a casa. Um compromisso, honesto. Eu não entrego mensagens falsas.
- Obrigada - disse Tuala, enquanto Fola se debruçava para pegar no bordão que tinha ficado entre as raízes do carvalho. A jovem reparou que o pau de salgueiro se ergueu sozinho e que se aconchegou na mão da Mulher Sábia. - Obrigada pela gata e obrigada pela mensagem. Lamento se... - hesitou ela, sem saber como transformar os seus pensamentos em palavras.
- Lamentas se me julgaste mal? Lamentas se pensavas que eu era outra pessoa? Não peças desculpa por isso, Tuala. É bom ser-se cuidadoso. Além disso, eu também me enganei a teu respeito. Toma bem conta desse animal, é raro e pode ser-te útil, um dia. Adeus. Que A Que Brilha ilumine o teu caminho, pequena.
- Que a Mãe de Tudo te ampare - respondeu Tuala. O costume das antigas despedidas fora uma das primeiras coisas que Bridei lhe ensinara.
Fola sorriu.
- Espero voltar a ver-te, um dia.
- Também eu - murmurou Tuala, sabendo que era pouco provável enquanto o seu futuro dependesse de Broichan. A gatinha mexeu-se. A jovem olhou para ela, afagou-lhe a cabeça com os dedos e quando olhou novamente para cima a Mulher Sábia tinha desaparecido, como se não tivesse passado de um sonho.
Do alto do carvalho, dois pares de olhos tinham seguido a cena com interesse. Um dos pares era luminoso, líquido, o seu proprietário tinha cabelos prateados, estava muito ligeiramente vestido e era, indiscutivelmente, uma fêmea. O outro par de olhos era redondo e castanho e pertencia a um rapaz de faces coradas cuja figura estava coberta de hera e de fetos. Nenhum deles pertencia à espécie humana.
Ela cresceu depressa - observou a rapariga. - Está forte, é inteligente e sábia, tal como calculamos.
Este encontro foi fortuito - comentou o rapaz. - Teria sido melhor se tivesse acontecido mais tarde. Há-de chegar o tempo em que o medo da influência desta criança, por parte do druida, ultrapassará a sua lealdade para com A Que Brilha. E a Mulher Sábia quer a rapariga, sabe que ela é forte e reconhece o seu potencial.
- Estás a ir demasiado depressa - disse a rapariga com um movimento dos seus cabelos brilhantes. - Tuala ainda é uma criança, assim como Bridei. Ambos devem ser testados rigorosamente e durante muito tempo. O futuro que espera o rapaz exige a maior autodisciplina, a maior devoção aos deuses e, mais importante, a capacidade de tomar decisões e de confiar nelas.
- O papel de Tuala vai ser igualmente difícil - disse o rapaz. Ela não é feliz; já foi posta à prova e não foi obra nossa.
- Aquilo? - troçou a rapariga. - Uma pequena viagem na companhia da ama? Não sejas tão mole! Espera até esta coisinha ser mulher; nessa altura é que a vamos pôr à prova. Bridei tem de provar que é digno da confiança da Que Brilha; Tuala tem de igualar a força dele. Serão ambos postos à prova, foram escolhidos, não podem defraudar a deusa.
O rapaz ficou silencioso durante alguns momentos, empoleirado no ramo mais alto da árvore e balançando as pernas. No chão, Tuala sentou-se de pernas cruzadas com a pequena gata nos joelhos, uma silhueta minúscula no meio das velhas raízes do carvalho.
- Hum - murmurou ele. - Mais tarde ou mais cedo, Broichan acaba por mandá-la definitivamente embora. Quando estiver a morrer, o druida vai chorar lágrimas amargas por causa disso.
A rapariga virou os olhos pálidos para ele.
- Acha-lo assim tão cego?
- Nisto, em particular, é. O pensamento dele está todo em Bridei, na sua preparação.
- Ainda bem - disse a rapariga. - Não falta muito tempo. Vamos! Não é preciso ficarmos aqui mais tempo. Tuala há-de regressar ao bosque, aos lugares secretos. Não o pode evitar, está-lhe no sangue, tal como a nós. Podemos tirar partido disso. O apelo do sangue é a chave da força.
- Talvez - disse o rapaz com um último olhar para o solo. A pequena silhueta estava de regresso aos arbustos de azevinho com o seu novo tesouro cuidadosamente aninhado nos braços.
- Vamos! - disse novamente a rapariga, e com um clarão súbito e um bater de asas prateadas os mensageiros da Que Brilha desapareceram.
CAPITULO CINCO
- Finalmente, juntos - disse Broichan. - Os cinco homens estavam reunidos nos seus aposentos com o guarda-costas de Aniel, Breth, no lado de fora da porta e a casa toda em silêncio. No exterior, a Lua brilhava numa noite de Verão cheia de murmúrios de pássaros e brisas suaves; ainda faltava um dia ou dois para que A Que Brilha atingisse a sua plenitude e o Solstício de Verão aproximava-se a passos largos. Naquela noite, a atmosfera do santuário do druida era de conspiração, pesada. Havia muito que os cinco homens esperavam aquele conselho.
- É verdade - disse Aniel, sentado à mesa de carvalho, com um pergaminho, uma pena de ganso e o respectivo tinteiro na sua frente.
- E é melhor aproveitarmos a oportunidade porque não tenho dúvidas de que eu, pelo menos, estou a ser observado pelos meus adversários, o mesmo se passando com Broichan. Se a notícia da nossa reunião chega aos ouvidos errados, perdem-se anos de esforços e o empreendimento corre risco. Continuo a dizer que isto podia ter sido feito abertamente desde praticamente o princípio, talvez na corte, com o apoio público do rei Drust.
- Todos nós sabemos qual é a tua opinião, Aniel. - Fola estava de pé em frente da lareira e a sua silhueta era recortada pelas chamas. O seu olhar fulminante era o mesmo que utilizava para devastar os seus estudantes mais recalcitrantes. - Se acreditas no que dizes, não é preciso perderes tempo a falar no que as coisas podiam ter sido, concentra-te antes no presente e no futuro. Além disso, nem tu nem Broichan têm o monopólio do risco, podes ter a certeza. No fim de contas, eu sou uma tutora das filhas do poder. Diz-me uma coisa: Eu ainda não tive tempo de conhecer o rapaz visto que fui a última a chegar. Dá-me o teu veredicto, se já o tens. O olhar presunçoso de Broichan justifica-se?
- Fola, a Franca - troçou Talorgen. - Quanto a mim, gostei do que vi. O jovem Bridei já fala como um homem, fluentemente e com prudência, fala com conhecimento de causa, não tem medo de entrar em debate e conhece as suas limitações. Além disso, é muito bom com o arco.
Aniel sorriu secamente.
- Ele sabe quando deve ganhar e quando deve perder - disse o cavaleiro. - Com o tempo, acredito que conseguirá conquistar os corações dos homens. Porém, ainda é novo. O seu comportamento ainda é enganador. As lições do próximo ano deverão ser mais duras. As decisões que tomará quando for adulto serão muito difíceis; Bridei terá de desenvolver a força moral suficiente para as tomar sem pestanejar.
No exterior, uma ave predadora deu um grito alto que ecoou por toda a floresta. As chamas da lareira crepitaram e Fola desviou-se para permitir que o seu calor atingisse os homens porque, apesar de se estar no Verão, os aposentos de Broichan continuavam frios.
- Uist? - perguntou Fola, erguendo as sobrancelhas.
O velho druida estava junto da janela estreita a olhar para o exterior, como se só pudesse sobreviver se uma parte de si próprio continuasse livre dos limites de uma habitação de pedra e colmo. Quando se virou para os restantes, o seu olhar era vago e estava desfocado.
- É uma viagem difícil para um simples rapaz - disse ele calmamente. - Uma jornada de muitas curvas e viragens, de facadas nas costas, de falsos amigos e aliados desleais. A honestidade, a nobreza de espírito, o talento e a compaixão ajudá-lo-ão. O rapaz conhece os poderes antigos, ama-os e respeita-os. Os homens respeitá-lo-ão por isso. Segui-lo-ão como um rebanho. Suponho que o resultado destes anos de planeamento agrada a todos. Porém, Bridei pagará um preço alto. Nem o mais forte homem de Fortriu suportaria o futuro que antevejo para ele. Recordai-vos disso porque quando chegar a ocasião ele precisará de todos os amigos que tiver. - Uist virou-se novamente para a janela; do seu traje caiu uma chuva de pequenas partículas que caíram no chão bem varrido do quarto.
- O meu filho adoptivo tem força para enfrentar o futuro, seja ele qual for - disse Broichan com voz profunda e segura. Uist não respondeu.
Uns momentos mais tarde, o chefe tribal Talorgen tomou novamente a palavra.
O Solstício de Verão vai ser um teste. Talvez os deuses nos digam se o rapaz é digno do futuro que traçamos para ele. Chegada a ocasião, muitos reclamarão. Se temos a certeza de que Bridei é o escolhido, temos de planear o que se segue. A sua educação tem sido boa, é óbvio, a julgar pela maneira como ele fala. Porém, o rapaz precisa de novas oportunidades...
- A sua educação está nas minhas mãos - disse Broichan, num tom que não admitia réplica. - Concordámos quando tomámos a decisão. Eu é que determino quais as oportunidades que Bridei deve aproveitar e quando.
- Talorgen tem razão - disse Aniel, fixando Broichan. - Tens o rapaz escondido há tempo suficiente e falas como se este assunto te dissesse exclusivamente respeito. Este conselho é constituído por cinco membros. Nenhum de nós deve ser posto de parte. Partilhamos as responsabilidades; partilhamos as consequências do nosso esquema, boas ou más e, como equipa que somos, temos de ser todos a instituir as dificuldades e as compensações. O rapaz tem de aprender a pensar por si próprio. Donal disse-me que Bridei nunca foi a uma das aldeias, ou ao lago, ou a casa de outros rapazes da mesma idade e educação e terá de o fazer para vir a ser um condutor de homens. Tu não estás a educar um futuro druida, meu amigo, estás a educar um futuro rei.
As palavras de Aniel caíram num ambiente silencioso, pleno de esperança e de perigo.
- Além disso - acrescentou Fola, muito animada - terá de ser visto na corte. Não para já, mas dentro de alguns anos. Drust tem de o conhecer. Os favores do rei só fortalecerão as suas hipóteses. Existem outros jovens de sangue real, Carnach de Thorn Bend, por exemplo. Não vamos a lado nenhum com um candidato desconhecido, por mais capaz que seja.
- Sentemo-nos - disse Broichan - e bebamos um pouco de hidromel. - O druida olhou para o conselheiro do rei, Aniel, cujo olhar e expressão eram circunspectos.
- Dá-me a tua opinião sincera. Quanto tempo temos? Mais cinco anos? Sete?
Aniel tossiu para clarear a voz.
- Pelo menos isso - disse ele. - Menos, apesar das capacidades do rapaz, é impossível. A saúde do rei é razoável; Drust sofre com o frio no Inverno e respira com dificuldade, mas se não acontecer nenhuma calamidade, vive outros sete anos, pelo menos. Talvez mais, se os deuses nos sorrirem.
- Rezemos por isso - disse Fola, virando as suas feições enrugadas para Broichan, que a fixou com os seus olhos escuros e impenetráveis. - Drust precisa de ti na corte, velho amigo - continuou a Mulher Sábia. - Ele tem saudades dos teus sábios conselhos.
- Há outros, tão capazes como eu - disse Broichan secamente.
- Entre eles, Aniel; haverá alguém mais bem qualificado? Drust pode muito bem passar sem mim.
- As hipóteses de manter as facções sob controlo e de conseguir alguns progressos na frente ocidental seriam bem maiores se estivesses ao lado dele - observou Aniel. - Ele confia em ti; sempre confiou porque sabe que o teu poder te vem dos deuses. A mim, tolera-me, muito simplesmente.
- Nesse caso, tens de fazer com que ele mude de atitude. - Havia um tom de aspereza na voz de Broichan e a boca de Aniel cerrou-se. -Jurei dedicar quinze anos da minha vida a esta tarefa e vou cumprir a jura que fiz. Se for preciso, dar-lhe-ei mais anos ainda. As ansiedades de Drust são uma coisa. A outra, o futuro de Fortriu, a sobrevivência do nosso povo, estamos aqui a discuti-la, esta noite.
- Isso é tudo muito bonito - comentou Talorgen - mas oxalá os celtas não nos ataquem no espaço de dois anos, ou quatro, ou cinco. Quanto tempo vamos ter que esperar pelo nosso novo rei, ao mesmo tempo que o velho enfraquece cada vez mais e os nossos inimigos se aproximam? A tua presença na corte daria novo alento a Drust. Talvez a tua influência conseguisse que Circinn se aproximasse e se sentasse à mesa do conselho. Talvez pusesse em causa aqueles que procuram subtilmente desestabilizar a governação do rei e agarrar as oportunidades para eles próprios. O rapaz podia ir contigo para Caer Pridne. Eu compreendo que precisaria de protectores, mas trataríamos disso.
- Os protectores não afastaram o veneno dos meus lábios na última vez que me aventurei na corte de Drust, o Touro. Os protectores não evitaram que os assassinos entrassem nos meus bosques. Neste momento, tenho mais efectivos, a segurança é melhor, mas os tempos vão perigosos. O rapaz é jovem; jovem e inocente, não tem consciência do futuro que tem pela frente. Eu escondi-lhe a verdadeira identidade da mãe. Bridei aplicar-se-á com mais intensidade se não tiver de sentir nos ombros o peso daquilo que esperamos dele. Acredita que não é apropriado expô-lo neste momento aos perigos da corte.
Os outros quatro elementos do conselho estavam com os olhos postos nele.
- O que eu acredito - disse Aniel sem rodeios - é no inacreditável até agora: Broichan, o mais desligado dos homens, gosta do seu filho adoptivo e quer ficar com ele durante mais algum tempo. Esses pensamentos podem ser perigosos, meu caro druida; podem intrometer-se entre os nossos objectivos comuns.
- Vamos, vamos - disse Uist sem se virar - Não nos podemos dar ao luxo de ter sequelas entre nós. Fola, sugeriste um compromisso. Concordemos com ele e deixemos que os deuses escolham por nós de uma vez por todas.
Fola cruzou as suas pequenas e asseadas mãos na sua frente, em cima da mesa.
- Muito bem - disse ela. - Bridei fica aqui mais uns anos porque é verdade, ele ainda é muito novo. Porém, daqui para o futuro, poderá ter visitas. Talvez os filhos de Talorgen possam vir aqui passar um Verão. Não haveria perigo, certamente. Bridei poderá sair de vez em quando com a devida protecção, evidentemente. O rapaz deve poder assistir aos festivais nas aldeias, ouvir um pouco de música e gozar a companhia de outras pessoas. Só Corvo Negro sabe o tipo de vida familiar que lhe arranjaste nesta casa de gente tão obstinada. A mãe de Bridei teria ficado horrorizada. Já lhe deve ter custado muito separar-se dele, ter de escolher. Anfreda nem compreendeu a importância da fé, do poder dos velhos costumes na união dos Priteni e na manutenção da sua força. Ela deu-nos o filho com mais hipóteses de levar a cabo a grande tarefa: o mais inteligente, o mais forte, aquele em cujas veias o seu sangue corre com mais força, com mais pureza. Porém, ela é mãe: deve ter sofrido imenso. Suponho que ela terá pensado que ele seria educado na companhia de outras crianças, ou nunca o teria deixado sair de casa.
Broichan manteve-se em silêncio.
- Dentro de um ano ou dois mandá-lo-ás passar uns tempos a Fonte do Corvo - continuou a Mulher Sábia. - Então, ele já será um adolescente, a precisar de um período em casa de um chefe tribal. Dreseida é parente da mãe dele; ela recebê-lo-á com alegria, estou certa. Por essa ocasião, já lhe terás falado da sua linhagem e do seu futuro. A partir de então, Talorgen poderá apresentá-lo na corte, juntamente com os seus próprios filhos. Desse modo, o rapaz não atrairá tanto as atenções indesejáveis. É claro que, entretanto, passará algum tempo aqui. Seria uma estupidez passar sem os ensinamentos de Erip e Wid. Não sei como conseguiste arrancar aqueles dois malandros ao seu exílio auto-imposto, mas não podias ter feito melhor.
Broichan olhava para a lareira, como se não a estivesse a ouvir.
- Estás preocupado - disse Talorgen. - Equipa-o com conhecimentos mentais e físicos e dá-lhe bons guardas. Donal é o melhor de todos: é claro que ele vai com o rapaz. Eu forneço outros, discretamente. A presença de Bridei em Caer Pridne será simplesmente como amigo dos meus filhos. Creio que conseguiremos evitar atrair as atenções.
- Se soubéssemos quais são os inimigos a temer e os que temos apenas de vigiar, seria muito mais fácil. Quando chegar a hora, haverá muitos candidatos ao trono. Cada um deles terá os seus apoiantes. Cada um deles será vulnerável.
- Ainda falta muito para isso - disse Fola. - Temos muito tempo para fazer planos. Por agora, estamos de acordo?
- Esperemos até ao Solstício. - Se Broichan tivera um momento de incerteza, desaparecera; o seu tom de voz era de comando. - Se os deuses falarem, se confirmarem aquilo que nós achamos ser verdadeiro, far-se-á como dizes.
- E se não? - perguntou Aniel, arqueando as sobrancelhas.
- Se não, devolvo-o ao pai - disse Broichan suavemente. - E agora retiremo-nos; falaremos novamente amanhã. Sei que Talorgen pretende sair de madrugada a cavalo. O meu filho adoptivo mantém-no ocupado o tempo todo. Boa noite, meus amigos, que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos.
Cada um dos homens fez as suas despedidas de cortesia. Fola, porém, continuou sentada à mesa de carvalho e ao ver o seu olhar, Broichan fechou a porta depois de os outros saírem e sentou-se na sua frente.
- Então? - perguntou ele. - Desagradei-te de algum modo? A expressão de Fola sugeria uma pergunta.
- Desagradar? Não, velho amigo. No entanto, acrescentaste uma surpresa a uma outra que tive no caminho para cá. Houve referências, esta noite, ao isolamento de Bridei, à sua falta de companhia numa casa de homens e mulheres adultas.
- E?
Não é verdade, pois não? - perguntou a Mulher Sábia, servindo-se do jarro de hidromel, enchendo uma caneca e passando-a ao druida.
Não existe apenas uma criança na fortaleza do enigmático e poderoso Broichan, em tempos mago e conselheiro do rei. Existem duas.
Broichan franziu muito ligeiramente o sobrolho. O druida manteve-se silencioso.
- Como é que ela veio aqui parar? - perguntou Fola suavemente. Ouvi uma história acerca da Lua e o Solstício de Inverno.
- Quem te contou? - O tom do druida era gelado.
- Não interessa. Deves-me uma resposta. A educação de Bridei não é teu privilégio, meu amigo, por mais que o desejes. É nosso; foi-nos dado pelos deuses, aos cinco. Os membros do nosso conselho não devem mentir uns aos outros.
- Eu não menti.
- Escondeste a verdade, o que vem a dar no mesmo. Trata-se de um assunto que pode afectar o futuro do rapaz. Devias ter-nos dado conhecimento mais cedo. Ela já cá está há seis anos, segundo penso. O comportamento definitivo de uma criança pode determinar-se num espaço de tempo menor. Por que ficaste com ela aqui? O sentimentalismo nunca fez parte da tua natureza; a compaixão não é a maior das tuas qualidades.
O druida sorriu friamente.
- És muito franca, Fola, como sempre.
Não vejo por que não o hei-de ser contigo. Tu és suficientemente forte para ouvir a verdade.
- Diz-me como é que ouviste falar da criança. Ela não está cá, agora. Não a podes ter visto.
- Queres negociar isto? Queres uma troca de informações? perguntou Fola, franzindo o sobrolho, chocada.
- Atrever-me-ei a isso com Fola, a Furiosa, a olhar para mim desse modo? Foi um simples pedido. A minha casa está proibida de falar no assunto, tal como noutros. Preciso de saber quem quebrou a promessa. Não pode haver desobediência em Pitnochie.
- Essa regra também se aplica às crianças? - perguntou Fola.
- Todos devem obedecer. Não pode haver quebra de disciplina disse Broichan. Depois de uma pausa, o druida continuou: - Que estás a dizer? Que encontraste a rapariga? Que Tuala falou contigo?
- A mesma, seis anos de idade, cheia de saudades, lutando com quantas forças tem - disse a Mulher Sábia, cruzando os braços em cima da mesa. - Passei pelo sítio para onde tu a mandaste. Ela não fazia tenção de quebrar a promessa, Broichan. A pequena aguentou-se muito bem. Deu-me um bocado de trabalho fazer com que ela me contasse a história.
- Será punida - disse o druida. - O lugar dela na minha casa já de si é precário. A rapariga pode ser nova, mas já compreende o castigo para a desobediência.
- Que é? - O tom de Fola não revelava nada dos seus pensamentos.
- Esta casa não lhe dará abrigo se não seguir as regras impostas.
- Eras capaz de a mandar... para onde? Broichan franziu o sobrolho.
- Tu percebeste quem ela é, sem dúvida. A história é verdadeira: a rapariga foi deixada à minha porta na noite do Solstício de Inverno, uma noite de lua cheia. Bridei acordou e meteu-a dentro de casa. Ele acredita que A Que Brilha lhe confiou a criança, e a nós; que a deusa a entregou aos nossos cuidados. O rapaz conseguiu o acordo do pessoal da minha casa por meio de um truque de magia caseira. Quando regressei de Caer Pridne, ela já era o coração da casa, não a pude mandar embora.
- Um problema - observou Fola em voz baixa. - Bebe o teu hidromel e não estejas tão irritado. Compreendo o que sentes e também compreendo as tuas dificuldades. Não fui tutora de raparigas estes anos todos para nada. É evidente que a rapariga está muito ligada a Bridei e não há dúvida que ele sente o mesmo, baseado na convicção de que os espíritos o nomearam como seu protector. O facto de lhe teres negado a companhia de outras crianças fortaleceu, evidentemente, os laços. Os dois vêem-se como irmão e irmã; precisam um do outro visto que nenhum deles tem família.
- Como pai adoptivo dele - disse Broichan com a voz tensa fiz os possíveis por guiar e apoiar o rapaz. Ele tem os melhores tutores e uma casa onde não lhe falta nada.
- É triste - observou Fola - tu acreditares que isso basta. Por que mandaste Tuala embora? Ela parece ser uma criança calma e educada, uma criança que não te causaria embaraços, nem sequer neste momento, quando estás na companhia de quatro assustadores estranhos.
- Isso não é bem assim. Ela é o que é e aí é que reside o dilema, eu respeito os deuses; não desobedeço À Que Brilha se, por acaso, a teoria de Bridei estiver correcta. Eu ensinei-o a respeitar todas as formas de vida e a ver todos os seres vivos como parte de um todo. Por isso é que Tuala ficou. Teria sido uma coisa simples se Bridei fosse mesmo meu filho, destinado a ser um mago ou um guerreiro. Porém, ele não é meu filho. Bridei é filho de uma princesa dos Priteni e o seu destino é liderar o nosso povo como um verdadeiro rei. Ele é o nosso candidato. Quanto é que pensas que custou a Anfreda prometer-nos um filho para este objectivo, mesmo antes de ela deixar Fortriu e ir para uma terra distante? O caminho de Bridei tem sido planeado, passo a passo; todas as curvas devem ser controladas. Se o seu futuro não for determinado pelo nosso conselho de cinco, será a ruína e a nossa pobre terra nunca mais se unirá de novo na prática da antiga fé. Concordo que a rapariga parece inocente, mas é um elemento imprevisível neste empreendimento, o único factor alheio ao nosso controlo. Tu conheces a natureza caprichosa dos Boa Gente. Não nos podemos dar ao luxo de permitir que ela se insinue nos nossos planos como um fio deformado e retorcido numa tapeçaria perfeita.
- No entanto - disse Fola, em tom neutro - não tens para onde a mandar. Quem ficaria com ela? Não podes bani-la sem trair a confiança da Que Brilha. Não a podes mandar embora sem perder o amor e o respeito do teu filho adoptivo! Não admira que franzas tanto o sobrolho.
- Sinto que a criança é perigosa. Ela ainda é pequenina, mas já tem algo: uma força para além do óbvio. A rapariga tem medo de mim, não gosta de mim, é evidente no seu comportamento. Sinto que, tal como um animal selvagem meio domesticado, só está à espera da ocasião propícia para morder a mão que a alimenta. Um animal assim pode minar os nossos planos. Se ela influenciar Bridei, fica com capacidade de o desviar do seu caminho.
- Talvez ande aborrecida - disse Fola.
- Aborrecida? - exclamou o druida com um tom de espanto na voz. - Impossível. Aqui, ninguém tem tempo para isso.
Fola olhou para ele.
- Meu caro - disse ela - eu sinto uma certa simpatia por Bridei e por Tuala ainda mais porque a tua atitude diz-me que não percebes nada de crianças. Nunca foste novo? Já te esqueceste do que significa sermos postos de lado, sentirmo-nos sós, ser-nos negado o que os outros recebem por direito? Ou apareceste assim, já adulto, capaz de lidar com o que o destino te apresenta? Broichan não respondeu.
- Eu não gosto de acordos e negociações - disse a Mulher Sábia bebendo o resto do hidromel da sua caneca. - Apesar disso, talvez te possa propor algo que resolva o teu dilema, ao mesmo tempo que me tira dos ombros a preocupação quanto à educação destas duas crianças.
- Diz lá.
Fola pôs-se de pé.
- Ainda não. Primeiro quero falar com o rapaz, para ver se a minha intuição está certa. E vou esperar até depois do ritual do Solstício. Talvez, até lá, já tenhamos uma resposta dos deuses. Nessa ocasião, voltarei a falar contigo.
- Tencionas discutir o assunto com os outros companheiros, entretanto? Saber quais são as suas opiniões quanto à minha incapacidade como pai adoptivo?
Fola fez uma pausa antes de responder.
-Já vi que toquei num nervo sensível; desculpa, nunca pensei que tivesses essas coisas, velho amigo. Por agora, a coisa fica entre nós. Quanto à tua incapacidade, só a julgarei depois de falar com Bridei.
A manhã fora agradável. Fora até à Cicatriz da Águia a cavalo com Donal, com Talorgen e com o segundo guarda de Aniel, cujo nome era Garth, e tinham feito uma corrida no regresso, durante a qual Bridei e Bae se tinham portado muito bem. Talorgen ganhara com a sua égua robusta, de pernas fortes. Em seguida, tivera uma aula com Erip e Wid, durante a qual os dois tutores lhe tinham falado dos símbolos do parentesco e à qual o conselheiro Aniel e o druida Uist tinham assistido. Nenhum deles conseguira manter-se em silêncio; as teorias e as contradições tinham-se acumulado, uma das aulas mais interessantes a que Bridei assistira.
Em seguida, o jovem fora até aos carvalhos e sentara-se à sua sombra durante um bocado. Parecia-lhe ser a atitude correcta apesar de Tuala estar ausente e só regressar depois do Solstício. Se se sentasse tranquilamente no seu sítio preferido, pensou Bridei, talvez a jovem sentisse a sua presença apesar de estar em Cumeeira de Carvalho. O local tinha aquela magia. A Mãe de Tudo era a terra, o seu corpo sustentava e ligava tudo que vivia nele. Se se sentasse no meio das raízes dos carvalhos, como se fosse a própria Tuala, e pensasse no modo como a árvore descia até ao coração da Terra, talvez os seus pensamentos pudessem viajar de uma parte do corpo da Mãe de Tudo para outra, de Pitnochie até ao pequeno local da floresta onde Tuala também se sentava e sonhava. Não te preocupes, disse-lhe ele, vais regressar em breve. Com os olhos fechados, o jovem era capaz de ver o seu pequeno rosto ansioso e os seus grandes olhos, estranhos.
- Estou sempre a encontrar gente jovem à sombra das árvores disse uma voz enérgica. - O que quer dizer, não sei. Tu és o Bridei, não és? Quando cheguei, ontem à noite, já te tinhas ido deitar.
Bridei pôs-se em pé de um salto, sacudiu a poeira e acenou com a cabeça delicadamente, cumprimentando a anciã.
- Peço desculpa - disse ele - não a vi chegar. Sim, o meu nome é Bridei.
- O meu é Fola; livro-te do embaraço de teres de perguntar. Geralmente, estou em Banmerren, onde tenho um estabelecimento onde as jovens aprendem tudo sobre a deusa. Tenho uma mensagem para ti - disse a Mulher Sábia, tirando do interior do manto uma fita azul, muito desbotada, e colocando-lha numa das mãos.
- Oh - disse o jovem, reconhecendo-a instantaneamente; atara os cabelos de Tuala com ela, vezes sem conta. - Passou por Cumeeira de Carvalho?
- O meu ofício obriga-me a percorrer o Vale todo.
- Tuala está bem?
- Claro. Por que não havia de estar?
Havia várias respostas para aquela pergunta: Porque ainda é pequena, porque não se queria ir embora, porque tem medo de Broichan, porque não é capaz de adormecer sem uma história.
- É muito longe - disse Bridei. Fola sorriu.
- Tens sido treinado por um homem com um talento especial: o de não responder às perguntas - comentou ela. - A tua irmã parecia estar de boa saúde. Evidentemente, tem saudades tuas, se bem que não o tenha dito. Creio que ficará feliz por regressar a Pitnochie.
Bridei acenou com a cabeça e meteu a fita na algibeira.
- Ela não é mesmo minha irmã - disse o jovem.
- Não?
- Não exactamente. Somos os dois filhos adoptivos de Broichan. Fola sorriu.
- Desconfio que Broichan não vê as coisas desse modo - observou a Mulher Sábia.
Bridei não disse nada. Aquilo era, provavelmente, mais um teste - um teste ainda mais difícil porque não era possível saber, com aquela anciã de nariz afilado e olhos vivos, qual a resposta certa. Uma coisa era certa, não toleraria que o seu pai fosse criticado apesar de ter mandado Tuala embora.
- Talvez não - disse ele cautelosamente. - De qualquer maneira, somos. Eu vim para aqui mandado pelo meu pai, para ser educado. Tuala veio enviada pela própria Que Brilha.
- Para ser educada?
- Com um objectivo - disse Bridei. - Eu estou a tentar ensiná-la. Ela já sabe contar até cinco, sabe muita coisa acerca dos rituais e também sabe muitas histórias. Porém, quase nunca tenho tempo.
- Eu falo com Broichan - disse Fola secamente. - A situação é ridícula. Ela deve partilhar as tuas aulas. Provavelmente, não perceberá a maior parte, mas será melhor do que nada.
A sua confiança era impressionante. Bridei duvidava que Broichan concordasse, mas não o disse.
- Tuala gostaria muito.
- Eu sei, mas agora diz-me uma coisa, Bridei. Eu sei como a encontraste, sei que compreendes as suas origens, o que é e de onde veio. No entanto, não sei se compreendes bem como as coisas se poderão tornar difíceis para ela, mais tarde. Pensa. Pensa como será quando ambos forem crescidos. Pensa no mundo em que terão de viver. O que é que ela vai fazer? Como será a sua vida?
Bridei não estava a perceber bem o que a Mulher Sábia queria dizer.
- Aqui, em Pitnochie, toda a gente gosta dela - disse o jovem, sabendo que não era exactamente verdade. Não era possível associar a Broichan a palavra gostar. - Ela, aqui, é feliz. Tuala pertence a Pitnochie.
- Tu não vais viver aqui para sempre, Bridei. Um dia, serás um homem, seguirás o teu caminho. A mim, parece-me que és, para esta rapariga, o centro do mundo. Que será dela sem ti? As pessoas desconfiam dos Boa Gente. Tuala não terá uma vida fácil no mundo dos homens.
Que quer dizer? - perguntou Bridei, desconfiado. - Também vai dizer que a devia ter deixado na neve? Não estou para ouvir isso outra vez - disse o jovem, subitamente irado.
Eu não te estou a perguntar nada - disse calmamente Fola. - Pensa
no que te disse. Não te estou a julgar. Tudo o que eu quero é uma resposta.
Bridei respirou profundamente, tentando afastar a ira e olhou para os olhos penetrantes da Mulher Sábia.
- Tuala é forte - disse ele - capaz de escolher o seu próprio caminho. A vida dela será o que ela quiser que seja.
- E tu?
- Eu? Eu ajudo-a, protejo-a e faço os possíveis para que não se sinta só. Como um irmão, apesar de não o ser.
- Estou a ver. E a tua vida? E se o teu caminho te afastar e não puderes assumir essa responsabilidade pela tua irmã, apesar de ela não ser verdadeiramente tua irmã?
Bridei franziu o sobrolho.
- O meu pai adoptivo ainda não me disse o que pretende de mim. É claro que posso ter de me ausentar - Talorgen disse que eu posso ir passar uns tempos em Fonte do Corvo - mas por essa ocasião Tuala já será mais crescida. E quando formos mais crescidos poderemos ter a nossa própria casa. Terá de ser perto da floresta; Tuala precisa de ter as árvores por perto.
- Hum - disse Fola com os lábios torcidos num sorriso desconfiado. - Eu tenho tendência para esquecer a idade que tu tens, Bridei. Broichan educou-te de maneira a falares e a ouvires como um estudioso. Só ocasionalmente me apercebo do rapaz por trás dessa eloquência e me apercebo do que realmente és: um rapaz. Diz-me uma coisa, o que é que tu queres ser? Qual é o futuro que desejas?
A única maneira de responder àquela pergunta era com a verdade.
- Juntar novamente os reinos dos Priteni - disse Bridei, simplesmente. - Fazer com que Circinn faça novamente parte de Fortriu. Trazer de volta a velha fé para que possamos todos, como deve ser, honrar os nossos antepassados. Expulsar os celtas e conseguir a paz. Quero fazer isso.
- Mais nada?
O jovem levou alguns momentos a descobrir que a Mulher Sábia estava a brincar. O jovem sentiu-se corar.
- E se Broichan te mandar para casa, para outro lado? - Suponho que parece uma coisa demasiado grande; nem sequer sei por onde começar! É uma tarefa para um grande líder. Compr endo que se ria de mim, mas como perguntou, eu respondi honesta mente. Esta ambição devia estar na mente e no coração de todos os homens e mulheres de Fortriu. Todos nós devíamos senti-la.
Fola acenou com a cabeça.
- Eu não me estava a rir de ti, meu filho - disse ela. - Saúdo a tua coragem e os teus ideais e rezo para que consigas atingir os teus fins. Agora, quero que me respondas a outra pergunta.
Até ali, a conversa tinha sido difícil. Bridei nem queria adivinhar o que se seguiria.
- Diz-me - disse Fola - e se Broichan te mandar para casa, para Gwynedd?
O horror estampou-se no rosto de Bridei. A Mulher Sábia sabia alguma coisa que Broichan não lhe dissera?
- Finalmente, ficaste sem palavras depois de teres respondido ao meu interrogatório com muita inteligência. Pergunto a mím própria por que razão?
- Ele disse isso? - conseguiu articular Bridei. - Ele vai mandar-me para casa?
A Mulher Sábia olhou para ele como uma coruja, solenemente. Não queres saber da tua família?
O jovem engoliu a primeira resposta. A minha família está aqui, a minha família é constituída por Broichan, por Donal e por Tuala.
- É claro que quero - respondeu ele polidamente.
- Não acredito - disse Fola. - A tua expressão diz-me que estás a ser cauteloso. Aliás, és sempre cauteloso, salvo quando a conversação toca num assunto muito importante. Então, o teu rosto muda, os teus olhos brilham e deixas de falar como um ancião, ou um druida confuso, e mostras quem na realidade és. Para ti, Fortriu e o Vale é que são importantes; A Que Brilha e, claro, a criança que a deusa te entregou. Já não te lembras de Gwynedd. Há quanto tempo estás em Pitnochie - sete, oito anos? Duvido que te lembres, sequer, dos rostos dos teus pais.
Bridei baixou a cabeça.
- Deves ter-te sentido muito só - disse ela em voz baixa.
- Passou-se bem.
- Hum. Mas trataste de te assegurar de que o mesmo não aconteceria com ela. Sim ou não?
groichan é um bom pai adoptivo. O melhor.
- E tu és um filho leal. Um filho adoptivo leal. Muito bem, Bridei, portaste-te muito bem; ele educou-te às mil maravilhas nesse tipo de luta. A. tua pequena irmã também é perita, apesar de ser pouco maior do que um rato. Sabes que o ritual do Solstício é uma espécie de teste, não sabes? perguntou ela, virando subitamente para ele os seus olhos argutos.
Sei - disse Bridei. - mas não sei exactamente com que fim. Vou fazer o melhor possível e esperar que os deuses me mostrem o caminho.
Não tenho dúvidas de que o farão - disse a Mulher Sábia.
Tuala sabia o que era o Solstício de Verão. Bridei ensinara-a a olhar para o Sol à medida que o dia se aproximava, como calcular a sua posição a partir de um ponto, uma árvore ou uma pedra, por exemplo, até ao dia em que o seu nascimento recuasse, fazendo com que a sua viagem no céu fizesse um arco menor. A vigília era feita durante três dias e cada um deles tinha o seu próprio ritual. Em Pitnochie, Broichan presidiria às cerimónias solenes, coadjuvado por Bridei. Ali, em Cumeeira de Carvalho, o reconhecimento da viragem do ano era ligeiro. Havia uma nascente, perto da cabana, e iam até lá ao fim do dia, quando o trabalho terminava, as duas mulheres mais velhas, a mais nova e Tuala com o pequeno gato, Mist, umas vezes nos seus calcanhares e outras correndo à frente, vendo-se apenas a sua cauda acima da vegetação rasteira. A água corria por entre as pedras e ia dar a uma pequena lagoa redonda, sobre a qual os sabugueiros estendiam os seus ramos longos e fungiformes. Cada uma das mulheres atou neles um pedaço de pano colorido - Tuala teria feito o mesmo, mas perdera novamente a fita do cabelo e não tinha mais nada. A jovem e Brenna juntaram algumas pedras brancas perto da água. Todas rezaram à deusa uma oração simples e até na ocasião a mãe e a tia de Brenna o fizeram com rostos azedos e olhos severos. Tuala nunca vira gente tão triste, tão zangada. Havia muitas razões para sorrir, mesmo quando uma pessoa se sentia só: o Sol a nascer, a maneira como os fetos se agrupavam em redor das rochas cheias de musgo, o cheiro húmido da pequena clareira, o murmúrio da voz da deusa...
- Posso ficar aqui mais um pouco? - perguntou a jovem a Brenna. - Só um bocadinho? Daqui vê-se a casa; prometo que não me demoro.
As duas mulheres mais velhas já se afastavam. Brenna hesitou.
- Prometo - disse Tuala outra vez, tentando parecer a criança mais obediente do mundo.
- Está bem - disse Brenna. O seu rosto parecia mais alegre. aproximava-se a data em que Cinioch a levaria para casa, finalmente os seus olhos já quase não estavam vermelhos. A jovem sorriu ligeiramente.
- Tens-te portado bem, Tuala. Tem cuidado; não molhes a roupa.
- Sim, Brenna.
De facto, não era a primeira nem a segunda vez que Tuala se deslocava àquele local, acompanhada apenas por Mist. Desde a manhã em que descobrira acidentalmente que vedar era uma coisa extremamente simples e que quase não precisava de treinar que a pequena lagoa a chamava e ela passava muito tempo debruçada sobre as suas águas sombrias, tal como fazia em Pitnochie, quando se aninhava nas raízes do velho carvalho. A primeira vez, procurara peixes. Porém, antes de ter oportunidade de ver se havia alguns, aparecera uma imagem na superfície, árvores, céu e caminhos na floresta. Não era um reflexo porque o que estava a ver era o monte sobranceiro a Pitnochie e no meio da pequena lagoa estavam Bridei e o seu cavalo, galopando na direcção de Estrela da Águia. Tudo o que tinha a fazer, para manter a imagem, era ficar imóvel e. respirar lenta e profundamente. Não era nada difícil.
Depois de visitar o local várias vezes e olhar para a lagoa em ocasiões e dias diferentes, Tuala começou a ver imagens que a deixaram preocupada. A jovem via coisas que não pertenciam ao tempo presente, que já deviam ter acontecido havia muito tempo ou que ainda estavam para acontecer. Era uma pena Bridei não estar ali com ela; tinha tantas perguntas para lhe fazer. Por que razão as pessoas eram tão cruéis umas para as outras; por que razão lutavam e discutiam umas com as outras, por que se zangavam? Não podiam resolver as questões de outra maneira? Quem eram os guerreiros de cabelos ruivos que estava sempre a ver na água, olhando friamente para os mortos? O jovem que via, o que tinha cabelos castanhos encaracolados e cujo rosto brilhava de coragem, era mesmo Bridei, já crescido? Se era, por que razão nunca se via a si própria? Seria normal, quando se estava a vedar, ter aquela sensação estranha, uma espécie de formigueiro, como se estivesse a ser observada por seres invisíveis, silenciosos?
Lá estavam eles, outra vez. Tuala sentia-os: um anel de olhos fixos nela, um círculo de seres. A jovem não conseguia ver nada para além de um brilho difuso no ar, uma ligeira perturbação. Os seus olhos diziam-lhe que não estava ali ninguém. No entanto, sentia que não estava só. Quando se debruçou sobre a pequena lagoa, sob o sabugueiro com as fitas de lã e de pele atadas nos seus ramos, oferendas dos viajantes ao longo de muitas estações, sentiu que eles se debruçavam a seu lado, no lado oposto, por trás de si, seguindo cada um dos seus movimentos, respirando com ela, como se fossem um corpo único.
- Quem sois? - sussurrou Tuala, quase zangada. - Por que não vos mostrais?
A jovem não obteve resposta, ouviu apenas uma pequena brisa e depois o silêncio.
A imagem na água mostrou-lhe Pitnochie ao meio-dia porque se via a casa de Broichan no meio dos carvalhos e as águas do Lago da Serpente brilhando ao Sol, abrigado pelos montes arborizados. A jovem viu Fidich a trepar uma vereda íngreme à sombra de uns pinheiros, até onde estavam reunidas umas pessoas. Tuala conhecia aquele local. Chamavam-lhe Amanhecer das Três Colinas porque havia ali um carvalho solitário, uma árvore venerável que recebia na sua copa os primeiros raios do Sol nascente. Broichan e Bridei deviam ter ali passado as três noites anteriores de vigília, marcando o local onde a Guardiã das Chamas apareceria no horizonte.
Nas rochas do topo estava formado um círculo; as pessoas da casa de Broichan estavam todas ali reunidas. A jovem viu Broichan, alto e solene no seu traje escuro, com uma faca ritual de osso e prata na mão. O druida usava uma grinalda de folhas de carvalho nos cabelos entrançados. A sua expressão provocou um arrepio em Tuala.
A jovem conhecia algumas pessoas, mas outras não. Tuala viu Mara, Donal, Ferat e a maior parte dos homens de armas, mas viu também outros guerreiros que nunca tinha visto antes, com os rostos tatuados e os corpos cobertos de cicatrizes. A jovem também viu um druida vestido de branco com uma série de gravetos nas mãos e também reconheceu Fola, a anciã; Fola transportava uma tigela de bronze com água que depositou na parte ocidental do círculo.
Tuala aproximou-se um pouco mais da superfície da lagoa. Mist aninhou-se no seu peito com a cauda enrolada e com os olhos fixos na água imóvel. Talvez estivesse a ver uma imagem felina qualquer.
As imagens desenrolavam-se como uma dança solene; Broichard dando uns passos com a ponta da sua adaga cortando o espaço; em cada quarto do círculo, a sua voz proferia as palavras rituais de reconhecimento e saudação. A água era salpicada em cada quarto; o fumo dos gravetos a arder subia na atmosfera, uma purificação ritual. Em seguida, Tuala viu a Mulher Sábia a avançar a partir de norte, a localização ritual da terra. Fola não parecia pequena e inofensiva, parecia forte e poderosa, a personificação da própria Mãe de Tudo. A Mulher Sábia ergueu os braços e lançou um desafio: Quem és tu? Por que estás aqui? Dignos! Tuala não ouvia nada; nenhum som perturbava a tranquilidade da pequena clareira. Porém, a jovem conhecia as palavras; as lições de Bridei tinham sido tão minuciosas quanto possível.
Três dos homens presentes saíram do círculo e avançaram. Um era o druida vestido de branco, um homem idoso com uns olhos claros e penetrantes e uns cabelos brancos como a neve todos emaranhados e entrançados com sementes, gravetos e folhas. Nas mãos, o ancião segurava uma pena tão branca como o seu traje.
- A luz do Sol ilumina as mentes - disse ele - e torna o caminho mais claro. Guardião da Chama, deixa que os nossos olhos vejam a verdade.
O homem que falou a seguir era um guerreiro alto, direito, com as feições tatuadas de azul, símbolo da sua profissão. Os seus olhos eram penetrantes e os seus modos confiantes. O guerreiro tinha na sua frente uma flecha cujas penas da cauda pertenciam à grande águia.
- A luz do Solstício é a luz da coragem. - O seu tom cortante percorreu o ar frio do topo do monte. - Guardião da Chama, tu dás-nos força, para que sejamos homens. A tua glória ardente inspira os nossos actos de valor. Somos, por tua causa, verdadeiros filhos de Fortriu.
O terceiro homem transportava um osso; Tuala não percebia que espécie de osso era, mas era longo e claro, talvez o osso de uma perna. O homem tinha olhos cinzentos e traje cinzento; o seu rosto tinha muitas rugas e a testa estava franzida, como se tivesse muitas preocupações.
- Guardião da Chama - disse ele com dignidade - com o teu calor alimentaste os Priteni desde os tempos anteriores à história, desde o tempo em que os avós dos nossos avós caminhavam pelo Vale. Na tua vida está a nossa vida. Na tua sabedoria está a nossa sabedoria. Saudamos o teu esplendor.
Depois daquelas palavras, o silêncio prolongou-se. Tuala compreendeu que cada homem e cada mulher dizia interiormente as palavras secretas de inspiração e também as pronunciou, sentindo o seu poder no mais íntimo do seu ser. Os observadores ocultos continuavam presentes, um círculo de presenças invisíveis em redor da lagoa. Pelo canto do olho, Tuala pensou ver mãos pálidas, rostos sombrios, trajes esverdeados e cinzentos feitos de folhas de salgueiro e de penas sedosas, asas prateadas e longos cabelos, tudo em cambiantes de um azul incrível. Os olhos deles eram o espelho dos seus: sem cor e claros, tão claros como o gelo. A jovem não desviou o olhar, tinha de segurar a imagem na superfície da água porque acabara de ver Bridei, que avançava a partir da base da Amanhecer da Três Colinas segurando uma vela acesa. O coração de Tuala bateu com mais força. O jovem parecia muito sério, muito concentrado, como se sentisse que os deuses ficariam desagradados se ele desse um passo errado ou se enganasse nas palavras. Bridei parecia cansado, tinha olheiras. Devia ser da vigília. Broichan obrigava sempre o seu filho adoptivo a ficar acordado na véspera do Solstício. Bridei mordia o lábio, nervoso. Tonto; era evidente que não cometeria um único erro. Era evidente que os deuses não se zangariam. Bridei estava nas mãos da Mãe de Tudo; o Guardião da Chama ardia no seu espírito. A Que Brilha escolhera-o. Ele era Bridei, fazia sempre tudo bem.
O jovem iniciou um percurso em espiral a partir da orla do círculo, sempre com a vela a arder nas mãos firmes. Os seus cabelos encaracolados, castanhos como a casca de um carvalho, estavam atados na nuca; os seus olhos reflectiam o azul do céu, quentes e brilhantes e os seus passos eram firmes. Em redor de um dos pulsos, o jovem tinha uma fita azul desbotada. Tuala sorriu; desejava tanto estar junto dele, fazer parte daquele ritual. Naquele momento, de certo modo, estava com ele; Bridei levava-a no pulso. A jovem esperava que Broichan não se zangasse por causa da fita.
Os passos de Bridei levaram-no ao meio do círculo onde estavam o seu pai adoptivo e a Mulher Sábia, lado a lado. Bridei ergueu os braços com a vela, bem alto.
- Esta é a chama da esperança e da promessa de justiça e paz em toda a Terra! - proclamou ele. Não havia qualquer tom de nervosismo na sua voz, que soou clara, como um sino; o seu som provocou um arrepio em Tuala apesar de a jovem a ouvir apenas com ouvidos de vidente, capazes de ouvir o silêncio. - Invoco o poder do Guardião da Chama, invoco a força da nossa Mãe Profunda, a Terra e invoco a portadora das marés, A Que Brilha! O Sol triunfou; hoje, ele atinge o seu zénite. A sua vida acordou-nos e fertilizou a Terra por onde caminhamos. Começa agora a sua longa retirada. Guardemos a sua luz para iluminar o nosso caminho. Que cada um de nós seja uma chama a arder; que cada um de nós continue em frente irradiando a verdade.
Broichan devia falar a seguir, mas antes que o druida pudesse abrir a boca ouviu-se um bater de asas, uma grande agitação no céu e do leste apareceram duas águias. Planando nas correntes térmicas do Grande Vale, formavam um par perfeito, ora flutuando ora batendo as asas com movimentos lentos e poderosos, até que se aproximaram do local por cima do qual o rapaz se mantinha direito e orgulhoso com a chama da esperança nas mãos. Broichan não disse uma palavra; enquanto as aves voavam em círculo em redor do pico rochoso na sua dança simétrica, Tuala viu, profundamente espantada, que o druida tinha as faces cheias de lágrimas. As duas aves sobrevoaram o rapaz três vezes e depois pousaram, as duas ao mesmo tempo, num dos ramos mais altos da Amanhecer das Três Colinas. As duas águias dobraram as suas grandes asas e imobilizaram-se vigilantes. O Sol tocou nos cabelos encaracolados de Bridei, tornando-os vermelhos como as folhas de uma faia no Outono; os raios do meio-dia banharam o topo do pico, como uma bênção.
Então, sem uma palavra, Broichan tirou a vela ao seu filho adoptivo e acendeu uma pequena fogueira com os gravetos que o velho druida trouxera consigo. Tuala sabia que naquele monte de gravetos estava representada toda a floresta: o carvalho, o freixo, o pinheiro, o sabugueiro, o azevinho, a sorveira-brava, cada uma das árvores fortalecendo a magia daquele dia. A grinalda de carvalho que Broichan tinha na cabeça foi usada por todos os que estavam presentes no círculo, coroando todos por um breve momento, cada um deles renovando, em silêncio, o seu voto aos deuses.
Finalmente, a grinalda regressou às mãos do druida. Broichan ergueu-a no ar por um momento e lançou-a às chamas. Tuala engoliu em seco; a jovem sabia que aquele momento chegaria, mas sentiu-se chocada, como se aquele gesto significasse a morte dos sonhos. Porém, não era. Todos juntaram as mãos para dizer a velha prece da paz. As chamas ergueram bem alto nos céus do Grande Vale os seus focos, mais alto do que a mais alta das árvores, mais alto do que o vOo das águias, para lá das nuvens, até ao reino da Que Brilha, até ao Sol que dava a vida e cuja força aquela reunião comemorava.
Em seguida, o pão e o hidromel foram abençoados. Fola e Broichan carrilharam em primeiro lugar a comida sagrada e depois Bridei dividiu-a pelos presentes, juntamente com o líquido cor de âmbar. Donal deu uma palmada no ombro de Bridei, fazendo com que o jarro de hidromel oscilasse. Erip e Wid sorriam como se tivessem ganho um prémio. Debruçada sobre as águas da pequena poça, Tuala reparou que as feições impassíveis de Broichan já não tinham qualquer lágrima. Se calhar, imaginara. Se calhar, aquilo não estava a acontecer, se calhar era um talvez. Vedar era uma coisa delicada. No entanto, a jovem viu o orgulho nos olhos do druida seguindo o seu filho adoptivo em redor do círculo de pessoas e pensou ver o mesmo orgulho nos outros rostos, incluindo o da Mulher Sábia.
- Tuala!
Era Brenna, chamando-a. A jovem bloqueou o som, aproximando-se mais da água. A seu lado, Mist continuava imóvel como uma estátua, olhando para a superfície imóvel. Em redor da pequena lagoa, pelo canto do olho, Tuala viu que os observadores ocultos continuavam presentes.
Terminada a festa, o círculo desfez-se. As pessoas reuniram os seus pertences e iniciaram a longa descida em direcção a casa. No topo do carvalho solitário, as duas águias continuavam imóveis. Porém, quando Bridei iniciou a descida, as duas aves ergueram-se nos ares e sobrevoaram-no diversas vezes. Naquele lado do monte as árvores eram mais grossas, aglomeravam-se nas ravinas, cobriam as vertentes, enchendo tudo com folhagem e agulhas verdes e por baixo delas cresciam os fetos e os azevinhos. No entanto, as águias têm uma visão extraordinária, são as rainhas dos predadores e à medida que a imagem mudava e tornava a mudar, Tuala via que os dois grandes animais pareciam escoltar Bridei, proclamando o seu dia, como se o jovem fosse um mago das velhas histórias, ou um rei novo ascendendo ao seu trono. As duas aves continuaram a sobrevoá-lo enquanto ele descia por entre os bosques de vidoeiros e entrava na escuridão dos pinhais; continuaram presentes enquanto ele passava por baixo dos carvalhos veneráveis e por entre os sabugueiros inclinados que ladeavam o regato e a lagoa. Por cima da casa do druida, voaram em círculos enquanto ele saía da floresta, junto do muro onde os guardas de Brochan estavam de guarda. Em seguida, com um grito que fez arrepiar Tuala as águias afastaram-se para oeste e saíram da imagem da superfície das águas. A jovem viu Bridei virar-se para o seu pai adoptivo e dizer algo, sorrindo, mas não conseguiu ouvir as palavras.
- Tuala!
Eram horas de regressar. A jovem não queria que Brenna se aborrecesse, a sua ama já tinha muito com que se preocupar. Tuala pôs-se de pé e estendeu os braços para pegar no pequeno gato. Em redor da pequena lagoa ouviu-se um restolhar, um som que parecia um silvo, talvez umas palavras: nósss... um de nósss... Então, abruptamente, os observadores desapareceram.
Naquela noite, acordada enquanto Brenna dormia a seu lado, Tuala murmurou para si própria uma história. Mist era bom ouvinte; a sua presença pequena e quente na semi-escuridão da noite de Verão tornava a solidão mais suportável.
- Sabias que os Priteni têm dois reis, Mist? Ambos têm um símbolo diferente, gravado na pedra das suas grandes casas, para que toda a gente saiba qual é qual, Drust, o Touro e Drust, o Javali. - Os dedos de Tuala afagaram o pelo sedoso do gato; aconchegado no cobertor fino, Mist ronronava de tal maneira que todo o seu corpo vibrava. Porém, não vou falar-te deles. Vou falar-te de um outro rei. Esta história é uma história que talvez venha a acontecer, tal como as imagens da lagoa. Este rei chamava-se Bridei e o seu símbolo era a águia...
A história era linda, cheia de aventuras, coragem e esperança, uma história que falava do destino e que pareceu a Tuala profundamente verdadeira, tal como as antigas histórias de amor. A única coisa errada era que, por mais que tentasse, não encontrava um lugar nela para si própria.
CAPITULO SEIS
Na verdade, tinham sorte. Tuala lembrava-se de o dizer a si própria todas as estações, todos os anos, ao ver Bridei afastar-se a cavalo para mais uma visita a Fonte do Corvo ou para mais um retiro na floresta com o velho druida, Uist, porque também fazia parte da educação que Brochan determinara para o seu filho adoptivo. Tinham-se passado mais de seis anos desde que fora mandada para Cumeeira de Carvalho, a época a que a jovem chamava o Verão das Águias. Tuala vira Bridei passar de criança séria, muito direita, a jovem de olhar perspicaz e despedira-se dele tantas vezes que lhes teria perdido a conta não fora o talismã que escondia no seu pequeno quarto na casa do druida, em Pitnochie, um fio duplo muito forte, entretecido de um modo especial. A sua história, dela e de Bridei, estava naquele objecto: as duas partes do fio tinham pequenas separações, correspondentes a cada período de ausência, e um nó delicado para cada reencontro imensamente desejado. O seu comprimento correspondia ao tempo das suas vidas, os dois caminhos que divergiam e se juntavam e que, apesar de separados, permaneciam, na sua essência, unos e indivisíveis. Se bem que pequeno, era um objecto poderoso; Tuala fazia os possíveis para que ninguém o visse, nem sequer o próprio Bridei.
À medida que os anos passavam, a jovem crescia, mas mais cuidadosa, mais vigilante apesar de os seus privilégios na casa de Broichan se terem expandido porque continuava a sentir, sempre, que o druida não gostava dela. Desde que a mandara embora pela primeira vez, Broichan nunca mais lhe falara do assunto. O druida não tinha necessidade. A jovem sentia-o na sua expressão fechada, no seu tom de voz frio, na distância que punha entre a sua pessoa e o presente da Que Brilha que ele nunca aceitara.
Sim, tinham sorte. Broichan podia tê-la mandado embora para sempre, podia ter levado Bridei para a corte e ficado lá, podia ter-lhe negado os estudos, salvo o pouco que ela conseguia apanhar. Miraculosamente, no dia em que regressara de Cumeeira de Carvalho, Tuala encontrara o caminho aberto na sua frente. Erip e Wid foram autorizados a sentá-la ao lado de Bridei, a dar-lhe trabalhos e assegurarem-se de que a jovem os completava. Tuala apanhara a oportunidade com todas as suas forças, sem perguntar a razão da mudança de atitude de Broichan. Bastava-lhe que a porta tivesse deixado de estar fechada; a jovem aplicara-se com a intensidade de uma exploradora em busca de novas descobertas.
À medida que o tempo passava, a sua vida mudava. Brenna tinha-se casado e mudado para a nova casa do seu marido. Agora, ela e Fidich eram os pais orgulhosos de duas crianças e Brenna dividia o seu tempo entre a herdade e a família. Quanto a Erip e Wid, tornaram-se, não só tutores de Tuala nas disciplinas de história, geografia, reis, símbolos, tradição e narrativas, mas também seus amigos firmes. As lições tinham lugar informalmente, mesmo quando Bridei estava ausente. Cada vez mais o jovem se movia num círculo mais largo e estava ausente desde o Renascimento até ao Solstício de Verão, ou desde o Portal da Dança das Virgens, o festival que comemorava a chegada dos primeiros carneiros. Não fora a paciência e a amabilidade dos dois anciãos e as concessões feitas por Broichan, que lhes permitiam e à sua pequena aluna sentarem arraiais em frente da lareira, logo de manhã com os respectivos pergaminhos e penas, e a vida teria sido, sem dúvida, bem triste. Quando Bridei estava ausente, Tuala sabia que ficava sem uma parte de si, uma parte tão vital para a sua existência como os olhos, os ouvidos ou o bater do coração.
O Inverno iria ser particularmente difícil. Bridei ia para Fonte do Corvo, com Talorgen e a sua família e Tuala sabia, porque o vira na água, que a possibilidade de haver guerra, mortes e dor era grande. A visão mostrara-lhe Bridei com um olhar que nunca vira antes, um olhar que significava que ele vira algo que esperava nunca mais voltar a ver, mas com o qual tinha de se confrontar vezes sem conta. A jovem vira homens chacinados e sangue por todo o lado, ouvira, com os ouvidos da mente, um grito de uma dor indescritível, um som que lhe tinha feito ranger os dentes e pedir aos deuses para que acabassem com ele, depressa, antes que enlouquecesse. Porém, não dissera nada a Bridei.
Tuala sabia que aquelas visões não eram a verdadeira imagem do futuro. Usá-las como base de planeamento de qualquer tipo de acção era um grande risco. Bridei já era um homem: tinha dezoito anos. Era indubitável que teria de entrar em combate, enfrentar a morte como todos os homens, quer ela a tivesse visto, quer não. Tuala não podia, de modo nenhum, segurar o momento em que aquela terrível sombra lhe entrava nos olhos; a única coisa que podia fazer era estar em casa quando ele chegava, ouvi-lo e confortá-lo porque era a detentora dos seus medos mais secretos e a guardiã dos seus sonhos.
Despediram-se em Cicatriz da Águia. Tornara-se muito difícil arranjar tempo para estarem sozinhos porque Broichan tinha cada vez mais visitantes em Pitnochie, gente sempre a chegar e a partir. Naquele momento, o hóspede era Talorgen e o seu filho Gartnait, um jovem esgalgado e sardento que se tornara amigo íntimo de Bridei, mas não de Tuala. Gartnait via-a como uma criança, ainda por cima uma criança estranha. O jovem visitante arreliava-a por causa dos seus silêncios, do seu ar solene, da sua estranha palidez e dos seus grandes olhos de coruja. Gartnait fazia-o a brincar, mas Tuala nunca sabia o que responder, ao mesmo tempo que lhe parecia não valer a pena; de que serviria, senão para reforçar o pouco à-vontade que sentia em casa do druida por causa da sua diferença? A jovem não queria sentir-se à parte, queria integrar-se. Erip e Wid nunca se tinham sentido incomodados pelo que ela era e pelas coisas que fazia sem pensar, como mover os pequenos reis e as pequenas sacerdotisas no tabuleiro sem lhes tocar, ou fazer com que a luz colorida que entrava pela janela redonda se transformasse numa dança de insectos minúsculos brilhantes, como jóias que se dispersavam numa chuva de poeira. Nessas ocasiões, Erip tossicava, Wid afagava a barba branca e acenava com a cabeça, e os dois continuavam com a lição sobre as ervas tradicionais, a astronomia, os reis ou as rainhas. Tuala recordou os reis e as rainhas, sentada com Bridei em cima das pedras no topo da Cicatriz. Era o Outono. O jovem ia partir outra vez e o ano estava a escurecer.
- Bridei?
- Hum? - respondeu o jovem, olhando para oeste, para o Vale, talvez à procura de águias, talvez procurando o trilho que iria percorrer em breve, quando fosse para Fonte do Corvo.
- Se tivesses ficado em Gwynedd, um dia serias rei - disse ela.
Os olhos azuis viraram-se abruptamente para ela, brilhantes e perspicazes.
- Não é tão simples como isso - disse ele.
- O teu pai é o rei de Gwynedd - observou Tuala. - Erip disse-me que a maneira como os reis são escolhidos aqui é diferente. Não os elegem por serem filhos de mulheres reais, como entre os Priteni, com candidatos de cada uma das sete casas. Em Gwynedd e em Powys, o filho do rei pode ser coroado. Se tivesses ficado lá, podia acontecer-te. E ainda pode, se regressares a casa.
Durante alguns momentos, Bridei não disse nada.
- A minha casa é em Pitnochie - disse ele, finalmente. - E a tua. Eu costumava pensar que era o que Broichan queria: educar-me e depois mandar-me outra vez para Gwynedd. No entanto, se isso acontecesse, nunca seria rei no meu país. Já não me lembro dos meus irmãos, mas sei que tenho dois, mais velhos. A sua pretensão seria mais forte do que a minha; cresceram ambos ao lado do meu pai. Além disso, Broichan não me mandou para lá.
- Nesse caso, quais são os projectos dele para ti? - De facto, Tuala já sabia a resposta; os sinais eram evidentes desde o dia em que Bridei transportara a chama do Solstício de Verão e as águias o tinham sobrevoado. Porém, a jovem não tinha a certeza se Bridei o sabia, mesmo naquele momento. A estratégia de Broichan era profunda, subtil e atingia um período de muitos anos. Tuala fora forçada a admitir que o druida tinha razão em esconder o seu plano de mestre de quem tentasse impedi-lo, em protelar a revelação da verdade ao jovem em cujos ombros ele depositava as suas esperanças. Ignorante do peso da expectativa, Bridei percorrera o caminho da sua juventude com mais leveza e aprendera com mais liberdade. Sem o fardo do conhecimento do seu futuro, estivera ao abrigo das maquinações dos que buscavam o poder e posição, dos que tinham as suas próprias peças no tabuleiro.
- Sou capaz de adivinhar - disse Bridei. - Broichan não me fala da minha mãe, mas eu descobri que ela é parente da mulher de Talorgen, lady Dreseida, e. lady Dreseida é prima do rei Drust. Dependendo da natureza exacta do parentesco, o assunto pode ter algumas possibilidades. Eu seria um estudioso muito pobre se não as reconhecesse depois das lições de genealogia de Erip e de Wid, mas sou novo e nunca tentei ser líder de homens. Penso que o mais provável é groichan querer que eu desempenhe um papel semelhante ao seu como conselheiro do rei. Não como druida, claro, antes como Aniel faz, viajando, negociando, tentando estabelecer tréguas e os respectivos termos. Conselheiro do rei. Talvez, também, guerreiro; um homem deve ser muitas coisas.
- Ainda és um pouco novo para seres conselheiro do rei Drust disse Tuala com voz monótona. As faces de Bridei coraram e a jovem lamentou imediatamente as suas palavras apesar de corresponderem à verdade.
- Haverá outros reis depois dele. Eu sou um homem, Tuala, não sou nenhuma criança. Desempenharei o meu papel.
Tuala manteve-se calada, sentindo-se, profundamente magoada, a mensagem silenciosa: Eu sou um homem e tu ainda és uma criança. Não podes compreender. Aquilo era injusto; ela compreendia perfeitamente, desde criança, desde que não era capaz, sequer, de manter os cabelos atados com uma fita. E já era uma mulher apesar da sua pequena estatura e do corpo franzino. Faria treze anos no Solstício do Inverno. Já tivera as regras três vezes e observava, maravilhada, as outras mudanças do seu corpo, sinal de que as marés da Que Brilha fluíam nela, tal como nas profundezas do oceano. No entanto, não podia dizer aquilo a Bridei, claro, porque no fim de contas ele era o seu melhor amigo, o melhor do mundo, era um rapaz e havia coisas que não se diziam a um rapaz.
- Tuala? Hum?
- Somos capazes de estar fora durante o Inverno todo. Parece que vai haver uma campanha contra os celtas na Primavera para reconquistar o território de Galany's Reach, onde está a Pedra Mágica. Talorgen é capaz de nos deixar ir com ele como guerreiros, Gartnait e eu. - Os olhos de Bridei brilhavam; era como se o jovem já estivesse a ver os estandartes e as armas a brilhar ao Sol, o estrepitar dos cascos dos cavalos, a vitória gloriosa. Tuala estremeceu.
- Não fiques assim - disse Bridei. - Terei de entrar em combate, mais tarde ou mais cedo. Se não fosse Broichan, já o teria feito.
- Vou ter saudades tuas. Ainda falta tanto tempo para a Primavera.
- Eu também vou ter saudades tuas, Tuala. Assim que puder, regresso, prometo. Nessa altura, terei imensas coisas para te contar.
Tuala acenou com a cabeça. O que Bridei dizia era verdade, indubitavelmente; o jovem falava com ela como nunca falara com outros, livremente, com o coração nas mãos, sem segundas intenções e teria muito para lhe dizer, notícias nascidas de lágrimas, de fúria, de dor e de raiva.
- O que é que se passa, Tuala? O que é que te preocupa? Eu volto sabes? Eu volto sempre a Pitnochie. - Franzindo o sobrolho, preocupado, ele aproximou-se e rodeou os ombros da jovem com um braço. Para ela, aquilo era estranho; não era o habitual, Tuala costumava encostar-se a ele quando queria ser consolada e oferecia em troca um abraço. Aquilo era estranho, diferente.
- Não é nada. - A jovem afastou-se e pôs-se de pé. - Quando partes? Quero mostrar-te uma coisa.
- Ainda tenho algum tempo, mas não muito. O que é?
- Anda comigo. É um pouco longe, para oeste. Tenho de te mostrar. Porém, quando chegaram ao local, o local especial e secreto que ela descobrira um dia quando deambulava sozinha pela floresta, Bridei deteve o seu cavalo, mas não desmontou.
- Para ali, não - disse ele, subitamente branco como a cal. Não deves ir para ali, Tuala. Vamos para casa.
Tuala ficou espantada.
- Porquê? Que queres dizer? Eu já estive ali muitas vezes. É ali que eu vejo... - A voz da jovem morreu perante as recordações de traição, sangue e morte.
- Onde vês o quê? - perguntou Bridei, desmontando. Seguindo um padrão estabelecido, Tuala montava Blaze, o velho pónei do jovem, enquanto este montava Snonfire, um cavalo com uma longa crina e uma longa cauda, robusto e seguro, cinzento-claro, como uma sombra nos montes, no Inverno. De facto, Tuala era tão franzina que teria podido continuar a montar a sua amada Pearl, mas estava velha e preferia passar os dias no estábulo ou no campo a ver passar o tempo.
- Onde te vejo - murmurou Tuala, desviando o olhar. - Assim, sei onde estás, o que fazes e onde vais.
Bridei ficou em silêncio durante alguns momentos. Finalmente, disse:
- Há visões terríveis naquela lagoa, Tuala. Broichan dá-lhe o nome de Espelho Negro. Eu só lá fui uma vez e chegou. Uma rapariga da tua idade não devia sujeitar-se a tais influências. Broichan não gostaria e eu também não gosto.
- Que idade tinhas quando olhaste para o Espelho Negro?
Bridei não respondeu.
Seja como for, não é só isso. Não é só saber onde estás e se estás em segurança. É... outras coisas.
Que coisas? - perguntou Bridei, cada vez mais inquieto; Tuala apercebeu-se ao ver como o jovem agarrava nas rédeas de Snowfm.
- Não te posso dizer aqui. Temos de descer ao pequeno vale.
- O Vale dos Que Caíram. - Bridei pronunciou o nome em tom ameaçador. - Houve aqui um massacre, há muito tempo. Este sítio está cheio de más recordações, de morte.
- E de vida. Vamos, Bridei. - Sem ver se ele a seguia, Tuala começou a descer pelo carreiro, por entre a vegetação espessa. A bruma do vale subiu ao seu encontro. Uns momentos depois, a jovem ouviu os passos de Bridei atrás de si.
Ao chegarem à margem da lagoa, a bruma dissipou-se, revelando as formas arqueadas das escuras pedras druídicas e das trepadeiras que envolviam as margens com as suas folhas luxuriantes. A luz era difusa, esverdeada, provocando reflexos na superfície da água e tornando-a aqui escura e profunda, ali pouco funda e brilhante, com minúsculos peixes nadando velozmente como setas logo abaixo da superfície.
Tuala sentou-se de pernas cruzadas junto da água.
- Não olhes - disse Bridei. - Por que não te ficas pela bola de bronze? Podes fazer isto sempre que quiseres. Por que razão vens aqui? Isto é... - O jovem calou-se. Um momento mais tarde, Tuala sentiu-o junto de si, suficientemente perto para sentir o seu calor, mas sem lhe tocar, a única coisa humana no Vale dos Que Caíram.
Para Tuala, aquilo era natural. A jovem sabia que, para as outras pessoas, até para o próprio Bridei, e até para Broichan, especialista na magia, a arte da vidência era difícil, difícil de aprender; que a capacidade de cada um nem sempre podia ser posta em prática e que as visões nem sempre apareciam. Para ela era completamente diferente e a jovem acabara por compreender, com relutância, que o facto tinha a ver com a sua origem, com o que era: diferente; um dos outros. Aquilo deixava-a pouco à vontade, mas a dádiva em si tornava-a feliz, abria-lhe uma janela para o mundo, para lá de Pitnochie, para lá do Grande Vale, para lá do presente. Tuala era capaz de conjurar uma imagem numa gota de chuva, num barril de água, num jarro de hidromel. Porém, não conseguia encontrar tanta maravilha e terror como no Espelho Negro. Bridei tinha razão; o vale e a sua lagoa escondida tinham recordações profundas, uma história de morte, sangue e coragem para além da imaginação. Mais ainda, o Espelho Negro mostrava-lhe o que estava ou não para acontecer, advertia-a, mostrava-lhe profecias, fornecia-lhe orientação e era onde moravam os Boa Gente. Finalmente podia ver os seus, cara a cara, e perguntar-lhes por que a tinham abandonado sem uma palavra. Talvez tivesse sido por vontade da Que Brilha, ou talvez tivesse sido, muito simplesmente, uma brincadeira. Se Bridei não tivesse acordado naquela noite, teria morrido de frio. Quanto mais crescia, mais aquilo se lhe metia na cabeça.
A lagoa não lhe mostrou a imagem de nenhuma batalha, mostrou-lhe o ritual do Solstício de Verão vezes sem conta, as pessoas todas reunidas em Amanhecer das Três Colinas e uma criança de cabelos castanhos percorrendo o caminho em espiral em direcção à luz. Porém, aquilo estava para acontecer. A criança era pequena, não tinha mais de seis anos. O homem que presidia à cerimónia, que traçava o círculo e dirigia as orações não era Broichan, era Bridei; não era um druida vestido de escuro, era um homem na flor da idade, de ombros largos, alto e bem-parecido, com olhos azuis muito brilhantes e uma longa trança cor de avelã. A Mulher Sábia que falava pela Mãe de Tudo não era a Fola de nariz de falcão, era uma sacerdotisa nova, esguia como um vidoeiro, pálida, de olhos claros e com cabelos negros que lhe caíam pelas costas, por cima do austero traje cinzento. Os olhos das duas personagens estavam sempre a encontrar-se, mas quando o ritual acabava e o hidromel e o pão eram divididos, a mulher ao lado de Bridei era outra, uma rapariga cuja silhueta bem modelada tinha um belo vestido e a capa forrada de pele de uma fidalga, uma rapariga que usava uma pequena grinalda de flores no cabelo e um sorriso no rosto que se destinava unicamente ao belo homem que inclinava a cabeça com familiaridade para ouvir as suas palavras. O rapaz que tinha transportado a vela estava a seu lado, uma versão miniatura do seu pai. Tuala viu rostos familiares: Ferat, Mara, Fidich e Brenna com os seus filhos. Donal não estava, nem Erip, ou Wid. Tuala não via Broichan, mas via-se a si própria, depois do ritual terminar, sozinha sob o Amanhecer das Três Colinas, com o rosto na sombra e olhar de criança abandonada. Tuala viu-se a si própria a virar-se e a dirigir-se silenciosamente para o abrigo dos vidoeiros, deixando a família de Pitnochie nas suas alegres comemorações.
As lágrimas caíam-lhe pelas faces; não faziam parte da visão, eram reais. Bridei estava junto de si com os olhos presos no Espelho Negro.
Tuala não conseguiu olhar de novo. A jovem fechou os olhos, desejando que as imagens lhe saíssem da cabeça. Não podia esquecer-se de que aquilo podia, muito simplesmente, não acontecer, podia ser apenas um talvez. Tudo era possível. As pessoas podiam sempre percorrer qualquer caminho desde que o desejassem ardentemente. No fim de contas, estava ali, não estava? Crescera na casa de um druida, fora-lhe dada uma educação, crescera quase como uma criança humana.
Tinha de afastar a possibilidade daquele futuro; tinha de pensar que aquelas imagens eram possíveis, mas era difícil. Eles estavam ali, Tuala sentia-se rodeada pelo restolhar dos seus movimentos leves, pelo insidioso sussurro das suas vozes estranhas... Nós... um dos nossos... regressa para junto de nós... Nunca se tinham mostrado totalmente em todos aqueles anos. Talvez não confiassem nela; talvez não confiassem em ninguém. No entanto, estavam sempre ali, reunidos em redor da lagoa, sussurrando-lhe ao ouvido, roçando-lhe o braço, o rosto, murmurando a sua própria interpretação das suas visões. Vem, diziam as suas vozes suaves, vem para junto de nós. Aqui podes ser uma rainha...
- Eu não sou um dos vossos - retorquiu ela. - Eu sou uma rapariga normal e vivo com os humanos. Sou de carne e osso, não flutuo pela floresta murmurando mentiras e pregando partidas.
- A.hhh... Suspiraram as vozes. Ele pregou-te uma partida quando te acolheu. Ele afastou-te da família e do lar... Vem para junto de nós... Nós precisamos de ti... Nós amamos-te...
- Como é que eu posso regressar? Nem sequer vos vejo! - respondeu Tuala, sussurrando furiosamente. - E não me amais, isso é outra mentira. Abandonastes-me na neve. A minha vida é com os humanos, não preciso de vós!
As vozes sussurraram em coro, vindas de uma dúzia de sítios.
- Tu precisas... oh sim, precisas... É por isso que vens a este lugar, uma vez e outra... Tu precisas de nós...
Bridei mexeu-se e estendeu os braços. Abruptamente, os seres da floresta desapareceram, como se de um simples fôlego tivessem regressado à terra a que pertenciam.
- Estiveste a chorar - disse Bridei, surpreendido. - O que é que se passa? O que é que viste?
- Estou bem - disse Tuala, esfregando as faces. - E tu? O que é que viste?
A expressão do jovem era carrancuda e os seus olhos estavam muito sérios.
- A mim, o Espelho Negro só mostrou uma imagem - disse ele pondo-se de pé. - Eu não queria vir aqui hoje. Apesar disso, ainda bem que vim, porque vou entrar em combate contra os celtas, na Primavera, e isto serviu para me encorajar ainda mais. Temos de expulsar o inimigo do Vale para sempre, em nome dos bravos que morreram aqui. Será um acto de vingança, pura e final. Ainda bem que me trouxeste aqui, Tuala. Lamento que a tua visão te tenha feito chorar. Não gosto nada de te ver triste.
- Estou bem - disse ela mais uma vez, se bem que não fosse verdade e estivesse consciente de que Bridei sabia. - Por vezes, o Espelho Negro mostra-nos coisas tristes, mas com um propósito.
- Querias mostrar-me mais qualquer coisa? - perguntou ele. A gentileza da sua voz e o modo amável como inclinou a cabeça para ela recordaram a Tuala a visão que tivera, fazendo-a sentir-se ainda pior.
- Não - disse ela. A sua intenção era falar-lhe das presenças sobrenaturais que a seguiam cada vez mais, algures entre a matéria e as sombras. Tuala sentia necessidade de pôr em palavras o desejo de descobrir coisas sobre a sua verdadeira família, as razões do seu abandono à porta de Broichan e o que esse facto poderia significar no seu futuro. A jovem também sentia necessidade de falar a Bridei no medo que a possível descoberta lhe provocava. E se descobrisse a sua verdadeira identidade e descobrisse que não pertencia de todo ao mundo dos humanos? E se a descoberta a afastasse para sempre da única pessoa do mundo que lhe interessava? Porém, poderia continuar a sua vida na ignorância?
- Tens a certeza?
- Tenho. Está a fazer-se tarde; se calhar, Donal anda à tua procura. Devíamos ir.
- Tuala?
- O que é?
- Se se passasse alguma coisa tu dizias-me, não dizias?
- Não se passa nada.
- Preocupas-me - disse Bridei. - Não gosto de te deixar, especialmente quando estás assim.
- Assim como?
- Triste. Ansiosa. Como quando Broichan te mandou para Cumeeira de Carvalho, quando eras pequena. - O jovem estendeu uma mão e limpou-lhe as lágrimas das faces com os dedos. Ao sentir o gesto, leve como uma borboleta, Tuala sentiu algo dentro de si, algo que nunca sentira antes. Fechou os olhos por um momento. Tinha de ser forte, por mais miserável que se sentisse. Ele não tinha outra hipótese senão partir; bastava-lhe que Bridei pensasse em si enquanto estivesse ausente. Além do mais, continuava com aquela fita azul atada no pulso, levava-a sempre consigo quando se ausentava de Pitnochie.
- Eu só estou triste porque te vais embora, mais nada - disse ela.
Contigo longe, tenho de responder às perguntas todas de Wid e de Erip, em vez de só a metade.
Havia quatro grandes lagos ao longo da grande fissura que era o Grande Vale, todos eles ligados entre si por canais estreitos. Era possível atravessá-los de barco desde a costa norte, perto da fortaleza real de Caer Pridne, até às ilhas, a oeste, a remos ou à vela, transportando o barco pelas margens dos canais, lineares e salpicadas de rochas. Cada lago tinha o seu nome particular e carácter único. O Lago da Serpente estendia-se desde o estuário, a norte, e para além da casa de Broichan. O Lago da Serpente era negro e profundo; nas suas águas moravam sombras de antigas presenças. Os homens que pescavam nele usavam amuletos nos pescoços e regressavam sempre a terra antes do anoitecer.
A sul do Lado da Serpente ficava o mais pequeno dos quatro, Lago da Donzela, onde começava o caminho que ia dar a Cinco Irmãs. A subida era íngreme, mas fazia-se bem. Os viajantes podiam admirar os vales cobertos de bruma, os canais meio escondidos, as encostas cobertas de árvores e as rochas escarpadas. O local era habitado por lobos; as pessoas não iam a Cinco Irmãs sozinhas, a não ser que não tivessem amor à vida. Alguns conseguiam passar incólumes, eram tocados pela mão da Que Brilha, ou seguiam como guerreiros escolhidos pela Guardiã das Chamas, e os animais selvagens respeitavam-nos, sentiam-no no próprio sangue. Por vezes, os veados até se ofereciam a tais viajantes como sustento e à noite os lobos uivavam enquanto eles se aqueciam ao calor de uma fogueira na imensidão dos montes escuros. O caminho ia dar ao oceano, a oeste, e às ilhas. Estas pareciam animais marinhos em descanso, rodeadas por águas brilhantes no Verão e açoitadas por ventos e marés no Inverno.
No outro sentido, para sul, passando por Lago da Donzela, estava Lago Mágico. Lago Mágico era um lugar misterioso. Ouviam-se tambores nos montes e, por vezes, trompas, uma recordação fantasma do que ali se tinha passado em tempos recuados. Aquelas margens solitárias tinham sido, não havia dúvida, cenário de uma batalha, vitória ou derrota, cujos sons de dor e desafio se tinham tornado parte da memória profunda de Lago Mágico. As suas águas tinham testemunhado as vidas de muitos homens; as pedras e as árvores guardavam esse testemunho no seu silêncio.
Nas encostas a leste de Lago da Donzela estava Fonte do Corvo lar do chefe tribal Talorgen, da sua mulher Dreseida e dos seus quatro filhos, três rapazes e uma rapariga. As posses da família eram substanciais, Talorgen tinha a sua própria força armada, fabricantes de armaduras, ferreiros, servos para tratarem dos cavalos e alimentarem um pequeno exército. O chefe tribal tinha rendeiros cujas herdades lhe providenciavam os produtos de que necessitava; gado, peles e lã. Em troca, Talorgen dava-lhes protecção e profissão aos seus filhos como homens de guerra ou aprendizes de qualquer ofício. O chefe tribal era muito respeitado e a sua mulher não lhe ficava atrás. Como prima direita do rei Drust, nas suas veias corria o sangue real dos Priteni.
Fonte do Corvo estava numa posição estratégica no flanco de Descanso de Corvo, a vista alcançava um vale escondido, para lá de Lago da Donzela. A sudoeste, para lá da extensão misteriosa de Lago Mágico, situava-se Lago do Rei, grande e largo, que se abria finalmente para o mar, a oeste. Águas perigosas e costa perigosa: ali estavam situadas as fortalezas dos celtas. Ao longo da costa oeste de Fortriu, a partir daquele ponto, para sul, até às velhas fronteiras e para norte, até às terras selvagens dos Caitt, os intrusos tinham ganho posição e nem com grande esforço por parte dos Priteni, de Drust, o Touro, e de outros reis antes dele, tinha sido possível expulsar aquele parasita. A sul era mais do que uma posição. O auto-proclamado rei de Dalriada construíra uma fortaleza num lugar chamado Dunadd e estabelecera colonatos nas proximidades, assim como nas próprias ilhas. Os celtas sentiam-se em sua própria casa.
A posição de Fonte do Corvo era perfeita para sortidas ao território de Dalriada, ao mesmo tempo que colocava Talorgen em risco de ser espiado e os seus homens eram alvo de ataques sempre que se aventuravam em missões, disfarçados. Bridei estava consciente de que o perigo, em Fonte do Corvo, era maior do que em Pitnochie. Era a partir dali que os Priteni podiam atacar e provocar danos profundos.
Se as coisas corressem como Talorgen e os outros chefes tribais esperavam, Pedra Mágica regressaria no Verão à posse de Fortriu. Então, a Guardiã das Chamas entoaria cânticos e A Que Brilha dançaria de alegria no céu, por cima do Vale. Toda a gente estava esperançada numa
vitória.
Já com dezoito anos, dois homens, portanto, Bridei e Gartnait desempenhavam o seu papel patrulhando as fronteiras de Fonte do Corvo. Geralmente, Donal ia com eles, ou um dos homens de Talorgen, devidamente escolhido. Fazia sentido serem três. Um tal número podia mover-se a coberto dos bosques e manter-se em contacto por meio de sinais subtis como o pio de uma coruja, ou o restolhar de um esquilo. Se o pior acontecesse e um deles fosse ferido, um dos restantes poderia tratar dele enquanto o último iria em busca de reforços.
Estava um dia frio de Outono, o ar doía ao entrar nos pulmões. Das bocas de Bridei e de Gartnait saíam nuvens de vapor enquanto os dois jovens se moviam silenciosamente ao longo da orla superior da floresta de pinheiros com os olhos e os ouvidos alerta. Naquele dia eram apenas os dois porque os homens mais idosos estavam em conselho com um chefe tribal recentemente chegado a Fonte do Corvo, um homem de cujo apoio Talorgen necessitava para vencer. Donal também fora requisitado, assim como o terceiro homem que geralmente os acompanhava. De facto, Gartnait e Bridei preferiam fazer a patrulha sem mais ninguém a acompanhá-los. Os dois jovens tinham-se tornado muito amigos, mas também rivais desde o primeiro Verão em que o esgalgado e sardento Gartnait passara pela ordeira casa de Pitnochie. Era difícil dizer quem se sentira mais deslocado, se Gartnait naquele mundo de estudiosos, rituais e magia, ou Bridei, no Verão seguinte, no meio das disputas barulhentas, brincalhonas e ferozes daquela família de Fonte do Corvo, com os dois irmãos mais novos e uma irmã com quem lutar, para além do próprio Gartnait. Dreseida, a sua mãe, era a pessoa mais difícil de todas com os seus olhares perspicazes e as suas perguntas inesperadas. No primeiro Verão, Bridei tivera saudades de Pitnochie, da disciplina severa de Broichan, da ordem, da inteligência viva e sentido de humor dos dois anciãos. Acima de tudo, tivera saudades de Tuala porque como não a sentia a seu lado, pequena e silenciosa com os seus olhos vigilantes de coruja, não podia exprimir os seus pensamentos mais profundos, tinha de os deixar acumularem-se na mente. Naquele Verão, os seus sonhos tinham-no deixado perturbado.
Agora, porém, já estava habituado a Fonte do Corvo. O jovem aprendera a rir-se das piadas, se bem que não tivesse desenvolvido a habilidade de as dizer. Bridei sabia que não teria adquirido a perícia suficiente como guerreiro para poder participar na empresa da Primavera seguinte se não tivesse tido Gartnait como parceiro no processo de passagem de rapaz a homem. Os irmãos mais novos de Gartnait olhavam agora para os dois jovens com outros olhos. Com Ferada a questão era outra. Bridei sentia que a irmã de Gartnait confiava tanto nele como a mãe. As mulheres da casa de Talorgen eram difíceis de compreender, num momento sorriam e eram corteses, no outro mostravam-se ofendidas, faziam perguntas a que ele não podia responder, ou remetiam-se a um silêncio gelado. Não era de admirar, pensou Bridei enquanto rastejava ao longo dos restos de uma antiga muralha de pedra, que nunca soubesse o que lhes dizer. Não tinha prática. As únicas mulheres em Pitnochie eram Mara, que mais parecia um grande cão de guarda, e a tímida Brenna. Tuala não contava, era uma criança. Se ficasse alguma vez em Caer Pridne, por ocasião de uma das estadias do rei, talvez conhecesse algumas damas da corte e aprendesse a maneira de se conduzir na sua presença. A perspectiva não lhe agradava nada.
Um assobio minúsculo: Gartnait mais à frente, fazendo-lhe sinal de que havia perigo. Bridei franziu o sobrolho. Por uns momentos, o jovem não ouviu senão o vento nos pinheiros, ou o canto distante de um pássaro. Bridei não conseguia ver o amigo, mas sabia que ele estava a uns cem passos mais à frente, junto das primeiras árvores, tão imóvel quanto ele. O jovem sentiu o seu coração a bater com força e forçou-o a abrandar o ritmo, ao mesmo tempo que tirava o arco e lhe punha uma flecha, cada movimento um ritual, equilibrado e cuidadoso. À sombra daqueles pinheiros, os trilhos ficavam rapidamente sombrios porque por entre os troncos maciços dos mais antigos habitantes da floresta erguiam-se os seus descendentes, altos, esbeltos, procurando também eles a luz. Um homem podia esconder-se por baixo deles. Também se podia esconder nos maciços rochosos, por baixo dos troncos caídos cobertos pela vegetação, por baixo das plantas que cobriam algumas fendas ou numa súbita ravina estreita. Descobrir um homem naqueles bosques era muito difícil; as forças de Talorgen, incluindo Bridei, tinham treinado noite e dia naquele terreno.
Era possível que Gartnait tivesse visto um gamo ou um porco selvagem. Naqueles dias, na expectativa da guerra, os guerreiros andavam tão tensos que se atiravam a uma sombra qualquer, dando depois de caras com as hastes de um veado ou com as presas de um javali.
Bridei ouviu de novo o assobio; uma simples nota, breve e premente. Com ele, um movimento mais abaixo, entre os fetos, e uma cor que não fazia parte dos castanhos, cinzentos e verdes dos bosques; a imagem pálida do rosto de um homem que logo desapareceu por se ter escondido atrás de uma planta qualquer, um arbusto, uma árvore caída, um conjunto de pedras. O guerreiro era ágil. Um momento mais tarde, Bridei viu Gartnait passar a toda a velocidade e desaparecer por trás de um maciço de pinheiros.
Tinham falado sobre aquilo muitas vezes, tinham treinado situações parecidas com os homens mais velhos, especialmente com Donal. Naquele dia, porém, eram apenas os dois e nenhum tinha uma verdadeira experiência de combate. Bridei moveu-se para a direita, para o flanco oposto a Gartnait. Entre os dois, haviam de fazer sair aquele intruso da toca. Evidentemente, enquanto avançava com o arco na mão, movendo-se silenciosamente no solo atapetado de agulhas de pinheiro, Bridei pensava que aquele tipo podia muito bem estar a conduzi-los a uma armadilha. Podia muito bem estar um grupo emboscado mais à frente. Tinha de prosseguir com cuidado, deixar um espaço entre os dois e não anunciar a sua presença senão quando soubesse qual a intenção do inimigo. O objectivo era capturá-lo, não matá-lo. Os espiões tinham informações; tinham que o apanhar vivo.
Bridei e Gartnait sabiam, após vários anos de treino em conjunto, que cada um ultrapassava o outro em determinadas disciplinas. Gartnait não tinha a perícia de Bridei com o arco e este não podia medir-se com o seu amigo de grandes pernas em corrida e também não possuía o instinto natural que o amigo tinha para as actividades que tivessem a ver com a água. As pessoas diziam, a brincar, para aborrecimento de Dreseida, que o filho mais velho de Talorgen descendia da Tribo das Focas. Gartnait não tinha a afinidade de Bridei com os animais, a sua habilidade para conseguir o que queria do seu cavalo, o seu dom com os cães ou os gatos. E ninguém em Fonte do Corvo conseguia caminhar pela floresta tão silenciosamente como Bridei. Um talento, segundo observara Dreseida no seu modo seco, que só se podia dever a uma educação druídica. Era verdade. As primeiras lições de Broichan estavam profundamente alojadas na mente do jovem: viaja sempre pela floresta como se fizesses parte dela, bridei, não como um intruso.
Os seus pés não faziam qualquer som, pelo menos nenhum detectável pelo ouvido humano. O jovem caminhava como um animal da floresta, com prudência e segurança, sentindo cada aresta, cada buraco, cada raiz, folha e pedra como se os seus pés fossem extensões do que estava por baixo deles. Os seus ouvidos estavam sintonizados com o mais pequeno dos sons e os seus olhos atentos ao menor sinal que pudesse trair uma presença estranha, algo que não pertencesse ao ambiente.
Bridei sabia onde estava Gartnait; o som ligeiro de uma bota na carpete de agulhas de pinheiro e a mínima deslocação de ar revelavam a posição do seu amigo. Além do mais, tudo o que estavam a fazer obedecia a um padrão do qual ambos se lembravam, tal como se lembravam das canções da sua infância, quase instintivamente, algures no bater dos seus corações, no pulsar do seu sangue. Os dois jovens desceram o monte um de cada lado até chegarem perto do local onde o inimigo se escondera.
Um terceiro homem ter-lhes-ia dado jeito. Salvo aquela hipótese, era evidente que tinham de esperar porque Bridei se tinha apercebido de que a sua presa estava escondida num buraco existente entre algumas rochas onde uma árvore caída, com os ramos fendidos ainda cheios de agulhas, lhe fornecia uma barreira natural e um excelente esconderijo. Tentar um assalto àquela posição segura seria uma loucura, talvez um suicídio. Um homem sozinho, escondido num sítio daqueles, era capaz de se defender durante algum tempo e provocar bastantes danos. Dois ou mais podiam durar tanto quanto lhes permitisse o seu armamento. Se tinham uma boa provisão de flechas ou de facas de lançar, podiam abater os dois atacantes. Fora uma boa escolha, mas não o suficiente; o inimigo estava, de facto, numa ratoeira, num espaço com apenas uma saída e se Bridei e Gartnait conseguissem ficar de guarda o tempo suficiente, o seu adversário acabaria por mostrar-se. Então, apanhá-lo-iam. Ou a eles. Bridei esperava que não fossem mais de dois. O sucesso naquela empresa era vital. Não se tratava apenas da captura de um espião, um golpe contra os miseráveis celtas, era uma oportunidade, se tivessem sucesso de ser aceites como homens; como guerreiros, merecedores de uma inclusão na elite de Talorgen.
Gartnait estava à vista e fez-lhe sinal de que era da mesma opinião. Os dois jovens instalaram-se com as armas prontas, um de cada lado ligeiramente acima do buraco. Dali não podiam ser vistos. Os únicos sons na floresta eram o gorjear de um regato, o suspiro da brisa nas árvores e o restolhar dos animais.
Era fácil ficar imóvel e em silêncio para Bridei, habituado como estava à disciplina da sua educação. Para Gartnait era mais difícil. À medida que a sua vigília prosseguia e o homem ou homens escondidos não se moviam nem faziam qualquer som, Bridei via o seu amigo a mudar o peso de uma perna para a outra, aliviar a pressão sobre o punho da faca ou a esboçar um bocejo. Porém, o silêncio mantinha-se. Quanto mais tempo aquilo durasse, mais probabilidades havia de que aparecesse mais alguém antes que acontecesse alguma confrontação. Se qualquer dos homens de armas aparecesse, o padrão mudaria. As probabilidades de serem feridos ou mortos diminuiriam. Por outro lado, perderiam a hipótese de fazer aquilo sozinhos, provando assim, finalmente, o seu valor. Bridei sentia-se perturbado pelos seus pensamentos porque sabia que não eram dignos de um guerreiro experimentado, para quem a estratégia era mais importante do que as ambições pessoais. Que ninguém apareça até acabarmos.
O inimigo foi o primeiro a quebrar o silêncio: ouviu-se uma palavra em surdina, indistinta, com um sotaque áspero, que fez Bridei suspender a respiração. O tipo falava na língua de Dalriada. O seu primeiro adversário decidira dar o primeiro passo.
Gartnait com a faca em riste, olhou para Bridei com as sobrancelhas erguidas. Agora? Bridei abanou a cabeça: Ainda não. Então, com as mãos, fez uma série de sinais que o jovem esperava que Gartnait compreendesse. Mão em cutelo na garganta e a negativa: não. Apontando para Gartnait, para si próprio e depois indicando onde saltar sobre a presa. Punhos juntos, como se estivessem atados: Agarrá-los, atá-los. Não havia tempo para mais, mas Gartnait, com as sardas a sobressaírem numa súbita palidez, mostrou com um ligeiro aceno que tinha compreendido.
A distância era muito curta para poder utilizar o arco. Seria um combate corpo-a-corpo com as facas. A boca de Bridei secou; a sua respiração tornou-se difícil de controlar. E se o inimigo não se deixasse apanhar com facilidade? Tinham que evitar uma luta prolongada porque tinham que minimizar os danos no inimigo, de modo a que ele pudesse dar as informações que tinha: com sorte, as posições de Gabhran, o seu armamento, as suas forças, os seus planos. Um espião era como um tesouro e um tesouro devia ser manuseado com cuidado, mesmo por um jovem que nunca lutara contra um verdadeiro inimigo. O coração de Bridei batia com toda a força; o sangue corria-lhe nas veias a toda a velocidade. Todo o seu corpo estava tenso. O jovem usava as técnicas que Broichan lhe ensinara, abrandando a respiração e acalmando os pensamentos. Chegado o momento, teria de estar na posse de todas as suas capacidades, ou arriscar-se-ia a regressar para junto de Talorgen, de Donal e das restantes pessoas de Fonte do Corvo com a história de uma oportunidade perdida. Quem estaria disposto, então, a levá-los numa expedição maior, com mais responsabilidade?
Ouviu-se uma ligeira tosse vinda do esconderijo, um som quase tão subtil como os seus sinais; um instante mais tarde emergiram dois homens, que desataram a correr através do terreno difícil. Gartnait partiu em sua perseguição. Bridei embainhou a faca, pegou no arco, colocou uma flecha na corda e disparou no espaço de tempo que demora um fôlego. O jovem já se notabilizara naquilo. A primeira flecha apanhou um dos homens no ombro, fazendo-o cambalear antes de desaparecer entre os pinheiros; a segunda apanhou o outro na perna. Em seguida, Bridei desatou também a correr. Gartnait conseguira apanhar um dos adversários e lutava com ele no chão. O jovem praguejava enquanto tentava tirar as armas ao homem e o seu oponente parecia devolver os insultos na sua própria língua. Bridei parou. A sua presa, o homem com a flecha no ombro, desaparecera como que por magia. Bridei apontara com precisão; o tipo devia estar enfraquecido e com dores. Porém, ainda devia estar capaz de usar uma faca e demora apenas um momento sair de um esconderijo e rasgar a garganta de um homem. Bridei susteve a respiração, tentando ouvir qualquer som para além das pragas furiosas do prisioneiro de Gartnait e dos epítetos do próprio Gartnait, que tentava a todo o custo atar os pulsos do tipo. O jovem afastou aquela algaraviada utilizando uma das técnicas de Broichan, sintonizando os ouvidos para um único som, uma respiração, um suspiro de agonia. Bridei usou o nariz como um animal predador, tentando apanhar o cheiro do medo. Lá estava ele, o inimigo, não muito longe por baixo dos fetos, acocorado, à espera. À espera que Bridei se aproximasse mais um pouco... à espera de poder atacar...
Um passo em frente, decisivo e corajoso, com o arco pronto, a flecha perfeitamente alinhada.
Levanta-te! - gritou Bridei. - Com as mãos acima da cabeça!
Sai para onde te possa ver, ou trespasso-te o coração!
Silêncio.
Não duvides da minha pontaria - disse Bridei, sentindo que o seu tom era autoritário. - Queres experimentar? - Quando não obteve resposta, o jovem largou a flecha, rezando para que ela acertasse onde ele queria; provavelmente, não havia mais de dois palmos entre ele e o ferido a julgar pelo som da respiração.
Bridei ouviu a flecha a alojar-se na madeira - chack!- e sentiu-se aliviado por ter calculado bem e não ter morto o homem. Um momento mais tarde, o seu inimigo pôs-se de pé com uma mão na cabeça e com o outro braço ao longo do corpo, inútil. O sangue saía-lhe do ombro da túnica e escorria-lhe pela camisa abaixo. O seu rosto estava branco como a cal, os seus dentes estavam cerrados de dor e os seus olhos mediam friamente o jovem.
- Sai daí! - ordenou Bridei, fazendo ao mesmo tempo um gesto de cabeça visto que era pouco provável que o prisioneiro compreendesse a língua dos Priteni. O celta obedeceu, afastando-se três passos de Bridei e ficando à sombra dos pinheiros. O homem fixou o seu captor e, com precisão, cuspiu-lhe no rosto.
Bridei respirou profundamente. O jovem não levantou a mão para tirar a saliva das faces.
- Vira-te - ordenou ele.
O outro ergueu as sobrancelhas como que a indicar incompreensão. A sua expressão tornara-se branda, tranquila. Na verdade, dava a impressão que o homem achava aquilo tudo um pouco ridículo. O tipo era jovem, pensou Bridei, talvez não fosse mais velho do que ele, se bem que os seus olhos parecessem os de um homem mais velho.
- Vira-te! - ordenou Bridei em tom cortante, fazendo um gesto com a faca e tirando a corda que trazia no pequeno saco.
O inimigo virou-lhe as costas. Um momento mais tarde, quando Bridei lhe tentava atar os pulsos, o pé do homem ergueu-se e embateu com força na canela do jovem, ao mesmo tempo que o braço bom lhe assentava pesadamente nas costelas. Desequilibrado e sem fôlego, Bridei fez a única coisa que podia: agarrou o outro pelo braço ferido, fez com que o seu próprio peso arrastasse o seu oponente para o chão e depois, após uma dolorosa luta no solo, imobilizou-o de costas e encostou-lhe a faca ao pescoço.
- Faz isso outra vez e parto-te o outro braço - disse Bridei, arquejando. - Gartnait! - Apesar da desvantagem do ferimento, o celta estava pronto para outro truque e outro ainda, o homem não estava disposto a desistir. Bridei podia ver a determinação nos seus olhos: não tinham o menor sinal de medo.
- Ata-lhe as mãos! - disse ele quando Gartnait apareceu com o seu oponente aparentemente amarrado e complacente porque já não se ouviam quaisquer gritos.
Gartnait fez o que Bridei lhe pedira. O prisioneiro torceu-se, tentando libertar-se.
- Pára com isso, miserável! - gritou Gartnait, dando-lhe um soco no ouvido e apertando a corda com tanta força que esta entrou na carne dos pulsos. Bridei encolheu-se, imaginando a dor no ombro ferido. O rosto do homem nem sequer se mexeu.
- O outro tipo consegue andar? - perguntou Bridei ao amigo. É melhor pormo-nos a andar. Pode haver mais por aí.
- Pus uma mordaça no meu. É melhor fazeres o mesmo ao teu.
- Tu já fizeste barulho que chegue para atrair eventuais reforços - observou secamente Bridei. - Vai buscar o teu homem; eu trato deste. E obrigado.
Gartnait sorriu.
- Não tens de quê. Hás-de ter oportunidade de me devolver o favor.
Gartnait tinha um pouco de sangue numa das faces - não era seu - e um olhar que Bridei nunca vira antes. O jovem não o conseguia decifrar, mas sentiu um arrepio. Sem desviar o olhar, sentiu o olhar do seu prisioneiro. Bridei atou a outra ponta da corda na própria mão, prendendo o tipo a si como um cão. O jovem encostou a faca às costas do celta.
- Toca a andar - ordenou ele, iniciando a marcha de regresso a Fonte do Corvo.
Na sua peugada, Gartnait conduzia o seu prisioneiro de forma desastrada porque o ferimento na perna significava que este não podia andar sem ajuda. Bridei abrandou o passo para não se afastar demasiado e parecer querer reclamar unicamente para si o crédito da missão. Tinham feito um bom trabalho; Talorgen teria de reconhecê-lo. Donal também ficaria impressionado, à sua maneira. Por que razão, então, Bridei se sentia pouco à vontade, com os nervos em franja, com a mente fixa em algo que não estava certo? Teriam ficado mais inimigos escondidos, prontos a atacar? Certamente que não; o momento ideal para uma emboscada tinha passado. Tentariam os dois prisioneiros escapar novamente, dessa vez com sucesso? Dificilmente; o prisioneiro de Gartnait estava diminuído, as suas feições estavam pálidas, a sua perna estava de momento inutilizada; aquele só voltaria a correr dali a muito tempo. O prisioneiro de Bridei deixara de lutar, se bem que o seu olhar não fosse o de um homem derrotado. Aquele tipo não tinha cabelo ruivo e as feições largas e pálidas comuns a todos os homens de Dalriada. O jovem guerreiro tinha rosto longo, cabelos escuros e era musculoso. Podia ser um guerreiro de Fortriu se tivesse o rosto tatuado. Todos os homens de armas de Priteni ostentavam as suas cicatrizes de batalha com orgulho, juntamente com os seus sinais de origem, os animais e os símbolos do seu parentesco. Após a campanha da Primavera, Bridei e Gartnait teriam também merecido as primeiras decorações guerreiras. A pele daquele homem não tinha quaisquer padrões e era aquele facto, mais do que qualquer outro, que o tornava um estranho naquele local.
Apesar do ferimento, que continuava a sangrar, o prisioneiro caminhava normalmente, com os olhos fixos na sua frente e as costas direitas. Bridei não conseguia afastar o sentimento de que ele próprio estava a ser espiado. Quando se crescia com um druida como tutor, aprendia-se a observar os homens com subtileza, a interpretar a respiração, a menor mudança no olhar. Acima de tudo, os olhos do homem é que eram desconcertantes, pareciam os olhos dos assassinos do Espelho Negro, o exército que varrera o Vale dos Que Caíram e que levara tudo na sua frente. Aqueles olhos eram desprovidos de piedade e esperança; viam apenas a missão que tinham pela frente e o desejo de a levar a cabo. Seria difícil derrotar um exército com aquele olhar e seria, pensou Bridei com um arrepio, quase impossível de comandar. Homens daqueles lutavam sem a consciência da sua própria mortalidade. Mataria sem a consciência da humanidade do inimigo. Na verdade, um inimigo terrível.
Quando atingiram a muralha em redor dos pátios interiores de Fonte do Corvo, o prisioneiro de Gartnait apoiava-se pesadamente no ombro do seu captor e parecia quase inconsciente. O outro caminhava tão direito como um rei, com um sorriso retorcido. Talorgen e Donal não demoraram a aparecer. O conselho fora interrompido com a notícia daquela captura.
Era o que Bridei queria. Os homens reunidos em redor felicitando-os e enquanto os prisioneiros eram levados, vários dos homens comentaram que talvez fosse possível arrancar-lhes informações-chave Os olhos de Talorgen mostravam um respeito surpreendido e os de Donal um orgulho reprimido. No entanto, durante o resto do dia e da noite, a mesma incerteza continuava a perturbar Bridei. O jovem não conseguia identificar a sua causa. Era uma maldição, por vezes, ter sido educado por um homem como Broichan. Gartnait fora ensinado a lutar, a conduzir-se devidamente na companhia de outros homens e mulheres, a montar, estava a aprender a dirigir o domínio do seu pai. Bridei, pelo contrário, aprendera outras coisas mais subtis: como olhar e ouvir, estar preparado para uma eventual surpresa, como interpretar a disposição de um homem e, por vezes, os seus pensamentos a partir de um simples gesto, um pestanejar infinitesimal dos seus olhos. Bridei aprendera a interpretar tudo o que via, o bom, o mau, o triunfante e o humilhante. Naquele dia, o brilho dos olhos de Gartnait mostraram-lhe a sua alegria e o sucesso de ambos; as suas faces coradas disseram-lhe que o jovem ansiava pela aprovação do pai. Bridei recebeu as felicitações de Talorgen tal como o amigo, com uma inclinação de cabeça cortês e o comentário de que, sem a ajuda de Gartnait, teria perdido o seu homem. Porém, o que Bridei viu e que Gartnait não viu foi a ligeira hesitação na voz de Talorgen, a ligeira torcidela do lábio, como se o que tivessem feito, por mais corajoso e engenhoso, não fosse o que parecia. Mais tarde, Bridei reparou que Cenal, uma miserável sombra de homem cujo trabalho era supervisionar o interrogatório dos prisioneiros, desaparecera durante um tempo considerável depois da sua chegada e que ao mesmo tempo que se ouviam certos sons, sugerindo que os procedimentos habituais estavam a ser utilizados, só se ouvia uma voz a gritar para lá do pátio dos cavalos e teve a certeza que não era a voz do seu prisioneiro.
Aquilo tinha uma explicação, evidentemente. Havia uma certa vantagem em separar os prisioneiros, fazendo-os jogar um contra o outro. Porém, o pouco à-vontade de Bridei não se esvaiu à medida que o dia ia avançando e os sons vindos da cabana eram substituídos por soluços, grunhidos e, finalmente, pelo silêncio. Que podia fazer? Não era possível ir ter com um homem poderoso como Talorgen e pedir-lhe explicações, especialmente quando as suas dúvidas se baseavam num pressentimento vago.
À hora do jantar, Talorgen mencionou que os prisioneiros tinham morrido durante o interrogatório e que tinham conseguido arrancar-lhes alguns factos úteis. As suas mortes tinham sido, de algum modo, prematuras; pelo que Cenal lhe dissera, os ferimentos infligidos pelas flechas de Bridei e subsequente perda de sangue tinham-nos enfraquecido, reduzindo assim a sua resistência à pressão.
Espero que não tenhas tido mão pesada demais? - perguntou
Talorgen ao seu interrogador sentado na mesa ao lado.
- Não, meu senhor. Eu sou um profissional. - Nas feições simples de Cenal apareceu um olhar ferido. Bridei pousou a sua faca, perdendo abruptamente o apetite pelo tenro pedaço de carne. O jovem não fez qualquer comentário; não teria ficado bem. Talvez não devesse ter ferido os prisioneiros daquela maneira. Porém, naquele momento desejou tê-los morto. Toda a gente sabia que qualquer celta, suficientemente louco para se deixar apanhar nas terras de Talorgen, era objecto de tortura; supostamente, os chefes tribais de Gabhran faziam o mesmo aos espiões dos Priteni. No entanto, era diferente quando um guerreiro apanhava outro, lutava com ele, o prendia a uma corda, lhe olhava para os olhos e via o sangue a correr do seu ferimento. Era diferente quando esse mesmo guerreiro entregava o prisioneiro para ser torturado até à morte. Bridei recordou as feições do celta, tão implacáveis como uma estátua de pedra. Não só o homem de cabelos pretos não tinha revelado quaisquer segredos, como morrera sem emitir um único som. Bridei tinha a certeza, o que significava que quando Talorgen dissera que ambos os prisioneiros tinham revelado informações úteis, estava a mentir.
Só havia uma pessoa com quem Bridei podia falar sobre aquele assunto, que era Donal. O jovem tinha de esperar por uma oportunidade; o jantar era uma refeição que se prolongava, a família sentada na mesa superior e o pessoal da casa enchendo as outras, enormes, no grande salão, enquanto os homens de armas aquartelados em Fonte do Corvo, preparando-se para a campanha da Primavera seguinte, ocupavam os bancos ao longo das paredes. Os cães rosnavam, os archotes fumegavam e a cerveja corria.
Como mentor e guarda-costas de Bridei, Donal sentava-se à mesa da família. Bridei tentou encontrar o seu olhar para lhe assinalar que queria falar com ele mais tarde, mas Donal estava a debater estratégia com Talorgen e foi lady Dreseida que pareceu desejar falar com Bridei. Com os cabelos negros perfeitamente atados na nuca e ornamentados com uma fiada de pérolas e os dedos cheios de anéis descansando com alguma elegância em cima da mesa, a dama debruçou-se para a frente, fixando-o com um olhar interrogativo. As suas perguntas eram sempre imprevisíveis, deixando-o sempre pouco à vontade; o jovem aprendera que, fossem quais fossem as respostas, ela achava-as sempre insatisfatórias.
- Com que então, Bridei, tornaste-te num herói. Imagino que Broichan ficaria muito orgulhoso de ti.
Bridei abriu a boca para responder, mas a irmã de Gartnait, Ferada, foi mais rápida do que ele.
- Broichan é um druida, mãe. - A sua voz era trocista, muito parecida com a de Dreseida, tal como o seu porte, a maneira como erguia a cabeça, como uma rainha, e a sua aparência imaculada, com cada cabelo no seu lugar e sem uma única ruga no vestido. Ferada era mais nova do que Gartnait. Apesar disso, um homem não podia olhar para ela sem ver a mulher formidável que ela seria um dia. - Os druidas não querem saber de feitos de armas nem de actos de coragem. Se Broichan estivesse aqui, teria perguntado a Bridei se ele tinha aprendido alguma coisa ao perfurar dois homens com as suas flechas, trazendo-os depois para sofrerem a tortura às mãos dos rufiões do pai. Não é verdade, Bridei?
Seguiu-se uma pausa silenciosa, durante a qual Ferada se apercebeu de que as conversas e os risos à sua volta tinham morrido enquanto falava, de modo que as suas últimas palavras foram ouvidas por todos os que se sentavam na mesa superior, incluindo o seu pai. As suas faces coraram.
- O que Ferada diz é verdade - disse Bridei rapidamente, sentindo o incómodo silêncio. - O meu pai adoptivo teria ficado mais interessado na lição a tirar da experiência, não na própria ocorrência. Apesar disso, os druidas preocupam-se com feitos de armas; ainda não há muitos anos, Broichan combateu ao lado do rei Drust contra as forças de Dalriada. Faz parte do papel do druida de um rei aconselhá-lo nas coisas da guerra: lançar presságios, fazer predições, determinar a melhor ocasião para avançar ou retirar, ajudar o rei nas suas decisões e conjurar a boa vontade dos deuses.
- Ferada pode ter dito a verdade - observou Talorgen, franzindo o sobrolho na direcção da sua filha - mas lamento que não consiga controlar a língua.
Os lábios de Ferada cerraram-se e a jovem pestanejou.
- Mesmo assim - acrescentou a sua mãe - a tua filha merece uma resposta, por mais deselegante que a pergunta tenha sido. preseida virou os olhos perspicazes para Bridei, ao mesmo tempo que arqueava as sobrancelhas.
- Que pergunta? - disse Gartnait, perplexo. - Ela não fez pergunta nenhuma.
Talorgen estava a olhar para Bridei, tal como Donal.
- É verdade - disse Bridei, muito calmo - mas a pergunta estava lá, subjacente. A pergunta de Broichan teria sido: que lição se pode tirar do que aconteceu hoje?
- E? - acrescentou prontamente Gartnait. Era evidente que o jovem não tencionava dar resposta nenhuma.
- A resposta não é fácil. - Bridei sentiu um desejo profundo de estar em casa, em Pitnochie, onde o dia tinha muitos momentos de silêncio para a mente poder contemplar perguntas como aquela, onde havia espaço para ouvir as vozes dos deuses, onde as pessoas se sentavam em silêncio e o deixavam raciocinar à vontade. O jovem precisava de Broichan; tinha saudades de Wid e de Erip; tinha saudades de Tuala e da sua profunda imobilidade. - Gostaria de não me pronunciar sobre este assunto. Não tenho a sabedoria do meu pai adoptivo. Este foi o nosso primeiro encontro com o inimigo.
- Que correu muito bem - disse Talorgen.
- E muito corajoso - acrescentou Donal, mas havia uma pergunta no seu tom de voz.
Bridei sabia que devia dizer mais qualquer coisa, se bem que preferisse guardar os pensamentos para si próprio. Pelo menos por causa de Gartnait tinha de continuar a fingir que tinha sido um triunfo irrefutável. Maldita Ferada; era intrometida e demasiado inteligente, o que não era bom para o seu futuro.
- Fiquei surpreendido por o inimigo ter um rosto humano disse ele calmamente. - Fiquei perturbado porque tudo no passado do nosso povo nos leva a hostilizar os celtas até ao dia em que consigamos expulsá-los das nossas costas. Ainda tenho de aprender a sentir desse modo. Com tempo, conseguirei. No campo de batalha não se pode ter tais escrúpulos. Hoje vi a coragem. Cenal dir-nos-á, suponho, que essa mesma coragem foi evidente até ao fim.
Felizmente, Talorgen não pareceu achar impróprio o discurso de Bridei.
- Talvez - disse o chefe tribal -, mas não agora, com as mulheres e as crianças presentes. A guerra é um assunto brutal. Vós ainda sois jovens; isto foi apenas um aperitivo do que está para vir. Acredita no que te digo, todos nós começámos com essas sensibilidades, mas acabámos depressa com elas. Se não o fizéssemos, não estaríamos aqui. Falemos de outros assuntos. As coisas vão mudar; a campanha da próxima Primavera será significativa. Assim que começarem as hostilidades, Fonte do Corvo deixará de ser um sítio seguro. Dreseida irá com a família para a corte de Drust. - Talorgen olhou para Ferada, que tinha recuperado a compostura e que olhava para ele com um olhar de desafio. - Lá, aprenderás a dominar-te, filha - disse o chefe tribal com alguma suavidade. Toda a gente sabia que ele gostava que os seus filhos expressassem as suas opiniões, mesmo que o resultado, ocasionalmente, fosse embaraçoso. Na verdade, o chefe da família fora ouvido a comentar que se Gartnait se interessasse tanto pelos negócios de Fortriu como a irmã, poderia vir a ser mais do que um simples guerreiro.
- Ficarás alojada em casa das mulheres sábias, em Banmerren continuou Talorgen - onde poderás tirar proveito do excelente ensino que elas providenciam às raparigas de nascimento nobre. A minha mulher ficará na corte com as suas parentes; os rapazes também. Talorgen não podia ter deixado de sentir o silêncio tenso de Gartnait e de Bridei; os seus lugares ainda estavam por definir. E se os dois jovens estivessem incluídos naquela palavra "rapazes"?
Donal tossicou.
- Broíchan deu-me autorização para te incorporar na campanha contra os celtas, Bridei - disse ele. - Ele não fica feliz com a situação, mas sabe que chegou a hora; na verdade, já não era sem tempo. De facto, ele contribuiu com uma pequena força, por isso vamos ver velhos amigos, Uven e Cinioch entre eles. Suponho que Talorgen vai deixar que Gartnait cavalgue a teu lado; provastes o vosso valor como equipa, hoje.
Talorgen sorriu.
- Serão os dois muito úteis. Ficais avisados: a coisa não vai ser como a captura que fizestes hoje, um combate corpo-a-corpo equilibrado. A guerra é uma coisa suja, cruel e perigosa. Um homem bem formado não deixa de se sentir enojado com ela. Porém, é necessária, pelo menos enquanto a escumalha dos celtas andar neste mundo. Eles poluíram as nossas costas e devastaram as nossas terras. Já chega. A maré vai mudar na Primavera, há uma nova esperança para os Priteni e para o rei. Se conseguirmos reconquistar Galany's Reach, a esperança será restaurada. Depois, outras se seguirão e vós fareis parte delas.
- Se continuas a sorrir assim, Gartnait - observou Ferada - ainda ficas sem queixo.
Gartnait virou-se para ela sempre a sorrir, incapaz de esconder a sua satisfação. Quanto a Bridei, os seus sentimentos eram mais confusos do que esperava. Ser aceite, finalmente, como homem e guerreiro, era bom, aquecia-lhe o coração. Porém, depois daquele dia, o jovem não sabia se seria capaz de compreender totalmente o seu significado. As imagens do Espelho Negro não lhe saíam do pensamento, plenas de dor e confusão, plenas de coragem terrível, como a daquele jovem cuja morte ele provocara. No entanto, aquele homem era um espião, o inimigo, igual aos guerreiros de olhos inexpressivos que tinham matado indiscriminadamente, em tempos. Como era possível combater com tais dúvidas?
- Não é justo - disse o irmão mais novo de Gartnait, Uric, um rapazinho explosivo de sete anos de idade, batendo com o punho na mesa com tal violência que os pratos e as facas saltaram. - Assim, nunca havemos de ter idade suficiente para ir para a guerra! Ir para a corte? Para o pé de um bando de velhos a murmurar pelos cantos, mais nada, e de gente sempre a dizer-nos para estarmos calados?
O olhar de Talorgen virou-se para contemplar o seu filho mais novo. Este, ao olhar para o pai, calou-se.
- É verdade - acrescentou Bedo, um ano mais velho e ligeiramente mais sério. - Em Caer Pridne temos de nos portar sempre bem. Preferíamos ficar aqui, onde está a acção, pai. Podíamos ajudar. Podemos fazer muitas coisas. Se Gartnait pode ficar, por que é que nós não podemos?
- Havias de ser de grande utilidade - disse Gartnait em voz baixa, ao mesmo tempo que dava uma cotovelada nas costelas do irmão.
- Tu não fazes ideia do que se trata, Bedo. - O tom de voz de Ferada regressara à sua habitual superioridade tranquila. - Gartnait e Bridei são homens. Tu ainda és uma criança. Gartnait e Bridei podem estar mortos quando a Primavera chegar ao fim. Já pensaste nisso? Dá-te por feliz por ainda seres novo. Há-de chegar a tua vez. E se achas que é injusto, experimenta ser uma rapariga.
- Não falemos mais de injustiças - disse a mãe de ambos pondo-se de pé. - Farás como o teu pai manda, mais nada. E agora são horas de ir para a cama. Ferada, tenho umas coisas para tu fazeres. deixemos os homens com as suas conversas sobre guerra.
Mais tarde, Bridei encontrou Donal sozinho junto do muro norte a olhar para a encosta escura do monte e para a linha difusa e pálida do Lago da Donzela. Era evidente que Donal estava à sua espera; depois de tanto tempo como tutor e estudante, e depois como amigos, compreendiam-se os dois na perfeição. Durante uns momentos, os dois homens permaneceram em silêncio, escutando os pequenos sons da noite.
- Sobre o que aconteceu hoje - aventurou-se Bridei.
- Hum?
- Talvez eu esteja a imaginar coisas. Não podia dizer nada em frente de Talorgen, seria uma tolice. À primeira vista foi uma boa captura, conseguimos dois prisioneiros úteis. Porém, há algo que não joga.
- Ah sim?
- Sobre o homem que Gartnait capturou, não sei, mas o meu não era dos que cedem facilmente à tortura. O tipo podia estar a sangrar, mas não era o suficiente para o matar. Eu apontei com cuidado; aponto sempre. Por isso, porque procederam eles assim? Era mesmo necessário?
- Diz-me tu - disse Donal.
- Tenho pensado muito no assunto - disse Bridei. O jovem manteve a voz baixa; havia gente a passar. - Sinto que aquele homem podia ter sido de alguma utilidade. Provavelmente, não falaria, mas devia ter algum valor, nem que fosse como refém. Teria sido preferível curá-lo e mantê-lo sob custódia. O que Cenal fez foi...
- Desumano? As coisas são o que são, Bridei. Não existe lugar para escrúpulos quando os espiões aparecem à porta de um homem. Aquela gente não se preocupa com boas acções quando apanha um dos nossos. Os métodos deles meter-te-iam nojo.
- Foi cruel - disse Bridei, não se deixando desencorajar. Cruel e, desconfio, sem qualquer sucesso, por mais que Talorgen diga. Por que um tal caminho? Talorgen não é estúpido nem cruel. Há aqui algo que ele não nos diz.
Donal acenou com a cabeça.
- Talvez. No entanto, a não ser que lhe perguntes, desconfio que nunca saberás o que é.
Não achas - disse Bridei, dando voz aos seus mais profundos receios - que isto pode ter sido tudo montado?
Que queres dizer com isso, montado?
Quero dizer, a fingir, para que Gartnait e eu pudéssemos passar no exame sem ficarmos mesmo em perigo. Uma emboscada falsa, os dois homens a agirem como se pertencessem ao inimigo, o facto de estarem sozinhos. Aborrece-me que Broichan ande sempre tão preocupado com a minha segurança. Quando eu era criança, tudo bem, parecia que havia alguém que queria atingi-lo atingindo-me a mim, mas agora sou um homem. Não te sentes frustrado por teres que estar sempre junto de mim, tu ou outro guarda qualquer, por teres que dormir no outro lado da porta do meu quarto, por seres meu guarda-costas em vez de meu amigo? A mim, parece-me que, apesar de Talorgen dizer que sou um homem, a protecção que o meu pai adoptivo instalou diz-me que ainda sou uma criança para ele, que tenho de ser protegido do perigo. Talvez o triunfo de hoje tenha sido o triunfo de uma criança, engendrado pelos mais velhos.
- Eu sou teu amigo, Bridei - disse Donal com voz calma.
- Eu sei; melhor não poderia arranjar. Porém, algum dia terei de andar pelo meu pé.
- Vou-te dizer uma coisa - disse Donal. - O corpo que vi sair da cabana de Cenal, esta tarde, não era falso.
O frio apertou novamente o coração de Bridei, como se tivesse acabado de ver um fantasma.
- Corpo? Que homem era?
- Um tipo com uma ligadura na perna. Não sei nada do outro; não fiquei por ali à espera que fossem buscar o outro. Os tipos são escumalha, Bridei. Não merecem que os pises, sequer. Não devias perder o teu tempo com eles.
Bridei ficou silencioso.
- Quanto aos rapazes e aos homens - disse Donal, colocando uma mão no ombro de Bridei - tu vais desempenhar o teu papel na campanha como guerreiro entre guerreiros; uma coisa que tens de enfrentar, tu e Gartnait. Porém, Broichan faz bem em te proteger. Talvez ele tenha as suas razões. Suponho que tens o direito de lhas pedir, depois de a campanha terminar. Acho que chegou a hora de ele te dizer mais qualquer coisa. Quanto a mim, faço o que me mandam. Eu sei que achas que não precisas de vigilância, mas precisas. No fim de contas, és filho de um rei.
- Estamos muito longe de Gwynedd - disse Bridei.
- Mesmo assim. Quando a Primavera acabar, talvez as coisas mudem. Até lá, tens de me aturar.
Bridei olhou de soslaio para o guerreiro tatuado; a expressão de Donal era ilegível à luz difusa.
- Não tenho queixas a fazer - disse o jovem calmamente. Sem ti junto de mim não teria aguentado isto. Para mim, tu és um pouco de Pitnochie, ajudas a fazer com que as coisas tenham sentido mas quando for para entrar em combate, quero estar ao mesmo nível dos outros homens, quero ter as mesmas hipóteses e correr os mesmos riscos. Não quero que te concentres na minha protecção, quero que te concentres no inimigo. Não sei que instruções Broichan te deu, mas espero que respeites a minha vontade.
- Não me digas. - Não era possível saber o que Donal queria dizer com aquilo.
- Hoje morreu um homem por causa do que eu fiz.
- E mais morrerão quando partires para a guerra, dos teus e do inimigo. Vais sentir a tua faca a entrar no coração de um homem. Vais ver a expressão nos seus olhos enquanto o trespassas com a tua lança, ao mesmo tempo que ouves o tipo a chamar pela mãe. A primeira vez custa mais, mas nunca é fácil; nunca te habituas. Tens de te lembrar do que eles fizeram, os miseráveis. Tens de ter sempre presente na tua mente o mal que eles infligiram na nossa terra, as violações das nossas mulheres, o incêndio das nossas aldeias, a destruição dos nossos lugares sagrados. Mantém esses pensamentos vivos e a tua mão não hesitará, em nome da liberdade.
- E hoje?
- Atira isso para trás das costas. Pergunta a ti próprio se terias tantas dúvidas se tivesses visto Gartnait esta manhã com a garganta cortada. Tu fizeste o que devias. Fizeste o que um homem deve fazer e isso é que interessa.
Algo que Ferada dissera perturbava os pensamentos de Bridei, distraindo-o da preparação para a guerra. Na Primavera, Gartnait e Bridei podem estar mortos. O jovem sabia, claro. Com ou sem protecção, o jovem sabia que podia morrer trespassado pela lança de um celta, ou por uma flecha certeira. Porém, não era a perspectiva da morte que o perturbava. O que o perturbava era a possibilidade de morrer sem saber a verdade, ou se o futuro para que Broichan o tinha preparado com tanta assiduidade era aquele de que suspeitava cada vez mais. Bridei não queria esperar, como Donal sugerira, pela Primavera para perguntar a Broichan. Podia ser demasiado tarde na Primavera.
Era embaraçoso. Não podia fazer a pergunta a Talorgen, como amigo de Broichan, sem primeiro aflorar o assunto com o seu pai adoptivo. Dreseida era capaz de o informar, mas o jovem sentia relutância em lhe perguntar. Os seus modos deixavam Bridei pouco à vontade, agia como inimiga sem razão aparente. A dama responder-lhe-ia, se lhe perguntasse, mas não sem uma série de outras perguntas cujo objectivo estava para além da sua compreensão.
Havia outra via e o jovem aproveitou-a chegada a ocasião. Uma manhã, antes de o dia de trabalho começar, Bridei dirigiu-se à horta em busca de um pouco de solidão. O local era tranquilo, cheio de odores de ervas, com um pequeno tanque ao centro e com sebes a dividir os canteiros das diversas plantas. Não havia muitos locais em Fonte do Corvo onde ele pudesse estar sozinho durante alguns momentos; a meditação era praticamente impossível. Até naquele pequeno santuário corria o risco de ser interrompido por Uric ou Bedo correndo atrás de um cão, ou alguém com uma faca e um cesto em busca de salsa para uma empada.
Bridei sentou-se num banco de pedra por uns momentos, tentando pôr os pensamentos em ordem. A captura: o celta, o olhar tranquilo e o ar de superioridade; a batalha que se avizinhava. Broichan e os seus planos. Bridei pensou na sua família em Gwynedd, tão longe, a família que esquecera por completo. Durante algum tempo, achara que Broichan o educaria e que depois o mandaria de volta para Gwynedd, para viver a sua vida entre o seu povo. Era por aquela razão que a maioria das famílias nobres mandava os seus filhos para longe: para alargarem os seus horizontes, para que pudessem contribuir mais tarde como conselheiros, como sábios ou como guerreiros. Como filhos de reis. Bridei desconfiava que os seus irmãos já deviam ser guerreiros experimentados, cavalgando orgulhosamente ao lado do pai. Ocorreu-lhe que talvez tivesse outros irmãos mais novos, dos quais não sabia nada. Uma irmã, talvez. Era estranho ter pensado naquilo porque nunca poderia gostar tanto de uma irmã como de Tuala. Bridei sorriu. A sua coisinha selvagem já tinha quase treze anos e não conseguia pensar nela sem se lembrar da primeira noite: a luz do luar, a neve, os seus pés gelados e o momento em que vira o presente notável da Que Brilha; o melhor momento da sua vida. Nunca deixaria de se sentir grato por ele. Quanto à sua própria família, parecia cada vez mais distante à medida que os anos passavam. No entanto, gostaria de os poder ver de vez em quando, especialmente o seu pai. Quando a batalha terminasse, talvez Broichan o deixasse viajar. Talvez. A não ser que tivesse razão quanto aos verdadeiros planos do druida.
- Bom dia - disse Ferada, aproximando-se com um pequeno livro numa mão e segurando com a outra na saia, evitando assim a erva molhada. O seu vestido, do mesmo tom avermelhado do seu cabelo atado na nuca com um nó complicado, estava perfeitamente engomado. Apenas se via um caracol fora do sítio, numa das têmporas, acentuando a palidez da sua pele. Bridei levantou-se.
- Não te levantes - disse Ferada, sentando-se a seu lado. Também andava à procura da mesma coisa. Paz e tranquilidade. Uric cometeu um crime terrível, perdeu uma das pedras da sorte de Bedo e a casa ficou transformada num campo de batalha. Apeteceu-me afastar de toda a gente, especialmente da minha mãe.
Bridei sorriu.
- Compreendo perfeitamente o que queres dizer.
Ferada abriu o livro, mas o seu olhar não se dirigiu para as páginas de pergaminho, manuscritas na perfeição. A jovem olhou para os canteiros ordenados iluminados pelos primeiros raios dourados do sol da manhã, os que tinham plantas e os que estavam nus. Nestes, um bando de pássaros procurava saborosas minhocas.
- Por vezes, penso - disse ela - se será o sangue real que a faz ser assim. Parece que nunca nada está bem. Nunca estamos à altura do que ela quer de nós. Desculpa - acrescentou apressadamente Ferada.
- Não devia falar assim contigo, Bridei, não é justo. Tu não tens nada a ver com as nossas dificuldades; nós é que temos de resolver os nossos problemas.
- Eu estou sempre disposto a ouvir - disse Bridei. - Não faço juízos antecipados, não estou em posição de o fazer já que cresci longe da minha própria família.
- Obrigada. - Era evidente que Ferada não queria continuar a falar naquele assunto.
- Posso fazer-te uma pergunta?
- Claro, Bridei.
- Gostaria que me dissesses exactamente qual é o parentesco entre a tua mãe e a minha e entre a minha mãe e o rei Drust.
Ferada olhou para ele.
- Esses anos todos de educação e não sabes?
Bridei sentiu corar as faces. O jovem sabia que Ferada era honesta, mas o tacto não fazia parte das suas qualidades.
- Sinto que me esconderam deliberadamente muita coisa. Porém, quero saber, penso que é importante descobrir antes de partir para oeste.
- Hum - observou Ferada, olhando para ele de perto. - Portanto, queres saber se poderias ter sido rei quando estiveres a morrer no campo de batalha às mãos de um celta qualquer?
Seguiu-se um breve silêncio.
- Qualquer coisa como isso - disse Bridei.
- É muito simples - disse Ferada. - A minha mãe e a mãe do rei Drust são irmãs, o que quer dizer que o meu sangue e o dos meus irmãos é real pela linha feminina. Por mais horrenda que a perspectiva seja, sou obrigada a reconhecer que os meus três irmãos serão pretendentes ao trono quando o rei Drust morrer. Espero fervorosamente que ainda faltem muitos anos; o rei não é velho. Não consigo imaginar Uric no trono. Bedo, pelo menos, é capaz de juntar dois pensamentos quando quer. Quanto a Gartnait - disse ela encolhendo os ombros e revirando os olhos - é o menos provável de todos. Odiaria. É claro que há muitas mais possibilidades. Os filhos de sangue real estão espalhados por todos os reinos dos Priteni.
Bridei esperou.
- Quanto a mim, significa um casamento muito especial visto que os filhos que eu tiver serão, por sua vez, potenciais pretendentes. Não posso casar com qualquer um. Tem de ser um chefe tribal ou outro homem de grande estatuto, de preferência do interior dos territórios dos Priteni. É claro que, se receber uma proposta de outro país, é aceitável desde que o pretendente seja um rei. Foi o que aconteceu com a tua mãe.
- Estás a par da história dela, nesse caso?
Ferada sacudiu ligeiramente a cabeça perfeitamente penteada.
- Claro. Esses assuntos são da maior importância para a minha mãe. Ela está sempre a falar deles. Na verdade, surpreende-me que não tenha aproveitado uma ocasião qualquer para te explicar tudo.
- Talvez tenha pensado que eu sabia. Contas-me, Ferada?
- O parentesco da tua mãe é mais antigo, tem a ver com a avó de Drust. Anfreda descende da irmã dessa dama.
O jovem esperou.
- Pela linha feminina, Bridei, tu também és um potencial pretendente ao trono. Já supunhas, claro.
Bridei não podia responder. Supor era uma coisa, tomar conhecimento, subitamente, de que as suas suspeitas tinham fundamento, era outra. A sua cabeça começou a andar à roda e o seu coração desatou a bater com toda a força. O jovem começou a respirar profundamente.
- Anfreda era muito próxima deles - disse-lhe Ferada. - Pelo menos é o que a minha mãe diz. Anfreda era a favorita de Drust e da mulher; o meu pai conhecia-a e Broichan também porque naquele tempo estava na corte. Maelchon foi a Caer Pridne para discutir umas incursões ao norte do seu próprio domínio; alguns soldados dos Priteni tinham sido contratados como mercenários pelo seu inimigo e ele queria por termo àquilo. Maelchon ficou mais tempo do que tencionava e quando regressou a Gwynedd levou Anfreda com ele como esposa. Tal como eu disse, foi uma coisa aceitável. As mulheres de sangue real, por vezes, casam-se fora das tribos dos Priteni. É uma boa ideia porque fortalece a linhagem real. Por isso é que tu estás aqui e eu sou obrigada a considerar-te, mas apenas marginalmente, melhor como potencial monarca do que Bedo.
- Oh. - Bridei sentiu-se um pouco deslocado ao ouvir aquilo. Porquê?
- Tu tens muito de estudioso - disse Ferada rudemente. - Pensas muito e és bom demais.
- Estou a ver - disse Bridei.
- A mim, parece-me - disse Ferada - que, para seres rei, devias ter uma pele mais espessa, em vez de tanta imaginação. E uma data de bons conselheiros. Drust, o Touro, tem-nos, de certeza.
- Bem - disse Bridei - ainda faltam muitos anos para a eleição e, tal como disseste, os pretendentes serão muitos.
- Sete, se cada uma das casas de Pridne apresentar um. O rei de Circinn, Drust, o Javali, vai procurar acrescentar Fortriu ao seu próprio? domínio. Ele quer que os dois reinos sejam cristãos. Pelo menos é o que o meu pai diz.
Bridei sentiu um arrepio, uma premonição das mudanças terríveis qUe se avizinhavam.
Os chefes tribais de Fortriu nunca permitirão que isso aconteça - disse o jovem ameaçadoramente. - A Guardiã das Chamas nunca o permitirá.
Ferada olhava curiosamente para ele.
- Hum-hum - disse ela. - Depende, não achas, de como estivermos divididos. A chave é essa. Um líder, um país, uma fé. Suponho que é o que Circinn quer. A não ser que Fortriu consiga a mesma união, não conseguiremos guardar o nosso próprio reino.
Bridei sorriu.
- Acho que devias ser conselheira real, Ferada.
A jovem pôs-se de pé num salto e olhou-o de sobrolho franzido.
- Não te armes em condescendente comigo! - gritou ela.
- Eu não quis...
- Chega! Não tentes desculpar-te; és tal e qual o meu pai - quando a conversa atinge um determinado ponto e ele olha para mim e diz: "Tu não passas de uma rapariga, a tua opinião não interessa!"
- A sério, eu...
- Não te atrevas, Bridei!
O jovem ficou a vê-la afastar-se muito direita, emproada.
- Enganas-te a meu respeito - disse ele calmamente, mas sem saber se Ferada o teria ouvido.
CAPITULO SETE
A princípio, as mudanças foram tão ligeiras que Tuala mal se apercebeu delas. O Inverno do seu décimo terceiro aniversário foi particularmente rude e o mau génio andava à solta no isolamento de Pitnochie. Quando Ferat grunhia em resposta aos seus bons-dias, Tuala achava que aquilo significava que ele estava com dificuldade para acender a lareira. O stock de lenha estava no mínimo e o vento, soprando pela chaminé abaixo, dificultava-lhe os esforços. Quando Cinioch não queria falar com ela depois do jantar, ela achava que ele estava preocupado com o conflito que se aproximava porque Broichan aconselhara os seus homens de armas a juntarem-se ao desafio que ia ser feito a Dalriada na Primavera, o que significava perdas de sangue e mortes. Mara andava brusca e distante, mas nada que a surpreendesse. Broichan era o centro do seu mundo; para os outros tinha pouco tempo.
No dia em que Fidich impediu Tuala de visitar a cabana onde ele vivia com Brenna e os filhos é que a jovem percebeu que o mau humor geral se devia ao gelo de um Inverno muito duro. Naquele dia, Tuala sentiu algo ainda mais frio, a consciência de que tinha sido posta de lado, no lado de fora de uma barreira e que nunca mais poderia entrar novamente. Por que razão, não sabia, não fizera nada que ofendesse fosse quem fosse. No entanto, tinham mudado todos.
- Desculpa - murmurou Brenna, apanhando Tuala quando a jovem regressava a casa, depois de Fidich lhe ter dito que já não era bem-vinda na sua pequena casa. - Ele está preocupado com as crianças, mais nada.
- Com as crianças? Que queres dizer? - perguntou-lhe Tuala, desconcertada.
- Desculpa - disse Brenna de novo, com uma expressão de desculpa no rosto. Fidich já se afastava a coxear pelo carreiro fora com o filho mais velho pela mão e com os cães nos calcanhares. - Eu sei que não queres causar mal nenhum, mas...
Mas o quê? - Tuala sentiu uma calma terrível, uma premonição do que estava para acontecer.
São as histórias. Os homens andam preocupados com as histórias: a da mulher-coruja, a de do Xaile Branco e outras. Têm medo e o medo alimenta o medo. Eu tentei dizer a Fidich, ele é bom homem, mas a coisa está-lhe metida na cabeça, está metida na cabeça de todos...
- O quê? O que é que ele tem metido na cabeça? Brenna, porém, limitou-se a murmurar:
- Desculpa, Tuala - e afastou-se.
De regresso a casa, pareceu-lhe que todos evitavam olhar para ela, Ferat cortando as ervas muito concentrado, os seus dois assistentes ocupados com a lareira - as mãos de um deles mexeram-se e fizeram um gesto, um sinal de afastamento do mal, quando ela passou - Mara dobrando roupa com os lábios enrugados em sinal de desaprovação e com o olhar distante. Como habitualmente, Broichan estava nos seus aposentos. Por vezes, saía, mas com Bridei ausente a sua interacção com a casa era sóbria e restringia-se ao essencial. Talvez pensou Tuala, estivesse apenas à espera do regresso de Bridei, tal como ela. Era raro Broichan falar com ela e a jovem sentia-se feliz por isso porque o medo que sentia dele não diminuíra à medida que ia crescendo. Um relance daqueles olhos negros ainda tinha o poder de a deixar muda; uma palavra de crítica podia encher-lhe o coração, num instante, com uma mistura paralisante de fúria e terror.
A decisão de Fidich forçou Tuala a fazer um inventário e a jovem apercebeu-se de que aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo, manifestando-se de diversas maneiras: um subtil afastamento do seu lugar habitual à mesa; a remoção de alguns cobertores de lã do seu quarto sem uma explicação e a sua substituição por uma coisa mais grosseira, como uma manta de cavalo; a proibição de montar Bae, mesmo num dia bonito, se bem que frio, quando o cavalo raramente fazia exercício e o súbito silêncio quando Tuala entrava numa sala, como se as pessoas tivessem estado a falar dela na sua ausência.
A jovem pensou naquilo tudo, mas não conseguiu chegar a uma conclusão. Se Bridei não estivesse ausente, ninguém se atreveria a ser tão pouco amável. Se Bridei não estivesse ausente, o olhar de Broichan seria diferente, Ferat sorriria e os homens de armas voltariam às histórias de guerra e de fadas em redor da fogueira. Bridei fazia com que a casa tivesse outra vida. A jovem ansiava pela Primavera, para que Bridei regressasse da guerra.
Tuala ainda se podia virar para alguém em busca de conforto. As suas lições continuavam. Eram mais pequenas porque Erip andava doente. O ancião tinha uma farfalheira no peito e estava mais magro, um fenómeno espantoso num homem cuja característica principal era o seu sorriso permanente. Broichan fazia-lhe uma poção, na qual os odores a noz-moscada e a mel não escondiam o traço de algo amargo e forte, uma erva druídica específica para aquela doença. Esperava-se que aquilo fizesse com que o ancião melhorasse chegado o fim do Inverno. Erip ficava sentado à lareira com um xaile grosso em redor dos ombros magros; o homem recusava-se a ir para a cama, dizendo que era a mesma coisa que admitir a derrota e, se tinha de morrer, morreria a ensinar. Wid dizia que a verdade era que ele havia de morrer a discutir e Erip respondia, tossindo explosivamente, que tanto fazia de uma maneira como de outra.
A conversa sobre a morte afligia Tuala. O olhar de Wid ainda a preocupava mais porque enquanto o ancião barbudo obrigava o seu velho amigo a beber o remédio, ou o envolvia melhor no xaile, ou trocava com ele um gracejo, ela via a sombra irremediável da morte nas suas feições enrugadas. Os dois homens eram muito amigos. A jovem não sabia nada da sua vida, das suas origens, por que razão se tinham instalado em casa de Broichan, por que razão pareciam não possuir parentes, ou uma casa. Qual era a fonte do seu profundo conhecimento? Como teria sido a sua vida para serem ambos tão ricos intelectualmente? Erip e Wid nunca falavam daquelas coisas: quando lhes perguntavam qualquer coisa, mudavam de conversa. Tuala perguntava a si própria se descobriria algum dia.
Naquele dia, Mist estava enroscada nos joelhos de Erip, arranhando com as garras a lã do seu xaile e ronronando profundamente. Apesar de adulto, continuava a ser um gato pequeno. O seu corpo cinzento era metade do de qualquer outro gato. Como caçador de ratos, há muito que conquistara o seu lugar em Pitnochie.
Tuala sentou-se num banco ao lado de Erip. As aulas, no Inverno, eram sempre à lareira; não havia outro local suficientemente quente.
- Que vamos aprender hoje? - perguntou Wid, estendendo as longas mãos manchadas para as chamas; a jovem podia ouvir os nós dos dedos a estalar. Devia ser duro ser idoso no Inverno.
- Conhece a história de Amna do Xaile Branco? - perguntou Tuala. Ouvi falar dela. Também ouvi falar de uma sobre uma mulher-coruja. Pode contar-mas? - A jovem tentou parecer desinteressada como se não passasse de uma curiosidade da sua parte. A maneira como os dois homens olharam para ela disse-lhe que não se deixavam enganar com facilidade.
Erip tossicou e instalou-se mais confortavelmente.
- Por vezes, as crianças pedem para ouvir uma história e quando ela acaba, elas percebem que afinal não queriam ouvir a verdade que ela encerra. Suponho que compreendes o que quero dizer?
Tuala sentiu novamente um arrepio, o sopro gelado de um futuro incerto.
- Preciso de saber uma coisa - disse ela. Os deuses fossem louvados por aqueles dois anciãos; com eles, pelo menos, não havia necessidade de fingir.
- Nesse caso, vou começar - disse Erip - e aqui o meu amigo acaba. Era uma vez um tipo chamado Conn, um fabricante de cerveja, o melhor fabricante de cerveja deste lado do Lago da Serpente e muito popular entre os locais precisamente por isso. O homem não bebia mais do que devia, fazia os possíveis para que as pessoas tivessem o melhor produto e era conhecido por ser um homem sensível e prático, um homem incapaz de loucuras. - Erip parou para tossir. Cada vez lhe era mais difícil respirar depois daqueles espasmos e a sua mão tremia quando pegou na caneca de água que Tuala lhe estendia.
- Tem a certeza que quer continuar? - perguntou ela. - Wid pode contá-la...
- Disparate - retorquiu Erip, com uma voz que mais parecia o restolhar das canas secas no Outono. - Deixar de contar histórias é o mesmo que deixar de respirar. Onde é que íamos?
- Um homem muito prático.
- Ah sim. Um homem muito prático, prestes a casar e a assentar. Conn arranjou uma namorada, filha de um fazendeiro, arranjou uma pequena casa e tudo parecia um mar de rosas. O pai da rapariga era rico. Como dote, a jovem levava para o casamento um saco de prata e três campos. Uma noite, já tarde, Conn, que tinha ido visitar uns amigos, regressava a casa por um atalho, um carreiro por baixo de uns choupos que passava junto de um ribeiro orlado de fetos. A Lua estava cheia. Conn estava a fazer uma tolice ao ir por ali, qualquer um dos anciãos da aldeia lhe podia ter dito. Conn sentia-se feliz e talvez se sentisse confiante devido àquele sentimento, porque devia estar consciente dos avisos sobre aquele lugar. Por isso, seguiu alegremente pelo carreiro fora e quando chegou à margem do ribeiro, viu-a.
- Amna? - perguntou Tuala.
- Sim, mas não sabia quem ela era. Tudo o que ele viu foi uma criatura adorável que ele nunca teria sido capaz de imaginar, uma rapariga pálida como uma pérola, que brilhava à luz do luar, com cabelos tão longos como um fluxo de sombras suaves e com apenas um xaile branco a tapar a sua nudez. A rapariga tinha uma mão na boca, como que surpreendida por um homem se ter aventurado por aquele caminho de noite. Bastou um olhar para que a namorada se desvanecesse da mente de Conn.
- Conn seguiu a rapariga do xaile branco pelo ribeiro acima e entrou na floresta - disse Wid, prosseguindo a história enquanto Erip se encostava na sua cadeira e fechava os olhos. - O que aconteceu entre eles naquela noite não cabe a um velho como eu contar a uma jovem impressionável como tu, Tuala. Basta dizer que Conn ficou diferente. Na manhã seguinte, Conn chegou a casa e em vez de regressar ao seu ofício de cervejeiro e de se preparar para o casamento, ficou à porta a olhar para a floresta e a sonhar com Amna. Conn ficou naquela posição dia e noite e não fabricou uma gota de cerveja desde a Dança das Virgens até ao pino do Verão. Sempre que A Que Brilha ficava cheia ele desaparecia por baixo dos choupos e quando regressava de manhã o seu rosto vinha sem cor e cansado e os seus olhos cheios de um deleite selvagem próximo da loucura, como se tivesse saboreado algo raro e maravilhoso.
- Todos lhe disseram - disse Erip - a mãe, o avô, a namorada com os olhos rasos de água, os mais velhos da aldeia. Era evidente que Conn tinha sido enfeitiçado por uma mulher dos Boa Gente. Conn tinha de quebrar o feitiço, ou morreria. Porém, Conn não os ouvia. Sempre que a Lua ficava cheia ele entrava em êxtase e nos intervalos aqueles que o amavam viam-no murchar de saudade, até ficar pele e osso. Que queria Amna dele? Ninguém sabia. Outros homens já a tinham avistado junto da lagoa, a brancura do xaile eclipsada pela finura da sua pele cor de pérola, as sombras profundas da noite menos profundas do que os seus belos cabelos. Outros homens tinham tido o bom senso de baixar os olhos e seguir em frente, mas Conn não.
- Que aconteceu? - perguntou Tuala, pensando que os homens eram bem tolos para se deixarem apanhar assim; era evidente que Conn devia ter percebido que a sua vida estava a ser destruída e devia, muito simplesmente, ter dito não a Amna.
- A história é muito triste - disse Wid. - A família de Conn tentou intervir. Uma noite de lua cheia, caíram em cima dele e amarraram-no, de modo que ele não pôde ir ter com ela, pensando que, ao interromper o ritual, quebrariam o feitiço, fazendo assim com que ele recuperasse os sentidos. As pessoas disseram que, naquela noite, ouviram os gritos de Amna na floresta, gritos que faziam gelar o sangue. Aquilo não era uma rapariga a chamar pelo seu amante, era o uivo de um animal selvagem pela sua presa.
- Conn salvou-se? Erip abanou a cabeça.
- Não nos devemos meter com os Boa Gente assim sem mais nem menos. Uma pessoa como Broichan é capaz, talvez, mas não gente simples como as pessoas da aldeia. Conn amaldiçoou-os a todos durante toda a noite, ao mesmo tempo que tentava libertar-se e depois disso proibiu-os a todos de entrarem em sua casa. Conn esperou até A Que Brilha ficar cheia outra vez e foi ao encontro do seu amor. Na manhã seguinte, os seus familiares e amigos encontraram-no com o rosto metido na lagoa, morto. A princípio, pensaram que ele se tinha afogado. Porém, quando o viraram, viram que estava branco como a cal, sem pinta de sangue. As marcas dos dentes dela estavam no pescoço dele.
Tuala estremeceu.
- É uma história horrível. - Horrível e nada proveitosa; aquela história não tinha nada a ver com ela. - E a outra, a da mulher-coruja?
Wid olhou severamente para ela.
- Parecida com a primeira - disse o ancião. - Um homem arrastado para os bosques, desta vez pelo que parecia ser uma coruja branca, um animal raro e belo. Durante o dia, a coruja transformava-se em mulher e consentiu em ser mulher do homem desde que ele respeitasse a sua diferença e se afastasse chegada a hora da mudança. Durante um certo tempo foi uma história feliz. Ela deu-lhe filhas e ele não perdeu o desejo que tinha por ela, tornou-se apenas descontente com o que tinha, queria o conforto do calor dos braços da sua mulher durante a noite, enquanto dormia. O homem começou a pensar que não era pedir muito. Com o tempo, o seu desejo de a tornar humana, uma coisa que ela nunca poderia ser, levou-o a segui-la à floresta numa noite de lua cheia e assistiu ao momento extraordinário em que ela mudava de forma. Nesse momento, perdeu-a para sempre. Este homem não morreu como Conn, vagueia pelos carreiros da floresta eternamente chorando a mulher que nunca mais terá.
Seguiu-se um silêncio. Tuala tinha consciência de que as duas histórias estavam ligadas. No entanto, por mais que tentasse, não conseguia compreender a relação com a súbita frieza em seu redor. No fim de contas, toda a gente sabia que ela era filha da floresta, toda a gente sabia desde o momento em que entrara em Pitnochie. No entanto, tinham-na recebido bem. Tinham-lhe sorrido, tinham-lhe contado histórias e tinham-na tratado como amiga.
- O que é, miúda? - A voz áspera de Erip era amiga e, de repente, Tuala sentiu-se à beira das lágrimas.
- Fidicha - murmurou ela. - E Ferat, e os homens de armas... Eles afastaram-se de mim. Eu já não faço parte de Pitnochie. Fidich disse que eu já não posso ir ver Brenna e as crianças. E Brenna disse-me que os homens estão preocupados por causa das histórias de Amna e da mulher-coruja, mas nada disto faz sentido. Por que razão têm medo de mim agora, se nunca tiveram? É evidente que eu nunca faria mal às crianças... - disse a jovem, desatando a chorar.
Wid inclinou-se para a frente, oferecendo-lhe um lenço.
- Faz como te ensinámos - disse ele calmamente. - Pensa. As histórias falam de homens seduzidos por mulheres dos Boa Gente, homens sugados por uma força tão forte que os tornou incapazes de resistir, nem sequer quando eram conhecidos por serem sensatos, como Conn.
Tuala fez o que lhe pediam, pensou, mas não sentiu melhoras.
- Pergunta a ti própria - disse Erip, afagando gentilmente o gato - por que razão toda a gente parece ter mudado. Quanto a mim, sinto-me na obrigação de dizer que Wid e eu não mudámos; nós os dois estamos, penso, para além desse fenómeno particular. Já pensaste que pode ter sido outra pessoa a mudar?
Tuala olhou para ele durante muito tempo.
- Está a falar de mim? Isto tem a ver comigo, com o facto de eu estar a crescer? Mas... - A jovem calou-se, reconhecendo que o ancião estava a falar precisamente dela. Pensando bem, a atitude fria das pessoas para com ela datava do tempo em que o seu corpo começara a mudar, arredondando aqui e enchendo ali, dando-lhe as formas e o ritmo de uma mulher. Como criança, fora aceite em Pitnochie apesar de todas as diferenças, mas como mulher os que tinham sido seus amigos andavam em bicos dos pés na sua presença, como se ela fosse um ser perigoso. Tuala não conseguia acreditar que as pessoas pensassem que ela, como mulher, era a mesma espécie de criatura que Amna do Xaile Branco! - Deve estar enganado - disse ela - Amna era de uma beleza irreal, era a espécie de mulher que enlouquece os homens, que só existe nas histórias. Não acredito que as pessoas possam pensar... .- Aquilo era impossível. Tuala não conseguia acreditar que estavam a ter aquela conversa.
- Olha para o espelho, miúda - disse Wid. - O que vires agora verás cem vezes mais no próximo Inverno e mil vezes mais um ano depois. Os homens aperceberam-se e têm medo. As mulheres são mais sensatas, mas também estão desconfiadas. É triste, mas é verdade; tu já tens catorze anos e a partir de agora terás sempre essa sombra sobre ti, por mais que tentes ser um dos nossos.
Tuala ficou sem palavras. Não podia ser verdade. A jovem não era nenhuma beleza, não se interessava pelos homens nem pelas coisas que eles e as mulheres faziam na privacidade dos seus quartos. A ideia de Ferat, Fidich e os outros pensarem nela daquela maneira provocava-lhe vómitos. Tuala não conseguia conceber aquilo.
- E vós? - perguntou ela. - Vós ainda sois meus amigos. Não mudastes. E Broichan? Esse não muda nunca. A explicação não pode ser essa.
Erip recomeçou a tossir e apareceu-lhe sangue na mão que levara à boca. Levou algum tempo até o paroxismo desaparecer. Finalmente, o ancião acalmou-se.
- Como já disse - a sua voz era um fio - somos talvez muito velhos, já ultrapassámos a idade dessas loucuras. Ou talvez nos tenhamos apaixonado por ti quando eras deste tamanho e nos enchias de perguntas, e se calhar ainda te vemos assim: o pequeno tesouro de Bridei, uma dádiva rara do Solstício. Quanto a Broichan, a sua percepção é muito especial. Não tenho dúvidas de que ele te vigia desde o princípio e que pondera continuamente as oportunidades e perigos que tu representas.
Tuala acenou com a cabeça. A jovem recordava-se de cada palavra que Broichan lhe dissera, muitos anos antes, quando a mandara para Cumeeira de Carvalho. Não havia dúvida de que a considerava uma ameaça desde o primeiro dia.
- O que hei-de fazer? - perguntou ela aos dois anciãos. Os dois idosos olharam para ela em silêncio.
- Espera e sê paciente - disse Wid. - Tens pela frente tempos bem difíceis.
- Prepara-te para a mudança - acrescentou Erip. - Tens de ser corajosa, Tuala.
- Se Bridei estivesse aqui não fazia mal - disse a jovem em voz baixa; as palavras saíram-lhe contra vontade.
Wid abriu a boca para dizer qualquer coisa; a jovem viu Erip abanar a cabeça como que para calar o amigo e Mist, inquieta, saltou do colo do ancião e debandou na direcção da cozinha. Como se tivessem sido chamados, os três cães acordaram do seu sono por baixo da mesa e, subitamente, deixou de haver tranquilidade no salão.
- A solidão pode ser difícil de suportar - disse Wid pondo-se de pé. - Um amigo é a coisa mais preciosa do mundo, Tuala. Não preciso de te dizer isso, a ti ou a Bridei. Vamos buscar um pouco de sopa para este velho amigo, sim? Começa a ficar parecido com um espantalho e não podemos permitir isso. Creio que vi Ferat com um osso de presunto; o cheiro era prometedor.
O Inverno passou e os dias começaram a ficar maiores, mas a Mãe de Tudo pouco fazia para aliviar o seu abraço implacável. O gelo continuava nos lagos e a neve cobria a casa de Broichan. Os homens resmungavam quando a caminho do seu turno de guarda e a roupa secava na lareira da cozinha, enchendo a casa de um odor pungente. Os cães saíam com relutância; Mist passava a maior parte do tempo no colo de Erip, em frente da lareira ou, mais tarde, na sua cama, enroscado na dobra dos seus joelhos. O velho intelectual deixou de ter forças para se erguer da enxerga e para se aventurar fora do seu quarto, pretendendo que em breve estaria melhor. Puseram-no no quarto de Bridei; Wid estava sempre junto dele, dando-lhe água ou a poção de Broichan, limpando-lhe a testa, contando-lhe histórias como se de uma criança se tratasse. Mara queimava ervas aromáticas junto da sua porta e lavava-lhe a roupa suja. Tuala tentou ajudar, mas vedaram-lhe a entrada no quarto. Mara assumira o controlo; só entrava quem ela dizia. A mulher decretara que demasiados visitantes ainda enfraqueciam mais o ancião. Wid, lutando com a sua própria dor e exaustão, não tinha forças para discutir, mas deixou Tuala entrar uma ou duas vezes, em ocasiões em que a governanta estava ocupada noutro lado da casa. As mãos de Erip estavam tão frágeis que os seus dedos pareciam gravetos secos e a sua voz era apenas um murmúrio. Tuala pensou ver uma nova luz nos seus olhos, um brilho que já não pertencia ao mundo dos mortais, antes a um outro cheio de promessas de paz. Era como se a sua mente invocasse uma história nova e estivesse à espera da ocasião ideal para a começar a contar. A jovem segurou-lhe na mão, engoliu as lágrimas e quando Mara regressou, escapou-se como uma sombra.
A jovem pedia delicadamente que a deixassem entrar, dizendo que era amiga de Erip, que ele a mandara chamar, que podia ser útil.
- Não és precisa, Tuala - dizia Mara.
-Toca a andar, miúda - dizia-lhe Ferat em tom mais ou menos amável e com um olhar entre o impaciente e o pouco à vontade. O cozinheiro, pelo menos, parecia sentir-se culpado por trair alguém que fora uma criança encantadora, uma amiga. Porém, era evidente o seu desconforto quando a jovem estava presente.
Para o fim, Tuala estava reduzida a Mara.
- Por favor, ele é um velho amigo. Por favor, deixe-me entrar.
- Erip é amigo de todos nós - disse Mara. - Não és aqui precisa. Põe-te a andar e leva o animal contigo. - Mara quis tirar o gato da cama, mas Mist ferrou os dentes e as garras nos dedos da governanta e continuou no lugar onde estava, enroscado nos cobertores de Erip. O próprio Erip estava demasiado fraco para protestar e Wid dormitava numa cadeira, cansado da longa vigília. Em silêncio, Tuala retirou.
Durante um curto espaço de tempo, a jovem ficou sozinha no pequeno quarto, olhando para a parede. Aquilo não podia estar a acontecer; não podia, era impossível. Por que razão não a deixavam entrar? Por que não a deixavam despedir-se de Erip? Ela era um deles, fora criada com eles, recebida naquela casa e fora educada pelo ancião que estava a morrer debaixo do tecto que os abrigava a todos. Maldita Amna do Xaile Branco. Maldita mulher-coruja. Aquilo era uma loucura, não tinha nada a ver com ela.
Subitamente, Tuala sentiu uma necessidade premente de fazer qualquer coisa. Pegando na sua capa e metendo os pés nas suas pesadas botas, a jovem saiu para a rua. O frio entrou-lhe nos pulmões, magoando-lhos no momento em que saiu da cozinha; o ar gelou-lhe a pele. Porém, tinha de se afastar o mais possível de Mara, de Ferat, de Fidich, de Uven, de Cinioch, dos olhares desconfiados de todos aqueles que tinham sido seus amigos. Não tencionava pedir para levar Blaze, não queria ouvir uma recusa. Podia muito bem andar. Chegaria ao Vale dos Que Caíram e ali exigiria algumas respostas.
À medida que ia crescendo, Tuala ia-se apercebendo de que possuía talentos vedados às outras pessoas. A jovem apercebera-se muito cedo de que devia manter tais capacidades escondidas porque, se as mostrasse, só sublinharia o facto de que era diferente e ela não queria ser diferente, queria pertencer a Pitnochie. Erip e Wid estavam a par de algumas coisas que ela era capaz de fazer, assim como Bridei. Porém, a maior parte, e a facilidade com que podia dispor delas, eram apenas do seu conhecimento.
Teria sido melhor, disse ela para si própria com alguma amargura enquanto seguia pelo trilho com dificuldade, sob os carvalhos nus, com as botas mergulhadas na lama e nas folhas podres, se nunca tivesse praticado tais artes secretas, se tivesse fingido, mesmo para si própria, que não tinha nenhuns poderes. Talvez tivesse perdido a perícia, talvez se tivesse esquecido como se fazia, como invocar imagens de rainhas, dragões e gigantes a partir de um raio de luz entrando por um vidro colorido; como atrair um esquilo para fora da toca, saudá-lo e o pequeno animal compreender; como fazer uma boneca com canas, erva e cascas de sementes, um cesto ou um colar, coisas que tinham um poder verdadeiro. Talvez tivesse perdido a capacidade de ler os sinais na floresta, sinais deixados pela outra espécie, os Boa Gente. Então, nunca os encontraria, por mais tentada que se sentisse a procurá-los. Os arranhões subtis na casca de uma árvore ou num seixo, a erva ligeiramente torcida ou algumas folhas amontoadas eram mensagens e, apesar de nunca lhe terem ensinado o seu significado, Tuala sempre as tinha compreendido. Os que faziam aqueles sinais continuavam a evitá-la. As sombras avistadas de relance e as vozes sussurrantes estavam cada vez mais perto. A jovem sabia que as mensagens eram para si. Eles estavam a chamá-la; queriam que ela regressasse para junto deles, ao contrário dos humanos. Talvez conseguisse um lar com eles. Era uma hipótese; uma hipótese impossível. Se fosse para o mundo deles, teria de deixar Bridei. Separar-se dele era impossível. Seria como dividir-se a si própria em duas.
Profundamente mergulhada nos seus pensamentos, Tuala percorreu a longa distância entre a casa de Broichan e o vale escondido quase sem se dar conta. A bruma estava espessa naquele dia; a jovem mal podia ver os próprios pés enquanto descia o carreiro íngreme na direcção do pequeno lago. O vapor parecia fechar-se atrás de si, um cobertor sufocante, opressivo. Algures, nos bosques, um cão uivou, um som de pura desolação.
Tuala acocorou-se na orla do Espelho Negro. A princípio, a jovem não sentiu o frio porque a caminhada tinha-a aquecido, mas pouco depois o nariz, as orelhas, os dedos das mãos e dos pés começaram a ficar dormentes e a doer-lhe. Os seus dentes tremiam. Cometera uma loucura; estava muito longe de casa e ninguém sabia para onde tinha ido. Provavelmente, não se ralavam, pensou Tuala. Se não regressasse, Mara, Ferat e os outros ficariam contentes, era menos uma preocupação; deixariam de ter dentro de casa uma sedutora do Outro Mundo para lhes levar os homens novos. Aquilo era tão estúpido que a jovem nem conseguia abarcá-lo. Ela própria uma espécie de beleza sobrenatural? Tuala lançando feitiços para enlouquecer os homens de desejo? Era razão para rir não fora a terrível realidade do seu significado; ter-se-ia rido da situação se Erip e Wid, cujo bom senso era evidente, não lhe tivessem dito que era o que as pessoas sentiam. O lha para o espelho, tinham dito eles e foi o que ela fez, debruçando-se sobre as águas imóveis do lago, não em busca de visões ou prodígios, mas em busca do seu próprio reflexo.
Não parecia estar diferente. O seu rosto era oval, as sobrancelhas escuras arqueadas, os olhos grandes e claros, talvez azuis se fosse possível dar-lhes uma cor, pareciam ter dúvidas e tinham sombras em redor; a jovem estivera a chorar por Erip, por Wid e um pouco por si própria. O nariz era direito, a boca pequena e bem desenhada, cor-de-rosa. A pele era pálida. Tuala tinha de confessar que, naquele aspecto, pelo menos, era parecida com a Amna da história porque a sua pele sempre fora branca e transparente, como se A Que Brilha lhe tivesse emprestado os seus raios. Os seus cabelos eram negros como o carvão, longos e lustrosos apesar de raramente os pentear. Os cabelos também a faziam parecer a rapariga da história, mas ainda era jovem, tivera as primeiras regras pouco tempo antes e nem queria pensar no que Amna teria feito com o seu amante à luz do luar. Amna fora uma sedutora, uma mulher sensual e apaixonada. Como era possível pensar que ela, Tuala, tinha os mesmos poderes daquela perigosa criatura nocturna?
As roupas práticas de Tuala, próprias para andar ao ar livre, a capa, o xaile, a túnica e a longa saia, por cima de umas botas grossas, escondiam as suas formas; a rapariga que olhava para ela na superfície da água escura podia ser uma qualquer. Porém, quando olhou melhor, a imagem mudou e a jovem viu-se a si própria, chocada, sem qualquer roupa a cobri-la, sem a mínima vergonha, com os braços erguidos, os seios redondos como duas pequenas luas, com dois mamilos cor-de-rosa; os contornos da cintura delicada, as ancas arredondadas, as coxas esbeltas, expostas para quem as quisesse ver. Até o novo e pequeno triângulo preto, entre as pernas, era visível. Horrorizada, Tuala cruzou os braços para esconder o corpo, apesar de estar totalmente vestida. No Espelho Negro, a sua imagem nua virava-se, sorria, acenava e a jovem reconhecia, com o coração nas mãos, que qualquer homem era capaz de achar aquela criatura cor de pérola, ébano e rosa, sedutora. Tuala viu a sua própria inocência na visão e o perigo que ela representava.
- Vai-te embora - murmurou Tuala, com as lágrimas a caírem-lhe pelas faces. - Não te quero ver! Não foi para isto que vim aqui!
- A jovem fechou os olhos com força, tentando afastar a sua própria imagem.
- Tens medo de enfrentar a verdade? - perguntou alguém à sua esquerda. - Nem parece teu.
Os olhos de Tuala abriram-se. Aquela voz não era subtil, sibilante, como as que ouvira antes naquele local. Aquela voz era confiante e real, a voz de uma mulher de carne e osso. A jovem só teve tempo de pestanejar e apanhar de relance uma figura encapuzada a seu lado, tão perto que lhe poderia ter tocado, mas então ouviu uma segunda voz. Tuala deu um salto e virou-se para o outro lado.
- Além disso - observou a segunda personagem - a vista é agradável, não o podemos negar. Uma imagem bela. Se um homem olhasse para ela, desejaria descobrir se a de carne e osso não seria mais bela ainda.
A voz pertencia a um jovem. A pele de Tuala ficou toda arrepiada ao ouvir as suas palavras; a jovem era capaz de imaginar o que Donal, Bridei, ou até Broichan, diriam se soubessem que ela cometera a loucura de ir até ali em pleno Inverno, sozinha, sem dizer nada a ninguém. A jovem imobilizou-se e tentou respirar lentamente, obrigou-se a si própria a observar, tal como Bridei lhe tinha ensinado. A seu lado não estava um verdadeiro homem, não era mais alto do que ela própria e os seus cabelos desgrenhados, selvagens, tinham um tom esverdeado. Aqui e ali, as madeixas pareciam gavinhas, folhas, heras. Os olhos eram castanhos-escuros e redondos, como os de uma coruja. Decididamente, não era um homem, se bem que o seu sorriso lhe fizesse recordar Erip nos seus melhores dias.
- Estás a tremer - disse ele e Tuala sentiu, ao virar-se, o peso suave de uma capa a envolver-lhe os ombros, uma coisa feita da lanugem do cardo, frágil e insubstancial, mas que a tornou instantaneamente tão quente como um gato enroscado em frente de uma lareira. A rapariga, que enfrentou calmamente o olhar de Tuala, era um pouco mais alta do que o rapaz, se àquilo se podia chamar rapaz, e os seus cabelos eram longos e prateados, entrançados cuidadosamente com folhas secas, fios cintilantes, teias de aranha e minúsculas bagas brancas. A sua capa, com capuz, era cinzento-azulada e esvoaçava em seu redor como o fumo azul de uma fogueira. O seu aspecto era jovem; a sua pele era branca, tão branca como a de Tuala, e a sua silhueta era esbelta, graciosa. - Tu sentes o frio; não é de admirar. Cresceste entre os humanos; o tempo deles é mais curto e passa com mais violência. O teu corpo já está habituado aos padrões deles. Vieste para junto de nós mesmo a tempo.
As palavras que Tuala tinha preparadas para uma ocasião daquelas desapareceram abruptamente. A jovem desejara tanto aquilo, até tinha ensaiado as perguntas: Quem sou eu? Quem é que me abandonou e porquê? Naquele momento, receosa das respostas, não as conseguia fazer. Finalmente, Tuala disse:
- Por quê agora? Porque vos mostrastes agora? Eu vim aqui vezes sem conta; vi visões no Espelho Negro, fui provocada por outras criaturas da vossa espécie, sempre meio escondidas. O que é que mudou?
- À medida que falava, a resposta aparecia-lhe na mente, a mesma que já tinha ouvido dos humanos: Tu mudaste.
- Os que encontraste aqui antes de nós não eram da nossa espécie - disse o Homem-Folha - eram inferiores a nós. A floresta é habitada por muitas espécies. Esses que viste de relance, nunca te deixarão ver a sua verdadeira forma, pelo menos enquanto tiveres um pé no mundo dos druidas, dos heróis, dos reis e dos conselheiros.
- Um pé? - não conseguiu Tuala deixar de perguntar. A jovem achava que o que sentia não era medo, apesar da estranheza das duas
aparições, achava que era espanto por, finalmente, elas terem decidido
revelar-se, e uma cautela que lhe vinha das histórias que conhecia. .
Eu vivo em Pitnochie; pertenço à casa de Broichan. Ninguém sabe de onde venho. Posso muito bem ser uma rapariga recém-nascida abandonada. Posso muito bem ser uma rapariga humana normal. - Devia perguntar-lhes imediatamente, gostaria de ter a coragem suficiente. Sabeis quem sou? As risadas detiveram aquelas palavras antes de ela as conseguir dizer em voz alta. O som daquele riso ecoou pelo pequeno vale como o som das sementes secas no interior das vagens, provocando um arrepio na espinha de Tuala.
- Normal? - troçou a rapariga. - Acreditas tanto nisso como nós. Tu és uma das nossas, és filha da floresta. Existe magia em cada cabelo da tua cabeça, em cada ponta dos teus dedos. Diz-nos por que vieste aqui hoje, Tuala. Diz-nos por que razão vieste à nossa procura.
O rapaz acocorou-se; as suas roupas, tal como os seus cabelos, pareciam uma extensão da vegetação, verdejantes, emaranhadas. O jovem cheirava levemente a folhas podres. Com dedos longos e nodosos, o rapaz bateu no solo num gesto convidativo; a rapariga da capa cinzenta ajoelhou-se. Tuala sentou-se de pernas cruzadas, alerta. Se precisasse de fugir, queria estar pronta para o fazer instantaneamente. O seu coração batia com toda a força; as possibilidades eram muitas, tinha de estar preparada para elas todas.
- Eu vim aqui à procura de respostas - disse ela - e as perguntas não são as mesmas que vos faria antes, se tivesse a oportunidade. As pessoas mudaram; os que eram meus amigos passaram a ter medo de mim, começaram a ficar desconfiados e estranhos. Os meus tutores disseram que é por... porque, como mulher, eu sou um perigo. A jovem engoliu em seco. - Como a Amna do Xaile Branco - acrescentou ela com relutância - e agora o meu amigo está a morrer e eles não me deixam segurar-lhe na mão para me despedir. - Tuala estava a fazer um grande esforço para não chorar; era importante manter a situação sob controlo. Mais tarde teria ocasião para chorar à vontade.
- Amna, hum - disse o Homem-Folha. - As mulheres humanas inventam histórias para evitar que os homens se percam, sabias?
Tuala olhou para ele. As faces do rapaz eram tão castanhas e tão brilhantes como duas castanhas.
- Inventam? - repetiu ela. - Estás a dizer que a história foi inventada? E a da mulher-coruja, também?
Talvez sim - disse o homem - ou talvez não.
Isso não ajuda nada - retorquiu Tuala. - Eu preciso de respostas. Tenho de ser capaz de mostrar às pessoas que não sou uma ameaça para elas. Tenho de as convencer de que... - A sua voz desvaneceu-se; aquilo era demasiado embaraçoso.
- Que não desejas os homens? - perguntou a rapariga, pondo o capuz e metendo as mãos na manga da capa; os seus dedos estavam cheios de anéis feitos de vegetação, de várias formas e feitios, e com pedras pálidas. - Isso não interessa, Tuala. O perigo, tal como eles o vêem, vem de os homens te desejarem, a ti. Eles evitam-te porque acham que é perigoso, a partir de agora, olhar para ti ou tocar-te. Eles acham que a tua proximidade pode ser uma sentença de morte. Nós conhecemos a tua história, foste acolhida por Bridei. Então, ele era uma criança e não sabia o que estava a fazer. Quando o druida soube, era demasiado tarde. Agora, não pode permitir que fiques em Pitnochie. Se o fizer, o perigo de morte é real: a morte da sua visão. Pelo menos é o que ele acredita.
Tuala sentiu o coração gelar.
- Mas tu disseste que a história de Amna foi inventada e, de qualquer modo, eu não sou assim. Eu fui criada como uma rapariga humana, vivo a minha vida como uma rapariga normal. Não faço mal a ninguém.
- O futuro que Tuala desejava incluía-a a ela, a Bridei e a Pitnochie; como poderia ser de outra maneira?
Nenhum dos seus companheiros disse uma palavra. No silêncio que se prolongou, Tuala ouviu o eco das suas palavras e reconheceu que pareciam infantis, demasiado simples. Era demasiado tarde para soluções fáceis. Nunca mais voltaria a ser criança.
- Como é que sabeis isto tudo? - perguntou-lhes ela, finalmente, se bem que a resposta estivesse na sua frente, nas águas imóveis do Espelho Negro. - Que tendes vós com isto tudo?
A rapariga da floresta sorriu, um sorriso estranho, no qual a tristeza e a resignação eram temperadas por uma gentileza que parecia quase relutante.
- Surpreendes-me, Tuala - disse ela. - Não fazes a pergunta que mais te aflige. Essa pergunta não é a resposta a esta?
Tuala não respondeu. Aquelas duas criaturas, pertenciam aos Outros; eram tão diferentes dela como um animal selvagem. Se eram da sua espécie, preferia que não fossem, não queria saber.
- Bem - disse a rapariga com um suspiro - ainda não mereceste o direito à resposta, por isso não ta posso dar, mesmo que a soubesse. A verdade fica para mais tarde, quando deres mostras de que podemos confiar em ti. Há-de chegar a ocasião em que precisarás tanto de nós que farás tudo para saber. Quanto à razão de sabermos o que sabemos, temos-te vigiado, a ti e a Bridei. A nossa vida é mais longa do que a dos homens, mas isso não quer dizer que não nos interessemos por druidas e por reis, por batalhas e por lutas, ou pelo governo de Fortriu. Vêm aí grandes mudanças e o teu amigo está no centro delas, ou vai estar. Desconfio que tu sabes isso.
Tuala acenou com a cabeça, mas não disse uma palavra. Já em criança estava a par do futuro que Broichan planeava para o seu filho adoptivo.
- Que papel tencionas desempenhar nos grandes acontecimentos que se avizinham? - perguntou o Homem-Folha brutalmente. Essa é a pergunta que deves fazer a ti própria porque pode ser que Pitnochie venha a ser fechada para sempre.
- Pára - disse Tuala, levando as mãos às orelhas, mas continuou a ouvir; no fim de contas, tinha ido ali em busca de respostas e respostas era o que estava a obter, apesar de não serem exactamente as que queria.
- Broichan está perante um dilema - disse a rapariga da floresta.
- Ele não pode, muito simplesmente, abandonar-te. As convicções de Bridei têm mais valor para ele do que pensas. O druida do rei tem um fraco, que é o afecto que sente pelo rapaz. Além disso, Broichan é totalmente leal aos deuses; não quer cair em desgraça perante A Que Brilha se expulsar a sua filha. Felizmente para ele, existe uma solução. Se eu fosse Broichan e eu pensasse como os humanos, sentir-me-ia satisfeito por tu teres chegado onde chegaste. Agora, a única coisa que lhe falta é arranjar-te um marido. Desse modo, pode ver-se livre de ti respeitavelmente, sem ofender ninguém.
- Não fiques com esse ar horrorizado - disse o Homem-Folha, lambendo os lábios com uma língua longa e esverdeada. Aquela visão provocou um arrepio em Tuala. - É uma coisa normal para as raparigas, assim que têm as regras. Não tens estado a tentar convencer-nos de que és uma rapariga humana normal? É claro que é capaz de ser difícil encontrar-te um noivo. Qualquer homem que saiba a história de Amna do Xaile Branco só te quer se for louco. Porém, um viúvo solitário, um tipo mais velho, é capaz de ficar convencido se tiver um vislumbre dessa pele delicada, dessa figura. Além disso, Broichan é um homem de posses; pode oferecer um bom dote por ti. Aposto que é capaz de se livrar de ti no Solstício de Verão. Quer dizer, se tu não quiseres optar pela outra opção, a que nós te oferecemos. Tuala sentiu vontade de vomitar.
- Bridei nunca o deixará fazer uma coisa dessas - murmurou ela. O homem voltou a sorrir.
- Bridei anda muito ocupado com outros assuntos - disse ele, e fez um gesto na direcção da lagoa, onde apareceram instantaneamente umas imagens. - A vida e a morte são assuntos que vão influenciar, não só o seu futuro, mas também o futuro de Fortriu. Se tudo correr de acordo com os planos de Broichan, o destino de Bridei vai levá-lo para longe de ti. Vê por ti própria.
- Não quero olhar - disse Tuala, ouvindo o tremor da própria voz. - Tu és capaz de manipular essas imagens, mostrar-me apenas o que queres que eu veja. Não me podes obrigar a olhar.
- Por que é que vieste aqui, senão para o ver? - Perguntou suavemente a rapariga. - Por que hás-de passar tanto tempo neste lugar solitário, senão para estares perto dele, quando ele está longe? Quando estas águas mostram o seu rosto, tu não consegues deixar de olhar.
Tuala curvou a cabeça. Eles tinham razão: ir ali com aquele frio, percorrer aquele caminho todo e não ver Bridei, quando sabia que a sua imagem esperava por ela na superfície do Espelho Negro estava para além das suas forças. A jovem, porém, sentiu um certo embaraço quando se debruçou sobre a água uma vez mais. A sua nudez aparecera, pálida e estranha, pouco tempo antes, na superfície escura e a jovem sentia-se inquieta por olhar novamente para aquela mesma superfície em busca de uma imagem do seu amigo de infância. Tuala sentia que havia ali algo de errado, não acreditava, nem por um momento, que os seus companheiros do Outro Mundo não mudariam nem distorceriam a mensagem do Espelho Negro para os seus próprios fins. No entanto, tinha de olhar.
A jovem viu vislumbres rápidos, que desapareciam antes de ter tempo de os absorver: Bridei cavalgando ao lado de Gartnait, os dois forçando as montadas numa rivalidade mutuamente escondida. Aquilo não surpreendeu Tuala. A jovem observara demasiadas vezes o filho de cabelos ruivos de Talorgen durante os Verões que ele passara em Pitnochie. Por baixo das suas feições desajeitadas, Tuala vira algo mais: o desejo apaixonado de igualar Bridei em força e habilidade visto que sabia nunca poder igualá-lo em conhecimento. A jovem vira o desespero de Gartnait tentando provar o seu valor perante o seu pai e compreendera o que Bridei não compreendera: que o seu companheiro bonacheirão tinha uma grande ambição no coração. Para um rapaz como Gartnait, a facilidade com que Bridei aprendia tudo era difícil de aceitar. Gartnait não sabia nada dos longos tempos de solidão, as horas de paciência e de autodisciplina. O jovem não sabia o que significava ser afastado de casa com a tenra idade de quatro ou cinco anos sem perceber porquê.
A imagem mudou e Tuala viu Bridei a lutar com outro homem, uma luta de vida ou de morte, com facas. A imagem durou apenas um momento. Em seguida, Bridei sozinho, de noite, a olhar na escuridão para a chama de uma vela solitária que deixava ver os seus olhos sombrios, a ruga na testa, a boca cerrada.
- Ele precisa de mim - murmurou Tuala.
Em seguida, já não era noite, era dia, ele estava sentado num banco ao lado de um lago com peixes e tinha uma rapariga junto de si. A jovem tinha cabelos ruivos e sardas, como as de Gartnait, nas faces e no nariz delicado, estava vestida como uma dama, com os cabelos seguros por uma fita bordada, uma madeixa artisticamente solta por cima de uma orelha e usava um vestido encarnado e castanho, orlado com o mesmo verde e azul da fita do cabelo. Os seus pés estavam metidos em finos sapatos de pele. A rapariga estava sentada ao lado de Bridei e parecia tão solene como ele enquanto o escutava atentamente. Bridei inclinou polidamente a cabeça e ela disse algumas palavras erguendo o rosto para ele. Com as suas feições agudas, a jovem era bonita, um pouco como uma raposa. Tuala podia ver, pelos olhos de Bridei, que o jovem a admirava.
- Está mesmo bem para ele - observou secamente o Homem-Folha, ao mesmo tempo que a imagem se fracturava e dispersava. A filha de uma família amiga, de sangue real, rica e apresentável e um ano ou dois mais nova do que ele. Ele tem de partir primeiro para a guerra, claro; tem de provar o seu valor no campo de batalha na Primavera. Mas está-se mesmo a ver como a coisa vai acabar. Ele sente-se à vontade ao pé dela.
- Ele precisa de mim. - Tuala tremia apesar do calor da estranha capa em que estava envolta. - Ele tem de regressar a casa. – Nenhuma rapariga elegante de sangue real sabia ouvi-lo como ela, sabia arrancar um sorriso àquele rosto solene como ela, estar perto quando ele lutava com as grandes questões que o preocupavam como ela, e muitas coisas mais. Nenhuma visão deslumbrante a poderia convencer do contrário. Aquilo só significava que ninguém compreendia os laços que os uniam; ninguém, senão ela e Bridei.
- Não, Tuala - disse a rapariga da floresta. - Ele já abriu as asas; serias capaz de cortar as asas a uma águia?
- Uma águia não pode voar sempre - disse Tuala, tentando manter uma voz confiante. - Precisa de descansar para que possa continuar depois com coragem. Para isso, ele precisa de mim.
- Tens a certeza? - perguntou o Homem-Folha. - Não seria melhor seguires o teu caminho e utilizares os teus próprios talentos? Ainda agora começaste a descobrir quem realmente és.
- Bridei já não precisa de ti. - A voz da rapariga era doce como o hidromel, suave como a de uma mãe. - A vossa foi uma amizade de infância, que vos foi muito útil. Esses tempos passaram. Ele seguiu em frente e tu deves fazer o mesmo.
- Parece que tens medo dos planos que Broichan tem para ti disse o homem - mas tens de fazer o que ele quer. Escolhe o outro caminho. Foi por causa dele que vieste aqui ter connosco. Não negues. Sabes muito bem que o teu caminho está na floresta. Nós ajudamos-te a encontrá-lo. Abrimos-te a porta para que possas entrar.
- Levamos-te para casa. - A voz da rapariga parecia um instrumento do outro mundo, melodioso, soando sobre as águas escuras. Tuala sentiu um arrepio. Aquilo era um feitiço, era o que era, um encantamento, uma armadilha; a jovem desconfiara do Homem-Folha com os seus sorrisos astutos e os seus olhares libertinos, mas a rapariga, bela e suave, era mais perigosa. Fora louca em ter deixado que aquilo acontecesse, ter deixado que aquela voz suave e aquelas visões insultuosas a influenciassem. As suas mãos ergueram-se para tirar a capa dos ombros. O seu corpo ficou tenso, pronto para fugir. Só precisava de se levantar e correr; conhecia o caminho pelo carreiro acima, ao longo da orla do vale e depois à sombra dos vidoeiros, dos carvalhos e dos azevinhos, de regresso às terras de Broichan e à segurança. Aqueles dois não a seguiriam assim que ela passasse para lá das pedras brancas à entrada do Vale dos Que Caíram. Pelo menos, era o que esperava.
Porém, se fugisse, saberiam que as suas palavras a tinham atingido, saberiam que tinham conseguido, finalmente, assustá-la. Não lhes daria aquela pequena vitória, depois de a terem magoado com os seus comentários cruéis. Aqueles dois não eram os únicos capazes de distorcer as imagens de uma visão para ilustrar um determinado ponto. Tuala respirou fundo e olhou de novo para as águas do Espelho Negro. A jovem fixou a mente na Que Brilha; imaginou o disco cor de prata da Dama e invocou a imagem de uma mulher alta e bela com um bebé nos braços. A água brilhou, agitou-se e ficou novamente imóvel. Na sua superficie apareceu a imagem de Bridei em criança, pequeno, descalço, com os pés azuis do frio a verem-se por baixo da camisa de noite, de pé na soleira da porta, a meio da noite. O jovem olhou para baixo. O espelho não mostrou o que ele estava a ver, apenas a mudança maravilhosa no seu rosto, um rosto demasiado solene, demasiado circunspecto para uma criança que devia ter estado a pensar em dias de sol, em brincadeiras e na família. Na água, Bridei ajoelhou-se, olhou e os seus olhos encheram-se subitamente de luz e as feições pequenas encheram-se de alegria. O jovem pôs-se de pé, olhou para cima e A Que Brilha olhou para ele, tocando-lhe no rosto com um raio prateado. Tuala não conseguiu ouvir o que ele estava a dizer, mas reconheceu o significado das suas palavras no seu coração; uma promessa profunda, uma afirmação de responsabilidade. Bridei debruçou-se para pegar no que estava aos seus pés e sorriu. O seu olhar era diferente, um olhar que se destinava unicamente a ela. A imagem desvaneceu-se e desapareceu.
Subitamente ficou tudo silencioso no Vale dos Que Caíram, tão calmo que era como se o tempo tivesse parado enquanto o Espelho Negro reflectia aquela visão. Tuala pestanejou, esfregou os olhos e olhou para a esquerda e para a direita. Estava só. Tão subtil e silenciosamente como tinham chegado, os seus companheiros do Outro Mundo tinham-se ido embora. A sua Visão desagradara-lhes, era evidente. A jovem não compreendia bem a sua atitude; afinal de contas não eram leais À Que Brilha? Talvez tivesse sido a sua teimosia a afastá-los, ou talvez esperassem que ela lhes desse as mãos e os seguisse para a floresta naquele mesmo dia, para nunca mais regressar ao mundo dos mortais. A jovem nem sequer lhes perguntara os nomes.
A chuva começou a cair e transformou-se rapidamente num aguaceiro, ensopando-lhe a capa, o xaile e a túnica. Tuala tapou a cabeça com o capuz e continuou a andar. As suas botas começaram a ficar pesadas devido à lama. Há muito que a jovem desejava que os Boa Gente se manifestassem e lhe começassem a dar algumas respostas. Finalmente, tinham-no feito, mas ela aprendera pouco. Talvez eles tivessem para ela uma espécie de lar. Abrimos-te a porta para que possas entrar, tinham-lhe dito. Gostaria de saber o que significavam aquelas palavras, mas apenas se tivesse a garantia de que poderia regressar e já tinha ouvido suficientes histórias para saber que tal passo era possível. Se passasse para o outro mundo, ficaria apanhada para sempre, ou ficaria lá um dia ou dois, comendo e dançando, para regressar depois e descobrir que a sua família tinha morrido havia mais de duzentos anos. Além do mais, não iria para lado nenhum sem Bridei e o caminho de Bridei era no mundo dos humanos, dos druidas, dos reis e das guerras. Tuala não acreditava, por mais raparigas parecidas com raposas que lhe mostrassem, que alguém a pudesse substituir na vida dele. Pertenciam um ao outro, era muito simples.
A jovem chegou a casa depois do escurecer, cheia de frio, molhada e exausta. Quando saiu de sob os carvalhos a patinhar na lama e com a capa saturada de água em redor dos ombros, viu os rostos pálidos dos homens de armas de guarda reunidos em redor de uma pequena fogueira virarem-se para ela e desviarem-se rapidamente logo a seguir.
A porta da cozinha estava fechada. Tuala bateu nela com as mãos geladas. A jovem pensou na imagem que vira na lagoa, uma criança naquele mesmo local, olhando para baixo, para um bebé abandonado na neve na noite do Solstício de Inverno. Tuala esperou com o corpo a tremer de frio. Bridei não estava ali para a deixar entrar. A jovem ergueu a mão para bater novamente, mas antes de o fazer o ferrolho foi levantado e a pesada porta abriu-se. Tuala viu a luz de uma lanterna, o calor da lareira, o semblante carregado de Mara e entrou.
- Erip está muito mal - disse a governanta, correndo novamente o ferrolho. - Tira essa roupa encharcada e dá-ma. Depois, podes ir ter com ele.
Está mesmo muito mal? - perguntou Tuala com os dentes a tremer. O súbito choque do calor da lareira estava a deixá-la fraca e tonta. Mara cerrou os lábios.
Vai ser uma longa noite - disse ela. - Vai vestir roupa seca e tira já essas botas. Vais sujar o chão todo da cozinha. Ferat mata-te.
uala descalçou as botas enlameadas, agarrou na vela acesa que ela lhe estendia e correu para o seu quarto. A jovem despiu-se a tremer, esfregou-se num pano seco e vestiu roupa seca, um vestido de lã e um velho xaile que pertencera a Brenna que estava pendurado num prego na porta. Tuala pegou nas roupas molhadas e regressou à cozinha, sentindo-se de algum modo grata a Mara. Não se podia dizer que aquela mulher enorme fosse uma pessoa amável, mas era, pelo menos, consistente. Erip: como pudera estar tanto tempo fora quando o seu amigo estava às portas da morte?
Mara pegou nas roupas encharcadas sem qualquer comentário e começou a pendurá-las por cima da lareira. Junto às chamas estava um pote de sopa e em cima da mesa de pedra onde Ferat trabalhava estava uma malga a fumegar, com um naco de pão ao lado.
- Come - disse Mara. - Não me posso dar ao luxo de também te ter a ti doente, ainda por cima por teres decidido ir sozinha para a floresta com este tempo. Come, aquece-te.
- Disse que eu podia entrar - disse Tuala, depois de ter comido a sopa quase toda. - Isso quer dizer que as regras mudaram outra vez?
- Regras? A única regra que eu cumpro é a do bom senso. Não tem pés nem cabeça encher o quarto minúsculo de um velho com uma data de gente. O doente fica exausto, mas não sou eu que mando. Não é graças a mim que podes lá entrar, é graças a ele. Foi ele que pediu.
- Não deve ter sido a primeira vez - sentiu-se Tuala na obrigação de dizer. - Ele está muito fraco, mais nada. Eu disse-lhe.
Mara olhou para ela, mas não disse nada.
No pequeno quarto de Bridei, com a pequena janela quadrada no alto da parede, Erip estava encostado a uma série de almofadas. O ancião suportava melhor a situação naquela posição. Naquela noite, a farfalheira no seu peito estava pior do que nunca, era claramente um sinal de morte. Wid estava a seu lado com as mãos longas e nodosas no colo e com uma expressão calma. A luz das candeias espalhadas pelo quarto iluminava-lhe o nariz adunco, a barba grisalha e os olhos encovados. Aos pés da enxerga, alto e imóvel no seu manto longo, estava Broichan.
Tuala parou na soleira. Os olhos do druida viraram-se para ela, impassíveis, como sempre.
- Oh... - disse ela, sem saber ao certo se devia dar uma explicação, pedir desculpa ou pedir para ficar, mas consciente de que estava ali a pedido do seu velho amigo.
- Entra - disse Broichan em tom grave, apontando para um pequeno banco junto da enxerga, ao lado de Wid. Tuala engoliu o que ia dizer, apercebendo-se subitamente de que quem a chamara fora o druida. Broichan era o único capaz de dar ordens a Mara. Tuala aproximou-se da cama de Erip e pegou-lhe numa das mãos. A jovem não olhou para Broichan. Talvez, se mantivesse os olhos afastados, ele não se apercebesse da sua cobardia. Tuala não conseguia aguentar-se na presença dele, nem sequer naquela ocasião, sem se sentir novamente com a idade de cinco anos e totalmente aterrorizada.
Erip estava a dizer qualquer coisa com uma voz rouca.
- Lá fora... chover - disse ele a custo. - Rapariga maluca... Tuala acenou com a cabeça, tentando evitar as lágrimas. Não podia
chorar naquela ocasião; o seu amigo tinha de partir com esperança, com alegria e com amor.
- Sim - disse ela em voz baixa - fui dar um passeio e fui apanhada por um aguaceiro. Devia ter secado o cabelo, mas quis vir ter consigo imediatamente. Mara disse que eu podia vir. - A jovem continuou sem se virar, sentindo, no entanto, que os olhos de Broichan a fixavam intensamente.
- Estivemos a contar umas histórias - disse Wid - e a cantar umas canções. Estivemos a recordar os velhos tempos.
Tuala olhou para ele e sentiu que a dor que lhe marcava as feições nos últimos dias tinha abrandado um pouco apesar da iminência da morte. Talvez as histórias os tivessem ajudado a ambos. Quanto a Broichan e ao seu papel naquele minúsculo quarto, Tuala não fazia a mínima ideia. O druida parecia ser o tipo de homem que nunca tinha amigos.
- Onde foste? - perguntou ele abruptamente, como um gato saltando sobre um rato.
Tuala fez um esforço para respirar devagar, tal como Bridei lhe ensinara.
- A um lugar na floresta onde posso... onde vejo imagens do que pode vir a acontecer.
- Olha para mim, Tuala.
A jovem virou o rosto para o druida; os seus olhos escuros fixaram-se nos dela. Naquela noite, Broichan estava pálido; as rugas que lhe desciam do alto do nariz até à boca pareciam mais profundas. Que espécie de imagens? Imagens sobre quem? Sobre ti?
A jovem não lhe queria falar daquilo, não lhe queria dizer nada. O Espelho Negro e as suas verdades eram secretas, privadas. Falar delas seria partilhar um segredo e Broichan era a última pessoa a quem ela se confessaria. O druida era a pessoa de quem ela mais desconfiava. Além do mais, se lhe contasse o que tinha acontecido naquele dia, talvez não conseguisse evitar dizer-lhe com quem tinha estado na lagoa.
- Eu não procuro nada em especial - disse ela, escutando o seu próprio tom de voz empertigado, consciente de que estava a dar a entender que estava a mentir. - Procuro apenas o que está para vir em geral. - Tuala não conseguiu aguentar o olhar do druida. A jovem olhou para as próprias mãos, agarradas com toda a força à de Erip.
- Diz-me a verdade - disse Broichan. - Exijo isso, pelo menos, da parte de uma criança que foi criada em minha casa. Aprendeste essa habilidade com Bridei, não aprendeste? Não acredito que ele não te tenha transmitido alguma sofisticação.
Erip começou a tossir e a tentar respirar e durante algum tempo todos tentaram ajudá-lo no que parecia ser uma batalha perdida. O corpo do ancião estava demasiado fraco para aquela luta terrível. Finalmente, os espasmos cessaram; o ancião voltou a respirar com alguma normalidade, mas sempre com dor. Havia sangue nos lençóis. Wid chegou-lhe uma caneca de água; debilmente, Erip abanou a cabeça. O ancião estava a tentar dizer qualquer coisa; tinha os olhos vermelhos e febris virados para Tuala.
- Bridei... - murmurou ele.
- É verdade - disse Wid, olhando para o druida. - O que Broichan te queria perguntar, Tuala, nos seus modos sinuosos de druida, era se a tua ida à floresta tinha tido a recompensa de algumas notícias do nosso rapaz. Erip sente-se triste por o seu aluno preferido não estar em casa; Bridei também há-de ter pena de não estar neste momento em Pitnochie. Se tiveste alguma imagem dele, e se não te importasses de nos falar dela, Erip ficaria muito feliz. Nós sabemos que deve ser muito difícil para ti.
Não seria difícil, pensou Tuala, se aquele homem não estivesse a olhar para mim com aqueles olhos cheios de ódio. Sem ele, só com os meus dois amigos, diria tudo alegremente. Apesar de todo o seu pouco à vontade, Tuala sabia que tinha de falar do que vira, pelo menos alguma coisa.
- Vi-o. - Aquilo saiu num sussurro. Tuala clareou a garganta e tentou encontrar um tom de voz mais confiante. - Num combate corpo-a-corpo; cavalgando com Gartnait; conversando com uma rapariga que eu acho que era irmã de Gartnait. As imagens pareciam ser de agora; a estação era o Inverno e Bridei estava como quando se despediu de mim a última vez.
- Ele estava bem? Feliz? - perguntou Broichan com um tom de voz novo. Tuala desconfiou que as notícias eram mais para ele do que para Erip.
- Pareceu-me. - A jovem recordou a imagem que omitira, a de Bridei durante a noite, preocupado com um problema grave qualquer. Contra a sua vontade, a jovem disse: - Ele quer voltar para casa.
Seguiu-se um pequeno silêncio. Finalmente, Broichan disse:
- Como é que sabes?
- Vi-o no rosto dele. Ele tem... um pressentimento. - Dissera o que não devia, mas por mais que Broichan insistisse, não diria mais nada.
Erip suspirou. Os dedos do ancião apertaram os dela como uma folha seca, uma planta suave e insubstancial, como se já tivesse começado a desistir do seu corpo e estivesse prestes a iniciar a sua viagem para o reino dos espíritos.
- Obrigado - disse ele, e fechou os olhos.
- Ele não pode regressar enquanto a incursão de Talorgen não terminar. - O tom de Broichan não admitia réplica. - E a incursão só terminará no Verão se tudo correr como planeado. O rapaz tem de ter coragem. Que mais é que viste? Uma luta, disseste. Uma batalha? Uma batalha grande?
Tuala olhou para ele.
- Não vi nada disso - disse ela. - Só vi uma luta entre Bridei e outro homem. Ambos tinham facas, e sei que ele está bem.
- Como é que sabes?
- Se ele estivesse ferido, eu saberia. Não preciso de olhar para o Espelho Negro para saber isso.
- O Espelho Negro - repetiu Broichan calmamente. Portanto, tu vais ao Vale dos Que Caíram. Porquê? O que é que tu vês que não possas ver mais perto de casa? Segredos? Gente?
Nada que vós não consigais ver, meu senhor, tenho a certeza. A vossa perícia nesta arte deve ultrapassar a minha, a mim ninguém ma ensinou. - Na verdade, há muito que a jovem perguntava a si próPria por que razão ele nunca a interrogara sobre o assunto. Broichan era druida de um rei, no fim de contas; era capaz, certamente, de invocar visões muito mais poderosas do que as dela. - Eu disse a Erip que Bridei parecia estar bem, que tem saudades de casa e dos amigos. Ele ficou satisfeito. É a verdade, mas não digo mais nada.
Seguiu-se um silêncio àquelas palavras, um silêncio durante o qual Tuala esperou que Broichan a mandasse embora do quarto. O facto de o ter enfrentado tinha-a enchido de suores frios. O druida, porém, não disse nada e quando finalmente ela se aventurou a olhar, ele estava muito simplesmente aos pés da enxerga a olhar para Erip com uma expressão distante, com o pensamento noutras coisas completamente diferentes. Naquele momento, Tuala recordou uma coisa que a rapariga da floresta lhe dissera. O druida do rei tem um ponto fraco, o seu afecto pelo rapaz. Era possível que as perguntas de Broichan tivessem pouco a ver com a sua estratégia e planos, ou com o facto de não gostar dela e muito com uma coisa muito simples: o amor e ansiedade de um pai pelo seu filho ausente. Para Tuala, aquilo era uma revelação, quanto mais pensava na hipótese, mais ela lhe parecia plausível e quanto mais plausível, mais lhe parecia possível ver Broichan como um homem e não como um poder terrível, esmagador.
- Alguma vez te falámos - disse Wid - de quando ensinámos Bridei a beber cerveja como um homem?
Tuala sorriu; ouvira aquela história vezes sem conta.
- Foi assim...
Depois daquela, seguiu-se outra e depois outra história. Tuala contribuiu com algumas da sua lavra, histórias infantis que Brenna lhe contara, histórias de animais maravilhosos e heróis corajosos contadas por Bridei noite após noite antes de ela adormecer, provavelmente aprendidas com aqueles dois estudiosos. De madrugada, depois de Erip já estar para lá das histórias e de Tuala e Wid estarem exaustos de tanto falar, Broichan começou a recitar as suas orações. A voz do druida era baixa, mas ressonante e forte ao invocar a bênção da Que Brilha e da Guardiã das Chamas e, finalmente, um pedido à Mãe de Tudo, guardiã da grande porta pela qual iria passar aquele intelectual velho e cansado. Tuala chorou, mas Wid não, se bem que a luz da alvorada que entrava pela pequena janela deixasse ver o brilho das lágrimas por derramar nos seus olhos. A respiração de Erip era quase inexistente, fazendo apenas erguer muito levemente o seu peito e tremer muito ligeiramente os seus lábios abertos. Os seus olhos estavam fechados. Tuala segurava-lhe numa mão e Wid noutra.
- Um espírito altruísta, forte e generoso - disse Broichan. Um homem cuja viagem foi longa; que percorreu muitos caminhos e que aprendeu com tudo o que viu, o bom e o mau. Fiel aos ensinamentos dos antepassados, apesar de os tentar esconder quando lhe convinha. Fiel às tarefas que iniciava em nome dos deuses. Um bom tutor. Recebei-o acima de tudo por isso, porque um bom tutor é raro. Um bom tutor sabe, não só como fazer um intelectual, mas também como fazer um homem. Facilitai-lhe a passagem porque foi um homem amado e porque amou, mas não vos esqueçais que o seu primeiro amor foi sempre a verdade. Pega-lhe pela mão; guia-o, Mãe de Todos, até ao abrigo dos sonhos. Deixa-o descansar um pouco e dá-lhe sonhos agradáveis nesta jornada. A ti, Mãe Misteriosa, pedimos isto para o nosso querido amigo. Honrá-lo-emos e recordá-lo-emos contando as suas histórias.
Fosse pela oração solene do druida do rei, ou pela sua bondade para com um bom ancião, a Mãe de Tudo deixou que Erip passasse pela porta com suavidade, como qualquer alma mortal. Não houve qualquer paroxismo final, nenhuma luta horrível por ar. O ancião exalou o último suspiro e imobilizou-se. Tuala levou a mão frágil aos lábios e depositou-a em cima do peito imóvel. Wid depositou a outra em cima da primeira. Tuala, Broichan e Wid permaneceram em silêncio enquanto os pássaros cantavam em coro no exterior, ao mesmo tempo que a luz da madrugada, pálida e clara, entrava pela pequena janela do quarto de Bridei, em cujo parapeito descansavam os talismãs que o jovem ali deixara antes de partir para Fonte do Corvo: três pedras brancas e a pena acastanhada de uma águia. Tuala apercebeu-se de que havia gente da casa no lado de fora da porta, que já ali devia estar havia algum tempo: Mara, Ferat, um dos rapazes da cozinha, Uven e um homem de armas.
- Foi-se embora, - disse Mara posteriormente. - É melhor descerem todos para tomar o pequeno-almoço; Erip não quereria que passassem fome por causa dele. Ele sempre gostou de comer. Depois, eu venho lavá-lo e prepará-lo. Brenna ajuda-me. Precisamos todos de dormir um pouco; Erip não se importa de esperar.
Sepultaram Erip num dólmen no alto do monte, perto do Amanhecer das Três Colinas. A chuva esperou até que a cerimónia terminasse. Depois, todos beberam cerveja, comeram pudim de frutos secos e ervas aromáticas do stock especial de Ferat e contaram histórias sobre Erip e a sua estadia em Pitnochie. Devido à ocasião, Broichan ficou no salão com os outros, mas contribuiu com pouco e Tuala achou que a sua presença silenciosa e vigilante punha toda a gente pouco à vontade.
A jovem ficou sentada toda a noite ao lado de Wid, silenciosa a maior parte do tempo. A sua única tentativa para contribuir para a reunião foi a história de uma brincadeira que Bridei tinha feito a Erip e de como o velho tutor lha tinha devolvido, mas foi recebida com um silêncio total, como se ela não tivesse o direito de falar, não tivesse o direito de se considerar amiga de Erip. Wid riu-se em voz baixa e deu-lhe uma pequena palmada no ombro. Dos outros, a jovem recebeu apenas uma desaprovação fria.
No dia a seguir ao ritual do funeral de Erip chegou um visitante: o velho druida desgrenhado, Uist, que estivera em Pitnochie no Verão em que Tuala fora mandada para Cumeeira de Carvalho e que passava ocasionalmente pelo Vale nas suas viagens misteriosas. O velho cumprimentou Broichan como por ocasião da sua visita anterior, numa demonstração de total menosprezo pelos bons costumes, mas honesta, sem dúvida. Uist visitou o dólmen e disse umas orações que ninguém compreendeu. Em seguida, Tuala apercebeu-se de que Uist não ia ficar em Pitnochie e que Wid também não. Este apareceu no salão com a sua capa e um pequeno saco de couro ao ombro e aquele, que acabava de regressar da sua visita ao dólmen, disse:
- Estás pronto?
Na rua, o frio era terrível; as encostas por cima de Pitnochie estavam envoltas numa bruma pesada que cobria também as águas do Lago da Serpente. Aqui e ali, o tronco de um grande carvalho, cheio de musgo, surgia misteriosamente do vapor branco acinzentado. Não era dia, ou estação, para um ancião andar pela floresta.
- Está na hora - anunciou calmamente Wid, pegando no cajado que descansava habitualmente junto da lareira. O ancião olhou para Tuala e a jovem leu nos seus olhos a verdade sobre o que parecia ser uma terrível e súbita traição. A jovem percebeu que, se ele ficasse, a sua dor seria insuportável. Para sobreviver, tinha de partir, tal como Erip.
- Tenho tanta pena que se vá embora - disse ela docemente. Os outros estavam perto e ela não podia dizer exactamente o que sentia, não podia dizer como era cruel perder o único amigo que lhe restava.
- Gostaria que me tivesse dito, mas compreendo. - A jovem conseguiu sorrir quando se pôs em bicos dos pés para dar um beijo em cada uma das faces do seu velho amigo. - Que A Que Brilha te acompanhe.
- Sê corajosa, pequena - disse Wid. - Que a Guardiã das Chamas te aqueça o coração. Voltaremos a encontrar-nos, não tenho dúvida. Espero que tenhas oportunidade de demonstrar a excelente educação que recebeste do velho e de mim. - Os seus lábios tremiam.
- Hei-de fazer com que se orgulhem de mim, prometo - disse Tuala, arvorando uma expressão confiante e forte. Porém, enquanto os via afastar, com o misterioso Uist todo vestido de branco na frente e com a figura alta e barbuda do seu velho tutor nos seus calcanhares, a jovem sentiu, enquanto a bruma os engolia, um frio terrível no peito. Tinham-se ido todos embora. Agora estava verdadeiramente só.
CAPÍTULO OITO
A Pedra Mágica era considerada a mais impressionante das pedras que assinalavam os antigos territórios dos Priteni. Maior do que um homem, tinha figuras esculpidas em ambos os lados, subtis e graciosas. A face norte contava a história de um grande conflito; no topo, um rei e os seus guerreiros avançavam para o combate, o monarca em cima de um robusto cavalo e os seus homens atrás com as lanças em riste, os cabelos longos caindo-lhes pelos ombros e os olhos fixos no horizonte. No centro estava representado o encontro dos Priteni com os seus inimigos; ali, o rei trespassava o peito de um adversário com a sua lança. Na base podiam ser vistas as cabeças dos inimigos espetadas em paus e os seus corpos dispostos em fila. A seu lado, um cão devorava um ganso. Talvez cada rei tivesse um daqueles animais no seu emblema.
A face sul da grande pedra tinha um padrão menos formal - um tributo bárbaro e alegre aos deuses, todas as espécies de animais existentes nos reinos dos Priteni: o lobo, o veado, a raposa, o texugo, a marta, o rato, a enguia, o salmão, o touro, o javali e o carneiro, todos distribuídos pela superfície da face da pedra numa maravilhosa demonstração de vida. Nos lados oriental e ocidental da Pedra Mágica viam-se grandes serpentes entrelaçadas, misturadas aqui e ali com rostos sorridentes de homens, mulheres e animais.
Bridei nunca a tinha visto. A Pedra Mágica estava longe, a oeste, onde o Lago do Rei se abria para o mar, e os celtas tinham assumido o controlo da encosta onde ela estava há gerações e gerações. Broichan tinha-lha descrito:
- É uma verdadeira maravilha, Bridei; não apenas por ser uma escultura perfeita, mas também por ter em si a história do nosso povo e o mistério dos nossos antepassados.
Erip dissera a Bridei, mais tarde, que os pequenos e estranhos rostos num dos lados eram um toque pessoal do escultor, a sua contribuição especial; em todas as obras de arte, dissera ele, era possível, se se olhasse com atenção, descobrir provas da necessidade do artista de se livrar das regras estabelecidas. As suas palavras tinham provocado uma discussão acesa com Wid. Bridei recordava-se dela e sorriu. O jovem imaginou os dois tutores em Pitnochie, imersos em debates filosóficos. Ainda bem que tinham Tuala para ensinar; a jovem era inteligente e manteria os dois malandros ocupados. Bridei sentiu-se melhor ao imaginar os três em frente da lareira, contando histórias, jogando ou discutindo história. Saber que a vida continuava em Pitnochie e que esperava por si era como saber que tinha uma âncora a que se agarrar, ou que o seu espírito continuava forte mesmo depois de ver coisas inimagináveis ou enfrentar riscos desconhecidos.
Não era que Bridei sentisse medo. O jovem fora ensinado a enfrentar qualquer situação, a medir as oportunidades e os perigos, a tomar uma decisão e a agir de acordo com ela. Os anos de tutoria de Broichan tinham assegurado que ele responderia desse modo, fosse qual fosse o acontecimento; Talorgen comentara, quando Bridei começara o seu treino com os guerreiros de Fonte do Corvo, que em questões de estratégia e avaliação o filho adoptivo de Broichan tinha pouco a aprender. Por outro lado, nenhum jovem, por mais prometedor que fosse, sabia do que era capaz antes de entrar pela primeira vez em combate. A pequena escaramuça, durante a qual Bridei e Gartnait tinham aprisionado cada um o seu espião, era uma coisa. Uma batalha a sério, era outra.
Talorgen ensinara-os bem. Os dois jovens tinham tomado parte em longas expedições num clima capaz de gelar o mais robusto dos homens; tinham passado fome, tinham sofrido a exaustão, a ira e o aborrecimento. Bridei achava que estavam prontos para uma coisa a sério, mas também sabia que era provável nunca estarem realmente prontos.
Ajudava ter Donal por perto. Donal dizia-lhe a verdade, preparava-o para o melhor e para o pior.
- Lembra-te do que te disse uma vez - disse Donal quando estavam juntos, saboreando um momento de paz, num intervalo dos intermináveis exercícios. Em breve partiriam e não havia tempo para grandes descansos. - A primeira vez é sempre muito mau, pensas no tipo que vais matar, no nome dele, se tem mulher e filhos, se tem medo, etc.
Mesmo assim, espetas-lhe a faca porque, se não o fizeres, faz-to ele a ti. Depois, aprendes a abstrair-te, deixas de fazer perguntas como, por exemplo, tenho mesmo que fazer isto? Não pensas neles como homens iguais a ti, pensas neles como o inimigo, uns celtas malcheirosos com as mãos manchadas com o sangue dos teus compatriotas e com almas negras como a noite. Então, não tens a mínima dificuldade em matar um filho, um marido, um pai; matas para destruir a desgraça de Fortriu. Não há outra maneira, Bridei. É estranho eu dizer isto, mas a melhor maneira de combater não é com o coração, ou com a barriga, é com a cabeça. Cabeça fria, limpa, sem preconceitos. Não é uma morte, é uma execução.
Bridei recebeu aquelas palavras em silêncio.
- Acredita no que te digo - disse Donal - não te podes dar ao luxo de ter escrúpulos. É por isso que treinamos vezes sem conta com as espadas, as lanças, as facas e as mãos nuas - para que, quando chegar a ocasião, não hesitemos. Ajuda a afastar o medo, também, se souberes os movimentos tão bem que és capaz de os fazer a dormir. Não olhes assim para mim, Bridei. Tu vais ter medo. Todos nós temos. Até Talorgen.
Bridei olhou para ele de relance.
- Pensei que tu não tinhas - observou ele. - Donal, vencedor de mais batalhas do que dedos eu tenho nas mãos e nos pés. Não foi o que me disseste uma vez?
Donal sorriu.
- Duvido que acredites nisso quando me vires em combate - disse ele. - O medo é bom se tirares partido dele. Mantém-te atento, à espreita.
- Creio que não vou ter medo - disse Bridei. - Creio que vou ser capaz.
- Não tenho dúvidas - disse Donal. - Mas vais ver coisas de que não gostas, coisas difíceis de aceitar. Nada prepara um homem para a morte dos seus amigos nem para os actos de selvajaria que são o pão-nosso de cada dia daqueles celtas. Essas coisas podem ficar na tua cabeça durante muito tempo.
Bridei não fez a pergunta, limitou-se a olhar para o companheiro.
- Aprendi a abstrair-me - disse Donal calmamente. - Fecho as recordações num canto da cabeça. Por vezes, elas conseguem sair. Por vezes, sonho com elas, mas poucas vezes. Um homem não se pode dar ao luxo de sonhar muito se quiser ser útil como guerreiro.
Não era a primeira vez que Bridei pensava no facto de Donal, um homem na meia-idade, não ter mulher ou filhos. Quando se falava em tais assuntos, o guerreiro tinha o hábito de se calar. Bridei aprendera a não lhe fazer quaisquer perguntas.
- Eu vou estar contigo, rapaz - disse Donal - mas não esperes que a coisa seja fácil.
- Eu não sou louco - retorquiu Bridei, sentindo-se corar.
- Eu não disse que eras, limito-me a dizer que um druida é capaz de te ensinar muitas coisas, coisas para além da compreensão de um homem simples como eu, mas não te prepara para isto, e o treino de combate ministrado por Talorgen e por mim também não. É só para que saibas.
- Eu sei - disse Bridei, pensando no Espelho Negro. - Os deuses mostraram-mo.
- Os deuses mostram-te relances, imagens, sombras - disse Donal. - Em combate vês sangue, membros arrancados, cabeças feridas, mulheres por terra de braços e pernas abertos onde os canalhas as deixaram, crianças esmagadas, casas incendiadas, para além dos cheiros e dos sons. Pior ainda, os teus camaradas transformam-se subitamente em estranhos. Essa é a parte mais difícil.
A voz de Donal mudara. Bridei olhou para ele.
- Que queres dizer com isso?
Donal cruzou os braços. Os seus olhos, muito juntos, assumiram um olhar distante.
- Talvez não aconteça - disse ele. - Talvez consigas passar por tudo escudado pelo sopro dos deuses. Seria bom. Estou a ouvir Elpin a chamar por nós; chegou a nossa vez de lançarmos as lanças. Vens?
Atravessaram o Vale em grupos de dez, partindo de Fonte do Corvo assim que as folhas começaram a aparecer nos ramos dos vidoeiros. Para trás ficou uma pequena força para guardar as propriedades de Talorgen; a sua família já tinha ido para a segurança da corte.
O exército de Talorgen aproximava-se dos cem homens quando iniciou a marcha, uma força, por escolha do seu líder, constituída principalmente por homens a pé, apesar de também levarem cavalos de carga com as provisões e algumas montadas, permitindo assim a rápida troca de mensagens quando o terreno era apropriado. Tinha-se discutido sobre aquela situação: se o problema da forragem não ultrapassaria a utilidade dos animais, com os quais um homem tinha mais visibilidade, alcance e velocidade. Havia uma outra divergência respeitante à utilização dos lagos; os homens e as provisões podiam ser rapidamente transportados de barco à vela, ou em jangadas, evitando assim marchas longas e cansativas que esgotavam as energias dos homens e lhes baixavam o moral. O argumento em contrário dizia que os barcos eram avistados pelos espiões no alto dos montes por cima dos Lagos Mágico e Rei; deixaria de existir o elemento surpresa se utilizassem a via aquática. Além do mais, o transporte dos barcos entre os lagos era tão cansativo como a marcha em si.
Finalmente, decidiram-se pela marcha, lenta, através dos caminhos mais escondidos. Os pequenos grupos progrediam separadamente, acampando próximo uns dos outros mas de forma independente, apagando os respectivos rastos o melhor possível e aproveitando as rochas e as árvores junto da água para se esconderem. O frio era permanente, os homens ficaram encharcados depois do primeiro aguaceiro que encontraram e Bridei habituou-se ao cheiro das botas molhadas, da lã encharcada e do suor de tantos corpos juntos. Sempre que possível, comiam o que encontravam pelo caminho para poupar as provisões que os cavalos transportavam.
Tinham partido pouco depois do festival de Harmonia, a marcha prolongava-se e alguns dos homens já começavam a dizer que nunca chegariam a tempo do Renascimento. Quando era possível, os dias de marcha eram longos, mas o clima nem sempre lhes sorria e havia ocasiões em que a bruma ou a chuva lhes tolhia dolorosamente o passo. Uma doença, que provocou vómitos e disenteria, atrasou-os durante muitos dias na margem sul de Lago Mágico, fazendo-os perder dois homens que foram enterrados com uma breve cerimónia antes de prosseguirem. As noites sucediam-se aos dias e estes novamente àquelas; as refeições eram tomadas em silêncio, os homens pareciam sombras em redor das fogueiras.
Bridei contava os dias fazendo umas incisões num graveto de vidoeiro que guardava no seu saco. Os dias eram passados a marchar e as noites a tentar dormir. Foram enviados batedores, que regressaram sem terem avistado o inimigo. Gartnait dizia, resmungando, que a marcha era demasiado lenta, que mal podia esperar para pôr as mãos no pescoço de um celta e que não teria a contemplação que tivera da primeira vez. Donal disse-lhe para se calar e ele calou-se. Na noite anterior, só tinham conseguido apanhar dois coelhos e os estômagos queixavam-se.
Num determinado ponto, quando Bridei achou que deviam estar perto da ponte que assinalava o extremo norte de Lago do Rei, Talorgen convocou os diversos grupos para um conselho. A força que tinha partido com cerca de cem homens aumentara à passagem pelo Grande Vale e tinham agora mais dois chefes tribais: Morleo de Longwater, alto, escorreito, de barba escura e Ged de Abertornie, um homem flamante e sempre bem-disposto, dado às roupas vistosas, com padrões elaborados, riscas e quadrados. Cada um dos líderes tinha trazido a sua própria força. Os homens de Ged tinham adoptado o modo de vestir do seu chefe e Donal comentara, em voz baixa, que os celtas vê-los-iam mal chegassem a meio de Lago do Rei porque brilhavam como contas com aquelas roupas amarelas e verdes.
O conselho foi simples; havia vários líderes, mas todos sabiam que o comando pertencia a Talorgen a mando do rei Drust e de todo o Fortriu e que, chegada a ocasião, as decisões tinham de ser tomadas com rapidez e eficiência, a uma só voz. Depois de conferenciar com Ged, Morleo e com os seus homens de confiança, incluindo Donal, Talorgen dirigiu-se às forças em presença. Os homens estavam reunidos numa clareira natural onde havia um pequeno maciço rochoso. No local corria um ribeiro, o que fazia com que o terreno parecesse uma esponja, mas era o único espaço aberto suficientemente grande que permitia que todos vissem o seu líder. Bridei ficou na retaguarda com Gartnait, perguntando a si próprio como se sentiria se Talorgen fosse o seu pai. O jovem supunha que, como o seu pai Maelchon era rei, também devia haver ocasiões em que ele devia falar às suas tropas, exortando-os a ter coragem e gostaria de assistir a um momento daqueles. Bridei não sabia se Gartnait tinha orgulho no seu pai. O filho de Talorgen parecia que não tinha nada na cabeça para além da ansiedade pelo combate com os Gaels.
- Somos um exército forte - dizia Talorgen - corajoso e moralizado, mas a luta que se aproxima não é do género de carregarmos todos juntos sobre o inimigo, esmagando-o com a força do nosso assalto inicial. Gabhran de Dalriada conhece o terreno. - À menção daquele nome, os homens assobiaram num acto de desaprovação. - Os homens dele estão espalhados pelo que foi em tempos o nosso próPrio território.
- E que voltará a ser nosso! - disse alguém, e outras vozes se lhe juntaram, apoiando-o.
- Em Galany's Reach, onde se ergue a Pedra Mágica, existe agora uma aldeia fortificada. Os nossos espiões dizem que não é muito forte. Uma guarnição de trinta homens, talvez, mas mais se já sabem da nossa vinda. Também há lá pessoas normais, mulheres, crianças, artesãos, escravos.
- Escumalha - resmungou alguém.
- Uma força como a nossa é capaz de a tomar com facilidade. Porém, como julgo que todos compreendem, defendê-la depois vai ser mais difícil. Aquele monte e o vale abaixo dele eram as terras de Duchil de Galany, um dos nossos chefes tribais mais corajosos. Duchil morreu durante o último combate contra os Gaels. - Talorgen curvou a cabeça por momentos. - Os que sobreviveram foram expulsos, vivem no exílio desde então. Fokel, filho de Duchil, estará connosco com os seus guerreiros.
Um par de homens saudou aquelas palavras com alguns vivas; a maioria ficou silenciosa. Talvez - pensou Bridei, tivessem ouvido dizer, tal como ele, que Fokel era conheciddo por ser um homem mau, selvagem e imprevisível.
- Sabemos - disse Talorgen - que podemos tomar a aldeia e o monte. Também sabemos que no momento em que as nossas forças emergirem dos bosques para atravessar a ponte, em Cataratas da Raposa, as sentinelas passarão palavra sobre a nossa aparição. Pouco depois, todas as fortalezas saberão e a notícia chegará pouco depois ao seu rei em Dunadd. A rapidez da sua resposta depende da dispersão ou concentração dos seus homens de armas. As informações que temos não são boas nesse aspecto. Creio que seríamos capazes de aguentar Galany's Reach durante uma lua, no máximo. Provavelmente, acabaríamos por ficar cercados pelas forças de Gabhran no alto do monte. Vou ser franco convosco, homens. Esta missão é simbólica; um aperitivo do que vai acontecer às forças de Dalriada. Avançamos, atacamos, recuamos. Destruímos-lhes a guarnição e levamos reféns: o líder, mulheres e crianças. Em seguida, retiramos.
Para Bridei, aquilo fazia sentido. Se fosse líder, faria exactamente a mesma coisa. Erip e Wid tinham-lhe falado da longa história daquela guerra. Os três tinham analisado exaustivamente as grandes batalhas sangrentas entre Fortriu e Dalriada, os avanços heróicos pelo Vale fora, as retiradas, as vitórias e as derrotas. Para Bridei, era evidente que uma força como a de Talorgen nunca conseguiria aguentar um território tão vasto como aquele durante muito tempo. Sem o apoio dos exércitos de Circinn, Fortriu nunca conseguiria expulsar os Géis. Aqueles homens, porém, não tinham a sua educação. O seu desejo de vingança era grande; as suas energias estavam fixadas nos Gaels. Ouviu-se um coro de protestos.
- Retiramos? Nós não estamos aqui para retirar!
- O quê? Deixar que aquela escumalha fique com as terras que nos roubaram? Nem pensar!
- Eu digo que devemos dar cabo deles!
Morleo de Longwater, ao lado de Talorgen, ergueu uma mão e os gritos transformaram-se em murmúrios.
- Esta missão - disse ele com gravidade - é um sinal para eles de que somos fortes, rápidos e inteligentes; que o nosso número está a crescer e que as nossas alianças são fortes; que não esquecemos as baixas que infligiram ao nosso povo. Ergamos o estandarte de Drust, o Touro, e com ele os de Fonte do Corvo, de Longwater e de Abertronie - disse ele, virando-se para Ged e acenando com a cabeça. Ergamos também as estrelas e a serpente, os símbolos antigos de Galany's Reach.
- Depois - disse Ged, vistosamente vestido - faremos uma cerimónia, talvez o ritual de Renascimento, ou outro. Iremos para o topo do monte em redor da Pedra Mágica e consagrá-la-emos uma vez mais aos nossos deuses: à Guardiã das Chamas, à Que Brilha, à Mãe de Tudo e à bela Todas as Flores. Faremos com que os prisioneiros a testemunhem. Em seguida, libertamos um ou dois para que contem tudo a Gabhran e aos seus chefes. Depois, retiramos. Mais tarde, regressaremos com um exército com que estes Gaels nunca imaginaram.
Os guerreiros rugiram, satisfeitos; Ged tinha um tom de voz agradável e a simplicidade do seu discurso tinha tocado fundo no coração dos homens. Bridei não aplaudiu. O seu pensamento estava naquele exército, uma força suficientemente grande para varrer da face da terra a ameaça de Dalriada; o exército que não poderia existir sem a ajuda de Circinn. Só quando o reino dividido dos Priteni se unisse no objectivo comum é que uma tal empresa seria possível. O jovem reparou no?s olhos brilhantes dos homens, nas suas expressões orgulhosas e sentiu que os seus pensamentos estavam no ano seguinte, ou no outro. aqueles guerreiros estavam cheios de esperança, acreditavam que a vitória estava próxima. Talvez aquele fosse o estado de espírito ideal na véspera de uma batalha.
Prosseguiram na manhã seguinte, dessa vez com os chefes respectivos, Talorgen, Ged e Morleo, se bem que um ou dois dos homens tivessem amigos num grupo ou noutro, mas à noite juntavam-se em redor da fogueira a comer um carneiro assado - mais tarde o fazendeiro seria compensado - ou uma truta bem gorda. Contavam-se histórias e cantava-se, mas sempre em voz baixa. O tempo melhorou; Talorgen ordenou dois dias de descanso e os ramos mais baixos dos amieiros e dos salgueiros engrinaldaram-se com roupas a fumegar sob o calor fraco do sol da Primavera.
Já não estavam longe da ponte de Cataratas da Raposa. O exército não prosseguiria enquanto as forças de Fokel não chegassem. Aquele bando de guerreiros exilados vivia nas montanhas perto de Cinco Irmãs, uma região sinistra e marginal e, pelo que Bridei ouvira, aquele chefe tribal e o seu pequeno grupo de homens dedicados tinham desenvolvido um temperamento de acordo com a terra em que viviam. Bridei perguntou a si próprio se Fokel ficaria satisfeito com um raid daqueles ao seu território ancestral, pelo qual o seu pai lutara e morrera. O jovem comentou o seu pensamento com Donal quando estavam acocorados na margem do ribeiro, tentando tirar a sujidade das roupas.
- Não digas isso em voz alta - murmurou Donal - apesar de ser verdade. Talorgen gostaria de deixar Fokel de fora disto, se queres saber. Porém, não pode. Trata-se da terra dele, do seu lar. Talorgen não podia deixar de lhe falar na expedição! Foi um risco calculado, provocou-lhe muitas noites sem sono, mas são mais homens, e bons.
- Hum - disse Bridei. - A questão que se põe é: a quem vão eles obedecer? - O jovem sentia-se cada vez menos à vontade, concordava com os planos de Talorgen, faziam sentido dado o número e a posição do inimigo, aprovava a ideia de um ritual em Galany's Reach porque o papel dos deuses devia ser reconhecido e honrado em todas as campanhas. Porém, sentia-se pouco seguro. De que valeria aquela vitória simbólica se os estandartes de Fortriu fossem rasgados no momento em que as forças de Talorgen se afastassem? De que valeria comemorar o Renascimento se a Pedra Mágica ia continuar em território inimigo, insultada, talvez até desfigurada? A cerimónia seria suficiente para demonstrar o respeito pelos poderes antigos? Bridei sentia que não.
- É claro - observou Donal, torcendo uma peça de roupa de cor indefinida - Drust usará os reféns para conseguir concessões de Gabhran, se puder. Se conseguirmos capturar um chefe tribal importante, ou um seu parente, será bom. Talorgen é um bom estratega. Estás com dúvidas, Bridei. O que é que te preocupa? Estás com escrúpulos outra vez?
- Estou só a pensar. - Bridei pendurou a sua roupa no ramo de um salgueiro, achando que ao cair da noite estaria praticamente seca. O jovem encostou-se a uma rocha cheia de musgo, observando os homens desfrutando aquele período de descanso: alguns pescavam, outros dirigiam-se, para o topo do monte com os seus arcos e respectivas aljavas e outros entregavam-se a pequenas tarefas domésticas. Alguns dormiam enrolados nos seus cobertores.
- A pensar em quê? - perguntou Donal distraidamente. Bridei, porém, não lhe respondeu. Na sua mente formava-se um
plano, tão louco que nem ele próprio acreditava nele. A ideia era maluca, das que nasciam da emoção, não da avaliação dos riscos e das hipóteses. No entanto, ela estava ali, grande, pouco plausível e louca: um acto simbólico que faria com que a história de Fortriu soasse como um grande sino de esperança.
- Não - murmurou o jovem para si próprio. - Não, não me parece.
- O quê? - disse Donal.
- Tu estiveste em Galany's Reach, não estiveste? - perguntou-lhe Bridei. - A que distância fica da margem do lago? És capaz de me desenhar um mapa aqui, na areia?
Tuala prometeu a si própria e À Que Brilha que dali para a frente seria forte. A jovem lembrou-se que Bridei fora para aquela casa quando era muito pequeno, que não tinha amigos ou família, mas que conseguira sobreviver perfeitamente. Bridei até se tinha tornado amigo de Broichan. Na verdade, se a sua educação tivesse sido diferente, talvez tivesse mais facilidade em sorrir. Porém, não havia dúvida de que Bridei aproveitara as oportunidades e Tuala tinha a obrigação, por ele, de tentar fazer o mesmo.
Erip morrera e Wid fora-se embora. Já não tinha tutores. Mara tornara claro que não queria Tuala por perto. A cabana de Brenna era território proibido e os homens não falavam com ela. Que havia de fazer? Era uma loucura tentar ir novamente ao Vale dos Que Caíram com o frio que estava e com os movimentos vigiados por um ou outro membro da casa, como se ela fosse subitamente transformar-se numa espécie de feiticeira e lançar-lhes um feitiço.
Havia momentos em que Tuala desejava fazer aquilo mesmo e perguntava a si própria o que aconteceria, mas continha-se. Uma coisa era exercitar um pouco tais poderes na presença de amigos como Erip e Wid, outra era empregá-los diante daqueles que já a temiam, seria o mesmo que chegar lume a lenha seca.
A jovem praticou na relativa privacidade do seu quarto, utilizando uma pequena tigela de bronze que encontrara na despensa. O recipiente era estranho, tinha pés em forma de garra e asas em forma de cabeça de dragão. Recordando os preceitos dos seus tutores, incluindo Bridei, Tuala tentou aperfeiçoar as suas capacidades e encontrar novos meios de as utilizar. Qual era o objectivo de tais actividades, senão aprender? Assim, a jovem praticou a invocação de imagens relacionadas com um tema, ou um elemento de um todo, como a linhagem real, o antigo conhecimento dos símbolos ou a própria Pitnochie: os segredos e as recordações existentes nas paredes espessas, os tapetes, as divisões escuras e fumarentas. Aquela casa conhecera muita gente, chefes tribais, famílias inteiras e outros druidas como Broichan, se bem que desta espécie houvesse poucos. O percurso deste fora bem invulgar; habitara durante muitos anos na corte, desempenhando o papel de conselheiro do rei e movendo-se no círculo dos homens de negócios. Mais tarde, regressara a Pitnochie, mais como proprietário rico do que como líder espiritual. As aparências iludiam; Tuala não precisava de olhar para as imagens na água para saber que Broichan era as duas coisas ao mesmo tempo e muito mais.
Estar sentada durante muito tempo em frente da tigela fez-lhe doer o pescoço e os olhos. Por vezes, as visões faziam-na entristecer e por vezes davam-lhe volta ao estômago. A jovem nem sempre conseguia retirar uma lição do que via. O corpo estropiado de uma criança; homens esvaindo-se em sangue e outros tentando, em vão, salvá-los; um pequeno cão aninhado contra o seu dono morto: que diziam aquelas imagens, senão que o mundo era cruel e que a humanidade transportava consigo as suas próprias tragédias? A jovem já sabia aquilo; não precisava que a água lhe mostrasse aquilo vezes sem conta. Por vezes, sonhava com aqueles mesmos sinais e presságios durante a noite, com a tigela vazia e metida numa caixa. Quando aquilo acontecia, parava durante algum tempo. Bridei avisara-a de que o uso excessivo de certas capacidades da magia podia levar à obsessão e à loucura. Uma grande parte da arte residia na capacidade de saber quando parar.
Tuala tinha consciência de que estava a ficar cansada. O sono não aparecia com facilidade e os sonhos eram um emaranhado de olhos fixos em si, de mãos tentando agarrá-la, de facas espetadas no coração, cordas em redor do pescoço e gente partindo para não mais regressar. Muitas vezes, nem sequer lhe apetecia comer. À mesa era como se não existisse, os olhos das pessoas deslizavam por ela e os seus comentários excluíam-na. O único que olhava para ela de frente era Broichan e as suas feições severas pareciam ligeiramente desaprovadoras ou avaliadoras, o que a inquietava ainda mais porque lhe diziam que o druida estava a planear qualquer coisa.
À medida que a estação avançava, os dias iam ficando mais claros e Tuala começou a ir novamente até à floresta. A distância até ao Vale dos Que Caíram parecia-lhe maior e as pernas doíam-lhe. O frio dos primeiros dias de Primavera fazia-lhe doer o peito e cada exercício de respiração era um esforço. Como tudo mudara, pensou ela enquanto descansava encostada ao tronco coberto de musgo de um vidoeiro. Como pudera deixar-se arrastar para aquele estado de espírito miserável, ao ponto de nem sequer ser capaz de olhar em volta e ver as coisas com que ela e bridei se tinham maravilhado na infância? Era tudo tão belo: o rasto nítido de um animal da floresta, talvez uma doninha, ou uma marta; o esqueleto intrincado de uma folha seca ainda presa no ramo de uma árvore à medida que, pouco a pouco, o tempo lhe retraía a substância, deixando apenas uma recordação delicada. As diversas cores pálidas do tronco de um salgueiro; as primeiras campainhas nos seus buracos abrigados; o grito de uma ave de rapina no céu e a súbita retirada dos pequenos animais para a protecção da vegetação. Como pudera esquecer a magia daquelas coisas de todos os dias? Que se passava consigo?
Naquele dia, o Vale estava sombrio. A luz da Primavera não conseguia penetrar nele por completo; a folhagem húmida e o vapor jaziam sobre a escuridão das águas da lagoa. As formas dos sete druidas surgiam, curvadas sob as suas capas de musgo; Tuala imaginou que as vira tremer. Algures, no mais recôndito da sua mente, uivava um pequeno cão, um som lamentoso que lhe fez doer o coração, acordando a sua própria tristeza.
Tuala sentou-se numa pedra. A jovem dissera a si própria que não ia olhar para a água naquele dia, que ia apenas ver se os seus dois estranhos visitantes voltavam a aparecer, fazer-lhes algumas perguntas e regressar depois a casa. Tuala sentia-se demasiado cansada para as visões do Espelho Negro; o seu senso comum dizia-lhe que o seu poder seria esmagador naquele dia.
A jovem esperou durante muito tempo, até as costas lhe doerem por estar sentada muito quieta e a cabeça por pensar dezenas de vezes nas razões prováveis do seu não aparecimento. Evidentemente que não podiam ser invocados porque eram criaturas do Outro Mundo; quem pensava ela que era? Talvez os tivesse ofendido quando utilizara o Espelho Negro para ver apenas imagens da sua escolha. Talvez tivessem desistido por ela ter deixado de aparecer. Talvez a estivessem a castigar; no fim de contas, recusara a sua oferta.
- Apareçam, apareçam - murmurou ela. - Eu não quero muito; apenas uma resposta ou duas. - Porém, o tempo passava, no céu o Sol aproximava-se cada vez mais do fim do dia e Tuala percebeu que eles não iam aparecer. Já estava ali havia muito tempo; tinha de se ir embora, ou seria apanhada pela escuridão.
Só uma olhadela rápida, disse ela para si própria, uma olhadela, para que a deslocação não tivesse sido em vão. Manteria a situação controlada e pararia a tempo. Se o visse, um vislumbre apenas, uma única imagem, teria valido a pena.
Bridei sentado a uma mesa na companhia de outros homens; Donal à sua esquerda, instantaneamente reconhecível pelos grandes maxilares, os olhos muito juntos e as tatuagens azuis no rosto. Na imagem, Bridei também tinha a face direita tatuada, sinal da sua masculinidade recente, mostrando que combatera e sobrevivera. Gartnait, sentado no outro lado, tinha um padrão semelhante, mas tinha também os sinais da sua estirpe, sinais que eram tatuados nos jovens de boas famílias, juntamente com os outros. Na face esquerda, enquadrando o brasão do guerreiro, o filho de Talorgen tinha tatuado o cão e o escudo do clã do seu pai e por cima o crescente e a vara quebrada, sinal da linhagem da sua mãe: o sangue real dos Priteni.
Todos eles estavam alegres, relaxados, Donal brincava, Gartnait bebia cerveja e ria e até Bridei sorria ligeiramente enquanto os ouvia, se bem que os seus olhos estivessem sombrios. Havia outros homens à mesa, homens que Tuala não conhecia, alguns vestidos de pele, feltro e lã grosseira, a vestimenta dos guerreiros, outros com roupas mais ricas, aqui e ali algumas capas tingidas de vermelho, alguns cintos com fivelas de prata e cabelos entrançados. Havia carne em cima da mesa, um quadril de veado, do qual já pouco restava, e a lareira estava acesa. Era evidente que festejavam uma vitória.
Um dos homens propôs um brinde. Tuala não conseguia ouvir as vozes, mas a disposição e objectivo da reunião era evidente. Todos se puseram de pé. Um homem alto disse umas palavras formais, os outros ergueram as respectivas taças e beberam.
A jovem sentiu a dor um instante antes de a ver; um nó na garganta e uma dor no coração. Na água, Bridei deixava cair a sua taça e levava as mãos à garganta, o seu rosto subitamente cinzento, os seus olhos esbugalhados, horríveis, grotescos, e a boca aberta. Durante alguns momentos, ninguém reparou; estavam todos a gritar, a beber, entusiasmados com a patuscada. Tuala não conseguia respirar; os seus punhos estavam fechados com tal força que as unhas se lhe enterraram nas palmas. Façam qualquer coisa, depressa, depressa...
Donal viu e agiu com a velocidade de um relâmpago, afastando os outros com os braços e obrigando Bridei a sentar-se, ao mesmo tempo que pedia espaço e ajuda. Gartnait estava imóvel, em choque, simplesmente a olhar. Tuala não suportava continuar a olhar, mas também não conseguia afastar os olhos. Algures, à distância, a jovem ouviu a sua própria voz a gritar como a de uma criança a ser violentada: Não, não, não...
Não é nada agradável a visão de um homem a morrer envenenado. Felizmente, a imagem passava depressa. Tuala viu Donal a tentar, as suas feições agradáveis contorcidas pelo desespero: a sua luta para fazer com que Bridei vomitasse o que quer que fosse enfiando-lhe os dedos pela garganta abaixo, despejando-lhe água salgada na boca cheia de espuma e a mistura a cair no chão, sujando as roupas de Bridei. A tentativa para o pôr de pé e obrigá-lo a andar, infrutífera quando o jovem começou a ter convulsões, fazendo com que o seu corpo parecesse o de um boneco desarticulado. Finalmente, esgotadas todas as tentativas, amparando-o enquanto Bridei exalava o último suspiro e, chorando, fechando-lhe os olhos, acariciando-lhe a face com a sua mão áspera mas gentil, tentando encontrar palavras e não as encontrando.
Enquanto as imagens se desvaneciam e desapareciam, Tuala deixou-se cair com o rosto no solo frio e as suas mãos fincaram-se na terra como duas garras. Do seu peito saiu um lamento parecido com o de um animal ferido, um som de que ela nunca se imaginaria capaz. A sua força rasgou-lhe a garganta e despedaçou-lhe o coração; a dor era demasiada, não a conseguia suportar. A jovem soluçou e gritou, abandonando-se furiosamente. Por cima da voz da sua própria dor Tuala continuava a ouvir o uivo solitário quase constante naquele local: o lamento de um pequeno cão. Era como se o animal estivesse mesmo ao pé de si; como se chorassem ambos a mesma dor.
A jovem só queria que a terra a engolisse; como poderia continuar depois daquela visão? Apesar daquele sentimento, alguns momentos depois Tuala levantou-se sempre a soluçar, sacudiu a terra das roupas e sentou-se com a cabeça entre as mãos, obrigando-se a pensar como Erip e Wid a tinham ensinado a fazer. A batalha tinha terminado, tanto Bridei como Gartnait tinham os rostos tatuados: aquela visão não era do presente, era do futuro porque um grupo tão grande de guerreiros não podia chegar ao território dos Gaels senão por ocasião de Harmonia. Pelo menos fora o que Wid dissera. Se partissem demasiado cedo encontrariam neve, rios demasiado cheios, névoas espessas e quedas de pedras. Bridei não estava morto, sentiria se estivesse, senti-lo-ia no coração, instantaneamente. Aquela coisa horrível ainda não acontecera, ainda era possível evitá-la.
Tuala pôs-se de pé, sentindo-se tonta e fraca. Broichan; tinha de dar a notícia a Broichan. Já perdera demasiado tempo a chorar, tempo que não se podia dar ao luxo de perder. A jovem apertou a capa contra si, cerrou os dentes e desatou a correr.
Do seu poleiro num dos ramos mais altos de uma árvore por cima do Vale dos Que Caíram, os dois viram-na correr.
- Ela ainda é muito nova - observou o rapaz vestido de hera para sofrer tanto.
- Quando chegar a casa ainda vai sofrer mais - disse a rapariga. Broichan vai tratar disso. Com este druida a ajudar, a nossa tarefa fica simplificada.
- As coisas não estão nada fáceis para Tuala. A rapariga virou os olhos brilhantes para ele.
- Tem de ser. - O seu tom era frio. - Estes dois têm que ser postos à prova. Têm que ser fortes, tanto um como o outro. Têm que ter a noção do dever e da lealdade, do amor e da determinação. Eras capaz de entrar em combate com a tua arma mal temperada? Eras capaz de construir uma casa com madeira verde?
- Eu sei - disse o rapaz. - Custa-me assistir, mais nada. Ela é boa. Quando estiver tudo dito e feito, passa a ser nossa.
- Boa? - troçou a rapariga. - De que serve isso, se foge às responsabilidades ao primeiro sinal de adversidade? Tuala tem um caminho difícil pela frente. Temos de fazer com que ela desenvolva a resistência suficiente para o percorrer, tal como exige A Que Brilha.
- E o rapaz?
- O caminho de Bridei está marcado. Só precisamos de continuar a vigiá-lo. Na devida altura, os deuses destinar-lhe-ão o teste final; talvez desempenhemos um papel nesse teste, mas ainda não chegou a ocasião. Por agora, ele vai enfrentar o teste dos homens.
As imagens terríveis permaneciam na mente de Tuala, dando-lhe asas. A jovem chegou quando o Sol se estava a pôr. Na cozinha, Ferat e os seus ajudantes estavam ocupados com um pesado pedaço de carne no espeto, mas viraram-se para a ver passar a correr com os cabelos a taparem-lhe os olhos. Mara estava a pôr a mesa no salão. Quando Tuala passou por ela e foi bater à porta de Broichan, a governanta começou a dizer algo com voz áspera, mas a jovem não lhe ligou. Não havia espaço na sua cabeça senão para aquela imagem, o terrível futuro sombrio que tinha de alterar a todo o custo. Quando Broichan não lhe respondeu, Tuala abriu a porta e quase caiu no interior do quarto.
- Tenho de lhe dizer... Bridei... - arquejou ela. - Tem de... A jovem percorreu o espaço com os olhos e calou-se, sentindo uma dor no peito devido à longa corrida ao frio.
Broichan não estava sozinho. O druida estava em frente da pequena lareira com uma caneca de cerveja na mão e a seu lado estava outro homem, um estranho, de constituição forte e bem parecido, talvez um dos proprietários de terras locais ou um chefe tribal menor. O homem olhou para ela com uma curiosidade indisfarçável e com alguma surpresa. Tardiamente, Tuala tomou consciência da lama que as suas botas tinham deixado no chão limpo, nos seus cabelos desgrenhados e no modo como as suas mãos agarravam no xaile, como duas garras.
Provavelmente, tinha os olhos arregalados. A única resposta de Broichan foi erguer as sobrancelhas. O seu autocontrole sempre fora notável.
- Pé... peço desculpa - conseguiu ela dizer, inclinando ligeiramente a cabeça para o estranho; fossem quais fossem as circunstâncias, tinha de cumprimentar apropriadamente aquele homem. - Que a luz da Que Brilha vos receba nesta casa. Peço desculpa por interromper, mas tenho de falar convosco, meu senhor - disse ela, virando-se novamente para Broichan - por favor, tenho de vos dizer... é Bridei, ele corre um perigo terrível...
- Chega, Tuala. - A voz do druida era profunda e calma.
- Mas eu...
- Chega. - Broichan virou-se para o seu hóspede. - Peço desculpa pela interrupção, Garvan. Concedes-me uns momentos para tratar disto?
- Certamente - disse o visitante, pousando a sua caneca em cima da mesa e saindo do quarto, não sem lançar um olhar de agrado para Tuala. A porta fechou-se.
- Sê breve - disse Broichan. - Breve, coerente, que valha a interrupção. Esperava que pudesses causar melhor impressão em Garvan. Depois disto, ele vai pensar que não passas de uma loba jovem. Diz lá ao que vens.
Tuala não sentia medo dele nem compreendia o verdadeiro sentido das suas palavras.
- Vi... na água... vi Bridei mas não agora, depois da batalha. Eles estavam num banquete e alguém lhe envenenou a bebida e... - Não podia dizer aquilo daquela maneira. Como podia transformar uma notícia daquelas em meia dúzia de palavras? Tuala pensou que o seu coração ia rebentar de angústia. O quarto começou a andar à roda, as velas a dançar e os estranhos objectos nas prateleiras começaram a misturar-se; o mundo estava ao contrário, nada estava como devia ser.
- Senta-te. Aqui. - Broichan aproximou-a de um banco, fê-la sentar-se e deu-lhe um pouco de cerveja. Em seguida, o druida ajoelhou-se na sua frente e os seus olhos escuros encontraram os dela, intensos, interrogadores. Broichan estava muito pálido; o seu olhar era, talvez, a imagem do dela. - Conta-me - disse ele.
- Eles mataram-no - murmurou ela com a caneca a tremer-lhe na mão, de tal modo que a capa ficou cheia de cerveja. - Vi-o morrer.
Donal, Gartnait, os outros, não conseguiram salvá-lo. Ele... ele... foi horrível...
- Bebe - disse Broichan, tocando ligeiramente na caneca da jovem. - Agora, conta lá outra vez. A imagem não era do tempo presente? Tens a certeza?
Tuala acenou com a cabeça.
- Já vos disse. Era mais tarde, depois da batalha. Gartnait tinha as tatuagens de guerreiro e de família no rosto e Bridei só tinha as de guerreiro. Ainda há tempo para impedir isto. Tendes que o impedir.
- Bebe mais um pouco. Agora, respira fundo. Correste muito para me dizeres isso.
Tuala sentiu as lágrimas a aproximarem-se dos olhos. A jovem fungou e esfregou os olhos como uma criança.
- Portanto, a coisa recomeça - disse Broichan. O druida levantou-se e sentou-se em frente da rapariga. - Tuala, eu sei que o teu talento neste campo tem pouco a ver com o que aprendeste; é uma coisa natural e, como tal, talvez não seja uma coisa segura. Por outro lado, o que lhe falta em controlo sobra-lhe em força. Compreendes, certamente, que as visões do Espelho Negro nem sempre nos mostram uma imagem exacta do futuro, não representam uma verdade simples.
Tuala olhou para ele.
- É evidente que sei. Se a imagem fosse verdadeira, não poderíamos fazer nada. Bridei morreria por mais que fizéssemos, mas trata-se de uma possibilidade e não podemos deixar que aconteça.
- Claro que não. Felizmente, basta uma simples precaução para que essa tragédia não aconteça. Vou fazer com que ela seja posta em campo, se bem que demore um pouco; tenho de enviar uma mensagem a Fonte do Corvo e o caminho deve estar tapado pela neve para os lados de Lago da Donzela. O que me preocupa mais é a ameaça à segurança de Bridei. Se um assassino tenta envenená-lo uma vez, tentará uma segunda, ou uma terceira. Se o veneno não for eficaz, ele há-de arranjar outro meio.
- Quer dizer que Bridei vai ser mesmo assassinado? - A voz de Tuala era apenas um fio.
- Não - disse Broichan. - Não posso permitir que isso aconteça. Precisamos de Bridei. O futuro dos Priteni depende dele.
- Eu sei - disse ela, se bem que percebesse, pelo olhar do druida, que as suas palavras não eram para ela. - Isso quer dizer que ele... - não vai entrar em combate? Ele pode regressar a casa? Aqui não corre perigo, certamente.
- Regressar a casa? - Broichan pareceu ficar espantado com a sugestão; era como se ele se tivesse esquecido dela, ao mesmo tempo
que na sua mente se desenvolvia um esquema qualquer. - Estás a falar em Pitnochie? Não pode ser, pelo menos antes do fim do Verão. Além disso, ele vai entrar em combate na Primavera; tem de provar que é um homem. Depois, creio que chegou a hora de retomar o meu lugar no mundo dos negócios. Foi um exílio longo. Drust vai ter o seu druida de volta, pelo menos durante algum tempo.
- Durante algum tempo? - perguntou Tuala, tentando tirar algum sentido das palavras do druida, ao mesmo tempo que engolia o amargo desapontamento contido nas suas palavras.
- O tempo que for preciso - disse Broichan, olhando novamente para ela, dessa vez com olhos críticos. - Isso significa que também vai haver mudança para ti. Não podes ficar em Pitnochie enquanto eu estiver fora. O pessoal não aguenta; já há hostilidade que chegue. Vai, limpa-te, muda de roupa e veremos se consegues causar melhor impressão ao jantar.
Finalmente, Tuala compreendeu e ficou horrorizada.
- Não é preciso ficares assim - disse Broichan. - Garvan é bom homem, é rico, tem uma situação estável. Será bom para ti. Além disso, não se importa de casar contigo, ou não se importava antes de tu entrares aqui como um elfo dos bosques. Tu tens poucas hipóteses, Tuala. Provavelmente, esta é a melhor de todas.
A jovem ficou mais uma vez sem palavras. O antigo terror, esquecido devido à necessidade irresistível de partilhar a notícia desesperada, reclamava-a novamente.
- Não te preocupes - disse ele, não compreendendo. - Não deixarei que aconteça qualquer mal a Bridei. Agora, vai; espero que mostres ao meu hóspede que és capaz de ser uma dama quando é necessário. Podes conversar connosco ao jantar e demonstrar a tua educação. Creio que Garvan te vai achar muito interessante. E Mara que faça qualquer coisa ao teu cabelo.
A jovem já ia a sair quando ele disse:
-Tuala?
A jovem esperou sem se virar.
- Fizeste bem em vires dar-me a notícia.
Pelo tom de voz, Tuala percebeu que o druida fizera um grande esforço para dizer aquelas palavras. Em seguida, acenando com a cabeça, a jovem saiu do quarto.
O jantar foi uma provação. Tuala sentiu que estava a ser mostrada, a ser inspeccionada, como se fosse uma bezerra premiada num mercado de fazendeiros. Apesar das tentativas do visitante para esconder a evidência, desviando a conversa para tópicos gerais, seguros, a jovem sentia o interesse nos seus olhos e o seu reflexo na atitude de todas as outras pessoas sentadas à mesa. Naquela noite, o grupo de convidados era menor do que habitualmente: Broichan e Garvan, ela, Mara e quatro homens de armas, todos veteranos e de meia-idade. Os outros estavam a comer na cozinha de onde, sem dúvida, escutavam tudo. Provavelmente, contavam os dias que faltavam para que Garvan a pusesse em cima da sua carroça e a levasse, um bom investimento para o futuro, jovem, rica e educada. Quanto mais Tuala pensava, mais o medo era substituído pela ira. Como se atreviam a vendê-la assim? Como se atrevia Broichan a tomar aquela decisão sem sequer lhe perguntar como se sentia? Mais doloroso ainda, como se atreviam a fazer aquilo enquanto Bridei estava ausente, sem saber? Ninguém compreendia?
Tuala percebia muito bem que Garvan estava a fazer os possíveis. O homem não tinha culpa de ser disforme e de ter um rosto que mais parecia ter sido esculpido a partir de um nabo. Garvan fez-lhe perguntas sobre os seus tutores, falou na mudança de estação, nos símbolos de família e até pareceu, surpreendentemente, um especialista no assunto. O homem fazia um grande esforço para não olhar para ela. Tuala tinha vestido uma saia lavada e uma túnica, tinha penteado e entrançado os cabelos; Broichan fora estúpido ao pensar que ela procuraria a ajuda de Mara para uma tarefa tão íntima. Enquanto passava o pente pelas madeixas emaranhadas, Tuala não conseguiu deixar de pensar em Bridei fazendo-lhe aquilo mesmo em criança e perguntando-lhe, com um sorriso na voz, o que fizera à fita. A sua ausência fazia-lhe doer o coração o tempo todo.
Broichan disse que o vinho, naquela noite, era importado da Armórica e permitiu que ela bebesse um pouco. A bebida subiu-lhe à cabeça e fê-la pensar nos verões passados, ela e Bridei subindo à Cicatriz da Águia, galopando através da floresta, tentando pescar trutas no lago. Desaparecera tudo; se Broichan conseguisse o que queria, casaria antes de Bridei regressar novamente a casa. As mãos da jovem fecharam-se, com força. No seu íntimo começou a acordar algo perigoso, algo como uma pequena chama. Tuala começou a ouvir na cabeça um pequeno murmúrio: Mostra-lhes. Enfrenta-os. A jovem pestanejou, espantada. Era evidente que não ouvira aquela voz; à sua volta, as conversas continuavam. Era estranho; juraria que a voz era conhecida, que pertencia ao Outro Mundo. Aquele jovem, que parecia feito de ervas e outras coisas do bosque, tinha aquela maneira de falar. Porém, as palavras pareciam ter saído do seu interior, como se fizessem parte dos seus próprios pensamentos.
- Devíamos acabar a noite com uma ou duas histórias - sugeriu Broichan. Aquilo era muito incaracterístico; era evidente que o druida estava a tentar fazer o papel de bom anfitrião. - Importas-te de contar uma, Garvan? Aposto que sabes muitas devido ao teu trabalho.
Garvan pareceu um pouco desconcertado.
- As minhas mãos contam as histórias por mim - disse ele corando um pouco. - Eu não tenho, como vós, o dom da palavra. Porém, tenho a certeza que Tuala aprendeu muitas. A sua educação parece ter sido notável. Talvez ela nos queira contar alguma. Garvan olhou para ela quase com timidez. Talvez pensou ela, ele tivesse apanhado a mesma doença dos outros homens, o medo de que ela o apanhasse na armadilha com os seus terríveis estratagemas. Malditos. Malditos, todos eles. Mostra-lhes. Conta a tua história e mostra-lhes.
Broichan já ia a abrir a boca, talvez para apresentar uma desculpa em seu nome.
- Claro - disse Tuala docemente. Era como se fosse outra pessoa qualquer a falar. A jovem sentia-se absolutamente calma e lembrou-se de uma história nova, completa e perfeita, uma história que revelaria a sua força e que seria um teste para o ouvinte. - Primeiro, porém, dizei-me qual é o vosso ofício, meu senhor. Dissestes que as vossas mãos contam as histórias por vós. Que quer isso dizer?
- Sou pedreiro.
- Um pouco mais do que isso, meu amigo - disse calmamente Broichan. - Ele é um pedreiro e um artista de grande categoria, Tuala; os nossos antepassados falam através dele.
- Dás-me uma grande honra - disse Garvan, olhando para as suas grandes mãos em cima da mesa.
- Nem por isso - disse Broichan. - O teu trabalho não está exposto na corte do rei de Fortriu? Não consigo imaginar um ofício mais ligado ao que há de mais sagrado na nossa terra do que o teu.
- Salvo o das mulheres sábias, ou dos druidas - disse Garvan, sorrindo. - Espero que tenhas ficado satisfeita, Tuala.
- Digamos que a história que vou contar é sobre um pedreiro. Tuala fora treinada para contar histórias sobre heróis e magia, monstros e demandas. A daquela noite seria diferente: diferente de tudo o que os seus tutores lhe tinham ensinado. - Chamar-lhe-ei Nechtan. Este Nechtan era um homem solitário, orgulhoso e muito bom no seu ofício. Em tempos tivera uma esposa, mas ela morrera e os seus filhos tinham-se alistado no exército do rei; nenhum deles tinha mostrado interesse em aprender o ofício do pai. Nechtan trabalhava o dia todo com o malho, o cinzel e as mãos nuas, extraindo segredos da pedra, corujas misteriosas, touros orgulhosos, estranhos animais marinhos, lanças, escudos, homens a cavalo a caminho da guerra. Durante o dia, o pedreiro ficava imerso em sonhos e transformava-os em formas maravilhosas, eternas. Durante a noite, o pedreiro ficava acordado, imerso na maior das solidões. Durante a noite, os sonhos eram substituídos por um grande desespero. Então, Nechtan sentiu uma grande ansiedade, mas sem saber porquê.
- Ora, acontece que na Primavera Nechtan teve de viajar porque tinha uma encomenda do rei e precisava de visitar a corte para discutir os pormenores. O tempo estava bom; os dias eram frios e límpidos, os pássaros pousavam nos amieiros e nas aveleiras, as folhas tentavam desabrochar nos ramos nus e o chão estava atapetado de neve. Quando ficou demasiado escuro para continuar a viagem, Nechtan acampou junto de um ribeiro, acendeu uma pequena fogueira no interior de um círculo de pedras e instalou-se para dormir, enrolando-se no cobertor. Nechtan estava habituado ao frio; o facto de passar a noite na floresta não o incomodava. Porém, não conseguiu dormir, o sono não havia meio de chegar. O pedreiro ficou acordado naquela noite enluarada, todo enroscado para se manter aquecido enquanto a pequena fogueira se transformava em cinza que esvoaçava sob a brisa fria da noite. Nechtan desejava, ansiava por qualquer coisa cujo nome não sabia. Fosse o que fosse, ansiava por ela com o corpo, o coração e a alma; sem ela murcharia como as bagas deixadas a secar no ramo de uma sorveira-brava.
- "Homem?" - disse uma voz ao seu ouvido. Na sua frente, mesmo no outro lado da fogueira, estava uma figura curvada, envolta numa capa cinzenta, talvez uma anciã, mas era difícil dizer.
- "Quem és tu?" - perguntou Nechtan, pensando na única espécie de gente que era possível encontrar àquela hora e naquele local à luz da lua. - "Que queres?"
- "Uma lareira como deve ser, uma casa como deve ser, estarás melhor lá do que sozinho." - disse a figura e Nechtan, levantando-se, viu que era mesmo uma anciã e que o seu dedo ossudo lhe fazia sinal para a seguir.
- "Estou muito bem aqui, obrigado" - disse ele o mais polidamente possível, se bem que não fosse exactamente verdade. Porém, o pedreiro lembrou-se, devido às histórias que ouvira na infância, dos perigos de obedecer a pedidos daqueles. Por outro lado, estava cada vez mais frio e uma lareira como deve ser e um telhado por cima da cabeça era uma perspectiva bastante atraente.
- "Uma lareira acesa, uma cama quente, sono tranquilo para uma cabeça cansada" - resmungou a anciã, começando a caminhar na direcção das árvores. Nechtan, porém, hesitou; e se a seguisse e ela o levasse para um reino perigoso, para lá do mundo conhecido? Poderia nunca mais regressar; e tinha uma encomenda do rei.
- "Mãos suaves, doce abraço, consolo do espírito, descanso abençoado" - disse a voz da anciã. O pedreiro mal a via. - "Mãos suaves, doce abraço, consolo do espírito, descanso abençoado".
- "Espera!" - gritou Nechtan e, pegando nos seus pertences, correu aos tropeções atrás da anciã ao longo do carreiro difusamente iluminado pela lua.
Tuala fez uma pausa. Os seus ouvintes estavam todos em silêncio. Broichan olhava para ela severamente e Garvan estava inclinado para a frente, muito atento. Mara enrugou os lábios e disse:
- Esse Nechtan era louco. Não há dúvida de que nunca mais regressou ao tempo e ao local de onde saiu.
Os homens de armas olhavam para tudo menos para a contadora. No entanto, era evidente que estavam absorvidos na história; nenhum deles se mexera desde que Tuala começara.
- A anciã levou-o para uma pequena cabana toda coberta de roseiras bravas - continuou a jovem. - Lá dentro, o ambiente era quente e confortável, na lareira estava um pote de sopa e em cima de uma mesa pequena e torta estava um jarro de cerveja, quase como se alguém estivesse à sua espera. À lareira estava outra figura encapuzada, essa envolta em várias camadas de roupa, de modo que Nechtan não podia distinguir as suas formas. Porém, o pedreiro viu duas mãos brancas, encantadoras, suaves e graciosas e o rosto que se virou na sua direcção era o de uma mulher, um rosto bem agradável. A parte mais agradável era a boca, a boca mais bonita, mais sedutora que Nechtan vira em toda a sua vida. Como escultor que era, o pedreiro tinha olho para a beleza. Os lábios não eram demasiado finos nem demasiado cheios; eram vermelhos, tão doces como uma baga madura e as suas curvas pareciam ter a forma perfeita. Ao olhar para aquela boca, Nechtan quase se esqueceu de onde estava e quem o tinha conduzido ali, mas só quase.
- "A bênção da Que Brilha para a tua lareira" - disse ele com um ligeiro tremor na voz. - "A anciã disse que eu podia entrar para me aquecer. É muito amável da tua parte."
- A mulher sorriu. A sua boca adquiriu uma covinha num dos cantos, os seus olhos ficaram mais brilhantes e as suas mãos estenderam-se para o jarro da cerveja e para uma caneca para o servirem, mas não conseguiu chegar à mesa. A anciã, resmungando para si própria, aproximou-se e serviu ela o pedreiro.
- "Peço desculpa" - disse a mulher mais nova. - "Não posso andar; a minha amiga Anet, que te trouxe aqui, tem de fazer a maior parte das coisas por mim. Senta-te, por favor, bebe e aquece-te. Depois, tenho uma proposta para te fazer ou, se preferires, um desafio. Tu és um homem inteligente, consigo lê-lo nos teus olhos. Por isso, deves saber que atravessaste uma fronteira esta noite para me visitares.
- A caneca que Nechtan tinha na mão parou a meio caminho da boca.
- "Podes beber à vontade" - disse ela. - "Neste momento já estás no nosso mundo, mas não te prenderei aqui contra a tua vontade, e Anet também não. Aquilo que um homem decide fazer em minha casa é da sua única responsabilidade." - A mulher suspirou e Nechtan sentiu naquele suspiro um reflexo da sua própria tristeza secreta, um vazio no coração que ele daria tudo para não ter. O pedreiro levou a caneca aos lábios e bebeu, olhando para ela por cima da borda.
- "Nechtan" - disse a mulher - "é esse o teu nome. Um construtor de coisas belas; coisas fortes, bonitas. Por que é que um homem assim, um homem com um ofício e uma posição na vida, um homem com casa própria e que goza dos favores do rei, tem tanta tristeza nos olhos?
- "Não sei" - murmurou Nechtan, olhando para ela e pensando que aquelas mãos brancas e aquela boca deliciosa seriam capazes de o levar a um desespero ainda maior se não tivesse cuidado. - "Diz-me, dama, já que sabes o meu nome, qual é o teu?"
- Ela sorriu e Nechtan viu que a tristeza do seu sorriso lhe era familiar.
- "Tenho muitos nomes" - disse ela - "como, por exemplo, Báculo, Roda da Vida ou Cara-Metade. Não é por acaso que me visto assim; ninguém pode saber como sou por baixo das minhas roupas, salvo aqui a Anet, que trata de mim."
- "Eu dava-te outro nome, se me permitisses" - disse Nechtan. O pedreiro corou ao aperceber-se da sua ousadia; que pensaria a dama de tanto descaramento?
- "Qual?" - perguntou ela docemente.
- "Ela" - disse Nechtan. - "O nome de um cisne porque me fazes lembrar esse animal, pálido e distante, de uma beleza para além da compreensão dos humanos. Perdoa-me, não te conheço, não devia falar assim..."
- "Ela" - repetiu a mulher, e o nome ficou suspenso no ar da pequena cabana fumarenta, doce como uma promessa. - "É... aceitável..."
- A mulher esperou enquanto ele comia uma malga de sopa e se aquecia à lareira. Em seguida, fez-lhe a proposta. Ela disse que tinha o poder de lhe retirar a solidão e suavizar a tristeza. Se ele quisesse ficar com ela, viver naquela cabana e partilhar a sua cama de noite, garantir-lhe-ia um sono tranquilo e os dias livres para que pudesse regressar ao seu próprio mundo e continuar a praticar o seu ofício. - "Porque vejo" - disse ela - "que, se desistisses desse ofício, murcharias e morrerias antes de chegada a tua hora. Fica comigo durante um ano e um dia e terás trabalho honesto enquanto houver sol, ao passo que, sob a luz do luar, terás noites tão doces que não terás espaço na alma para a tristeza.
- "Mas, dama... Ela..." - disse Nechtan, sentindo as faces a corar e o desejo a crescer - "tu disseste... desculpa-me... tu disseste que ninguém podia ver a tua verdadeira forma. Como podes receber um homem nos teus braços e na tua cama com essa restrição?
- "Não precisas de me ver despida" - disse Ela muito séria "nem de me apertar contra ti para que a magia funcione. Acredita no que te digo, não sentirás o desejo de ver o que se esconde por baixo das roupas que uso."
- "Nesse caso, como...?"
- "Confia em mim, pedreiro, e aceita a minha oferta. Dormirás descansado."
- Nechtan ficou silencioso. A sua mente estava cheia de perguntas por fazer.
- "Não acreditas em mim" - disse Ela, deixando descer sobre os olhos claros as longas pestanas. - "Ou não confias em mim. Fica esta noite, só esta noite, e mostro-te que estou a dizer a verdade."
Tuala fez uma pausa; em redor da mesa o silêncio era absoluto.
- Dizei-me - disse ela. - Que achais que Nechtan devia ter feito? Broichan não lhe respondeu. A jovem pensou que talvez tivesse conseguido o impossível, talvez o tivesse emudecido de surpresa.
- Nunca se devia ter metido naquela situação - disse Mara bruscamente. - Um artesão, uma pessoa de posição, tinha obrigação; foi um louco em ter seguido a anciã, foi um louco ao aceitar beber da taça da mulher e ainda foi mais louco ao aceitar a oferta. Pelo menos, devia ter perguntado o que ela queria em troca. Penso que ele devia ter dito não, agradecido polidamente e continuado a viagem imediatamente. Não existe lugar para tristezas secretas como as dele na vida de um homem. Ele devia aceitar as coisas e contentar-se com o que tinha.
- Mas ele não pode fazer isso, pois não? - atreveu-se a perguntar um dos homens de armas.
- É claro que não - disse outro. - As histórias não são assim. Basta um homem olhar para uma mulher como ela e fica perdido para sempre. Provavelmente, ele mete-se na cama com ela, tira-lhe a roupa apesar de ela lhe pedir o contrário e descobre que está ao pé de um monstro.
Seguiu-se mais um período de silêncio. Tuala esperou.
- Como artista - disse Garvan - ele sabe que os desígnios dos deuses nunca são óbvios. Como homem que trabalha a pedra, compreende a beleza que existe na libertação dos sonhos das formas que os restringem. Nechtan não tem outra hipótese senão concordar com a oferta da mulher; sente que aquilo pode ser o que procura há muito tempo e que não encontra. - O pedreiro olhou de relance para Tuala com uma pergunta nos olhos.
- Exactamente - disse Tuala, surpreendida com a resposta. - Ele ficou e aconteceu como Ela tinha prometido. O pedreiro dormiu com ela, mas não a abraçou, nem lhe tirou as roupas com que ela escondia o corpo e ela fez magia; a sua habilidade e doçura acordaram em Nechtan um fogo que ele não sabia que possuía, nem durante os anos em que fora casado, nem por ocasião dos encontros fortuitos com mulheres ao longo da sua viuvez. A voz doce de Ela, a sua percepção, a sua gentileza e a sua bondade acalmaram-lhe o espírito; ele sentiu que podia dizer-lhe tudo e que ela compreenderia. De dia, Nechtan regressava ao mundo dos mortais e continuava a praticar o seu ofício. De noite, regressava a correr para junto de Ela, ansioso pelo que ela lhe oferecia apesar da crescente familiaridade porque a sua presença era sempre fresca, sempre nova, um mundo maravilhoso sempre com tesouros por descobrir. Nechtan deixou de ter noites flageladas por sombras e desespero; passou a ter noites doces e depois um sono profundo.
- Passou-se um ano e um dia e nem uma única noite desse período de tempo Nechtan passou fora da cama da sua nova amante, o que tornava difícil o exercício do seu ofício, por vezes; um pedreiro tem de estar livre para poder viajar, ir onde as encomendas o chamam, mas como tinha ajudantes, conseguiu desenvencilhar-se porque já não conseguia dormir sem ela.
- Então, Ela perguntou a Nechtan o que ele queria fazer.
- "Vejo" - disse ela - "que, apesar de sermos felizes juntos e já não te sentires só, existe uma nova tristeza nos teus olhos. Que te perturba, meu querido?"
Tuala percorreu a audiência com os olhos.
- O que é que ele lhe disse? - perguntou-lhes a jovem.
- Ele quer ver-lhe o corpo - disse um homem de armas de olhos afastados. - Aborrece-o que ela tenha aquele segredo. Isso acontece em muitas histórias; a curiosidade vence sempre e depois tudo corre mal.
- É verdade - disse outro. - Se um dos... Boa Gente... impõe uma regra dessas, nenhum homem deve ir contra ela. Se o fizer, a coisa acaba mal, mas nas histórias está sempre a acontecer.
- Provavelmente, tira-lhe a roupa enquanto ela está a dormir e espreita - disse Mara - e Ela desaparece mais a anciã e a cabana confortável, e ele fica como estava antes, entregue à tristeza e à solidão.
Tuala esperou.
- Não - disse Garvan. O pedreiro parecia estar a pensar na resposta. - Não, penso que não. É claro que ele teria gostado que ela lhe mostrasse o corpo, mas se ela não o podia fazer era porque ainda não confiava nele. Porém, não era essa a causa da sua inquietação. Ele disse-lhe que o que mais queria, acima de tudo, era ser capaz de lhe proporcionar o mesmo prazer que ela lhe dava com tanta generosidade noite após noite sem procurar nada em troca senão a sua companhia. Nechtan desejava curar-lhe as feridas, do mesmo modo que ela curara as suas. O pedreiro queria que ela lhe dissesse como poderia fazê-lo; queria que ela lhe dissesse o que desejava para se sentir feliz.
- Garvan olhou para Tuala, subitamente hesitante. - Pelo menos, seria o que eu faria, se tivesse o teu dom da palavra.
- Uma boa resposta, meu amigo - comentou Broichan com um ligeiro sorriso.
- Parece uma resposta honesta - disse Tuala algo surpreendida.
- Tendes uma melhor, meu senhor? - Algo a tornava corajosa naquela noite, talvez a voz interior que tinha invocado de maneira tão improvável aquela história.
- Não - disse Broichan. - Pergunto simplesmente a mim próprio como é que esse tipo arranjou tempo e energia para exercer o seu ofício quando tinha a cabeça cheia de sentimentos, ansiedades e sensibilidades. Sinto-me inclinado a concordar com Mara e dizer que ele a devia ter deixado sozinha quando ainda tinha tempo. Suponho que, no fim, vamos descobrir que essa Ela estava enfeitiçada, que o pedreiro descobriu a maneira de quebrar o feitiço e que ela se transformou novamente numa mulher direita e bela. Histórias simples para gente simples; o padrão é sempre o mesmo.
Tuala sentiu que havia um desafio naqueles olhos e naquelas palavras cínicas.
- A Que Brilha não é previsível - disse ela. - Os seus ciclos podem ser constantes, mas é ela que comanda as marés que desperta nas mentes e nos corpos das suas criaturas. Quando Ela ouviu a resposta de Nechtan, os seus olhos encheram-se de lágrimas. O pedreiro desejou
tomá-la nos braços e consolá-la, mas respeitava os limites que ela lhe pusera. Melhor ainda, Nechtan pensava desde o princípio que preferia aquele casamento estranho a perder aquela que se tornara a sua melhor amiga, o seu alívio, a alegria do seu coração. Assim, limitou-se a estender a mão, a acariciar-lhe as faces e a beijar-lhas, lavando-lhe as lágrimas.
- Naquela noite, noite de lua nova, ela deixou que ele a despisse. Fosse o que fosse que lhe revelou, não fez com que a casa desaparecesse numa nuvem de fumo, não fez com que ela e a velha Anet se desvanecessem nem fez com que o pedreiro se fosse embora. Na verdade, os que viram Nechtan nos anos que se seguiram, comentaram que ele se tornara sonhador de tanta felicidade. Quanto às imagens que esculpia, tornaram-se cada vez mais estranhas à medida que as estações se sucediam umas às outras, os touros, os javalis e os gansos substituídos por animais curiosos que não eram uma coisa nem outra e os padrões eram tão intrincados que pareciam mudar quando uma pessoa olhava para eles: espirais e labirintos sem fim nem princípio. Esta história é um pouco como aqueles padrões. Nechtan levou Ela a visitar os cisnes do Lago da Donzela e ela partilhou com ele os seus segredos mais íntimos. Os dois amantes gozaram com a alegria um do outro. É tudo o que sei, ou que decidi contar.
Silêncio de novo, que foi quebrado por um dos homens de armas num protesto:
- Chegou ao fim? - Perante o ultraje daquele fim abrupto, o homem parecia ter-se esquecido de ter cuidado com a contadora. - Mas, afinal de contas, qual era o segredo dela? Como era por baixo daquelas roupas?
- Talvez fosse bela, talvez fosse feia - disse-lhe Tuala. - A questão não é essa.
- Sem que saibamos se era uma das duas coisas, a história não pode acabar - disse Mara. - Uma história precisa de um fim, tens de explicar o segredo que ela encerra.
Tuala não comentou. Provavelmente, nenhuma daquelas pessoas tinha compreendido o sentido da história. O facto de ela não ser parecida com as outras deixava-os com um sentimento de desconforto.
- Esta história não teve nada a ver com feitiços ou beleza. O comentário de Broichan surpreendeu Tuala; a jovem não esperava, de modo nenhum, o seu apoio. - Teve a ver com escolhas - acrescentou o druida.
- É verdade - disse Garvan. - Não precisamos de saber se Ela era uma deusa ou um monstro; o que interessa é que Nechtan demonstrou que dava valor às carências dela, tanto quanto às suas. Dessa maneira, o pedreiro conquistou a confiança dela. Era o que ele mais queria e mais precisava, claro.
- É muito possível - disse Tuala - que por baixo das roupas o seu corpo fosse tão belo como as suas mãos e o seu rosto. Ela pô-lo à prova e ele passou.
- Que lição é que devemos tirar da história? - perguntou Broichan, nunca se esquecendo daquilo que era.
Tuala respirou fundo.
- A lição a tirar é que A Que Brilha espera que as suas filhas tenham a liberdade de poder escolher. Felizmente, Nechtan compreendeu-o e foi recompensado. Tal como Ela, eu sou filha dela e tenho de poder escolher livremente. Estou aqui sentada esta noite a contar a minha história porque é o que esperam de mim; é assim que demonstro a minha gratidão pela lareira e pelo lar que me foram dados. Contar uma história é uma coisa, mandarem-me embora porque a minha presença se tornou incómoda é outra. - A sua voz tremeu; se era de raiva ou de súbito terror, a jovem não sabia. - Desejo-vos boa noite; não quero interromper por mais tempo a vossa reunião. Que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos. A jovem virou-se para Garvan. - Destes boas respostas - disse ela. Aquele cumprimento era justo; o pedreiro surpreendera-a com a sua inteligência. Era uma pena ela não ter o menor desejo de casar com ele.
- Boa noite, Tuala - disse Broichan. A jovem não fazia ideia do que o druida pensava daquilo tudo.
Naquela noite, a jovem lutou contra o sono, consciente de que os sonhos lhe trariam novamente aquela visão sombria de Bridei a cair, a morrer, as suas feições queridas desfiguradas por uma dor indescritível. Tinha de confiar em Broichan. O druida evitaria a sua morte, parecera-lhe seguro de que enviaria um aviso a tempo. Tinha de acreditar que seria assim. As imagens do Espelho Negro podiam ser mudadas quando o que mostravam pertencia ao futuro; um homem ou uma mulher podia provocar a mudança. Tinha de ser assim porque já lhe tinham mostrado um futuro no qual Bridei casava com uma mulher de cabelos ruivos e tinha um filho e um outro no qual a sua vida era cruelmente curta. Talvez aquelas visões fossem uma espécie de escolha. A sua escolha. Se queria que ele vivesse, tinha de aceitar o seu atestamento. A deusa estaria a dizer-lhe que o devia deixar ir?
Tuala tinha lágrimas nos olhos. Também havia mais qualquer coisa, uma coisa que ficara no seu íntimo no dia em que se despedira de Bridei. Quando os dedos dele lhe tocaram naquele dia, ela soube, sem se aperceber verdadeiramente, que o que havia entre ambos tinha mudado para sempre. Tuala sentou-se na cama e colocou os braços em redor dos joelhos, na escuridão. Garvan era bom homem, parecia amável, cortês, atencioso, mas não podia casar com ele. A jovem amara Bridei desde o princípio como irmão, melhor amigo, companheiro inteligente, de tal modo que o jovem lhe parecera sempre uma parte de si mesma. Agora, porém, amava-o como uma rapariga ama um rapaz, como Nechtan amava Ela, com o coração, com o sangue a ferver nas veias, com angústia, lágrimas e alegria. No fim de contas, estava certo. Tuala tinha mudado e, ao mudar, o seu mundo mudara com ela.
CAPÍTULO NOVE
Na manhã seguinte, Broichan mandou chamá-la. Garvan já se tinha ido embora; Tuala ouviu Mara dizer a Ferat que a partida precipitada do pedreiro era, sem dúvida, uma resposta à história que ouvira na noite anterior e ao olhar no rosto da contadora.
- Porque era visível - disse Mara num murmúrio - aquela sedução do Outro Mundo, o perigo. Nunca imaginei que a miúda fosse contar aquela história. Devias ter visto os olhares dos homens. E eu a pensar que ela é tão inocente como outra rapariga qualquer da mesma idade.
No entanto, quando Tuala chegou ao quarto de Broichan e se colocou na sua frente com as mãos atrás das costas e o coração a bater, não foi para receber uma reprimenda por ter afastado o pretendente ou um castigo por tentar seduzir os homens de armas com a sua história.
- Garvan pediu para falar contigo em particular. - Broichan estava no seu sítio habitual, de costas para a lareira. Esta estava apagada e o quarto estava cheio de pequenas correntes de ar. A figura alta do druida estava vestida de escuro; os seus olhos estavam fixos em Tuala, tão intensos como os de um falcão. - Recusei o pedido dele; não me pareceu apropriado. Não te queres casar com ele, ou não te queres casar, muito simplesmente?
Tuala engoliu em seco.
- É muito cedo - conseguiu ela dizer. - Não me sinto pronta para o casamento.
- Tu já estás em idade de casar, Tuala - disse Broichan. Na tua idade, já muitas raparigas têm a aliança no dedo e são mães um ano depois de casarem. Talvez precises de mais explicações, de mais confiança... Podias falar com Mara sobre o assunto. Por outro lado, da história notável que decidiste contar ao meu hóspede sugere... - Os modos do druida tornaram-se tímidos, como se o tópico o ultrapassasse.
- Eu sei o que é partilhar a cama com um homem - disse Tuala rudemente. - Não se cresce numa herdade sem se aprender uma série de coisas básicas. Meu senhor, eu não me quero casar com Garvan nem com outro homem qualquer. Se vos desagrado, lamento. Destes-me um lar e sei que estou em dívida para convosco. Sei que não queríeis que eu tivesse vindo. Não me esqueci do que dissestes há muito tempo acerca de o meu lugar em Pitnochie depender unicamente de vós, mas quero ficar, tenho de ficar. Tenho de estar aqui quando bridei regressar a casa.
- Não podes ficar - disse Broichan. - Já não és bem-vinda entre o meu povo. A mudança aconteceu sem que eu pudesse fazer fosse o que fosse. Agora, eu próprio me vou mudar; na verdade, devo fazê-lo o mais depressa possível a bem de Bridei. E tu tens de te ir embora.
- Para onde? - Tuala cerrou os punhos atrás das costas e tentou manter a voz calma. Durante um momento, a raiva foi mais forte do que o medo. - Arranjastes outro pretendente?
- Não preciso. Garvan ficou preocupado com a hipótese de tu teres interpretado mal as razões da sua súbita partida. Ele disse-me que a oferta mantém-se e que tu é que tens de decidir: um ano ou dois, se for preciso. Garvan é um homem extraordinariamente generoso; generoso até à loucura, dirão alguns. Ele pediu-me que te dissesse que não quer nenhum dote e que não prometeu nada em troca da tua mão; o que tu disseste sobre "seres vendida" não tem fundamento. Garvan quis que soubesses.
- Estou a ver.
- A escolha, portanto, é tua. Ontem à noite pareceu-me sentir uma certa ligação entre ti e Garvan, quanto mais não seja pela tua interpretação da história. - Broichan olhou para ela de sobrancelhas erguidas; parecia que estava à espera de um comentário.
- Eu não me quero casar. - Tuala sentiu um frio gelado a percorrê-la. - Não quero ir-me embora daqui.
- Não tens escolha. Quer consideres a hipótese deste casamento no futuro, quer não, não poderás ficar em Pitnochie. No entanto, tens outra opção, uma opção que se tornou possível com a chegada de um mensageiro de Fonte do Corvo esta manhã.
- De Fonte do Corvo? Qual é a mensagem? Bridei está bem?
- Não diz respeito a Bridei - disse Broichan - mas podemos presumir, pela falta de notícias, que ele está bem. O mensageiro trouxe um pedido para que Pitnochi providencie hospedagem a lady Dreseida e à sua família durante uma noite ou duas, que estão em viagem para a corte de Drust, onde vão ficar até que o conflito termine. A dama vem assim que o tempo o permitir. Quando ela chegar eu já terei partido, mas Mara trata de tudo.
Lady Dreseida e respectiva família. A Rapariga Raposa. E Broichan partindo à pressa para a corte depois de tanto tempo... O druida devia estar preocupado com a segurança de Bridei, não apenas com a guerra e com as consequências da sua visão, mas também com os acontecimentos posteriores. Tuala esperou pelo que se seguiria.
- A ocasião permite que possas ter uma boa escolta - disse Broichan - o que quer dizer que podemos, se necessário, seguir o outro caminho que se abre para ti. Não é o meu preferido e a história que contaste ontem à noite aumentou as minhas dúvidas.
- Que caminho?
- Há muito tempo, Fola, a Mulher Sábia, disse que tinha um lugar para ti no seu estabelecimento de Banmarren quando atingisses uma determinada idade. Ela queria que os teus primeiros anos de ensino fossem ministrados aqui; o que Erip e Wid te podiam ensinar era superior à educação que a maioria das raparigas de boas famílias recebe. Talvez não te tenhas apercebido de como foste privilegiada nesse aspecto.
- Eu sei que estou em dívida para com eles.
- Banmerren fica na costa norte, na baía, perto de Caer Pridne disse Broichan. - O estabelecimento é isolado, de acordo com a natureza do ensino que ministra. Compete a Fola e aos seus tutores decidir se uma jovem com as tuas origens pode desempenhar os deveres sagrados de uma serva da Que Brilha. Uma vez aceite, não precisas de regressar a Pitnochie. E não precisas de te casar, claro. As condições devem agradar-te.
Tuala ficou confusa, sem saber o que dizer.
Não mencionei isto antes porque - disse o druida - porque tinha dúvidas, dúvidas sérias. Fola é uma amiga cuja sabedoria eu tenho em grande conta. No entanto, receio que possas ser... explorada, os teus talentos e capacidades, aliados à tua educação pouco usual, não te vão arranjar amigas. Além disso, transportas contigo um perigo: se esses teus talentos não forem guiados convenientemente e com rigor, podes provocar estragos.
Para além do sentimento de perda iminente, Tuala sentiu-se ultrajada. As palavras subiram-lhe à boca: Nesse caso, por que não me ensinaste? Quem melhor para me treinar nos mistérios do que o druida do rei? A jovem engoliu-as. Era demasiado tarde.
- Talvez não te tenhas apercebido do impacto que a tua história de ontem à noite provocou - disse Broichan. - Eu acho que não te apercebes de muitas coisas, Tuala. A tua vinda para o mundo dos mortais foi uma coisa muito pouco sensata.
- Tenho mesmo que ir embora? Não posso ficar aqui e...? - E o quê? Ficar e pôr-se debaixo dos pés de Mara? Ficar e aterrorizar os homens todos de Pitnochie apenas por existir? Tuala recordou-se de uma coisa: uma rapariga pequena e solitária confessando-se a uma anciã pouco maior do que ela, uma criança com uma esperança desesperada na voz: Eu quero aprender, mas eles não me deixam. Depois, a dádiva inesperada das aulas de Erip e de Wid. Parecia que o plano a longo prazo de Fola era igual ao de Broichan.
- Na minha opinião, farias melhor se casasses com Garvan - disse Broichan. - A sua protecção assegurar-te-á um lar, no qual serás sempre bem recebida. A sua influência conseguir-te-á respeito e segurança. Noutro lado, penso que sofrerás o mesmo que sofres agora em Pitnochie.
- Quando é que eles chegam? - perguntou Tuala com a voz entrecortada. - Lady Dreseida e os outros? E quando é que eu parto?
Broichan suspirou.
- Quando o tempo estiver bom - disse ele. - Virão de barco pelos lagos acima, com homens para os transportar quando não puderem navegar. Se a tua escolha for essa, é bom que comeces a tratar de tudo. Mara sabe o que é preciso.
- Não me parece que possa fazer outra coisa - disse Tuala, sentindo uma dor no peito. - Não posso, sequer, ficar até ao Verão?
- Seria uma loucura não aproveitares a escolta dos guardas de Dreseida. A filha dela também vai para o estabelecimento de Fola; para além de treinarem raparigas para sacerdotisas, na escola de Fola também educam as raparigas das famílias nobres. Não devemos perder a ocasião. Não posso prescindir de nenhum dos meus homens. Quanto a mim, vou partir imediatamente porque preciso de falar urgentemente com Drust e não sigo as vias dos homens normais.
Aconteceu mais cedo do que ela esperava: um longo período de tempo seco e a chegada de quatro barcos com a dama Dreseida, a sua filha de cabelos ruivos e dois rapazes pequenos muito barulhentos, juntamente com uma montanha em miniatura de bagagem e uma corte de guardas de feições severas. A presença de lady Dreseida pareceu encher a casa; até Mara se encolheu perante o seu olhar penetrante. Se Broichan ainda estivesse em Pitnochie, talvez as coisas tivessem sido diferentes, mas como não estava, Tuala retirou-se para dentro de si mesma. A jovem respondia às perguntas com murmúrios e em breve fugia para os bosques quando achava que se aproximava uma nova inquisição. Os pequenos Uric e Bedo, apesar dos gritos e das correrias, eram mais fáceis de tolerar do que as mulheres da família de Talorgen. Quando os rapazes faziam perguntas, faziam-no por simples curiosidade.
- É verdade que foste encontrada por baixo de um pilriteiro? perguntou Bedo.
- Não. Fui deixada à entrada da porta, abandonada.
- És muito branca, mais branca do que tu nunca vi.
- Sou assim.
- Ferada diz - disse Uric, baixando a voz - que tu não és humana. Ela diz que tu és filha dos tu-sabes-quem.
- Sou uma rapariga normal - disse-lhe Tuala. - Faço as coisas que as raparigas normais fazem.
Uma pausa.
- Bridei nunca nos disse que tinha uma irmã. - O tom de Bedo era ligeiramente acusador.
- Eu não sou irmã dele. Simplesmente, crescemos juntos. Somos amigos. - Uma palavra tão pequena como aquela, amigos, não parecia adequada como explicação, mas o pequeno pareceu aceitar a resposta.
- A mãe diz que vais para Caer Pridne connosco.
- É verdade. Não vou para Caer Pridne, vou para a escola de mulheres sábias.
- E o que vais ser, uma Mulher Sábia?
Um sopro de ar frio passou por Tuala; a jovem recordou a visão que tanto a perturbara, ela própria vestida de cinzento, uma estranha, enquanto Bridei sorria para a sua mulher e segurava o filho pela mão.
- Não sei - disse ela.
Sabes fazer magia? Feitiços e essas coisas?
A resposta ideal para aquela pergunta era uma negativa, pura e simples, mas Tuala achou que não lhes podia mentir.
Depende daquilo a que vós chamais magia - disse ela.
- Se quisesses, eras capaz de me transformar noutra coisa qualquer? Num tritão ou num sapo?
- Não tenho a certeza - disse Tuala, atrapalhada. - Queres que tente?
O terror apareceu no pequeno rosto de Bedo; o jovem ficara branco como a cal.
- Ela está a brincar, parvo. - O tom de Uric sugeria que o rapaz não estava totalmente convencido das suas palavras.
- Talvez noutra ocasião - disse Tuala.
- Aquele gato é teu? - perguntou Uric, olhando para onde Mist se estava a lavar junto da lenha empilhada; era uma boa oportunidade para mudar de assunto. - Ele morde?
Bedo segredou qualquer coisa ao ouvido do irmão.
- É verdade? - perguntou Uric. - É teu familiar? Subitamente, Bedo corou e desviou o olhar.
- Tal como eu - disse Tuala - Mist é um gato perfeitamente normal, não se importa de ser acariciado desde que gentilmente. Oh, Mist; outro amigo que ficaria para trás. A memória de Tuala era boa. A jovem não se esquecera de algo que Fola lhe dissera quando lhe dera o gatito: Mist não tolerava intrusos. O animal ficaria melhor ali no seu território com os ratos para se alimentar. Porém, dormir à noite sem o seu calor, a certeza de que não estava só, seria mais difícil de suportar.
Tuala tinha planeado para si própria uma tarefa para aquela última noite em Pitnochie, noite de lua cheia, algo que tinha de fazer já que não estaria presente quando Bridei regressasse. Infelizmente, os rapazes tinham sido instalados no velho quarto de Bridei e na mesma cama estreita, o que tornava a coisa mais difícil. A jovem não queria atrair as atenções. Dreseida intimidava-a; os olhares penetrantes de Ferada e os seus comentários alarmavam-na e irritavam-na. O porte altivo das suas cabeças, os seus vestidos imaculados e os cabelos perfeitamente penteados pareciam fazer troça das suas roupas simples e ar desalinhado. Por mais que penteasse os cabelos, havia sempre caracóis por cima das orelhas ou em frente dos olhos. Tuala tinha fitas a mais na algibeira em caso de necessidade. Talvez os rapazes tivessem razão; talvez tivesse um ar selvagem, por mais que tentasse parecer o contrário. Talvez nunca deixasse de ser um dos Outros.
Tinha de fazer um encantamento naquela noite, sob o olhar da Que Brilha. A jovem planeara entrar no quarto de Bridei enquanto todos dormiam e realizar o ritual como parte de uma longa noite de vigília. Agora, era impossível. No entanto, pensou Tuala, as crianças adormeciam profundamente depois de um dia de grande actividade. A parte mais vital ainda podia ser feita se tivesse cuidado.
Tuala esperou no seu quarto, à escuta, enquanto soava pela casa a sequência normal de sons nocturnos. As vozes chegavam-lhe do salão, os guardas de lady Dreseida contavam histórias à lareira com os homens de Broichan que tinham ficado para proteger Pitnochie enquanto os restantes se tinham juntado ao exército de Talorgen. A dama e a sua filha também deviam estar no salão, mas os rapazes já deviam estar deitados. Tuala ouvira as suas vozes no quarto de Bridei. Naquele momento, porém, já não as ouvia, os rapazes deviam ter adormecido. Na cozinha, os ajudantes de Ferat lavavam os tachos e os pratos do jantar. A voz resmungona do cozinheiro acompanhava o ruído. Era cada vez mais difícil recordar-se de Ferat como o homem que ensinara uma pequena rapariga a fazer coelhos, sapos e pequenos homens com bocados de pão e que andara com ela à roda, segurando-a com os seus braços fortes e fazendo-a gritar de excitação; o homem que a ouvira com orgulho recitar o primeiro poema de cor e se rira das suas piadas inocentes.
O ranger da porta do alojamento dos homens; botas a passar. Pouco depois, homens a ressonar. Os homens trabalhavam muito. As visitantes caminhavam como as damas que eram, com passos suaves, a caminho do quarto cedido por Mara; enquanto ali estivessem, a governanta dormiria no quarto de Broichan. Aquilo impressionara Tuala; uma tal perspectiva parecia-lhe extremamente alarmante. O druida não se manifestaria através de uma sombra de si próprio, com os seus olhos penetrantes e palavras acusatórias? E se as coisas no interior dos frascos começassem a mexer-se durante a noite? O facto de Broichan estar em Caer Pridne não fazia qualquer diferença.
A cozinha já estava silenciosa. Ferat e os seus ajudantes tinham acabado e tinham ido deitar-se. Os passos lentos e pesados de Mara ouviram-se a atravessar o salão. Ouviu-se um leve crepitar: a governanta estava a apagar a lareira. Mais passos. Mara a caminho da cozinha para ver se a da cozinha também estava apagada. A governanta devia estar a olhar para tudo com os seus olhos de águia, em busca de sinais de desordem - poeira nas lajes do solo, uma colher fora do sítio, uma capa caída no chão. Em seguida, ouviu-se o som metálico do ferrolho maciço a ser colocado no seu lugar, cerrando a porta até os guardas da noite chegarem na manhã seguinte para tomarem o pequeno-almoço. Os passos de Mara ouviram-se de novo em sentido contrário, fizeram uma pausa no salão - em que estaria ela a pensar? Estaria a imaginar Broichan na corte do rei? - e dirigiram-se para o quarto do druida. A porta abriu-se e fechou-se. Silêncio total, salvo o ronronar de Mist, enroscado no cobertor áspero, junto dos joelhos de Tuala.
Depois, mais um período de espera. Não havia o perigo de adormecer; a importância do que havia a fazer era demasiado grande. Tuala ensaiou tudo mentalmente até ter a certeza de que estavam todos a dormir, imersos nos seus sonhos. Então, a jovem vestiu a sua saia e a sua túnica preferidas, um traje leve de lã com uma orla bordada a azul que tinha pertencido a Brenna e que lhe ficava um pouco grande, mas que era a sua primeira roupa de mulher a sério, um presente da sua ama antes de Fidich a ter proibido de aparecer na cabana. A jovem sabia que Brenna tinha passado muito tempo, um tempo precioso, a alterar a saia e a túnica para que lhe ficassem melhor. As roupas cheiravam levemente a alfazema; Brenna mostrara-lhe como colocar ervas secas no meio da roupa para a manter a cheirar bem e apesar de a jovem não ser muito arrumada, nunca se esquecia de ter sempre algumas folhas na arca. O aroma fê-la sentir-se mais perto da floresta, mais perto do mundo selvagem das plantas e dos animais, um mundo muito mais seguro do que o dos homens. Tuala deixou os cabelos livres, limitando-se a penteá-los e a deixá-los cair pelas costas abaixo, uma cascata negra que lhe chegava à cintura. A jovem tirou os chinelos. Os pés descalços faziam menos barulhos. Ao pescoço colocou o disco lunar que usava sempre e sentiu-o quente contra a pele. Tuala saiu do seu quarto sem um som e encaminhou-se em bicos dos pés para a porta do pequeno quarto de Bridei.
Esta estava aberta; talvez os rapazes tivessem medo do escuro e precisassem da luz das candeias que ardiam no corredor para lhes vigiar o sono. Tuala passou pela abertura e entrou no quarto. Os dois rapazes dormiam. Uric estava enrolado no seu cobertor com as pernas encolhidas, os braços cruzados no peito e a cabeça enterrada na almofada.
Bedo ocupava o seu espaço e metade do do irmão. O seu cobertor estava no chão. Tuala pegou nele e tapou-o. O rapaz não se mexeu. Os raios pálidos da Que Brilha entravam pela janela minúscula; a deusa encaminhava-se para a mancha de céu escuro que se avistava através da abertura e, quando ela aparecesse na sua totalidade, Tuala tinha de ter tudo pronto. As oferendas de Bridei continuavam no peitoril, mas Tuala viu que alguém lhes tinha mexido. Os rapazes são criaturas curiosas e aqueles dois tinham examinado, sem dúvida, a pena de águia e tinham brincado com as pedras brancas. Não tinha importância; o toque de uma criança inocente não faz mal às coisas sagradas. Tuala colocou os talismãs como Bridei os deixara e depois, metendo a mão no pequeno saco que trouxera, começou a acrescentar os seus, cada um com umas palavras especiais. Um graveto carbonizado, branco numa das pontas e cor de carvão na outra:
- Chama que se inflama, chama que renasce Livro de Fortriu, o escolhido...
Uma pena, não uma pena de águia flamante, mas sim uma pena suave, branca, de coruja, uma ave invernal:
- Sopro da promessa, asas da vida Báculo antigo, banido...
Tuala tirou um pequeno frasco tapado do saco, desrolhou-o e borrifou o peitoril da janela uma, duas, três vezes.
- Floresce, dá, subtil, livre Limpa e faz toda a gente honesta...
Finalmente, um punhado de terra rica e escura, tirada do chão da floresta. A jovem colocou-o gentilmente ao lado dos outros talismãs.
- Anciãos que te seguram fortemente Clothedin spiritpure and bríght; o povo vê a luz ...
A Que Brilha deslizava no céu lentamente, aproximando-se da janela, emoldurada pelo velho rebordo de pedra, deixando que a sua luz caísse sobre as oferendas e sobre o rosto pálido de Tuala, que olhava Para ela enquanto murmurava os seus encantamentos. Seguiu-se a Parte mais importante, a parte que a jovem tinha de dizer antes que se fosse embora de Pitnochie para sempre. A deusa tinha de compreender como aquilo era crucial. Se Tuala não estivesse ali à espera de Bridei, alguém teria de estar; alguém que o ouvisse, que o vigiasse, que o amasse pelo que ele era e não por aquilo em que se tornara. Sem ninguém que o vigiasse, o fardo tornar-se-ia demasiado pesado. Tuala sabia-o no fundo do seu coração; não precisava de procurar quaisquer visões na água.
A sua mão entrou novamente no pequeno saco e tirou o último objecto: a história dela própria e de Bridei por concluir, os tempos juntos, os tempos separados, os reencontros alegres e as despedidas terríveis. Se tivesse os poderes da deusa, pensou Tuala amargamente, entrançaria os dois fios, mantendo-os assim indivisíveis para sempre. Porém, a jovem não era um ser sobrenatural. Por mais filha da floresta que fosse, os poderes que possuía não passavam de uma habilidade para fazer magia caseira, o género de magia que qualquer um podia fazer se se concentrasse devidamente, pequenos feitiços de eficácia e perigo limitados. Tuala nunca seria capaz de transformar uma criança num tritão, mesmo que quisesse e não podia proteger Bridei de um futuro de solidão, dificuldades e escolhas terríveis se fosse afastada dele para sempre. A Que Brilha, porém, podia e Tuala considerava-se filha da Lua, das sombras do Inverno, da neve sob os carvalhos, do gelo cintilante sob a luz fria e dos ramos nus dos vidoeiros sob o céu nocturno. Portanto, a oração mais solene tinha de ser dita enquanto a deusa punha os olhos na sua filha pequena e pálida; enquanto A Que Brilha virava o seu olhar imparcial para o que se passava no lado de dentro da pequena janela. Enrolando o fio nas mãos, Tuala murmurou as palavras.
- Escuta-me, Mãe Resplandecente, escuta a tua filha. Invoco o teu poder, o teu amor, a tua pureza brilhante. Através de ti invoco a Guardiã das Chamas, símbolo da verdadeira coragem e invoco a bela Todas as Flores, que lança o seu olhar gentil sobre tudo o que vive e respira na terra. Por teu intermédio invoco a Mãe de Tudo, guardiã das histórias antigas, guardiã da tradição dos Priteni desde os tempos antes dos tempos.
A Lua olhava para ela, silenciosa. O único som que se ouvia no pequeno quarto era a respiração fraca dos dois rapazes adormecidos.
- Não peço nada para mim. Se é teu desejo que eu abandone este lugar e te sirva como Mulher Sábia, assim seja. A tua vontade não tem discussão. É para Bridei que peço a tua ajuda. TU conheces o destino que o espera e eu vejo nele caminhos capazes de enlouquecer o mais sensato dos homens, traições que lhe despedaçarão o coração, perigos em cada esquina e uma solidão capaz de gelar o mais caloroso dos corações. Sem mim, quem o aconselhará? Sem mim, como poderá ele chorar? Só, o seu fardo será demasiado pesado. Nenhum líder pode carregar um fardo tão pesado. Porém, ele tem de o carregar e eu tenho de me ir embora. Já não tenho lar.
A Que Brilha começava a afastar-se da janela, prosseguindo a sua jornada.
- Peço-te, por isso - disse Tuala, lavada em lágrimas - que tomes este encargo nas tuas mãos, Grande Deusa, Mãe Resplandecente, íluminadora de todos nós. Sabes que ele vai ser rei; sabes a força que ele tem e também sabes aquilo a que se pode chamar uma fraqueza. Bridei está sempre pronto a compreender a mente e o coração do seu adversário, tem um espírito aberto que o fará hesitar até no momento de deixar cair a espada da justiça. Ampara-o, Dama Brilhante; consola-o no escuro da noite, quando o seu coração se sentir inseguro. Quando a sua mente estiver ensombrada pela dúvida, embala-o nos teus braços e dá-lhe descanso. Peço-te em nome de todos os deuses, em nome de tudo o que é sagrado...
No seu cinto, Tuala tinha uma pequena faca; pousando o fio, a jovem pegou na arma e ergueu-a para cortar uma madeixa espessa de cabelos negros, deixando uma clareira na fronte. Faltava apenas uma parte e depois, se o ritual tivesse sido celebrado na perfeição, A Que Brilha dar-lhe-ia um sinal e ela saberia, por mais triste que se sentisse e por mais gelado que estivesse o seu coração, que Bridei ficaria sob a protecção da deusa. A jovem ergueu ambas as mãos e respirou fundo para o encantamento final.
- Que estás afazer?
Tuala virou-se com os braços ainda estendidos. A rapariga que estava atrás dela abriu muito os olhos e estremeceu. A faca estava apontada na direcção do seu peito. Tuala engoliu em seco e baixou os braços.
Ferada aproximou-se da cama em duas passadas, qual espírito de vingança com os pés metidos nuns chinelos leves e vestida com um roupão bordado, os cabelos ruivos pelas costas abaixo.
- Diz-me! - sibilou ela. - Que estás a fazer no quarto dos meus irmãos? Por que tens essa faca na mão?
Tuala não conseguia controlar as batidas do seu coração nem a resPiração. A Que Brilha já se tinha afastado da janela e o ritual ainda não tinha chegado ao fim. A jovem tentou mandar mentalmente a Rapariga Raposa embora: Vai-te embora, depressa, para eu poder acabar e salvá-lo, mas a rapariga de cabelos ruivos ficou ali na sua frente com a boca Cerrada e os olhos brilhantes de desconfiança.
- Então? - exigiu Ferada. - Fala.
- Eu não quero fazer mal aos teus irmãos. - Tuala não conseguia manter a voz firme. - Além disso, este quarto não é deles, é de Bridei. Esta casa é minha, não é tua. Posso ir onde muito bem me apetecer.
Os lábios de Ferada curvaram-se num pequeno sorriso gelado.
- A minha mãe não vai ficar impressionada com esses argumentos quando eu lhe disser que te encontrei aqui a meio da noite com uma faca na mão - disse ela. - Se queres que ela te inclua na nossa comitiva quando regressarmos a Caer Pridne, e eu devo dizer que a ideia não a entusiasma nada, tens de fazer melhor do que isso.
A Lua estava a sair do campo de visão de Tuala; faltava muito pouco tempo.
- Por favor - disse Tuala por entre os dentes. - Por favor, deixa-me acabar. Podes ficar a ver; verás que não estou a fazer nada de mal. Tenho de fazer isto agora, enquanto a Lua está a olhar pela janela. Tenho de fazer isto antes de me mandarem embora.
Algo no seu tom de voz fez com que a expressão de Ferada mudasse, se bem que os seus olhos continuassem desconfiados. A rapariga de cabelos ruivos aproximou-se da cama onde dormiam os seus dois irmãos.
- Continua, então - disse ela secamente.
Era difícil recomeçar o ritual; difícil acalmar o coração enfurecido, engolir as lágrimas, abrandar a respiração. Aquilo tinha de ser feito como devia ser, ou não funcionaria. Bridei sempre frisara a importância dos rituais; o imenso privilégio que era fazer com que os deuses ouvissem e vissem.
- Ofereço este talismã de mim mesma - disse Tuala, colocando a brilhante madeixa no peitoril, ao lado dos outros objectos. - O resto deixo ao cuidado do fogo. Que a Guardiã das Chamas, protectora dos guerreiros, conheça também a minha total lealdade. E ofereço isto. - Um corte rápido com a lâmina na palma da mão direita, rápido, antes de poder pensar duas vezes - Ferada deixou sair um pequeno grito de sobressalto - e a jovem deixou que o sangue caísse sobre os talismãs colocados em cima do peitoril. - Deste modo, demonstro a minha reverência pelos antepassados, que durará enquanto o sangue me correr nas veias, enquanto o ar passar pelo meu corpo, enquanto os meus pés andarem pelo mundo dos homens; enquanto o meu coração souber distinguir a verdade.
A Que Brilha tinha desaparecido quase por completo; uma mera lasca da sua forma encantadora na janela, se bem que a sua luz pudesse ser vista nas formas despidas dos vidoeiros. - Tu sabes que ele é sábio, forte e bom - murmurou Tuala - mas também é humano, assaltado por medos, atormentado por dúvidas, aberto à tristeza mais profunda. Peço-te, já que não posso estar ao pé dele para o ajudar, que não o deixes enfrentar os tempos sombrios que se aproximam sem um amigo verdadeiro. Peço-to em nome dos laços que nos unem e que tu criaste, Mãe de Tudo...
A jovem podia ter dito mais, mas a presença de Ferada tornava-o impossível. Na verdade, dizer mais teria sido, não só perturbador, como perigoso. Tuala meteu a faca no cinto e agarrou no pequeno saco, tentando deter a hemorragia. A jovem fez uma vénia à Lua que se afastava do seu campo de visão; então, as coisas começaram a ficar enevoadas e Tuala sentou-se subitamente aos pés da cama. Os dois rapazes continuavam a dormir, imperturbáveis.
- Que os antepassados nos protejam! - exclamou Ferada em voz baixa, ajoelhando-se ao lado dela. - Não estava nada à espera disto. Deixa-me ver a tua mão - precisa de um unguento e de uma ligadura...
- Não é nada. - As feições agudas de Ferada iam e vinham; Tuala tinha um zumbido na cabeça. - Estou bem e o que eu estava a fazer acabou. Podes ir-te embora.
Ferada ergueu as sobrancelhas bem desenhadas.
- Não me pareces nada bem. Além disso, não te vou deixar aqui com Uric e Bedo. Anda comigo, eu arranjo-te uma ligadura, a mãe tem algumas...
- Não! Não acordes ninguém. Eu estou bem, vou-me deitar... Tuala pôs-se de pé, mas as tonturas regressaram e as paredes começaram a andar à roda. A jovem vacilou.
- Rapariga estúpida - disse Ferada. - Onde é o teu quarto? As duas jovens chegaram rapidamente aos aposentos de Tuala. Esta não tencionava deixar a Rapariga Raposa entrar na única parte da casa de Broichan que lhe pertencia, nem naquela noite nem nunca.
Obrigada - disse ela, o mais firmemente que conseguiu. Boa noite.
Nem pensar. - Ferada tinha afastado a cortina que fazia de Porta daquele pequeno espaço e olhava para o interior escuro. - Não consegues tratar sozinha desse ferimento. Além disso, tenho umas perguntas a fazer-te.
- Eu não preciso de ti e não te quero ao pé de mim. - A dor na mão e as tonturas tornavam Tuala mais rude do que desejaria, mas também a percepção de que A Que Brilha não lhe dera um sinal, um reconhecimento de que ouvira as suas preces e aceitara as oferendas. A interrupção da Rapariga Raposa tinha provavelmente, arruinado o ritual. A deusa ficara zangada e poria Bridei e ela própria à deriva, à parte, sem amigos.
- Paciência - disse Ferada, pegando numa candeia que ardia em cima de uma prateleira de pedra perto da porta e entrando com ela no quarto da jovem. - Por todos os antepassados! Eu pensava que o quarto de Bridei era pequeno, mas este parece mais um armário. Que estranho. Não olhes para mim com esses olhos. Sabes muito bem que, se eu contar à minha mãe o que vi, ela recusar-se-á a levar-te para Banmerren, mas, se calhar, é o que tu queres. Talvez não queiras ir.
As sobrancelhas arquearam-se outra vez; à luz da candeia, os olhos de Ferada eram intensos.
- Não tens nada com isso - disse Tuala, consciente de que não conseguiria vencer uma guerra de palavras com aquela jovem confiante. Quantos anos teria a Rapariga Raposa - quinze, dezasseis? Não devia ser mais velha do que ela, porém estava a mundos de distância.
- É aqui, não é? - perguntou Ferada. - Onde guardas as roupas... aqui? - A jovem abriu a arca de Tuala.
- Tu não queres ir mesmo para a escola de Fola, apesar de ser a única hipótese de fugir ao casamento e vires a ser alguém. Preferes apodrecer em casa de Broichan enquanto esperas pelo regresso do teu irmão. Não acredito. - Sempre a falar, Ferada encontrou um pedaço de pano, tirou a faca do cinto de uma Tuala muda, cortou um bocado e começou a tratar do ferimento com dedos ágeis. - Tens alguma pomada? Óptimo, aqui... só um pouco. Agora, basta ligar. Não sei se sabes, mas há centenas de raparigas que eram capazes de matar para conseguirem um lugar em Banmerren! Fola não aceita uma qualquer.
Tuala sentiu-se tentada a responder. Ela aceitou-te a ti, não aceitou. Porém, não valia a pena. Além do mais, a mãe de Ferada era prima do rei. De acordo com as lições de genealogia de Erip, Tuala estava consciente dos privilégios e responsabilidades de um tal parentesco.
- Se não for, tenho de me casar - disse ela calmamente. Ir para Banmerren é melhor do que casar com um homem que não ame.
- Amor? - troçou Ferada. - O amor não tem nada a ver com casamento. Se fosse a ti, dava-me por feliz por o meu pretendente ter cabeça, tronco e membros. A minha mãe diz que os homens podem ser moldados. O amor é coisa das histórias. Não tem nada a ver contigo, comigo ou com a maioria das raparigas de Fortriu. O melhor que nos pode acontecer é conseguirmos assumir algum controlo. - Por breve momento, Ferada pareceu diferente, como se o exterior intimidante e competente albergasse uma rapariga inteiramente diferente.
Eu queria escolher - disse Tuala. - Mas quem escolheu foi Broichan. - Aquilo não era exactamente verdade, mas não lhe podia dizer.
Por quem estavas a rezar? - perguntou Ferada. - Pelo teu irmão?
Tuala não respondeu.
Penso que ele não precisa dessa devoção toda - disse secamente Ferada. - Sempre me pareceu muito capaz. Tem falta de humor e é um pouco bronco, talvez, mas é capaz. Se fosse a ti, deixava de me preocupar com ele e continuava com a minha vida. Sê realista, Tuala. Banmerra é uma grande oportunidade para ti. Quer dizer, para onde hás-de ir senão para lá?
O facto de aquilo ser verdade não melhorava o seu estado de espírito.
- É engraçado - continuou Ferada. - Bridei nunca fala de ti. Só soube da tua existência por Gartnait. Creio que estás a perder o teu tempo.
Tuala esperou um pouco, respirou fundo e só depois é que respondeu.
- Gostava de me deitar - disse ela polidamente - se não te importas. Obrigada por me teres ligado a mão. Agradecia-te que não dissesses nada a lady Dreseida. Ele não falou em mim porque o que existe entre nós é especial, precioso, não é para ser partilhado por ninguém.
Ferada olhou para ela de perto com os olhos semicerrados, como se estivesse a tentar resolver um quebra-cabeças.
- Hum - disse ela. - Ela vai acabar por saber quando os rapazes tiverem de explicar aquela confusão de cabelos e de sangue no peitoril da janela.
Não te estou a pedir que mintas - disse Tuala. Veremos - disse Ferada. - Sabes, isto pode tornar-se interessante. Começo a pensar que mandar-te para Banmerren é um pouco como meter um gato abandonado numa gaiola com uma matilha de cães selvagens.
- Os gatos têm garras.
- A sério? Havia de ser lindo. Penso que é melhor a mãe não saber disto. Pelo menos por agora.
Tuala levou uma mão à boca para abafar um bocejo.
- Não exageres - disse Ferada. - Ficam a faltar umas respostas, mas podem esperar. Boa noite, Tuala.
- Que A Que Brilha te ilumine os sonhos. - A jovem sabia que até num momento daqueles tinha de ser cortês.
A cortina ergueu-se e caiu. O som dos passos desvaneceu-se. Tuala ficou mais uma vez só. Colocando um xaile pelos ombros, a jovem sentiu a dor na mão subir-lhe pelo braço acima, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe começavam a cair pela face, quentes e amargas. Mist dormia. Era impossível saber o que ia na mente do gato. As suas garras contraíam-se de vez em quando; talvez estivesse a sonhar com ratos. Quanto a Tuala, os seus pensamentos estavam fixados em algumas coisas que a Rapariga Raposa dissera, coisas que eram mentiras, mentiras horríveis. Ele não é bronco. Ele é a melhor pessoa do mundo, conta histórias maravilhosas e está sempre pronto a ouvir. Os deuses amam-no. E eu não estou preocupada com ele, estou a tratar do futuro dele... Alguém tem de o fazer e ele só me tem a mim.
Aqueles pensamentos não pareciam melhorar a situação; as lágrimas eram cada vez mais, demasiadas para as poder limpar. A jovem fez um esforço para se manter em silêncio; não podia permitir que a Rapariga Raposa, ou outra pessoa qualquer, a ouvisse a chorar. E se A Que Brilha não tivesse aceitado as oferendas? E se Bridei tivesse que cumprir o seu destino sozinho? Ele não vai estar sozinho, lembrou-lhe uma voz interna. E a visão, o Solstício de Verão em Amanhecer das Três Colinas? Ele não está só, pois não? Quem pensas que era aquela do cabelo ruivo e do vestido elegante? Uma mulher digna de um rei, mais nada.
Tuala deitou-se, fechou os olhos com força e tapou os ouvidos com as duas mãos. Porém, a voz continuou, impossível de calar, a voz insidiosa, íntima do Homem-Folha, um dos da sua raça, determinado a abrir-lhe a mente para a sua própria loucura. Era ela, não era? Muito conveniente. E se não quer saber do amor para nada, que interessa se o acha um chato? Ele vai ser rei e isso é que interessa.
Finalmente, Mist acordou, ou quase, subiu para a cama, deu três voltas e deitou-se encostado ao pescoço de Tuala. Mais tarde, extenuada por tanta tristeza e com a mão ligada em cima do pêlo suave do animal, Tuala rendeu-se ao sono.
O vento devia ter sido forte durante a noite, um vento caprichoso, em círculos. Quando Bedo olhou pela janela para ver como estava o dia, reparou que a pena de águia tinha desaparecido. O jovem ficou desapontado; tinha planeado, em segredo, metê-la na sua bagagem antes de seguir viagem. O rapaz olhou em volta; não estava no chão nem em cima da cama, no meio dos cobertores amarrotados. Depois do pequeno-almoço, Bedo foi ver na rua, mas também não a viu. No peitoril, o vento deixara apenas as três pedras brancas.
Na manhã seguinte partiram para Caer Pridne, levando consigo a rapariga. Os cabelos de Tuala estavam esquisitos; tinham sido cortados grosseiramente ao nível das orelhas e estavam algo parecidos com os de Bedo, se bem que menos bem penteados. A jovem ia muito calada. A sua boca era uma linha fina, como se estivesse a tentar não chorar. Tuala não olhou uma única vez para a casa do druida e para os carvalhos.
O homem de Broichan tinha partido antes de o seu senhor ter deixado Pitnochie, equipado com um pequeno saco, os meios adequados para se defender e uma mensagem para Talorgen na cabeça. Esta não era complexa: tinha apenas duas partes. Primeira, o velho, Erip, tinha morrido e a notícia tinha de ser dada ao rapaz com serenidade. Segunda, doravante o rapaz tinha de ter um provador. Era fácil.
O mensageiro estava acostumado a cobrir grandes distâncias com rapidez, mesmo com mau tempo. Era suposto apanhar o exército em marcha no espaço de mais ou menos doze dias, talvez menos se não chovesse. O homem sabia como evitar os lobos, os obstáculos e os espiões de Dalriada; era capaz de passar dias com rações escassas e pouco sono.
Porém, não estava à altura da rocha escorregadia por cima do Lago da Donzela. O tempo estava húmido e quando ia a passar por um carreiro estreito, bem acima da água, ouviu um resmungar inequívoco que se transformou rapidamente num rugido violento de pedras a rolar. O homem aguentou-se, agarrando-se o mais possível aos acidentes do terreno, rangendo os dentes e pedindo à Mãe de Tudo que o poupasse, que a sua hora ainda não chegara. O tumulto cessou; pequenas pedras rolaram pela encosta e só pararam na massa de cascalho, no fundo. Afinal, a sua hora ainda não soara. O mensageiro pestanejou para afastar a poeira dos olhos, respirou fundo, feliz por ter sido poupado. Doía-lhe uma das pernas; olhando para baixo, para determinar a gravidade do ferimento, ficou sem pinta de sangue. Uma rocha maciça tinha ficado entalada na parede rochosa onde procurara abrigo. Entre ela e a falésia, estava a sua perna, presa até à coxa. A fronte do mensageiro encheu-se de suores frios. Aquele olhar simples disse-lhe que a perna estava esmagada; nunca mais sairia dali.
O homem tentou, durante algum tempo, soltar-se com as mãos, batendo na rocha com uma pedra e utilizando a faca que tirou do saco que tinha às costas, deixando a pedra cheia de riscos desesperados. Ainda tinha comida para muitos dias e água para três. A princípio, racionou tudo muito bem a pensar num salvamento. Porém, ninguém apareceu. Quando a água acabou, pensou em pegar na faca e cortar a perna enquanto ainda tinha forças e depois... e depois o quê? Sangraria até morrer, rastejando por caminhos apenas conhecidos dos texugos, dos esquilos, das martas e dos besouros, mas, pelo menos seria rápido. No entanto, a faca estava mal afiada e não teve coragem para tentar.
No dia seguinte à ração de água acabar, choveu. O mensageiro lambeu-a da rocha que o tinha preso, espantado com o seu próprio instinto de conservação. A mensagem tinha-se-lhe varrido da memória; esquecera tudo menos a dor, o frio e o desespero. Naquela noite, quais mensageiros da morte, apareceram os lobos.
Chegados àquele ponto já não havia nada a fazer. Parados, olhando na direcção de Galany's Reach, viram fumo, uma bandeira a flutuar por cima da aldeia e viram que os Gaels estavam prontos para os receber; os espaços por trás e por baixo do baluarte, de chuços afiados, estavam cheios de arqueiros. No topo do monte, mesmo àquela distância, a silhueta da Pedra Mágica recortava-se contra o céu, guardada por sorveiras bravas. Atraía o olhar e dava calor ao coração.
- Não são assim tantos - disse Talorgen com os olhos semicerrados. - Foi por isso que se fecharam ali, em vez de nos enfrentarem. Vamos agir como o planeado. Estão todos prontos? Morleo? Ged? Foirel?
Grunhidos de assentimento. As tropas de Ged, resplandecentes nas suas roupas multicoloridas, iriam para o flanco direito, as de Morleo para o esquerdo e a força principal atacaria os portões. Logo atrás dos homens de Talorgen ia o pequeno bando de Foirel. Bridei vira os olhos perigosos do seu líder, o seu ar de energia mal contida, como se estivesse quase a explodir. O armamento considerável de cada um dos mal-encarados seguidores de Foirel não contribuía para diminuir o seu mal-estar. Aqueles homens pareciam mais uns juizes arbitrários do Outro Mundo do que outra coisa. Talvez não quisessem, sequer, olhar o que iam atacar, senão no fim. A sua proximidade não era nada tranquilizadora.
O conselheiro do rei, Aniel, enviara os seus dois guarda-costas pessoais em nome de Drust, o Touro. Garth, um deles, avançou, transportando o estandarte do rei e os outros ergueram bem alto os símbolos de cada um dos chefes tribais presentes: Longwater, Abertornie, Fonte do Corvo e a antiga bandeira de Galany. Talorgen ergueu no ar um punho fechado e gritou:
- Fortriu!
O orgulho fez correr mais depressa o sangue nas veias de Bridei, como se tivesse sido tocado pela própria Guardiã das Chamas. O jovem ergueu a sua própria voz em resposta, tal como os outros:
- Fortriu! - e os Priteni avançaram para o combate.
A aproximação fazia-se através de um vale largo por onde corria um rio que ia desaguar às vastas águas do Lago do Rei. O solo era pantanoso e as botas dos atacantes enterravam-se na lama. Não havia onde se protegerem senão alguns arbustos e algumas árvores enfezadas acima das margens do rio. Quando se aproximaram da água, os portões da aldeia abriram-se e o inimigo saiu ao seu encontro. Afinal não era a defesa desesperada de um posto avançado, era um contra-ataque bem planeado, exército contra exército; alguém dera boas informações aos Gaels e eles tiravam partido delas.
- Quantos? - gritou Bridei a Donal, que o seguia como uma sombra, de lança na mão.
- Muitos - disse Donal. - Vamos conseguir. Eles vão tentar atrair-nos até ficarmos ao alcance dos arqueiros. Talorgen vai contê-los, isto se o louco do Foirel não carregar primeiro. Fica perto de mim, Bridei. Não saias da minha vista.
Até, pensou Bridei, até no calor da batalha a mão de Broichan chega até mim, como se eu fosse uma criança. Quando terei a oportunidade de demonstrar que sou um homem?
Então, a seu lado, na sua frente e atrás de si, os homens começaram a correr, a gritar, e o dia enlouqueceu. Os gritos pareciam trombetas aos seus ouvidos; o seu coração, que já batia com toda a força, adquiriu o ritmo de um tambor, as suas pernas transportaram-no para a frente no meio daquela vaga de corpos e então, abruptamente, as flechas começaram a cair e os homens levaram com elas nos olhos, nas gargantas ou nos ombros, havia corpos sob os seus pés, capas e elmos ensanguentados, mãos agarrando um olho ou um membro. O jovem não podia parar para os ajudar, continuava a ser transportado pela onda, as fileiras já menos espessas, a sua própria voz gritando asperamente por cima do estridor: "Fortriu! Fortriu!"
Depois das flechas foi a vez das lanças; Donal espetando a sua num tipo e este estrebuchando como uma truta; Gartnait no meio de umas silhuetas, esbracejando, praguejando e trespassando o coração de um homem com a sua adaga. Os seus olhos, estranhos, exaltados, como se estivesse na presença de um deus. Um homem grande, Breth, procurando o espaço de um outeiro cheio de arbustos rasteiros e utilizando o seu arco para matar firme e friamente um inimigo e depois outro.
Fica perto?, pensou Bridei. Donal devia estar a brincar. O jovem subiu o outeiro, aproximou-se de Breth, preparou o seu arco e começou a disparar cuidadosamente; o menor erro de cálculo e a flecha atingiria um dos seus camaradas em vez de um dos Gaels.
- Para sul - disse-lhe Breth. - Além, por trás dos homens de Ged! Estás a ver? Dispara para lá para dares cobertura a Foirel.
Dali era possível ver o que Foirel estava a fazer, se bem que na pressão da batalha tudo parecesse fortuito, se reduzisse a um simples homem avançando com uma grande faca ou a outro com uma lança trespassando um adversário. Na base do outeiro, o combate prosseguia: uns sobreviviam, e continuavam, outros morriam. Do alto da pequena elevação, Bridei viu que as forças de Talorgen estavam a progredir com mais dificuldade; tinham acabado de passar o rio, enfrentavam um grupo bastante grande de celtas e muitos homens de ambos os lados jaziam de borco ou estremeciam, os seus gemidos afogados pelos gritos de exortação ou de insulto, o tinir das lâminas ou o assobio das flechas.
Ged e Morleo faziam pouco melhor. As suas forças, de certo modo mais longe da muralha da aldeia, suportavam o peso do trabalho dos arqueiros. Do sítio onde estavam, não podiam ver Foirel e o seu pequeno grupo de guerreiros. Foirel levara os seus homens rio acima e agora regressavam pela margem oposta em ziguezague, utilizando os arbustos que cresciam na margem como cobertura, aproximando-se cada vez mais do caos junto dos portões.
Seguindo as indicações de Breth, Bridei disparou uma e outra flecha, tentando apanhar os celtas no meio da multidão, os que estariam no caminho de Foirel quando este atacasse na direcção da muralha. Era uma loucura; exactamente o que se esperava de um homem como Foirel. Provavelmente, os seus homens seriam trespassados antes de atingirem as posições inimigas. No entanto, o homem que Bridei acabava de matar com uma das suas flechas não os veria chegar. O tipo que Breth atingiu num olho também não, nem aquele, nem aquele...
- Sempre disse que eras um bom arqueiro - disse Breth, apontando e disparando de novo.
- Quantas flechas tens? - perguntou-lhe Bridei.
- Duas. Toma uma.
Os dois homens dispararam e atingiram dois celtas. Em seguida, voltaram a descer a encosta e entraram no pesadelo. Donal não se via em parte nenhuma; Gartnait também desaparecera na confusão. Talorgen, na sombra de Garth, usava a sua espada com efeitos devastadores. O senhor de Fonte do Corvo era um verdadeiro líder, estava na linha da frente com os seus homens. As forças de Ged, com as suas túnicas coloridas cheias do seu sangue e o do inimigo, estavam na outra margem do rio e progrediam pelo monte acima. Subitamente, para lá da massa agitada de homens em luta, aconteceu algo. Do interior da paliçada de chuços aguçados surgiu uma luz brilhante, um crepitar áspero e começaram a ouvir-se vozes de mulher, gritando. Os homens de Foirel tinham pegado fogo à aldeia. A sua aproximação a coberto da vegetação tinha-os posto à distância de tiro; as flechas incendiárias tinham feito o resto.
Os arqueiros nos espaços superiores correram, desertando dos seus postos; apagar o fogo era mais urgente. No solo, corajosamente, os celtas mantinham as suas posições. Talvez os gritos de aflição fossem das suas mulheres e dos seus filhos encurralados no interior do silo, na casa de curtumes ou nos aquartelamentos onde se viam pessoas a correr com baldes, rapazes demasiado pequenos para combater e mulheres com sacos e cobertores. Os homens continuavam o combate com os rostos tensos enquanto o fumo cobria o campo de batalha, manejando as espadas, as lanças, erguendo os estandartes manchados de sangue numa atmosfera misteriosa, rosa, dourada e cinzenta.
270
Bridei não levara consigo uma lança; o jovem tinha uma espada curta, uma faca e o arco agora inútil a não ser que conseguisse uma nova provisão de flechas. Tornara-se impossível ver o que estava a acontecer, saber o que os líderes queriam fazer. Os homens limitavam-se a avançar na direcção do topo do monte, fazendo os possíveis para não serem mortos, travando uma batalha desesperada após outra. Bridei fazia uso da espada e da adaga. Na sua frente estava um jovem guerreiro, um celta, com as entranhas de fora e o rosto pálido de terror. Bridei nunca pensara ser capaz de cortar a garganta a um homem num gesto de piedade, mas fê-lo sem hesitar, murmurando ao mesmo tempo uma prece aos deuses em que o jovem, provavelmente, acreditava:
- Guardai a sua alma.
Após um longo período de tempo, muito longo, durante o qual o seu corpo se limitou a ferir, cortar e esquartejar, ao mesmo tempo que os olhos lhe ardiam devido ao fumo, ao suor, às lágrimas e a garganta lhe doía de tanto gritar, tornou-se evidente que a maré do combate estava a mudar. No alto, através da cortina cinzenta, via-se um brilhante halo de fogo e, recortados nele não se viam os celtas de Galany's Reach numa implacável posição de defesa, viam-se os guerreiros selvagens de Foirel com os dentes arreganhados e as longas facas serrilhadas, caindo por trás em cima do inimigo como fúrias vingadoras. A visão era terrível; o facto de estarem do lado de Bridei não a tornava menos alucinante. O bando de Foirel levava tudo na frente, lutava com a eficiência selvagem dos predadores da floresta, a dos grandes felinos, talvez, indiferentes no momento em que as suas bocas se fechavam sobre os pescoços das suas presas, conscientes apenas do cheiro do sangue.
Bridei viu-se a si próprio no meio daquele massacre, trocando golpes de espada com um guerreiro espadaúdo de Galriada enquanto a seu lado Foirel mantinha preso um inimigo torcendo-lhe o braço atrás das costas e forçando-o a ajoelhar-se na sua frente. Foirel colocou a sua faca em frente dos olhos do celta. O adversário de Bridei era um homem sólido com um elmo de pele na cabeça, com uns cabelos tão vermelhos e tão selvagens como o fogo que lhe devorava a casa e a família. Bridei viu no seu rosto cansado que ele já não queria saber. Porém, continuava a combater; ambos mais altos e mais largos do que Bridei, a sua única vantagem era a agilidade da sua juventude.
Na mente de Bridei estava o incêndio; a necessidade de salvar as mulheres e as crianças antes que fosse demasiado tarde. Talorgen devia dar a ordem, devia mandar homens para o combater. Se não o fizesse, morreriam todos e os Priteni provariam que não eram menos bárbaros do que os seus inimigos...
- Ah! - arquejou Bridei, sentindo uma dor na coxa; a espada do seu oponente tinha-lha rasgado, o sangue escorria e o jovem cambaleou. O celta ergueu novamente a sua espada e apontou para o pescoço. Bridei não parou para pensar. O jovem atirou-se para o lado, virou-se e trespassou o adversário. Este nem teve tempo de pestanejar. O guerreiro caiu para a frente com um olhar surpreendido no rosto, ao mesmo tempo que a espada de Bridei lhe entrava ainda mais no peito.
Bridei ajoelhou, respirando com dificuldade. O jovem virou o cadáver e arrancou-lhe a espada cheia de sangue. Em seguida, limpou-a na erva suja. No mesmo instante, viu um homem levantar-se por trás de Foirel, que estava dobrado, um homem em cujas mãos estava uma moca com pregos, pronta a descer sobre a cabeça do chefe tribal.
Bridei deu um salto. O seu corpo foi de encontro ao de Foirel e ambos caíram fora do alcance do celta. A moca caiu e atingiu o prisioneiro, o mesmo que enfrentara momentos antes a ponta da faca do chefe tribal. A arma já não era necessária: a moca esmagara-lhe o crânio. Bridei estava em cima de Foirel, com o rosto na lama e no sangue do campo de batalha. O jovem respirou fundo, sentiu o coração a bater e estendeu uma mão para Foirel. Atrás de si, o celta que matara um companheiro com a sua moca, jazia no chão com o corpo trespassado por nada menos do que três lanças.
- Que o Corvo Negro nos salve! - disse Foirel, pondo-se de pé e pegando na adaga que deixara cair. - Louco! Enlouqueceste por completo?
Bridei olhou para ele. O jovem não sabia o que dizer. A batalha parecia afastar-se deles; através do fumo espesso, Bridei via pequenos grupos de homens ainda presos nos seus pesadelos privados, mas o movimento parecia ser na direcção do topo do monte, na direcção da aldeia a arder; podia ouvir a voz profunda de Morleo a gritar ordens e podia ver o estandarte branco de Fortriu com os símbolos reais a azul, bem alto, no meio dos homens aos gritos.
- Não viste a faca na minha mão? Estiveste quase a levar com ela na garganta! - disse Foirel, metendo a arma no cinto e dando um pontapé no celta. - Quem é que te ensinou a combater? Outro louco?
Bridei sorriu.
- Um homem chamado Donal, tão louco como tu.
- Como é que te chamas, rapaz? - Foirel não era um homem amigável; o seu rosto era selvagem, desconfiado e perigoso, mesmo em momentos de repouso. No entanto, pareceu a Bridei que o chefe tribal não tinha ficado desagradado apesar das suas palavras.
- Bridei, filho de Maelchon. Sou filho adoptivo de Broichan, o druida do rei.
- Broichan, é? - Os olhos de Foirel semicerraram-se. - Talvez isso explique tudo. Não foi sorte, foi um risco calculado. Estou a ver que é melhor vigiar-te, jovem Bridei.
- Meu senhor - disse Bridei, fazendo uma vénia cortês. Foirel desatou a rir, espantando o jovem.
- Boas maneiras e actos de bravura no campo de batalha! Deves ser único! Tens a certeza que não te queres juntar aos guerreiros selvagens de Cinco Irmãs, rapaz? Não te dês ao trabalho de me dares uma resposta delicada - não há dúvida de que o teu druida tem outros projectos para ti. Toca a andar. Parece que a coisa acabou e eu quero estar no interior daquela paliçada antes que os homens entrem lá todos; temos de apagar um incêndio e restaurar a ordem.
O chefe tribal começou a subir a encosta, olhando por cima do ombro enquanto o fazia. Um momento depois, Bridei seguia-o. A batalha parecia ter terminado e o jovem sentia-se esquisito.
- Fico a dever-te um favor, filho adoptivo de druida - disse Foirel. - Avisa-me quando precisares. O chefe tribal de Galany paga sempre as suas dívidas.
Bridei sentiu-se inclinado a responder com um não foi nada cortês, ou um não é preciso, mas limitou-se a acenar com a cabeça. Aquilo era um pacto entre homens; não aceitá-lo seria um insulto.
Mais tarde, Bridei pensou que o mais duro não fora a batalha; esta passara-se num nevoeiro de frenesim, de acção caótica, de decisões tão rápidas que não tivera tempo de pensar no seu significado, num vendaval de tempo, de corações a bater, de respirações ofegantes, de corpos divididos entre os suores frios do terror e o êxtase do outro lado do medo. O que vira continuava-lhe na mente, algures, e regressaria a dobrar nos seus sonhos. No meio daquela bruma, vira tudo e continuara, muito simplesmente.
O mais duro foi depois da batalha, quando o ritmo do coração abrandou e a respiração estabilizou. Então, a mente recordou tudo e os olhos começaram a ver. Então, caminhando pelo que restava da aldeia de Galany's Reach, Bridei reconheceu o verdadeiro resultado da guerra.
Os homens de Morleo estavam a apagar o incêndio, tinham deitado abaixo uma longa secção de chuços a arder e demolido as cabanas por trás; a água chegava em baldes que passavam de mão em mão; outros batiam com ramos e outras coisas nas chamas, ou atiravam-lhes com pazadas de terra. Aqui e ali, alguns cobertores tapavam algumas formas estendidas no solo; no extremo de um daqueles cobertores o jovem viu um pé nu. Os homens de Talorgen também já tinham chegado; Bridei viu um jovem com quem treinara com a cabeça entre as mãos, atormentado por espasmos violentos, como se estivesse com uma sezão. A seu lado, acocorado, o grande guerreiro Breth, consolando-o com voz calma. A chuva, ligeira, começou a cair; em breve, o incêndio estaria dominado. Os homens de Morleo continuaram a trabalhar ordeira e disciplinadamente.
Os guerreiros de Ged estavam no lado de fora dos portões, acabando com os últimos opositores. Um grupo de homens de Talorgen percorria o campo de batalha em busca dos seus próprios feridos. Alguns já deviam estar a evacuar as mulheres, as crianças e os velhos, a vigiar os prisioneiros e a acabar com os últimos focos de resistência.
Bridei seguiu Foirel pelos portões escancarados e entrou numa aldeia misteriosamente escurecida pelo fumo, pelo ar cheio de cinza e de escória em brasa. A possibilidade de o incêndio recomeçar era grande apesar da chuva; se bem que algumas casas fossem de pedra, outras não passavam de cabanas de barro e canas e já ficara demonstrado que a paliçada podia arder com ferocidade. Os espaços entre as duas coisas eram estreitos, de terra batida; aqui e ali, as galinhas cacarejavam histericamente e os porcos acrescentavam-lhes os seus grunhidos sonoros. As vozes das mulheres já não se ouviam, nem as das crianças, apenas os gritos dos homens de Morleo combatendo o incêndio e os sons mais distantes, mais mortais vindos do exterior da paliçada, onde os maridos, os pais, os filhos e os irmãos de Galany's Reach continuavam a morrer. Aquilo não podia ser. Que dissera Donal? Não penses. Se vires o teu inimigo como um homem como tu, não conseguirás espetar-lhe a faca nas entranhas. E se não conseguires fazer isso no calor da batalha, perdes, tu é que morres. Por isso, esquece os filhos, os irmãos e os pais. Pensa apenas no inimigo. Lembra-te que eles roubaram a Pedra Mágica e que merecem morrer.
Bridei guardou aquelas palavras até chegar a uma bifurcação.
- Vai pela direita que eu vou pela esquerda - disse Foirel. - Procura sobreviventes. Isto é capaz de reacender, com ou sem Morleo. Se encontrares alguém, manda-os lá para fora enquanto é tempo. Se o chefe tribal deles ainda estiver vivo, é meu. - Para o caso de haver quaisquer dúvidas quanto àquelas palavras, Foirel sorriu ferozmente e fez um gesto com a mão em cutelo através da garganta. Em seguida, o chefe tribal meteu pelo carreiro da esquerda e desapareceu no meio do fumo.
O carreiro parecia deserto. Bridei avançou cuidadosamente com a espada na mão, consciente de que uma patrulha como aquela devia ser feita por quatro homens ou, pelo menos, por dois: um para atirar com as portas abaixo, outro para o cobrir e dois à espera de armas na mão. Sozinho, não ia fazer aquilo. O jovem limitou-se a bater nelas com o punho da espada e a gritar:
- Cá para fora! Depressa! Fogo! - agradecendo silenciosamente ao seu velho tutor Wid pelas poucas palavras da língua dos celtas que ele lhe ensinara.
Nem sinal de vida. Onde havia apenas cortinas coçadas a tapar as entradas, o jovem afastava-as e olhava lá para dentro, perscrutando o interior sombrio em busca de crianças escondidas ou mulheres comprimidas umas contra as outras. Porém, não encontrou nada. Bridei continuou com o coração apertado, uma sensação que tinha pouco a ver com o facto de estar sozinho num local onde celtas bem armados podiam estar à espera, escondidos, e muito com os instintos de uma mente e de um corpo treinados por um druida. Havia algo de errado ali; o jovem sentia-o.
Bridei contornou uma esquina e viu-se num espaço aberto, um local de reunião em redor do qual se aglomeravam algumas casas modestas. Por cima daquilo tudo continuava o halo do incêndio, mas o jovem viu uma ameixieira em flor e junto dela uma cruz de pedra com umas letras entrelaçadas. Bridei ouviu vozes de homens rindo-se, falando na sua língua e viu uns movimentos meio escondidos pela cortina de fumo. Bridei continuou a andar, passou pela cruz e parou abruptamente.
As mulheres e crianças que se tinham escondido naquelas pequenas cabanas estavam todas juntas encostadas a uma parede, comprimindo-se umas contra as outras para escapar aos guerreiros em semicírculo e de armas em riste. Uma jovem mãe apertava contra o peito um bebé a chorar, o seu rosto contorcido pelo terror e pela raiva. Uma anciã, acocorada, tinha uma criança a chorar em cada braço. As outras estavam em silêncio, pálidas. Bridei não queria acreditar no que estava a ver. Os homens que as tinham conduzido para ali e as tinham na ponta das lanças não eram os guerreiros selvagens de Foirel, os únicos capazes, julgava ele, de uma coisa daquelas. Aqueles homens não tinham as roupas coloridas de Ged, nem pertenciam às forças de Morleo de Longwater, todos eles ocupados a apagar o incêndio. Aqueles homens eram guerreiros de Talorgen e apesar de as suas armas estarem apontadas para aquele amontoado de prisioneiras, não estavam a olhar para elas. Não longe dali, dois guerreiros Priteni tinham encostado uma jovem a uma parede e um terceiro, com o traseiro nu, tentava desajeitadamente levantar-lhe a saia. Atrás dele havia mais, observando a cena com sorrisos nos rostos.
Bridei sentiu-se ultrajado; os seus dedos apertaram o punho da espada e o jovem abriu a boca para rugir nem ele sabia bem o quê, uma série de maldições, uma ordem, algo a que aqueles homens não prestariam atenção visto que ele era jovem, desconhecido e sem experiência. Um instante mais tarde, os ensinamentos de Broichan, juntamente com os de Donal, vieram à tona e o jovem viu-se possuído por uma calma fria. Bridei avançou de arma na mão.
- Por tudo o que é sagrado - disse ele, sentindo na voz um eco da força que Broichan conseguia nos grandes rituais, uma profundidade que não era apenas humana. - Em nome da Que Brilha e do juramento que fizestes, servindo o vosso rei corajosamente, largai essa mulher imediatamente! - Bridei avançou na direcção do guerreiro meio nu e ergueu a espada. - Sai! Isso é um acto de um guerreiro de Guardiã das Chamas? Vós dois, largai-a!
O homem recuou, corado de vergonha ou de frustração. Os outros dois largaram a mulher e ela deixou-se cair no chão, ao mesmo tempo que levava as mãos ao rosto, como se o gesto a tornasse invisível.
- Quem pensas tu que és? - perguntou um dos homens. - Um chefe tribal autonomeado?
- Esta gente é escumalha - disse um outro. - Para que servem, senão para isto?
- É verdade - disse o primeiro. -Já passou muito tempo, filho de druida, mas tu não percebes nada, suponho. Ainda mal saíste dos cueiros. Se fosse a ti, via e aprendia...
- Chega! - A voz de Bridei era agora mais baixa, mas algo nela fez calar os homens. - Sabeis muito bem que o que estais a fazer é errado. Estais a troçar da bravura dos vossos camaradas no campo de batalha; é uma vergonha para os que caíram em combate. A Que Brilha vê isto com horror; não podeis dizer que lutastes em nome dela se cometeis um crime como este. - O jovem estendeu uma mão à mulher acocorada no chão, pensando ajudá-la a pôr-se de pé. Esta levantou a cabeça e cuspiu na sua direcção com os olhos brilhantes de raiva. O jovem perguntou a si próprio quantos teriam abusado dela com os outros a assistir, talvez a sua mãe, talvez os seus filhos, se não tivesse chegado a tempo.
- Não tocareis mais nesta gente; as ordens de Talorgen era para fazer prisioneiros, não abusar deles - disse Bridei. - Estais demasiados aqui, mais do que os necessários para escoltar esta gente para espaço aberto. Fazei-o sem provocar mais danos e podeis ter a certeza de que vou dar parte disto ao vosso chefe. Se acontecer mais qualquer coisa a estas mulheres, ele saberá a quem deitar as culpas.
Ouviu-se alguma agitação vinda da parte de trás das cabanas. Quando Bridei se virou, viu dois homens a emergirem, arrastando um celta. Os dois homens vinham a rir, trocando obscenidades entre si. O prisioneiro era uma rapariga de doze ou treze anos, uma criança escanzelada, vestida com umas roupas disformes. Um dos homens mantinha um dos seus braços dobrados atrás das costas e o outro agarrava-a pelos longos cabelos pretos. A cortina de fumo escondia-lhe as feições; mesmo assim, o seu aspecto, o seu porte e o seu modo de andar provocaram um arrepio em Bridei. Sem perceber bem as palavras, o jovem percebeu o sentido das piadas. O rosto da rapariga estava branco como a cal e os seus olhos estavam arregalados de terror. Uma súbita recordação de Tuala atingiu o coração de Bridei, ameaçando desanimá-lo por completo; que mundo era aquele em que entrara subitamente?
- Libertai-a! - gritou ele e, avançando, usou o punho da espada para dar um golpe terrível no braço de um dos homens. O tipo gritou e largou os cabelos da rapariga. Quando o outro começou a protestar, o punho esquerdo de Bridei apanhou-o no queixo; um golpe perfeito, treinado vezes sem conta com Donal. O homem recuou e a prisioneira ficou subitamente liberta. A jovem virou-se, pele e osso e cabelos no ar e fugiu para de onde tinha vindo. Bridei olhou novamente para os dois homens e viu que aquele cujo braço quase partira, um dos miseráveis que maltratara a criança era Gartnait, filho de Talorgen; Gartnait, o seu amigo.
Não havia necessidade de palavras; provavelmente, Bridei nem conseguiria dizer fosse o que fosse naquele momento. Os homens de Foirel estavam a chegar à praça. Ao vê-los, as mulheres empalideceram ainda mais e escudaram as crianças com os próprios corpos. Aqueles guerreiros tinham um aspecto feroz; cada um dos seus movimentos respirava perigo. Foirel deu ordens breves; todos os homens, incluindo os de Talorgen, lhe obedeceram. As prisioneiras foram escoltadas com as armas a uma distância discreta, mas sempre desembainhadas; dizia-se que as mulheres de Dalriada eram capazes de lutar com a mesma ferocidade dos homens. Qualquer uma delas podia, a qualquer momento, fugir, pegar numa faca e ferir alguém! No meio da cortina de fumo, os guerreiros afastaram-se e misturaram-se com os outros. O próprio Talorgen apareceu, dizendo-lhes que o incêndio estava quase apagado e que os chefes tribais dos celtas tinham sido feitos prisioneiros, recordando-lhes que não haveria pilhagem e que os que não eram guerreiros não seriam incomodados. Os homens acenaram com a cabeça, todos; os seus rostos não davam indicação de que havia ali um homem inocente, ali um violador de mulheres, acolá um combatente corajoso, ainda acolá um tipo que pensara em molestar uma criança. À superfície eram todos iguais. Só os deuses sabiam o que lhes ia nos corações.
Naquela noite, enquanto as forças de Talorgen se juntavam em redor das fogueiras, a exaustão sobrepondo-se à euforia da vitória, aos ferimentos e à perda de muitos camaradas no campo de batalha, Bridei sentiu o desejo imenso de regressar a casa, de subir a Cicatriz da Águia e olhar através do Grande Vale com o Sol no rosto, o vento no cabelo e sem outro som que não os gritos das aves no céu, por cima da sua cabeça. Tuala estaria com ele, pequena e calada, a seu lado. O jovem beberia a beleza daquele sítio, a sua liberdade selvagem, o seu encanto perfeito. Então, seria capaz de contar a sua história e choraria. Ela ouvi-lo-ia com os seus olhos grandes e sábios e teria as palavras certas para o consolar. Então, talvez compreendesse aquilo tudo.
- Está tudo bem, Bridei? - Donal aproximara-se silenciosamente e sentara-se a seu lado de pernas cruzadas, rilhando um osso. Depois da marcha forçada pelo Vale abaixo com rações escassas, aquilo era um festim. Os homens tinham espichado a cerveja que havia nos barris que encontraram na aldeia, mas a alegria era pouca. Os corpos dos camaradas caídos esperavam os respectivos funerais, tapados com cobertores. Os inimigos jaziam amontoados com ramos de árvores e fetos empilhados em redor dos membros desarticulados. Na manhã seguinte seria acesa uma nova fogueira.
Bridei acenou com a cabeça, não confiando nas suas próprias palavras.
- Não está, não - disse Donal. - Demora um bocado. Tal como te disse, a primeira vez custa mais. Os homens andam a falar de ti.
Bridei cerrou os lábios. Gartnait já falara com ele sobre mal-entendidos e da captura de uma prisioneira que Bridei tinha injustamente interpretado de outro modo. À conversa seguira-se, com alguma inconsequência, algo entre um pedido e uma ameaça. Talorgen não ficaria a saber de nada por Bridei, ou as coisas entre os dois nunca mais seriam as mesmas. Bridei virara-lhe as costas. Que poderia dizer? Dissesse ou não a Talorgen, as coisas nunca mais voltariam a ser as mesmas. O som da voz do amigo provocara-lhe náuseas. Imaginava o que os outros homens não andariam a dizer dele: um tipo arrogante armado aos cucos. Quem pensa ele que é, emissário pessoal da Guardiã das Chamas? Quanto aos comentários anteriores, sobre mulheres e o que ele fizera ou não com elas, não permitiria que o afectassem. A sua atitude em relação às coisas da alcova era impossível de explicar, mesmo aos seus amigos e os homens daquele tipo achá-lo-iam um louco. Só Donal sabia a verdade visto que tinham sido necessárias explicações para evitar embaraços.
Donal conhecia muitas mulheres, uma em cada aldeia ao longo do lago, e algumas delas tinham amigas. Em vez de declinar convites, Bridei pusera os pontos nos is por ocasião do seu décimo quarto aniversário. O jovem lembrava-se muito bem da ocasião. Tinham regressado de um passeio a cavalo pela floresta nos arredores de Pitnochie e estavam no estábulo a tratar de Lucirji e de Snowjlre. Não havia mais ninguém presente. Donal convidara-o a ir à aldeia mais próxima para conhecer uma jovem generosa, desejosa de ensinar certas coisas a Bridei, coisas que ele estava na idade de aprender. O convite fora feito com alguma hesitação; era evidente que Donal não queria forçar a nota.
- Obrigado - lembrava-se Bridei de ter dito em tom algo formal - mas não posso. Ainda não.
Não podes? - repetira Donal. - Que estás a tentar dizer-me rapaz?
Bridei fizera um esforço para não corar, embaraçado, apesar de estar na presença do seu melhor amigo.
- Não é o que pensas. Eu não sou demasiado novo para... isso, nem quero que penses que não tenho disposição para essas... actividades.
- Mas?
- Fiz um voto. Uma promessa. A Guardiã das Chamas. Teve a ver com... - O jovem não conseguira ser mais preciso; a questão tinha a ver com conjecturas, com suposições, com o que ninguém, em Pitnochie, estava preparado para lhe dizer. - Tem a ver com a melhor preparação possível do meu futuro. - Aquilo era verdade, apesar de só parcialmente. - Eu acho que tenho de ser, ao mesmo tempo, profundamente leal aos deuses e autodisciplinado. Quer dizer, o mais perfeito possível. Fiz o voto solene de que só me deitaria com uma mulher na noite do meu casamento. Que só o faria no leito conjugal. Pareceu-me um gesto de respeito para com A Que Brilha visto que todas as mulheres são um reflexo da sua pureza e também para com a Guardiã das Chamas, que dá valor à força e ao autodomínio nos homens. Por isso, como vês, não posso ir contigo à aldeia.
- Estou a ver - dissera Donal, aparentemente surpreendido. E quem é que te ouviu a pronunciar esse voto?
- Os deuses, mais ninguém.
- Não me digas. - Donal recomeçara a escovar Luciry e não regressara ao assunto.
- Disseram-me que salvaste hoje, pelo menos, uma vida. - A voz de Donal trouxe de novo Bridei ao presente. - Dizem que, se não tivesses sido tu, Foirel de Galany's Reach não estaria aqui esta noite para reclamar a terra pela qual o seu pai morreu. Foste muito corajoso, Bridei. Como é que está a perna?
Bridei olhou para o membro ferido. O ferimento fora limpo e ligado pelo médico do próprio Talorgen. O jovem não se recordava bem de como o recebera.
- Ele não vai reclamá-la - disse ele. - Ou, pelo menos, só o vai fazer durante um dia ou dois; depois, vai ter de regressar. Vai ser difícil para ele: vir até aqui e ter que voltar para trás.
Donal olhou de relance para ele.
- Vamos celebrar uma cerimónia - disse ele. -Já está decidido. Uma vitória simbólica, uma nova consagração aos deuses.
- Acho que não o devíamos fazer - disse Bridei. - Pelo menos agora, depois do que aconteceu. A Que Brilha deve estar a olhar para o que aconteceu aqui hoje com dor e vergonha.
Se aquilo o surpreendeu, Donal não o deu a entender, nem lhe fez quaisquer perguntas.
- Mesmo assim - disse ele - vai haver uma cerimónia. Um símbolo de vitória, de esperança. Por mais que tenhas visto e penses o que pensares, os nossos homens combateram com coragem, Bridei, combateram e muitos morreram em nome de Fortriu e de Drust, o Touro. O pai de Foirel combateu e morreu, juntamente com muitos outros, quando os celtas atacaram Galany's Reach pela primeira vez. Apesar do que sentes, não podemos ir-nos embora assim, sem mais nem menos, como se o sacrifício dos nossos camaradas fosse motivo de vergonha.
Seguiu-se um silêncio.
- Além disso - disse Donal - parece que tu tens uma solução. Uma solução maluca, mas Foirel é um tipo meio maluco. Vais apresentar-lha?
Bridei não respondeu. Naquele mundo estranho em que entrara já não havia, parecia-lhe, lugar para esquemas heróicos, para gestos destinados a fazer bater o coração. Naquele mundo estranho, as trevas caminhavam e tinham rostos humanos.
- Bridei - disse Donal. - Diz-me o que tens. Não é o que eu pensava, pois não? Não foi a batalha, foi outra coisa qualquer. Diz-me o que foi, filho.
- Eu não sou uma criança - disse Bridei em tom cortante. - Eu resolvo os meus próprios problemas, está bem? És a minha ama, porventura? - O jovem enterrou a cabeça nas mãos ao mesmo tempo que ouvia o som petulante das suas próprias palavras, tornando-as numa mentira.
- Sou teu amigo. - A voz de Donal era calma; não havia nela qualquer tipo de julgamento.
- Os homens, alguns deles - disse Bridei - estavam... fui dar com eles na aldeia, antes de os homens de Foirel lá chegarem. Eles estavam... eles estavam a assustar as prisioneiras, a ameaçá-las e...
- É melhor contares-me tudo, agora que começaste.
- Estavam a tentar violar uma mulher. Eu vi. Se não os tivesse impedido, tê-lo-iam feito. E... - Não, mais não. Já chegava.
- Quem? - sibilou Donal. - Reconheceste-os? Diz-me os nomes deles.
Bridei engoliu em seco. O jovem reconhecera vários rostos, mas era o de Gartnait que lhe vinha repetidamente à memória, os seus olhos sem qualquer tipo de vergonha, ou pena, antes irados, rancorosos, desafiadores. A voz de Gartnait, desculpando-se e pedindo-lhe para não o envergonhar em frente do pai.
- Foram os homens de Talorgen - disse o jovem. - Não digo os nomes deles. É demasiado tarde para remediar o mal e as prisioneiras já estão bem. - Os homens de Ged tinham tomado conta delas e das crianças; Estavam na aldeia sob custódia até a questão dos reféns se resolver. O chefe tribal inimigo estava à guarda dos homens de Foirel, preso com correntes. Os guerreiros tinham sido mortos; os que não tinham morrido em combate tinham sido sumariamente executados. Tentar levar tantos guerreiros para o Vale seria demasiado arriscado e libertá-los estava fora de questão.
- Mas devias - disse Donal com ar muito sério. - Talorgen exigi-lo-ia. Sabes muito bem que ele não gosta de quebras de disciplina. Não lhe interessa se se trata de mulheres, no fundo não são melhores do que os homens.
Durante alguns momentos, Bridei não disse nada. Parecia haver uma pergunta no ar.
- Talorgen não quererá estes nomes em particular - disse finalmente o jovem. - Fui muito claro quando lhes disse que lhe diria tudo se acontecesse alguma coisa às prisioneiras. E digo, podes ter a certeza.
- Ah sim?
- Sim. Disse-o e faço-o. Porém, espero não ter de o fazer. Donal?
- Hum?
- Eu fiz alguns inimigos, hoje. Aqueles homens ficaram ressentidos comigo. Os nossos próprios homens.
- Teriam ficado na mesma se o caso tivesse acontecido com Ged, com Morleo ou com o próprio Talorgen. Os tipos não vêem uma mulher há muito tempo, Bridei. Suponho que acham que é um direito que lhes assiste, uma espécie de saque.
- É uma atitude estranha verem uma mulher apenas como um objecto que serve apenas para se satisfazerem. Eu acho que é um insulto À Que Brilha, que simboliza as mulheres no que elas têm de mais puro.
Donal olhou para ele com ar trocista.
- Os homens não têm todos a tua disciplina druídica - observou ele - nem o teu autocontrole. Normalmente, os homens são pessoas simples, Bridei. Vêm as coisas a preto e branco. É muito mais fácil.
- Em combate, talvez - disse Bridei, recordando a calma fria que o transportara pelo monte de Galany's Reach acima, a sequência automática de movimentos ofensivos e defensivos que o tinham tornado, durante algum tempo, numa ferramenta de guerra, eficiente e apaixonada. - Porém, não é modo de vida. Os homens que vivem assim, vivem afastados dos deuses. Se eu fosse líder, não quereria ser seguido por homens assim.
- Eles obedeceram-te - disse Donal. - Se pararam é porque te obedeceram.
- Obedeceram-me contrafeitos, com olhares cruéis e palavras de troça.
- Tu és novo, o que torna as coisas piores. Alguns homens não gostam de ouvir a verdade da boca de um rapaz, seja ele o que for.
Os dois companheiros permaneceram mais um pouco juntos enquanto as fogueiras iam morrendo e os homens se instalavam para dormir, exaustos e com as barrigas cheias. Aquela conquista fora uma vitória para os Priteni; a notícia espalhar-se-ia por toda a Dalriada, fazendo entrar o medo no coração do inimigo. Ocorreu a Bridei que talvez a guerra fosse sempre aquilo. Talvez a mais triunfal, a mais pura e a mais nobre das vitórias fosse, de certo modo, uma derrota.
Mais tarde, depois de Donal ter adormecido a seu lado, Bridei viu um homem a subir a encosta na direcção da aldeia com um archote na mão. O jovem embrulhou-se na sua capa e seguiu-o. O outro trepava firmemente, utilizando o carreiro em espiral que ia dar ao topo onde se encontrava a grande pedra flanqueada pelas suas guardiãs, as árvorés. A subida era íngreme, mas era uniforme, sem grandes pedras nem arbustos. Quando Bridei atingiu o topo, viu o outro de pé em frente da Pedra Mágica, a luz do seu archote revelando os padrões intricados de conflitos, triunfos e mortes. Aquilo podia ser uma representação dos acontecimentos daquele dia.
O jovem aproximou-se suavemente de Foirel e anunciou a sua presença; fazê-lo em silêncio seria o mesmo que receber uma faca nas costelas. Bridei avançou e os dois homens ficaram lado a lado enquanto que o archote revelava a história dos antepassados de Foirel, os verdadeiros guardiães de Galany's Reach.
- Pensei que nunca mais veria isto - disse Foirel com a voz algo entrecortada. - Que os deuses nunca mais me dariam a oportunidade de contemplar aquilo por que o meu pai, os meus tios e tantos outros parentes meus morreram. Eu tinha três anos quando os celtas conquistaram a nossa terra; demasiado novo para compreender o significado da perda. Pega aqui no archote. Mostra-me o outro lado.
Em silêncio, os dois homens deram a volta ao monólito, na verdade uma coisa maciça, imponente, mais alto do que o mais alto dos homens e com quase dois metros de espessura. Devia estar profundamente enterrada no solo, perto do coração da Mãe de Tudo. Bridei e Foirel observaram as gravuras turbulentas no lado sul, animais da terra e do oceano, dos rios, dos montes e das planícies, do subsolo, das grutas e do céu aberto. A imaginação de Bridei levou-o até ao topo de uma colina de onde podia ver o vale em toda a sua magnificência, como uma águia, e sentiu bater sob os pés o coração de Fortriu. Apesar de não ser sua intenção dizê-lo, apesar de os acontecimentos do dia lhe pesarem, de tal modo que não havia espaço na sua mente para praticamente mais nada, disse-o:
- Devíamos levá-la connosco.
- O quê? - Era evidente, pelo tom, que Foirel não percebera.
- Não podemos deixar a pedra aqui; seria o mesmo que admitir a derrota. Sabemos que não podemos aguentar Galany's Reach com as forças que temos; é impossível, mas podemos levar a pedra connosco, para um sítio onde os celtas não lhe possam tocar.
- Tu és mesmo louco - disse Foirel com a testa e os braços encostados à superfície fria da pedra como se, com a sua proximidade, pudesse absorver o seu poder ancestral. - Nunca ouvi uma coisa mais louca. És algum herói mítico com a força de cinquenta gigantes? Já viste o tamanho disto, o seu peso? Ou tencionas fazer uso da magia druídica? - Apesar das suas palavras, o archote revelou uma mudança nos olhos de Foirel; algures, na sua escuridão, surgira uma centelha, uma excitação, uma certa loucura.
- Não só. Tenciono fazer uso de outros meios mais práticos, também - disse Bridei calmamente. - Vai dar trabalho e não temos muito tempo, mas temos muitos homens, se conseguirmos convencer Talorgen e os outros chefes, e eu sei como fazê-lo.
CAPITULO DEZ
- Bem - disse Fola -, chegaste, enfim. És tão pequenina, custa a acreditar que tenhas catorze anos, mas como Broichan diz que sim! Bem-vinda a Banmerren, filha.
- Obrigada, minha senhora - disse Tuala, fazendo um esforço para parecer calma. A entrada naquela casa estranha, de paredes de pedra, com raparigas espantadas a olhar para ela, fora difícil e ainda mais difícil fora ouvir a voz intimidante de Dreseida, a primeira a entrar no santuário de Fola: "Trazemos-te esta criança estranha de Pitnochie." Naquele momento, Ferada e a mãe tinham ido ver a zona onde as raparigas nobres ficavam alojadas, aquelas cuja educação nada tinha a ver com esoterismo.
Tuala viu-se perante a Mulher Sábia e uma antipática mulher de meia-idade que respondia pelo nome de Irethra. Apesar de se sentir miserável, a jovem não deixou de reparar na tranquilidade do local, nas pedras aveludadas dos edifícios, nos nichos com pequenas figuras aqui e ali, todas diferentes, cada uma delas surpreendente, nas trepadeiras e nas curiosas candeias trabalhadas.
- Podes tratar-me por Fola. Aqui, não ligamos muito a cerimónias; somos todas iguais perante A Que Brilha. Sentes-te feliz por estar aqui, Tuala?
Aquela pergunta difícil surgira do nada.
- Estou grata pela oportunidade, minha se... Fola. - Era esquisito tratar a Mulher Sábia daquela maneira, como se fosse uma familiar. Apesar de pequena, Fola parecia-lhe maior e mais imponente do que quando a vira pela primeira vez: os seus cabelos, descobertos, eram longos e grisalhos, enrolados num grande carrapito na nuca; em redor do pescoço, por cima do vestido cinzento e macio, Fola usava...
Juliet Marillier
O melhor da literatura para todos os gostos e idades