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TRINTA E SEIS LONDRES
Harry Dalton pensou: Mais um minuto desta treta e vou algemar o Pope a uma cadeira e desfazer-lhe a cara toda. Estavam num pequeno gabinete envidraçado, no rés do chão do armazém. Pope encontrava-se sentado numa desconfortável cadeira de madeira, com Harry a andar de um lado para o outro como um gato selvagem enjaulado. Vicary tinha-se instalado discretamente nas sombras e parecia estar a ouvir uma música diferente. Harry e Vicary não tinham revelado a sua verdadeira ligação; para Pope, eram apenas dois agentes da Polícia Metropolitana. Há já uma hora que Pope negava em absoluto conhecer a mulher cuja fotografia Harry não parava de agitar à frente dele. O rosto de Pope manteve-se entediado, tranquilo e insolente, a expressão de um homem que tinha quebrado a lei durante a vida inteira sem nunca ter visto o interior de uma cela de prisão. Harry pensou: Não estou a conseguir afetá-lo. Ele está a vencer-me.
Harry disse:
- Muito bem, vamos lá tentar isto mais uma vez. Pope olhou para o relógio.
- Outra vez não, Harry. Tenho assuntos à minha espera. Harry sentiu que estava a perder o controlo.
- Nunca viste esta mulher?
- Já te disse cem vezes. Não!
- Tenho uma testemunha que diz que esta mulher entrou no vosso armazém no dia em que o teu irmão foi assassinado.
- Então a tua testemunha está enganada. Deixa-me falar com ele. Tenho a certeza que lhe conseguia fazer ver esse erro.
- Tenho a certeza que sim! Onde é que estavas quando o teu irmão foi morto?
- Num dos meus clubes. Tenho umas cem testemunhas prontas a dizer-te isso.
- E porque tens andado a evitar a polícia?
- Não tenho andado a evitar a polícia. Vocês conseguiram encontrar-me - retorquiu Pope, olhando depois para Vicary, que estava a olhar para as mãos. - Aquele nunca fala?
- Cala-te e olha para mim, Pope. Tens andado a evitar a polícia porque sabes quem é que matou o Vernon e queres fazê-los pagar à tua própria maneira.
- Estás a dizer disparates, Harry.
- Há uma senhora muito simpática em Islington que diz que lhe entraste pela pensão dentro, duas horas depois de assassinarem o Vernon, à procura de uma mulher.
- Então a tua senhora muito simpática em Islington está obviamente enganada.
- Não me venhas com tretas, Pope!
- Calma, Harry, não te enerves.
- Há vários dias que andas à procura dela e ainda não foste capaz de a encontrar. Já pensaste alguma vez como é que ela foi capaz de escapar a ti e aos teus capangas?
-- Não, nunca pensei nisso porque não sei de que raio estás a falar!
- Já pensaste alguma vez porque é que nunca foste capaz de descobrir onde é que ela mora?
- Nunca tentei porque não conheço a mulher!
Harry reparou no brilho do suor no rosto de Pope. Pensou: Estou finalmente a conseguir afetá-lo.
Vicary também deve ter reparado, já que escolheu esse momento para falar pela primeira vez.
- Não está a ser sincero connosco, senhor Pope - disse educadamente, ainda a olhar com atenção para as mãos. - A seguir, levantou
os olhos e atirou: - Mas a verdade é que nós também não temos sido exatamente sinceros consigo, pois não, Harry?
Harry pensou: Um timing perfeito, Alfred. Muito bem feito. Respondeu:
- Não, Alfred, não temos sido totalmente sinceros com o nosso senhor Pope.
Pope parecia completamente confuso.
- De que raio é que vocês os dois estão a falar?
- Nós estamos ligados ao Ministério da Guerra. Lidamos com questões de segurança.
O rosto de Pope ensombrou-se.
- E o que é que o assassinato do meu irmão tem que ver com a guerra?
A voz dele tinha perdido convicção.
- vou ser sincero consigo. Sabemos que esta mulher é uma espiã alemã. E sabemos que ela vos contactou para pedir ajuda. E se não começar a falar, vamos ser forçados
a tomar medidas bastante drásticas.
Pope voltou-se para Harry, como se Harry tivesse sido nomeado seu advogado.
- Não lhe posso dizer o que ele quer saber porque não sei nada. Nunca vi essa mulher na minha vida.
Vicary pareceu desapontado.
- bom, então o senhor está preso, senhor Pope.
- E qual é o raio da acusação?
- Espionagem.
- Espionagem! Não pode fazer isso! Não tem provas nenhumas!
- Tenho as provas e o poder de que preciso para o prender e deitar fora a porra da chave - respondeu Vicary, com a voz a adquirir um tom ameaçador. - Por isso, se
não quiser passar o resto da vida no raio de uma cadeia nojenta, sugiro que comece a falar!
Pope pestanejou rapidamente, olhando primeiro para Vicary e depois para Harry. Estava derrotado.
- Eu implorei ao Vernon para não aceitar o trabalho, mas ele não quis ouvir - revelou Pope. - Ele só queria ir para a cama com ela. Eu sempre soube que havia qualquer coisa de errado nela.
Vicary perguntou:
- E o que queria ela de vocês?
- Queria que seguíssemos um oficial americano. Queria um relatório completo da atividade dele em Londres. Pagou-nos duzentas libras por isso. Tem-no visto muito ultimamente.
- Onde?
- Em restaurantes. Em casa dele.
- Como sabe?
- Temos andado a segui-los.
- E como é que ela disse que se chamava?
- Catherine. Sem apelido.
- E qual era o nome do oficial?
- Comandante Peter Jordan, da marinha americana.
Vicary prendeu de imediato Robert Pope e Dicky Dobbs. Não viu motivos para manter a palavra dada a um mentiroso e ladrão profissional. Além disso, não os podia ter
à solta na rua. Vicary tratou do necessário para os deixar a marinar numa prisão do MI5 à saída de Londres.
Harry Dalton telefonou para os americanos, em Grosvenor Square, e perguntou se havia um oficial da marinha chamado Peter Jordan destacado para o quartel-general
do SHAEF. Passados quinze minutos, ligou outra pessoa e atirou:
- Sim, quem quer saber?
Quando Harry perguntou qual era a missão de Jordan, o americano respondeu:
- Isso está acima das suas competências, amigo... das suas e das minhas.
Harry contou a Vicary essa conversa. Vicary sentiu o sangue esvair-se-lhe da cara.
Durante noventa minutos, ninguém conseguiu encontrar Basil Boothby. Ainda era cedo e ele não tinha chegado ao gabinete. Vicary ligou-lhe para casa, em Cadogan Square, e um mordomo impertinente informou-o de que Sir Basil já tinha saído. A sua secretária alegou uma cautelosa ignorância em relação ao paradeiro de Sir Basil; esperava que aparecesse a todo o momento. Segundo os rumores, Boothby achava que os inimigos o perseguiam e mostrava-se notoriamente vago em termos de atividades pessoais. Por fim, pouco depois das
nove horas, entrou no gabinete com um ar de desmesurada autossatisfação. Vicary - que não tomava banho, dormia ou mudava de roupa há praticamente dois dias - entrou com ele e comunicou-lhe a novidade.
Boothby dirigiu-se para a secretária e levantou o auscultador do telefone seguro. Marcou um número e esperou.
- Está, general Betts? Daqui fala Boothby, do número 5. Preciso que me investiguem um oficial da marinha americana chamado Peter Jordan.
Houve uma pausa. Boothby tamborilou com os dedos na secretária. Vicary bateu ao de leve com a biqueira gasta do sapato no padrão do tapete persa de Boothby.
Boothby disse:
- Sim, ainda aqui estou. Ai sim? Oh, raios, então é melhor encontrarem o general Eisenhower. Preciso de falar com ele imediatamente. vou contactar eu mesmo o gabinete do primeiro-ministro. Receio bem que tenhamos um problema bastante grave.
Boothby pousou o auscultador lentamente e olhou para Vicary, com o rosto cinzento.
Um nevoeiro gelado pairava como fumo de pólvora sobre Hampstead Heath. Sentada num banco no meio de várias faias, Catherine Blake acendeu um cigarro. Conseguia ver até várias centenas de metros, em todas as direções. Tinha a certeza de que estava sozinha. Neumann surgiu do nevoeiro, com as mãos enfiadas bem dentro dos bolsos do casaco, a andar como um homem a caminho de algum sido. Quando se encontrava a um ou dois metros, Catherine disse:
- Quero falar contigo. Não há problema, estamos sozinhos. Ele sentou-se no banco, ao lado dela, e Catherine deu-lhe um cigarro, que ele acendeu com o dela.
Ela entregou-lhe um envelope com os dois rolos de fotografias.
- Tenho quase a certeza absoluta de que é disto que eles andam à procura - disse Catherine. - Ele trouxe-o para casa ontem à noite... um livro com os pormenores
do projeto em que está a trabalhar. Tirei fotografias a tudo.
Neumann enfiou o envelope no bolso.
- Parabéns, Catherine. vou garantir que isto chega em segurança às mãos do nosso amigo da embaixada portuguesa.
- Há mais uma coisa nesse rolo - disse ela. - Pedi a Vogel para nos tirar daqui. Houve coisas que correram mal. Acho que o meu disfarce não vai aguentar muito mais tempo.
- E queres contar-me o que aconteceu?
- Quanto menos souberes, melhor, acredita em mim.
- Tu és a profissional. Eu sou só o moço de recados.
- Não te esqueças é de estar pronto para sair daqui a qualquer momento.
Ela levantou-se e foi-se embora.
- Entre e sente-se, Alfred - disse Boothby. - Receio bem que tenhamos um desastre de proporções gigantescas em mãos.
Boothby apontou para uma das cadeiras diante da secretária. Tinha acabado de entrar e ainda estava com o sobretudo de caxemira aos ombros, como se fosse uma capa. Despiu o sobretudo e entregou-o à secretária, que o fitava com a intensidade de um retríever à espera da próxima ordem.
- Café, por favor. E nada de interrupções. Obrigado.
Vicary sentou-se na cadeira com cuidado. Sentia-se irritado. Sir Basil tinha estado fora três horas. Da última vez que Vicary o tinha visto, Boothby saía apressadamente pela porta fora a murmurar qualquer coisa sobre mulberries.1 Esse nome de código não significava nada para Vicary. No que lhe dizia respeito, era uma árvore que dava
um fruto doce. Vicary tinha passado todo esse tempo a andar de um lado para o outro do seu gabinete, interrogando-se sobre a gravidade dos danos. Mas havia outra
coisa que o estava a incomodar. O caso tinha sido dele desde o início e, no entanto, era Boothby que andava a informar Eisenhower e Churchill.
A secretária entrou no gabinete de Boothby, trazendo uma bandeja com uma cafeteira de prata e chávenas de porcelana requintadas. Pousou-a cuidadosamente em cima
da secretária e voltou a sair. Boothby serviu o café.
- Leite, Alfred? É verdadeiro.
1. Literalmente, amoreiras. (N. do T.)
- Sim, obrigado.
- O que eu estou prestes a dizer-lhe é altamente confidencial
revelou Boothby. - Muito poucas pessoas sabem sequer da sua
existência: uma mão-cheia dos principais organizadores da invasão e os participantes do próprio projeto. Até eu conhecia apenas o estritamente necessário. Isto é, até hoje.
Boothby enfiou a mão na pasta, tirou de lá um mapa e abriu-o sobre o tampo da secretária. Pôs os óculos, que nunca tinha usado na presença de Vicary, e serviu-se da caneta de ouro como ponteiro.
- Aqui ficam as praias da Normandia - começou por dizer, batendo ao de leve com a caneta no mapa. - E aqui fica a baía do Sena. Os organizadores da invasão concluíram que a única maneira de fazer chegar à costa um número suficiente de homens e material, com a rapidez necessária para sustentar a operação, seria através de um grande porto em pleno funcionamento. Sem isso, a invasão seria um fiasco completo.
Escutando com atenção, Vicary assentiu com a cabeça.
- Mas só há um problema com um porto... não estamos a pensar capturar nenhum - explicou Boothby. - O resultado é este.
Boothby enfiou outra vez a mão na pasta e tirou de lá outro mapa da mesma região da costa francesa, só que este tinha uma série de marcas assinalando uma estrutura ao longo da linha costeira.
- Chama-se Operação Mulberry. Estamos a construir dois portos artificiais completos aqui no Reino Unido e vamos rebocá-los pelo canal da Mancha no Dia D.
- Meu Deus - murmurou Vicary.
- Está a um passo de ser admitido numa confraria muito restrita, Alfred, preste bem atenção - anunciou Boothby, utilizando de novo a caneta como ponteiro. - Isto são bóias gigantescas de aço, que vão ser ancoradas a poucos quilómetros da linha costeira. Foram concebidas para amortecer as ondas à medida que estas avançam para a costa. Aqui, vão ser afundados uns quantos navios mercantes velhos, numa linha que servirá para criar um paredão. Essa parte da operação tem o nome de código de Gooseberry [Groselha]. Aqui temos pistas flutuantes, com testas de molhe na ponta. Os navios de carga vão atracar nas testas de molhe. O material será carregado diretamente para camiões e transportado para a costa.
- Extraordinário - exclamou Vicary.
- A espinha dorsal de todo o projeto são estas coisas, aqui, aqui e aqui - indicou Boothby, tocando com a caneta em três pontos do mapa. - O nome de código delas é Phoenix. Mas não se erguem. Afundam-se. São gigantescos caixões de betão e aço que vão ser rebocados pelo Canal e submersos em fila para criar um paredão interior. São a componente mais importante da Operação Mulberry.
Boothby hesitou um momento e, a seguir, afirmou:
- O comandante Peter Jordan foi destacado para essa operação.
- Meu Deus - murmurou Vicary.
- Mas ainda é pior, lamento dizê-lo. O Projeto Phoenix está em dificuldades. Estão a projetar construir cento e quarenta e cinco dessas estruturas. São enormes - mais de dezoito metros de altura. Al-
gumas até têm as suas próprias instalações para as tripulações e baterias antiaéreas. Exigem quantidades imensas de betão, ferro e mão de obra altamente qualificada. Desde o início, o projeto tem sido prejudicado pela escassez de matérias-primas e atrasos na construção.
Boothby dobrou os mapas e fechou-os na gaveta da secretária, trancando-a.
- Ontem à noite, o comandante Peter Jordan recebeu ordens para vistoriar os locais de construção no sul e realizar uma avaliação realista das possibilidades de as unidades Phoenix serem finalizadas a tempo. Saiu do número 47 de Grosvenor Square com uma pasta algemada ao pulso. Dentro dessa pasta, estão os planos para as Phoenixes.
- Meu Deus! - exclamou Vicary. - Por que raio é que ele fez isso?
- A casa onde ele está a viver aqui em Londres é da família. Tem um cofre seguro. Os serviços secretos do SHAEF inspecionaram-no e deram a sua aprovação.
Vicary pensou: Nada disto teria acontecido se Boothby tivesse transmitido o raio do meu alerta de segurança! Disse:
- Então, se a posição do comandante Jordan estiver comprometida, é possível que grande parte dos planos da Operação Mulberry tenha caído em mãos alemãs.
- Receio bem que sim - respondeu Boothby. - E há mais más notícias. A Operação Mulberry, por natureza, pode revelar o segredo da invasão. Os alemães sabem que precisamos de portos para conseguir concretizar uma invasão do continente. Estão à espera que façamos um ataque frontal a um porto para depois o reabrirmos o mais depressa possível. Se descobrirem que estamos a construir um porto artificial - alguma forma de tornear os portos altamente fortificados de Calais -, podem muito bem concluir que vamos desembarcar na Normandia.
- Meu Deus! E quem diabo é o comandante Peter Jordan? Boothby voltou a enfiar a mão na pasta. Tirou de lá um dossiê
pequeno e atirou-o por cima da secretária.
- Já foi o engenheiro-chefe da Northeast Bridge Company. É uma das maiores empresas americanas de construção de pontes. É considerado uma espécie de menino-prodígio. Foi destacado para a Operação Mulberry por causa da sua experiência em termos de supervisão de grandes projetos de construção.
- E onde está ele agora?
- Continua no sul, a inspecionar as obras. Esperam-no em Grosvenor Square às sete horas. Estava agendado que se reunisse com Eisenhower e Ismay às oito para os informar das suas conclusões. Quero que Alfred e Harry o vão buscar a Grosvenor Square, muito discretamente, e o levem para a casa em Richmond. Interrogamo-lo lá. Quero que seja Alfred a conduzir o interrogatório.
- Muito obrigado, Sir Basil - disse Vicary, levantando-se.
- No mínimo, vai precisar da ajuda de Jordan para avançar com a sua rede.
- É verdade - concordou Vicary. - Mas somos capazes de precisar de mais ajuda, dependendo da extensão dos danos.
- Tem alguma ideia, Alfred?
- O início de uma - respondeu Vicary, levantando-se. - Gostava de ver o interior da casa de Jordan antes de o interrogar. Alguma objeção?
- Não - retorquiu Boothby. - Mas com delicadeza, Alfred, muita delicadeza.
- Não se preocupe. vou ser discreto.
- Alguns dos vigias são especialistas nesse tipo de coisas... arrombamentos, sabe?
- Por acaso, já tenho uma pessoa em vista para esse trabalho.
Harry Dalton movimentou a fina ferramenta metálica dentro da fechadura da porta da frente da casa de Peter Jordan. Vicary estava parado, virado para a rua, a tapar Harry. Passado um momento, Vicary ouviu o ténue clique da fechadura a ceder. Como um perfeito ladrão profissional, Harry abriu a porta como se fosse o dono da casa e conduziu-os para o interior.
- Raios, é mesmo bom nisso - disse Vicary.
- Vi uma pessoa fazer isso num filme uma vez.
- Por alguma razão, não acredito nessa história.
- Sempre soube que era um tipo inteligente. Harry fechou a porta e disse:
- Limpe os pés.
Vicary abriu a porta da sala de estar e entrou nela. Percorreu com os olhos os sofás de couro, os tapetes, as fotografias de pontes nas paredes. Foi até à lareira e examinou as fotografias em molduras prateadas que se encontravam na prateleira por cima dela.
- Devia ser a mulher - disse Harry. - Era linda.
- Sim - confirmou Vicary, que tinha lido rapidamente a cópia do dossiê de serviço de Jordan e o relatório da investigação efetuada, ambos disponibilizados por Boothby. - Chamava-se Margaret Lauterbach-Jordan. Morreu pouco depois do começo da guerra, num acidente de carro em Long Island, no estado de Nova Iorque.
Atravessaram o corredor e espreitaram a sala de jantar e a cozinha. Harry experimentou abrir a porta seguinte e descobriu que estava trancada. Vicary disse:
- Abra-a.
Harry ajoelhou-se e enfiou a ferramenta na fechadura, movimentando-a. Passado um momento, rodou o trinco e entraram. Estava mobilado como um gabinete de trabalho, sem dúvida para um homem: uma secretária de madeira escura, uma cadeira de couro de ótima qualidade e, no que era uma característica singular que dizia
muito acerca do seu dono, um estirador com banco, que um engenheiro ou arquiteto poderia utilizar. Vicary acendeu o candeeiro da secretária e comentou:
- Que sítio perfeito para fotografar documentos.
O cofre ficava ao lado da secretária. Era antigo e parecia pesar pelo menos uns duzentos e muitos quilos. Vicary olhou atentamente para os pés do cofre e reparou que estavam aferrolhados ao chão. Disse:
- Vamos dar uma vista de olhos lá em cima.
Havia três quartos, dois com vista para a rua e um terceiro, maior, nos fundos da casa. Os dois quartos na parte da frente eram claramente de hóspedes. Os roupeiros estavam vazios e não havia qualquer tipo de toque pessoal. Vicary conduziu-os ao quarto de Jordan. A cama de casal não tinha sido feita, as persianas estavam levantadas e as janelas davam para um pequeno e desleixado jardim murado. Vicary abriu o roupeiro eduardiano e espreitou lá para dentro: dois uniformes da marinha americana, vários pares de calças de lã à civil, uma pilha de camisolas grossas e várias camisas cuidadosamente dobradas, com o nome de uma loja de roupa de homem em Manhattan. Fechou o roupeiro e olhou à volta do quarto. Se ela aqui tinha estado, não deixara vestígios, apenas um ténue sopro de perfume que pairava no ar e recordava a Vicary a fragrância que Helen costuma pôr.
Quem fala, por favor? O h, raios partam!
Vicary olhou para Harry e disse:
- Vá lá abaixo, abra a porta do escritório devagar, entre e feche-
-a novamente.
Harry voltou passados dois minutos.
- Ouviu alguma coisa?
- Nem um único som.
- Então, é possível que ela ande a entrar sorrateiramente no escritório à noite e a fotografar tudo o que ele traz para casa.
- Temos de partir desse pressuposto, sim. Verifique a casa de banho. Veja se ela deixou cá algum objeto pessoal.
Vicary ouviu Harry remexer no armário dos remédios. Ele voltou para o quarto e anunciou:
- Não há nada ali dentro que seja de uma mulher.
- Muito bem. Por agora, já vi o suficiente. , Regressaram ao andar de baixo, certificaram-se de que a porta do
escritório se encontrava trancada e saíram pela porta da frente. Tinham estacionado ao virar da esquina. Quando chegaram ao passeio, Vicary olhou para a fila de casas do outro lado da rua. Voltou a baixar os olhos muito rapidamente. Poderia ter jurado que tinha visto uma cara, numa janela às escuras, a olhar para si. A cara de um homem - olhos escuros, cabelo preto, lábios finos. Olhou para cima novamente, mas desta vez a cara já lá não estava.
Horst Neumann fazia um jogo consigo próprio para ajudar a diminuir o tédio da espera: memorizava caras. Tinha ficado bom nisso. Conseguia olhar de relance para várias caras - no comboio ou numa praça apinhada -, memorizá-las e, a seguir, passá-las em revista, como quem vê as fotografias de um álbum. Estava a passar tanto tempo a fazer de comboio o percurso entre Hunstanton e Liverpool Street que já começava a ver caras conhecidas a toda a hora. O vendedor rechonchudo que acariciava sempre a perna da namorada antes de se despedir dela com um beijo, em Cambridge, e voltar para casa para ir ter com a mulher. A solteirona que parecia estar sempre à beira de começar a chorar. A viúva de guerra que olhava sempre fixamente pela janela e, imaginava Neumann, via a cara do marido na paisagem campestre cinzenta e esverdeada que ia passando. Em Cavendish Square, conhecia toda a gente que por ali costumava andar: os moradores das casas que rodeavam a praça, as pessoas que gostavam de lá ir para se sentarem nos bancos no meio das plantas dormentes. Era uma atividade monótona, mas mantinha-lhe a mente aguçada e ajudava a passar o tempo.
O gordo apareceu às três horas - o mesmo sobretudo cinzento, o mesmo chapéu de coco e o mesmo ar nervoso de um homem decente a aventurar-se numa vida criminosa. O diplomata destrancou a porta da casa e entrou. Neumann atravessou a praça e enfiou o envelope com o rolo pela ranhura. Ouviu o grunhido familiar quando o diplomata roliço se baixou para o apanhar.
Neumann voltou para o seu sítio na praça e esperou. O diplomata saiu uns minutos mais tarde, apanhou um táxi e desapareceu. Neumann esperou uns minutos para ter a certeza de que o táxi não estava a ser seguido.
Faltavam duas horas para o comboio de Neumann. Levantou-se e começou a caminhar na direção de Portman Square. Passou pela livraria e viu a rapariga através da montra. A livraria estava vazia. Ela estava sentada ao balcão, a ler o mesmo livro de Eliot que lhe tinha vendido na semana anterior. Pareceu pressentir que alguém a estava a observar, já que levantou os olhos do livro subitamente, como se estivesse assustada. Depois reconheceu-o, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Neumann abriu a porta e entrou na livraria.
- Está na hora da minha pausa - disse ela. - Há um café do outro lado da rua. Não me quer fazer companhia? Chamo-me Sarah, já agora.
Neumann pensou: Oh, que raio, porque não? Respondeu:
- Gostaria muito, Sarah.
A chuva batia suavemente no tejadilho do Humber. O frio infiltrava-se dentro do carro e, por isso, viam a sua respiração quando falavam. Grosvenor Square estava invulgarmente sossegada, indistinguível no meio do blackout. Tanto quanto Vicary conseguia perceber, até podiam estar estacionados à porta do Reichstag. Um carro oficial entrou na praça discretamente, com os faróis velados pelas proteções do blackout, A rua brilhou com a chuva sob a poça de luz do veículo. Dois homens saíram dele; nenhum era Jordan. Passado um momento, um correio penetrou na escuridão de mota. Vicary pensou automaticamente na França.
Fechou os olhos para expulsar as imagens da cabeça e deu por si a ver a cara do homem na janela em Kensington. Provavelmente, não passava de um vizinho metediço,
disse a si próprio. Mas havia algo que o apoquentava - o facto de o homem se encontrar a um ou dois metros do vidro, o facto de o quarto estar às escuras. Visualizou
a cara: cabelo escuro, olhos escuros, boca estreita, pele clara, as feições descaracterizadas de maneira a ocultar a sua nacionalidade. Talvez alemã, talvez italiana;
talvez grega ou russa. Ou inglesa.
Harry acendeu um cigarro, depois Vicary acendeu outro cigarro e, passado um momento, o banco de trás do Humber estava tão carregado de fumo que era como se estivessem sentados num banho turco. Vicary baixou o vidro da janela uns centímetros para deixar sair a nuvem. O frio entrou em catadupa e feriu-lhe o rosto.
Vicary disse:
- Nunca pensei que Harry fosse uma estrela tão grande. Todos os polícias de Londres conhecem o seu nome.
- O caso de Spencer Thomas - atirou Harry.
- Como é que o apanhou?
- O estúpido do sacana apontou tudo.
- O que quer dizer com isso?
- Queria lembrar-se dos pormenores dos assassínios, mas não confiava na memória. Por isso, tinha um diário bizarro. Descobriu-o quando lhe revistei o quarto. Ficaria surpreendido com as coisas que algumas pessoas escrevem.
Não, não ficaria, pensou Vicary, lembrando-se da carta de Helen. Provei o meu amor por ti de uma maneira que não posso fazer em relação a mais nenhum homem. Mas não
estou disposta a sacrificar a relação com o meu pai em virtude de um casamento.
- Como está a Grace Clarendon? - perguntou Vicary.
Nunca tinha perguntado por ela e a pergunta não soou nada natural, como se tivesse acabado de perguntar a Harry qualquer coisa relacionada com rugby ou críquete.
Harry respondeu:
- Está ótima. Porque pergunta?
- Vi-a à porta do gabinete de Boothby na noite passada.
- Boothby pede sempre a Grace para ser ela a ir entregar-lhe os dossiês ao gabinete. Grace acha que é por ele gostar de olhar para as pernas dela. Metade do departamento acha que ela anda metida com ele.
O próprio Vicary já tinha ouvido em tempos esses rumores: Boothby tinha dormido com tudo o que se mexesse no departamento e Grace Clarendon tinha sido uma das suas conquistas preferidas.
Não mepodefaer isto! Sacana! Sacana dum raio!
Vicary tinha partido do princípio de que Boothby tinha castigado Grace por causa do dossiê de Vogel. Mas era possível que tivesse
apenas ouvido uma discussão entre namorados. Decidiu que não iria dizer mais nada a Harry sobre o assunto.
O carro entrou na praça passado um momento.
A primeira imagem que Vicary teve de Jordan acompanhá-lo-ia durante muito tempo, de forma levemente irritante, como o odor de uma comida nauseabunda entranhado na roupa. Ouviu o barulho suave do carro oficial a aproximar-se e rodou a cabeça a tempo de ver Jordan passar-lhe à frente do vidro da janela. Viu-o menos de um instante, mas a cabeça dele tinha fixado a imagem de Jordan com a mesma certeza com que a película capta a luz. Viu os olhos a perscrutarem a praça, como se procurassem inimigos escondidos. Viu a linha de maxilar, tensa e resoluta, como se estivesse endurecida para uma disputa. Reparou no boné, bem enterrado sobre a testa, e no sobretudo, abotoado até ao colarinho.
O carro oficial onde Jordan seguia parou à frente do número 47. Ligaram o motor e avançaram muito rapidamente. Harry saiu do carro e foi atrás de Jordan pelo passeio.
Vicary observou o resto como uma pantomima: Harry a pedir a Jordan para o acompanhar e entrar no segundo Humber, que parecia ter-se materializado do nada, Jordan a olhar para Harry como se ele viesse do espaço.
Harry a identificar-se com a típica cortesia excessiva de um polícia londrino. Jordan a dizer-lhe muito claramente para se foder. Harry a agarrar o braço de Jordan, com um pouco de firmeza a mais, e a inclinar-se para lhe murmurar qualquer coisa ao ouvido.
A cara de Jordan a esvair-se de toda a cor.
TRINTA E SETE
RICHMOND-UPON-THAMES, INGLATERRA
A mansão vitoriana de tijolo vermelho não era visível da estrada. Ficava no ponto mais elevado do terreno, no final de uma faixa de cascalho irregular. Sozinho no banco de trás do Humber cada vez mais gelado, Vicary apagou a luz ao aproximar-se da casa. Ao longo do caminho, tinha lido tudo o que estava dentro da pasta de Jordan. Os olhos brilhavam-lhe e a cabeça latejava-lhe. Se aquele documento estava em mãos alemãs, era possível que a Abwehr o conseguisse utilizar para decifrar o segredo da invasão. Podiam utilizá-lo para espreitarem por entre a fumaça e o nevoeiro das operações e Fortitude. Podiam utilizá-lo para vencerem a guerra! Vicary imaginou o que aconteceria em Berlim depois disso. Hitler iria pôr-se a dançar em cima dos tampos das mesas, a bater com os tacões das botas militares um no outro. E tudo porque não consegui arranjar maneira de apanhar aquela maldita espia!
Vicary limpou o vidro embaciado da janela. A mansão estava às escuras, à exceção de uma única luz amarela a brilhar por cima da entrada. O MI5 tinha comprado a mansão, antes da guerra, aos parentes falidos do proprietário original. O plano tinha sido utilizá-la para reuniões e interrogatórios clandestinos e como alojamento para hóspedes confidenciais. Poucas vezes utilizada, tinha-se degradado. Os únicos vestígios de vida eram os doze carros oficiais estacionados ao acaso no caminho de entrada coberto de ervas daninhas.
Um guarda da Marinha Real surgiu da escuridão e abriu a porta do carro a Vicary. Levou-o para um corredor frio e decrépito e fê-lo passar por uma série de divisões - uma sala de estar com a mobília tapada; uma biblioteca com estantes vazias; e, por fim, por duas portas duplas que davam para uma sala grande, com vista para um terreno às escuras. Cheirava a fumo, a brandy e, levemente, a cão molhado. Uma mesa de bilhar tinha sido afastada para um canto e no seu lugar encontrava-se uma pesada mesa de carvalho para banquetes. A enorme lareira ardia com grande intensidade. Dois americanos de olhos escuros, dos serviços secretos do SHAEF, estavam sentados em silêncio, como acólitos, nas cadeiras mais perto das labaredas. Nas sombras, Basil Boothby andava de um lado para o outro lentamente.
Vicary achou o lugar que lhe cabia à mesa. Pousou a pasta de Jordan no chão, ao lado da cadeira, e começou a tirar devagar o que tinha dentro da sua. Levantou os olhos, cruzando o seu olhar com o de Boothby e assentindo com a cabeça. A seguir, olhou de novo para baixo e continuou a preparar as suas coisas. Ouviu portas a abrirem-se e os passos de duas pessoas a atravessarem o chão de madeira. Reconheceu que uma delas seria Harry e sabia que a outra só poderia ser Peter Jordan.
Passado um momento, Vicary ouviu o peso de Jordan a instalar-se na cadeira à sua frente, do outro lado da mesa. Ainda assim, não olhou para ele. Tirou o bloco de notas e um lápis amarelo da pasta e colocou-os na mesa com cuidado, como se estivesse a pôr a mesa para um membro da realeza. A seguir, tirou o dossiê de Jordan e pousou-o em cima da mesa. Sentou-se, abriu a primeira página do bloco e lambeu a ponta do lápis.
Finalmente, Vicary levantou a cabeça e fitou Peter Jordan olhos nos olhos pela primeira vez.
- Como é que a conheceu?
- Esbarrei nela durante o blackout.
- O que quer dizer com isso?
- Estava a andar pelo passeio sem uma lanterna para o blackout e chocámos um com o outro. Ela trazia um saco de compras. Espalharam-se por todo o lado.
- E onde aconteceu isso?
- Em Kensington, à porta do Vandyke Club.
- Quando?
- Há cerca de duas semanas.
- Quando, ao certo?
-Jesus, não me lembro! É capaz de ter sido numa segunda-feira.
- E a que horas?
- Por volta das seis da tarde.
- E como é que ela disse que se chamava?
- Catherine Blake.
- E já se tinha encontrado com ela antes dessa noite?
- Não.
- E já a tinha visto antes dessa noite?
- Não.
- Não a reconheceu?
- Não.
- E quanto tempo é que esteve com ela nessa primeira noite?
- Menos de um minuto.
- E combinou voltar a vê-la?
- Não exatamente. Perguntei-lhe se queria tomar um copo comigo noutra ocasião. Ela disse que gostaria e depois foi-se embora.
- E deu-lhe a morada dela?
- Não.
- Um número de telefone?
- Não.
- Então como é que a iria conseguir contactar?
- Boa pergunta. Parti do princípio de que ela não me queria vol-
tar a ver.
- E quando é que a voltou a ver de facto?
- Na noite seguinte.
- Onde?
- No bar do Savoy Hotel.
- E em que circunstâncias?
- Estava a tomar um copo com um amigo.
- E o nome do amigo?
- Shepherd Ramsey.
- E viu-a no bar?
- Sim.
- E ela foi ter à sua mesa?
- Não, fui eu ter com ela.
- E o que aconteceu a seguir?
- Ela disse que se devia ter encontrado ali com um tipo mas que ele não tinha aparecido. Perguntei se lhe podia pagar uma bebida. Ela disse que preferia ir-se embora. Por isso, fui-me embora com ela.
- E para onde foram?
- Para a minha casa.
- E o que fizeram?
- Ela fez-nos o jantar e comemos. Falámos durante um bocado e ela foi para casa.
- E fez amor com ela nessa noite?
- Ouça, eu não vou...
- Ai isso é que vai, comandante Jordan, raios! Agora, responda à pergunta! Fez amor com ela nessa noite?
- Não!
- Está a dizer-me a verdade?
- O quê?
- Perguntei-lhe se me estava a dizer a verdade.
- Claro que estou.
- Não está a pensar mentir-me durante esta noite, pois não, comandante Jordan?
- Não, não estou.
- Ótimo, já que não aconselharia isso. Assim como assim, já está metido em sarilhos suficientes. bom, vamos lá continuar.
Vicary mudou de rumo abruptamente, conduzindo Jordan para águas mais calmas. Ao longo de uma hora, fez Jordan percorrer a história da sua vida: a infância passada no West Side de Manhattan,
o curso tirado no Rensselaer Institute, o trabalho desenvolvido na Northeast Bridge Company, o casamento com a rica e linda Margaret Lauterbach e a morte da mulher num acidente de viação em Long Island, em agosto de 1939. Vicary fez as perguntas sem recurso a apontamentos e como se não soubesse as respostas, embora tivesse memorizado o dossiê de Jordan durante o caminho. Certificou-se de que controlava o ritmo e a cadência da conversa. Sempre que Jordan parecia sentir-se demasiado à vontade, Vicary fazia-o descarrilar. Durante todo esse tempo, Vicary não parou de escrever no bloco de notas. O interrogatório estava a ser gravado com microfones ocultos, mas Vicary escrevinhava como se o pequeno bloco fosse constituir o registo permanente do que se passaria naquela noite. Sempre que Jordan falava, ouviu-se o som enlouquecedor do lápis de Vicary a raspar na página. De poucos em poucos minutos, o lápis que Vicary estava a utilizar ficava gasto. Ele pedia desculpa, forçava Jordan a parar de falar e, a seguir, fazia questão de mostrar que estava à procura de um novo na pasta. De cada uma das vezes, tirava apenas um novo lápis - nunca outro a mais, apenas um. E de cada vez que o procurava, parecia demorar mais tempo. A observar encoberto pelas sombras, Harry ficou maravilhado com o desempenho de Vicary. Ele queria que Jordan o subestimasse, pensasse que era uma espécie de idiota. Harry pensou: Força, meu grande imbecil, que ele arranca-te os tomates. Vicary virou para outra página do bloco e tirou mais um lápis.
- O nome dela não é na verdade Catherine Blake. E ela não é na verdade inglesa. O nome verdadeiro dela é Anna Katarina von Steiner. Mas nunca mais me referirei a ela por esse nome. Gostaria que esquecesse que alguma vez o ouviu. As minhas razões tornar-se-ão evidentes para si mais tarde. Ela nasceu em Londres antes da Primeira Guerra Mundial, filha de mãe inglesa e de pai alemão. Regressou a Inglaterra em novembro de 1938, utilizando este passaporte falso. Reconhece a fotografia?
- É ela. Agora está diferente, mas é ela.
Presumimos que ela tenha chamado a atenção dos serviços secretos alemães devido às suas origens e capacidades linguísticas. Pensamos que foi recrutada em 1936 e
enviada para um campo na Baviera, onde recebeu treino em mensagens codificadas e comunicação via rádio e lhe ensinaram a avaliar um exército e a matar. De forma a ocultar a sua entrada neste país, assassinou brutalmente uma mulher em Suffolk. E achamos que assassinou mais três pessoas.
- Isso é muito difícil de acreditar.
- Pois bem, acredite. Ela é diferente do resto. A maioria dos espiões de Canaris não passa de idiotas inúteis, mal treinados e desadequados para a espionagem. Temos os nomes todos que pertencem a essas redes desde o início da guerra. Mas achamos que Catherine Blake é uma das estrelas deles, um tipo diferente de agente. Chamamos-lhes agentes adormecidos. Ela nunca se serviu do rádio e parece que nunca participou em mais nenhuma operação. Desapareceu simplesmente na sociedade britânica e esperou até ser ativada.
- E porque é que ela me escolheu a mim?
- Permita-me que reformule a questão, comandante Jordan. Foi ela que o escolheu ou o senhor que a escolheu a ela?
- De que está a falar?
- É simples, na verdade. Quero saber porque é que anda a vender os nossos segredos aos alemães.
- Não ando!
- Quero saber porque é que nos anda a trair.
- Não ando a trair ninguém!
- Quero saber porque é que anda a servir de agente dos serviços secretos alemães.
- Isso é ridículo!
- Será? O que quer que nós pensemos? Anda envolvido com essa mulher, o principal agente alemão no Reino Unido. Leva para casa uma pasta cheia de material secreto. Porque é que fez isso? Porque é que não podia simplesmente contar-lhe o segredo da Operação Mulberry? Foi ela que lhe pediu para levar os documentos para casa para os poder fotografar?
- Não! Quer dizer...
- Foi o senhor que se ofereceu para os levar para casa?
- Não!
- bom, então porque é que andava de um lado para o outro com isto dentro da pasta?
- Porque ia sair de Londres logo de manhãzinha para inspecionar os locais de construção no sul. Vinte pessoas podem confirmar isso. A equipa de segurança que se ocupa dos funcionários inspecionou a minha casa e o cofre que tenho no escritório. Em determinadas circunstâncias, era-me permitido levar documentos secretos para casa se fossem guardados no cofre.
- bom, isso foi obviamente um enorme erro. Porque acho que tem andado a levar esses documentos para casa e a entregá-los a Catherine Blake.
- Isso não é verdade.
- Só não tenho a certeza se é um espião alemão ou se foi seduzido para fazer espionagem.
- Vá-se foder! Já estou farto disto.
- Quero saber se nos traiu em troca de sexo.
- Não!
- Quero saber se nos traiu em troca de dinheiro.
- Eu não preciso de dinheiro.
- Está em conluio com a mulher que conhece como Catherine Blake?
- Não.
- Forneceu, consciente ou voluntariamente, segredos dos Aliados à mulher que conhece como Catherine Blake?
- Não!
- Está a trabalhar diretamente para os serviços secretos militares alemães?
- Isso é uma pergunta ridícula.
- Responda!
- Não! Raios partam, não!
- Está envolvido numa relação sexual com a mulher que conhece como Catherine Blake?
- Isso só a mim diz respeito.
- Já não, comandante. Volto a perguntar-lhe: está envolvido numa relação sexual com Catherine Blake?
-- Sim.
. E está apaixonado por Catherine Blake? Comandante, ouviu
a pergunta? Comandante? Comandante Jordan, está apaixonado por Catherine Blake?
Até há umas horas, estava apaixonada pela mulher que pensava
ser Catherine Blake. Não sabia que ela era uma agente alemã e não forneci voluntariamente segredos dos Aliados. Tem de acreditar em mim.
- Não tenho a certeza que acredite, comandante Jordan. Mas
vamos avançar.
- Alistou-se na marinha em outubro passado.
- Correto.
- E porque não mais cedo?
- A minha mulher morreu. Não quis deixar o meu filho sozinho.
- E porque mudou de ideias?
- Porque me pediram para me alistar na marinha.
- Explique-me como é que isso foi feito.
- Dois homens entraram no meu gabinete em Manhattan. Era evidente que já tinham investigado os meus antecedentes, pessoais e profissionais. Disseram que os meus serviços eram necessários para um projeto relacionado com a invasão. Não me disseram o que era esse projeto. Pediram-me para ir para Washington e nunca mais os voltei a ver.
- E como é que se chamavam?
- Um chamava-se Leamann. Não me lembro do nome do outro homem.
- E eram os dois americanos?
- Leamann era americano. O outro era britânico.
- Mas não se lembra do nome dele?
- Não.
- E como é que ele era?
- Era alto e magro.
- bom, com isso já excluímos metade do país. E o que aconteceu quando foi para Washington?
- Depois de recebido o aval da segurança, informaram-me acerca da Operação Mulberry e mostraram-me as plantas propriamente ditas.
- E porque precisavam de si?
- Queriam uma pessoa que já tivesse experiência com grandes projetos de construção. A minha empresa tinha construído algumas das maiores pontes da Costa Leste.
- E quais foram as suas primeiras impressões?
- Achei que a Mulberry era exequível em termos técnicos, mas o plano de construção pareceu-me ridículo... de longe, demasiado otimista. Percebi logo que haveria atrasos.
- E o que concluiu depois da inspeção que fez hoje?
- Que o projeto está perigosamente atrasado. E que as probabilidades de se conseguirem de facto terminar as Phoenixes a tempo são cerca de uma em três.
- E revelou essas conclusões a Catherine Blake?
- Por favor, não vamos voltar ao mesmo.
- Não está a responder à minha pergunta.
- Não, não revelei essas conclusões a Catherine Blake.
- E viu-a antes de o apanharmos em Grosvenor Square?
- Não, fui diretamente para o SHAEF quando voltei dos locais de construção.
Vicary enfiou a mão dentro da pasta e colocou duas fotografias em cima da mesa, uma de Robert Pope e a outra de Dicky Dobbs.
- Já tinha visto estes homens antes?
- Parecem-me vagamente familiares, mas não lhe consigo dizer onde é que os vi.
Vicary abriu o dossiê de Jordan e virou uma página.
- Fale-me da casa onde está a morar.
- O meu sogro comprou-a antes da guerra. Passava bastante tempo em Londres, em negócios e lazer, e queria ter um sítio confortável onde ficar quando estava aqui na cidade.
- E mais alguém utilizava a casa?
- Margaret e eu servíamo-nos dela quando vínhamos passar férias à Europa.
- E o banco do seu sogro tinha investimentos na Alemanha?
- Sim, muitos. Mas ele liquidou a maior parte antes da guerra.
- E foi ele próprio que supervisionou essa liquidação?
- A maior parte do trabalho foi feita por um homem chamado Walker Hardegen. É o número dois do banco. E também fala alemão fluentemente e conhece o país de uma ponta à outra.
- E ele viajou para a Alemanha antes da guerra?
- Sim, várias vezes.
- E alguma vez o acompanhou?
- Não. Não tenho nada que ver com os negócios do meu sogro.
- E Walker Hardegen serviu-se da casa de Londres?
- É possível. Não tenho a certeza.
- Até que ponto conhece Walker Hardegen?
- Conheço-o muito bem.
- Então, suponho que sejam bons amigos.
- Não, nem por isso.
- Conhece-o bem, mas não são amigos?
- Exatamente.
- E são inimigos?
- Inimigos é uma palavra forte. Simplesmente, não nos damos bem.
- E porquê?
- Ele namorou com a minha mulher antes de eu a conhecer. Acho que nunca deixou de estar apaixonado por ela. Bebeu bastante na minha festa de despedida. Acusou-me de a ter matado para conseguir fechar um negócio.
- Acho que uma pessoa que me fizesse um comentário desses seria minha inimiga.
- Na altura, pensei em dar-lhe uma boa sova.
- E o senhor culpa-se pela morte da sua mulher?
- Sim, sempre me culpei. Se não lhe tivesse pedido para ir até à cidade para aquele maldito jantar de negócios, ela ainda estaria viva.
- E o que sabe Walker Hardegen do seu trabalho?
- Nada.
- Mas sabe que o senhor é um engenheiro de gabarito?
- Sim.
- E sabe que o enviaram para Londres para trabalhar num projeto secreto?
- Provavelmente, foi capaz de deduzir isso, sim.
- E o senhor mencionou alguma vez a Operação Mulberry nas cartas que enviou para casa?
- Nunca. Foram todas aprovadas pelos censores.
- E falou alguma vez da Operação Mulberry a alguém da sua família?
- Não.
- E a algum dos seus amigos?
- Não.
- Esse sujeito, Shepherd Ramsey. Falou-lhe a ele?
- Não.
- E ele costuma perguntar?
- A toda a hora, mas na brincadeira, claro.
- E pensava voltar a ver Catherine Blake?
- Não penso voltar a vê-la. Nunca mais a quero ver.
- bom, isso é capaz de não ser possível, comandante Jordan.
- De que está a falar?
- A seu tempo. Já é tarde. Acho que estamos todos a precisar de dormir um pouco. Continuamos de manhã.
Vicary levantou-se e dirigiu-se para o sítio onde Boothby estava sentado. Baixou-se e disse:
- Acho que devíamos falar.
- Sim - respondeu Boothby. - Vamos para a sala ao lado, sim?
Boothby levantou-se da cadeira onde estava enroscado e conduziu Vicary, puxando-lhe pelo cotovelo.
- Fez um trabalho maravilhoso com ele - declarou Boothby.
- Meu Deus, Alfred, quando é que se tornou um sacana assim tão grande?
Boothby abriu uma porta e estendeu a mão para que Vicary entrasse primeiro. Vicary tocou de raspão em Boothby ao passar e entrou na sala.
Não podia acreditar no que estava a ver.
Winston Churchill disse:
- Olá, Alfred. É tão bom vê-lo outra vez. Quem me dera que pudesse ser em circunstâncias diferentes. Gostaria de lhe apresentar um amigo meu. O professor Alfred Vicary, o general Eisenhower.
Dwight Eisenhower levantou-se do seu lugar e estendeu a mão.
A sala já fora um escritório. Tinha prateleiras para livros embutidas na parede, uma secretária e duas poltronas de orelhas onde Churchill e Eisenhower se encontravam sentados naquele momento. Havia lenha a arder na lareira com intensidade, mas o frio não desaparecera da sala. Churchill tinha um cobertor de lã sobre os joelhos.
Estava a morder a ponta húmida de um charuto já fumado e a beber brandy. Eisenhower acendeu um cigarro e deu um gole no café simples. Na mesa entre ambos, estava
um pequeno altifalante, que tinham utilizado para acompanhar o interrogatório a Jordan. Vicary percebeu isso porque os microfones ainda estavam ligados e ele ouvia
cadeiras a serem arrastadas e vozes a murmurarem na sala ao lado. Boothby avançou, como que deslizando, e baixou o som. A porta abriu-se e entrou um quinto homem
na sala. Vicary reconheceu a compleição alta, própria de um urso: o brigadeiro-general Thomas Betts, chefe-adjunto dos serviços secretos do SHAEF e o homem encarregado
de salvaguardar o segredo da invasão.
- Ele está a dizer a verdade, Alfred? - perguntou Churchill.
- Não tenho a certeza - respondeu Vicary, servindo-se de uma chávena de café no aparador. - Quero acreditar nele, mas há qualquer coisa que me incomoda. E diabos me levem se sei o que é.
Boothby interveio:
- Não há nada no passado dele que sugira que é um espião alemão ou que nos traiu voluntariamente. Afinal de contas, fomos nós que o contactámos. Ele foi recrutado para participar na Operação Mulberry, não se voluntariou. Se fosse um agente durante este tempo todo, já teria andado a bater insistentemente à porta desde o início da guerra para tentar conquistar uma posição importante.
- Concordo - afirmou Eisenhower.
- O passado dele é excelente - prosseguiu Boothby. - Já viram o dossiê. A investigação feita pelo FBI não revelou nada. Tem todo o dinheiro de que possa precisar. Não é comunista. Não enraba rapazinhos. Não temos motivo para pensar que seja favorável à causa alemã. Resumindo, não temos motivo para suspeitar que este homem seja um espião ou que tenha sido coagido a espiar.
- Isso é tudo verdade - disse Vicary, pensando: Raios, mas desde quando é que Boothby se tornou presidente do clube de fas de Peter Jordan? - Mas e em relação a este homem, Walker Hardegen? Também foi investigado antes de Jordan entrar para a equipa da Mulberry?
- Exaustivamente - respondeu o general Betts. - O FBI mostrou-se preocupado com os contactos alemães dele muito antes de o Ministério da Guerra ter abordado Jordan sobre a possibilidade de fazer parte da Mulberry. Fizeram uma análise microscópica ao passado de Hardegen. Não encontraram uma única coisa. Hardegen está absolutamente limpo.
- bom, eu ficava mais descansado se dessem uma nova vista de olhos - retorquiu Vicary. - Raios, mas como é que ela sabia que devia ir atrás dele? E como é que ela anda a obter o material? Já estive dentro da casa dele. É possível que ela ande a aceder aos documentos sem que ele saiba, mas isso seria muito perigoso. E quanto ao amigo, Shepherd Ramsey? Gostava de o ter sob vigilância e que o FBI o investigasse mais a fundo.
Churchill afirmou:
- Tenho a certeza de que o general Eisenhower não vai colocar qualquer entrave a isso, pois não, general?
- Não - confirmou Eisenhower. - Quero que os senhores tomem todas as medidas que considerem necessárias.
Churchill aclarou a garganta.
- Esta discussão é muito interessante, mas não resolve o nosso problema mais premente - disse ele. - Segundo parece, este sujeito, intencionalmente ou não, deixou cair uma parte importante das plantas relativas à Operação Mulberry diretamente nas mãos de um espião alemão. Pois bem, o que vamos fazer em relação a isso? Basil?
Boothby virou-se para o general Betts.
O que é que os alemães são capazes de discernir sobre a Operação Mulberry a partir daquele documento?
É difícil dizer - respondeu Betts. - O documento que Jor-
dan tinha na pasta não lhes dá um quadro completo, apenas o raio de uma parte bem importante. A Mulberry tem muito mais componentes, como estou certo que sabem perfeitamente. com isto só ficam a saber das Phoenixes. Se esse documento estiver verdadeiramente a caminho de Berlim, os analistas e engenheiros deles vão pôr-se todos a examiná-lo minuciosamente. Se conseguirem determinar o objetivo das Phoenixes, não lhes vai ser difícil desvendar o segredo do projeto do porto artificial.
Betts hesitou antes de prosseguir, de cara fechada:
- E, meus senhores, se eles se convencerem de que estamos a construir um porto artificial, é bem possível que a partir daí consigam concluir que vamos desembarcar na Normandia e não em Calais.
Vicary disse:
- Acho que devíamos presumir ser esse o caso e tomar as medidas adequadas.
- Eu sugiro que utilizemos Jordan para atrair Catherine Blake e fazê-la sair da toca - propôs Boothby. - Prendemo-la, apertamos com ela e fazemo-la mudar de lado. Utilizamo-la para transmitir informações falsas aos alemães... para os confundir, tentar convencê-los de que a Mulberry é tudo menos um porto artificial com destino à Normandia.
Vicary aclarou a garganta delicadamente e retorquiu:
- Concordo plenamente com a segunda parte dessa proposta, Sir Basil. Mas suspeito que a primeira não seria assim tão fácil como parece.
- Onde quer chegar, Alfred?
- Tudo o que sabemos acerca desta mulher indicia que seja altamente treinada e absolutamente implacável. Duvido que a conseguíssemos convencer a colaborar connosco.
Ela não é como os outros.
- A experiência diz-me que toda a gente colabora quando está perante a perspetiva de ser enforcada, Alfred. Mas o que sugere?
- Sugiro que Peter Jordan continue a vê-la. Mas, a partir de agora, controlamos nós o que está dentro daquela pasta e o que vai para
casa, para dentro daquele cofre. Deixamo-la atuar e observamo-la. Descobrimos como é que anda a enviar o material para Berlim. Descobrimos os outros agentes que fazem parte da rede. E depois prendemo-la. Se conseguirmos os nomes todos dessa rede sem problema, vamos poder enviar informações falsas diretamente para os mais altos níveis da Abwehr, mesmo até à invasão. Churchill perguntou:
- Basil, o que acha do plano de Alfred?
- É brilhante - respondeu Boothby. - Mas e se os receios de Alfred relativamente ao comandante Jordan estiverem corretos? E se ele for realmente um agente alemão? Jordan ficaria numa posição que lhe permitiria infligir danos irreparáveis.
- Isso também seria verdade no cenário que propôs, Sir Basil. Receio bem que seja um risco que iremos ter de correr. Mas Jordan nunca estará, nem por um segundo, sozinho com ela ou com qualquer outra pessoa. A partir de agora, vai passar a ser vigiado vinte e quatro horas por dia. Onde quer que vá, nós vamos. Se virmos ou ouvirmos alguma coisa de que não gostemos, avançamos, prendemos Catherine Blake e fazemos as coisas à sua maneira, Sir Basil.
Boothby assentiu com a cabeça.
- E acha que Jordan é capaz de dar conta do recado? Afinal de contas, acabou de nos dizer que estava apaixonado por essa mulher. Ela traiu-o. Não me parece que vá estar em condições de continuar a manter uma relação amorosa com ela.
- bom, vai ter de estar, simplesmente - respondeu Vicary. Foi ele que nos meteu nesta confusão dos diabos e é o único que nos pode tirar dela. Não podemos propriamente fazer uma substituição e enfiar lá um profissional. Eles escolheram-no. Ninguém mais vai servir. Só vão acreditar no que virem na pasta de Jordan.
Churchill olhou para Eisenhower.
- General?
Eisenhower apagou o cigarro com força, ficou a pensar durante um momento e depois disse:
- Não havendo de facto mais nenhuma maneira de o fazer, apoio o plano do professor. O general Betts e eu vamos assegurar-nos de que os senhores receberão o apoio necessário do SHAEF para que tudo resulte.
- Então, está decidido - decretou Churchill. - E que Deus nos ajude se não resultar.
- Chamo-me Vicary, já agora, Alfred Vicary. Este senhor é Harry Dalton, trabalha comigo. E este cavalheiro é Sir Basil Boothby. Ele é que manda.
Era de manhã bem cedo, uma hora depois da alvorada, no dia seguinte. Avançavam por um trilho estreito, pelo meio das árvores com Harry uns passos à frente, como um batedor, Vicary e Jordan lado a lado e Boothby logo atrás, pairando sobre eles. A chuva tinha parado durante a noite, mas o céu continuava coberto de nuvens. A luz de inverno niquelada descolorava por completo as árvores e as colinas. Uma neblina fina ocultava o terreno nos pontos mais baixos e o ar cheirava a fumo das lareiras que ardiam no interior da casa. Por breves instantes, Jordan fixou o olhar em cada um dos homens à medida que iam sendo apresentados, mas não lhes estendeu a mão. Continuaram as duas bem enfiadas nos bolsos do casaco de montar impermeável que tinha sido deixado no seu quarto, além de umas calças de lã e de uma pesada camisola de lã grossa.
Seguiram em silêncio pelo trilho durante algum tempo, como velhos colegas de escola a digerir um pequeno-almoço pesado com uma caminhada. O frio era como um prego no joelho de Vicary. Avançava devagar, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça para baixo, como se estivesse à procura de um objeto perdido. As árvores terminaram e o Tamisa surgiu diante deles. Na margem, viam-se dois bancos de madeira. Harry sentou-se num, Vicary e Jordan no outro. Boothby manteve-se de pé.
Vicary explicou a Jordan o que queriam que ele fizesse. Jordan ouviu sem olhar para ninguém. Ficou sentado sem se mexer, com as mãos quietas dentro dos bolsos, as pernas estendidas à sua frente e o olhar fixo num qualquer ponto obscuro na superfície do rio. Quando Vicary terminou, Jordan disse:
- Arranjem outra maneira de fazer isso. Não sou capaz de dar conta do recado. Seria idiota da vossa parte utilizarem-me.
- Acredite, comandante Jordan, se houvesse outra maneira qualquer de reverter os danos que foram causados, eu optaria por ela.
Mas não há. O senhor tem de fazer isto. Deve-o a nós. Deve-o a todos os homens que vão arriscar a vida a tentar tomar de assalto as praias da Normandia - explicou
ele, parando depois de falar por um momento e seguindo o olhar de Jordan em direção à água. - E deve-o a si mesmo, comandante Jordan. Cometeu um erro terrível. Agora,
tem de ajudar a reparar os danos.
- Isso era para ser uma conversa para dar ânimo?
- Não, não acredito em conversas para dar ânimo. É a verdade.
- E quanto tempo é que vai durar?
- O tempo que for necessário.
- Não está a responder à minha pergunta.
- E verdade. Podem ser seis dias ou podem ser seis meses. Simplesmente, não sabemos. Não se trata de uma ciência exata. Mas vou terminar tudo assim que puder. Quanto a isso, tem a minha palavra.
- Pensava que a verdade não contava para muito no seu ramo, senhor Vicary.
- E não costuma. Mas, neste caso, sim.
- E a minha participação na Operação Mulberry?
- Vai fazer de conta que continua a ser um membro ativo da equipa, mas a verdade é que isso terminou tudo para si - decretou Vicary, levantando-se. - Devíamos voltar para casa, comandante Jordan. Temos uns documentos que precisamos que assine antes de nos irmos embora.
- Que tipo de documentos?
- Oh, só uma coisa que o obriga a nunca revelar nada disto para o resto da vida.
Jordan desviou os olhos do rio e fixou-os por fim em Vicary.
- Acredite, não precisa de se preocupar com isso.
TRINTA E OITO
RASTENBERG, ALEMANHA
Kurt Vogel estava a mexer no colarinho sem parar. Já não se recordava da última vez que tinha vestido o seu uniforme da Kriegsmarine. Servia-lhe antes da guerra, mas Vogel, como quase toda a gente, tinha perdido peso. A túnica mais parecia um pijama da prisão.
Estava nervoso como tudo. Nunca tinha conhecido o Fiihrer; na verdade, nunca tinha estado na mesma sala que ele. Pessoalmente, achava que Hitler era um lunático e um monstro que tinha conduzido a Alemanha à beira da catástrofe. Mas apercebeu-se de que estava ansioso por o conhecer e de que, por alguma razão inexplicável, queria causar boa impressão. Desejou ter melhor dicção. Foi fumando cigarro atrás de cigarro para acalmar os nervos. Tinha fumado durante o voo inteiro, desde Berlim, e naquele momento estava a fumar outra vez, no carro. Por fim, Canaris implorou-lhe que apagasse o raio da coisa, para bem dos seus dachshunds. Estavam deitados aos pés de Vogel, como salsichas gordas, fitando-o feroz e malevolamente. Vogel abriu uma nesga do vidro da janela e atirou o cigarro para o meio da neve que rodopiava lá fora.
O Mercedes oficial parou junto do posto de controlo exterior do Wolfschanze de Hitler. Quatro guardas das SS lançaram-se sobre o carro, abrindo o capo e a bagageira e servindo-se de espelhos para revistarem a parte de baixo. Os homens das SS fizeram-lhes sinal para avançarem e eles avançaram uns oitocentos metros em direção ao complexo. Já era o final da tarde, mas o solo da floresta resplandecia
com uma luz branca brilhante. Guardas com pastores-alemães patrulhavam os trilhos.
O carro parou mais uma vez, já no complexo, e, mais uma vez, foram assaltados pelos homens das SS. Desta vez, a vistoria foi pessoal. Ordenaram-lhes que saíssem do carro e revistaram-nos. Vogel ficou escandalizado ao ver Wilhelm Canaris, o chefe dos serviços secretos alemães, de braços no ar, com um homem das SS a apalpá-lo como se ele fosse um bêbado numa cervejaria.
Um guarda exigiu ver a pasta de Vogel, que a entregou com relutância. Tinha lá dentro as fotografias do documento dos Aliados e a análise efetuada à pressa pelo departamento técnico da Abwehr, em Berlim. O homem das SS revistou o interior da pasta com a mão enluvada e, a seguir, devolveu-a a Vogel, convencido de que não continha armas ou explosivos.
Vogel juntou-se a Canaris e avançaram ambos, em silêncio, para as escadas que desciam em direção ao búnquer. Vogel tinha deixado duas fotografias em Berlim, guardadas nos seus arquivos - as fotografias do bilhete. A mão era a dela; Vogel reconheceu a cicatriz dentada que ela tinha no polegar. Sentia-se dividido. Deveria aceder aos desejos dela e tirá-la do Reino Unido ou deixá-la infiltrada? Suspeitou que iriam tomar a decisão por si.
Havia outro homem das SS à espera no início das escadas, só para o caso de quem visitasse o Fúhrer conseguisse arranjar alguma maneira de se armar durante a caminhada pelo complexo. Canaris e Vogel pararam e submeteram-se a mais uma revista.
Canaris olhou para Vogel e lançou:
- Bem-vindo ao Campo Paranóia.
Vogel e Canaris foram os primeiros a chegar.
- É melhor fumar agora, antes que o criador de galinhas cá chegue - atirou Canaris.
Vogel estremeceu com o comentário; com certeza que a sala se encontrava pejada de escutas. Folheando os seus dossiês, resistiu ao desejo premente de tabaco.
Vogel ficou a ver os homens mais poderosos do Terceiro Reich a entrarem na sala em fila indiana, um atrás do outro: o Reichsfúhrer
das SS Heinrich Himmler, o Brigadefúhrer Walter Schellenberg, o marechal de campo Gerd von Rundstedt, o marechal de campo Erwin Rommel e Hermann Gòring.
Levantaram-se todos quando Hitler entrou na sala, com vinte minutos de atraso. Trazia calças cinzento-azuladas e uma túnica preta. Continuou de pé depois de toda a gente se sentar. Vogel observou-o, fascinado. Tinha o cabelo a ficar grisalho, a pele amarelada e os olhos orlados de vermelho. As olheiras por baixo destes eram tão pronunciadas que pareciam nódoas negras. No entanto, possuía uma energia intimidante. Ao longo de duas horas, dominou os outros homens presentes na sala ao conduzir a conferência sobre os preparativos para a invasão - sondando, desafiando, descartando informações ou comentários considerados irrelevantes. Para Vogel, tornou-se evidente que Adolf Hitler sabia tanto, se não mais, sobre a disposição das suas forças na Frente Ocidental do que os seus principais oficiais. A atenção dada aos pormenores era assombrosa. Exigiu saber por que razão havia menos três antiaéreas no Pas-de-Calais do que na semana anterior. Quis saber o tipo exato de betão utilizado nas fortificações da Muralha do Atlântico e a sua espessura precisa.
Por fim, no final da conferência, voltou-se para Canaris e disse:
- Então, segundo me consta, a Abwehr descobriu mais informações que poderão ajudar a desvendar as intenções do inimigo.
- Na verdade, meu Fúhrer, a operação foi concebida e executada pelo capitão Vogel. Permita-me que o deixe informá-lo do que descobriu.
- Muito bem - respondeu Hitler. - Capitão Vogel? Vogel continuou sentado.
- Meu Fúhrer, há dois dias, em Londres, um dos nossos agentes obteve um documento. Como sabe, descobrimos que o inimigo se encontra a preparar algo chamado Operação Mulberry. com base nestes novos documentos, estamos agora mais perto de saber ao certo o que é a Mulberry.
- Mais perto? - retorquiu Hitler, inclinando a cabeça para trás.
- Quer dizer que ainda estão com conjeturas, capitão?
- Se me der licença para continuar, meu Fúhrer.
- Por favor, mas esta noite a minha paciência é limitada.
- Sabemos muito mais acerca das estruturas gigantescas de betão e aço que estão a ser construídas em vários pontos de Inglaterra. Agora, sabemos que o nome de código delas é Phoenix. E também sabemos que, quando começar a invasão, vão ser rebocadas pelo canal da Mancha e afundadas ao largo da costa de França.
- Afundadas? Mas com que objetivo, capitão Vogel?
- Os nossos analistas técnicos estão há vinte e quatro horas a examinar minuciosamente os documentos roubados em Londres.
Cada uma das unidades submergíveis inclui instalações para tripulações e uma grande arma antiaérea. É possível que o inimigo esteja a planear criar um enorme complexo antiaéreo costeiro para fornecer cobertura adicional às tropas durante a invasão.
- É possível - exclamou Hitler. - Mas porquê darem-se a tanto trabalho para construir uma instalação antiaérea? Todos os vossos cálculos indicam que os britânicos enfrentam uma escassez desesperante de matérias-primas - aço, betão, alumínio. Há vários meses que me dizem isso. Churchill levou o Reino Unido à bancarrota com esta guerra idiota. Porquê desperdiçar material valioso num projeto desses? - Hider virou-se e olhou furiosamente para Gõring.
- Além disso, receio bem que tenhamos de pressupor que o inimigo irá gozar de supremacia aérea durante a invasão. - Hitler voltou-se de novo para Vogel. - Têm alguma segunda teoria, capitão Vogel?
- Temos, meu Fiihrer. É uma opinião minoritária, muito preliminar e ainda aberta a muitas interpretações.
- Ouçamo-la - disparou Hider.
- Um dos nossos analistas acha que as unidades submergíveis podem ser na realidade componentes de uma espécie de porto artificial: um engenho que poderia ser construído no Reino Unido, rebocado ao longo do canal da Mancha e instalado na costa francesa durante as primeiras horas da invasão.
Hider, intrigado, estava outra vez a andar de um lado para o outro.
- Um porto artificial? E uma coisa dessas é possível?
Himmler aclarou a garganta delicadamente e interveio: Talvez os vossos analistas estejam a interpretar mal as informações fornecidas pelo agente, capitão Vogel. Um porto artificial parece-me um pouco rebuscado.
- Não, Herr Reichsfuhrer - afirmou Hitler. - Acho que o capitão Vogel é capaz de ter razão - anunciou, percorrendo a sala furiosamente. - Um porto artificial! Vejam bem a arrogância, a audácia de um projeto desses! Estou a ver o dedo de Churchill, aquele louco, por todo o lado.
- Meu Fúhrer - disse Vogel hesitante -, um porto artificial é apenas uma explicação possível para estas unidades de betão. Não aconselharia a que se desse demasiada ênfase a estas conclusões iniciais.
- Não, capitão Vogel, esta sua teoria intriga-me. Vamos levá-la até ao nível seguinte, só para a podermos discutir mais um pouco. Se o inimigo estivesse de facto a tentar construir algo tão complexo como um porto artificial, onde é que o instalaria? Von Rundstedt, o senhor primeiro.
O velho marechal de campo levantou-se, dirigiu-se para o mapa e bateu nele ao de leve com o bastão.
- Se estudarmos o ataque falhado do inimigo a Dieppe, em
1942, podemos aprender lições valiosas. O objetivo principal do inimigo era capturar e abrir um porto importante o mais depressa possível. O inimigo fracassou, claro. O problema é este: o inimigo sabe que não lhe permitiremos o acesso a portos durante o máximo de tempo possível e que mais depressa seremos capazes de os inutilizar do que de abrir mão deles. Suponho que seja possível que o inimigo esteja a construir instalações no Reino Unido que lhe permitam reabrir os portos mais rapidamente. Isso faz sentido para mim. Se for esse o caso, e sublinho que o capitão Vogel e os seus colegas não possuem qualquer prova conclusiva de que seja, continuo a achar que será em Calais. Uma invasão em Calais continua a ser o que faz mais sentido militar e estrategicamente. Isso não pode ser ignorado.
Hitler ouviu com atenção e, a seguir, virou-se para Vogel.
- O que acha da análise do marechal de campo, capitão Vogel? Vogel ergueu os olhos. O olhar gélido de Von Rundstedt tinha-se
fixado nele. Sabia que tinha de proceder com muita cautela.
- A argumentação do marechal de campo Von Rundstedt é extremamente sólida - afirmou Vogel, fazendo uma pausa ao mesmo tempo que Rundstedt assentia com a cabeça em sinal de aprovação.
- Mas, por mero exercício de retórica, permita-me que proponha uma segunda interpretação.
- Faça-o - autorizou Hitler.
- Tal como o marechal de campo realçou, o inimigo precisa desesperadamente de instalações portuárias para poder acumular material com a rapidez necessária para sustentar uma força de invasão. Calculamos que isso exigiria no mínimo dez mil toneladas diárias de material durante a primeira fase da operação. Qualquer porto no Pas-de-Calais poderia sustentar esse aumento maciço - Calais, Bolonha, Dunquerque, por exemplo. Mas, conforme o marechal de campo Von Rundstedt realçou, o inimigo sabe que mais depressa seremos capazes de demolir esses portos do que abrir mão deles. E o inimigo também sabe que esses portos vão estar fortemente defendidos. Um ataque frontal a qualquer um deles teria consequências bastante penosas.
Vogel percebeu que Hitler estava a começar a mexer-se muito, a ficar impaciente. Apressou o seu raciocínio.
- Ao longo da costa da Normandia, há vários pequenos portos de pesca, nenhum suficientemente grande para fazer face à necessária acumulação de material e equipamento pesado. Talvez nem mesmo Cherburgo seja suficientemente grande. É preciso não esquecer que foi concebido como um terminal de passageiros para transatlânticos, não para descarregar carga. - E onde quer chegar, capitão Vogel? - perguntou Hitler com uma voz ligeiramente irritada.
- Meu Fúhrer, e se o inimigo pudesse reunir o seu material e equipamento em praias abertas e não necessitasse de um porto? Se isso fosse de facto possível, o inimigo poderia evitar as nossas defesas mais fortes, desembarcar nas praias menos protegidas da Normandia e tentar sustentar uma força de invasão através do recurso a um porto artificial.
Os olhos de Hitler iluminaram-se. Estava claramente intrigado pela análise de Vogel.
O marechal de campo Erwin Rommel abanava a cabeça.
Um cenário desses seria uma receita para o desastre, capitão
Vogel. Mesmo na primavera, o tempo na costa do canal da Mancha pode ser extremamente perigoso - chuva, ventos fortes, mares revoltos. O meu staff já estudou os padrões. Se a história servir de guia, o inimigo não pode contar com períodos de bom tempo por mais de três ou quatro dias seguidos. Se tentar reunir as suas forças
numa praia aberta, sem um porto nem água protegida, o inimigo ficará à inteira mercê da natureza. E não há dispositivo portátil, por mais engenhoso que seja, que sobreviva a um temporal de primavera no canal da Mancha.
Hitler interveio:
- Uma discussão fascinante, cavalheiros, mas já chega. Evidentemente, capitão Vogel, o seu agente precisa de descobrir mais informações sobre o projeto. Presumo que o agente continue infiltrado?
Vogel procedeu com cautela.
- Há um problema, meu Fúhrer - explicou Vogel. - O agente acha que as forças de segurança britânicas poderão estar a aproximar-se cada vez mais e que poderá não ser seguro permanecer em Inglaterra por muito mais tempo.
Walter Schellenberg falou pela primeira vez:
- Capitão Vogel, a nossa fonte em Londres afirma exatamente o contrário, que os britânicos sabem que há uma fuga de informação, mas que ainda não a conseguiram vedar. De momento, o seu agente está a imaginar o perigo.
Vogel pensou: Parvalhão arrogante! Mas quem é essa fonte fantástica que o SD tem em Londres? Respondeu:
- O agente em questão é altamente treinado e excecionalmente inteligente. Acho...
Himmler interrompeu Vogel:
- com certeza que não parte do princípio de que a fonte do Brigadefúhrer Schellenberg é menos credível do que a sua, pois não, capitão Vogel?
- com todo o respeito, não tenho maneira de avaliar a credibilidade da fonte do Brigadefúhrer, Herr Reichsfúhrer.
- Uma resposta muito diplomática, Herr Kapitàn - retorquiu Himmler. - Mas é óbvio que o seu agente deve continuar infiltrado até sabermos a verdade sobre estes objetos de betão, não concorda?
Vogel não tinha como escapar. Discordar de Himmler seria o mesmo que assinar a sua própria sentença de morte. Poderiam forjar provas de traição para o acusar e enforcar com corda de piano como tinham feito a outros. Pensou em Gertrude e nas crianças. Os bárbaros também iriam atrás deles. Confiava nos instintos de Anna, mas tirá-la de lá naquele momento seria suicídio. Ele não tinha escolha. Ela iria continuar infiltrada.
- Sim. Concordo, Herr Reichsfúhrer.
Himmler convidou Vogel para um passeio pelo recinto. Tinha caído a noite. Depois da esfera de luz, a floresta estava muito escura. Um letreiro alertava para não se sair do trilho por causa das minas. O vento sacudia as copas das coníferas. Vogel conseguia ouvir um cão a ladrar; era difícil perceber a que distância se encontrava porque a neve que tinha acabado de cair reduzia tudo a sons abafados. Estava um frio cortante. Durante a tensa reunião, tinha transpirado profusamente por baixo da túnica. Naquele momento, com o frio, parecia que tinha a roupa congelada e colada ao corpo. Desejava ansiosamente um cigarro, mas decidiu não arriscar ofender Himmler ainda mais por um só dia. Quando Himmler falou por fim, a sua voz era praticamente inaudível.
Vogel interrogou-se se seria possível colocar escutas numa floresta.
- Um feito extraordinário, capitão Vogel. O senhor merece ser louvado.
- Sinto-me honrado, Herr Reichsfúhrer.
- O seu agente em Londres é uma mulher. - Vogel não disse nada. - Sempre tive a impressão de que o almirante Canaris não confiava em agentes do sexo feminino. Que achava que são demasiado suscetíveis às emoções para efetuar trabalho clandestino e lhes faltava a necessária objetividade.
Posso garantir-lhe, Herr Reichsfúhrer, que a agente envolvida
não possui nenhum desses defeitos.
- Devo admitir que eu próprio considero um pouco desagradável a prática de introduzir agentes do sexo feminino atrás das linhas inimigas. O SOE1 teima em enviar mulheres para a França. Quando são presas, receio bem que as mulheres sofram o mesmo destino do que os homens. Infligir tamanho sofrimento a uma mulher é lamentável, para não dizer mais.
Parou de falar por uns instantes, com os músculos do rosto a contraírem-se, e inspirou profundamente o ar frio da noite.
- O seu feito é ainda mais extraordinário porque foi conseguido apesar do almirante Canaris.
- Não tenho a certeza do que quer dizer, Herr Reichsfúhrer.
- O que quero dizer é que o almirante tem os dias contados na Abwehr. Há já algum tempo que andamos descontentes com o desempenho dele. No mínimo, é um incompetente.
E, se as minhas suspeitas estiverem corretas, também traiu o Fúhrer.
- Herr Reichsfúhrer, eu nunca...
Himmler interrompeu-o, fazendo um gesto com a mão.
- Eu sei que sente uma certa lealdade para com o almirante Canaris. Afinal de contas, ele é pessoalmente responsável pela sua rápida ascensão nas fileiras da Abwehr.
Mas nada que possa dizer agora poderá alterar minimamente a minha opinião em relação a Canaris. E para bom entendedor meia palavra basta. Tenha cuidado ao socorrer
um homem a afogar-se. É capaz de também ser arrastado.
Vogel ficou pasmado. Não disse nada. Os latidos do cão foram-se desvanecendo lentamente e depois desapareceram. O vento levantou-se e soprou neve pelo trilho, apagando
a fronteira com a floresta. Vogel perguntou-se se teriam colocado as minas muito perto. Virou a cabeça e vislumbrou dois homens das SS a seguirem-nos discretamente.
- Estamos em fevereiro - retomou Himmler. - Posso prever com alguma certeza que o almirante Canaris vai ser demitido dentro
1 Sigla de Special Operations Executive, o Serviço de Operações Especiais britânico durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
de pouco tempo, talvez mesmo até ao final do mês. Pretendo colocar todas as agências de segurança e de serviços secretos alemãs sob a minha alçada, incluindo a Abwehr.
Vogel pensou: A Abwehr sob o controlo do Himmler? Seria risível se ele não estivesse a falar a sério.
- Obviamente, o senhor é um homem de considerável talento
- prosseguiu Himmler. - Quero que continue na Abwehr. com uma promoção considerável, claro.
- Obrigado, Herr Reichsfúhrer.
Foi como se tivesse sido outra pessoa a dizer as palavras por ele. Himmler parou.
- Está frio. Devíamos voltar para trás.
Passaram pelos seguranças, que esperaram até Himmler e Vogel deixarem de poder ser ouvidos para depois continuarem a segui-los silenciosamente.
Himmler disse:
- Ainda bem que conseguimos chegar a um entendimento quanto à questão de manter a agente infiltrada. Acho que é a medida mais prudente a tomar neste momento. E,
além disso, Herr Vogel, nunca é sensato deixar que os nossos sentimentos nos turvem a razão.
Vogel parou de andar e fitou os olhos sombrios de Himmler.
- O que quer dizer com isso?
- Por favor, não me faça de parvo - retorquiu Himmler. Ainda na semana passada, o Brigadefúhrer Schellenberg passou algum tempo em Madrid a tratar de outro assunto.
E conheceu um amigo seu, um homem chamado Emílio Romero. O Senor Romero contou ao Brigadefúhrer Schellenberg tudo sobre o seu bem mais estimado, capitão.
Vogel pensou: Raios partam Emilio por ter falado com Schellenberg! E raios partam Himmler por meter o nariz onde não é chamado! Os homens das SS pareceram detetar
a tensão, já que avançaram silenciosamente.
- Pelo que me consta, ela é muito bonita - prosseguiu Himmler.
- Deve ter sido difícil abdicar de uma mulher dessas. Deve ser tentador fazê-la regressar a casa e trancá-la a sete chaves. Mas ela tem
de continuar infiltrada em Inglaterra. Estamos entendidos, capitão Vogel?
- Sim, Herr Reichsfúhrer.
- Schellenberg tem os seus defeitos: é arrogante, demasiado exuberante, e aquela obsessão com a pornografia... - desabafou Himmler, encolhendo os ombros. - Mas é um agente dos serviços secretos inteligente e expedito. Sei que vai gostar de trabalhar mais de perto com ele.
Himmler deu meia-volta abruptamente e afastou-se. Vogel ficou sozinho, a tremer sob o frio intenso.
- Está com má cara - atirou Canaris quando Vogel voltou para o carro. - Costumo ficar assim depois de conversar com o criador de frangos. Mas tenho de reconhecer que consigo esconder isso melhor do que o Kurt.
Ouviu-se qualquer coisa a raspar do lado de fora do carro. Canaris abriu a porta e os cães entraram rapidamente no carro, instalando-se aos pés de Vogel. Canaris bateu ao de leve com os nós dos dedos no separador de vidro. O motor começou a trabalhar e o carro avançou por cima da neve, em direção ao portão. Vogel sentiu-se inundado de alívio à medida que o brilho intenso das luzes do complexo ia ficando cada vez mais para trás e eles regressavam uma vez mais à escuridão da floresta.
-- O cabozinho ficou muito orgulhoso de si esta noite, Kurt exclamou Canaris, com desprezo patente na voz. - E Himmler? Kurt apunhalou-me durante o vosso passeiozinho ao luar?
- Herr Admirai...
Canaris inclinou-se para a frente e colocou a mão no braço de Vogel. Os seus olhos azuis muito claros tinham uma expressão que Vogel nunca tinha visto.
- Tenha cuidado, Kurt - avisou ele. - Está a entrar num jogo perigoso. Num jogo muito perigoso.
E, depois de dizer isso, Canaris recostou-se no banco, fechou os olhos e adormeceu de imediato.
TRINTA E NOVE LONDRES
A operação recebeu apressadamente o nome de código Kettledrum [Timbale] - Vicary não sabia quem tinha escolhido o nome nem porquê. A operação era demasiado complexa
e delicada para ser dirigida das suas exíguas instalações em St. James's Street, por isso obteve uma imponente casa geminada, de estilo georgiano, em West Halkin Street, para funcionar como posto de comando. A sala de estar foi convertida num centro de operações, com telefones extras, um aparelho de rádio e um mapa em grande escala da zona metropolitana de Londres pregado à parede. A biblioteca do andar de cima foi transformada num gabinete para Vicary e Harry. Havia uma entrada dos fundos para os vigias e uma despensa carregada de comida. As datilógrafas ofereceram-se para cozinhar e Vicary, ao chegar à casa ao início da noite, foi surpreendido pelo aroma a torrada e a bacon e pelo ensopado de borrego a fervilhar no fogão.
Um vigia levou-o até à biblioteca. O carvão ardia na lareira; o ar estava seco e quente. Despiu com dificuldade o impermeável encharcado, pô-lo num cabide e pendurou-o atrás da porta. Uma das raparigas tinha-lhe deixado um bule de chá e ele serviu-se de uma chávena. Vicary sentia-se exausto. Tinha dormido mal depois de interrogar Jordan e as esperanças de conseguir dormir um pouco no carro tinham sido frustradas por Boothby, que sugeriu que voltassem juntos para o gabinete para poderem aproveitar para falar.
O controlo global da Operação Kettledrum pertencia a Boothby. Vicary comandaria Jordan e seria responsável por manter Catherine Blake sob vigilância. Ao mesmo tempo, tentaria descobrir os restantes agentes da rede e quais os processos que utilizavam para comunicar com Berlim. Boothby serviria de elo de ligação com o Comité dos Vinte, o grupo interdepartamental que supervisionava todo o aparelho da Operação Double Cross, assim chamado porque o símbolo da Operação Double Cross e o algarismo vinte em numeração romana eram iguais: XX. Boothby e o Comité dos Vinte elaborariam os documentos falsos que seguiriam para a pasta de Jordan e integrariam a Operação Kettledrum no resto das operações Double Cross e Bodyguard. Vicary não perguntou em que consistiam as informações falsas e Boothby também não lhe explicou. Vicary sabia o que isso queria dizer. Tinha sido ele a descobrir a existência da nova rede alemã e a identificar Jordan como a fonte da fuga de informação. Mas, naquele momento, estava a ser empurrado para um papel secundário. Basil Boothby comandava a situação por completo.
- Belos aposentos - exclamou Harry ao entrar no gabinete. Serviu-se de uma chávena de chá e aqueceu-se à lareira.
- Onde está Jordan?
- Lá em cima, a dormir.
- Imbecil de um raio - disse Harry com a voz mais baixa.
- Mas agora é o nosso imbecil de um raio, Harry, não se esqueça disso. O que conseguiu?
- Impressões digitais.
- O quê?
- Impressões digitais, impressões digitais latentes de outra pessoa que não Peter Jordan por todo o escritório. Na secretária, na parte de fora do cofre. Ele diz que a empregada doméstica nunca teve autorização para entrar. Devemos partir do princípio de que essas impressões digitais latentes foram lá deixadas por Catherine Blake.
Vicary abanou a cabeça lentamente.
- A casa de Jordan já está pronta - continuou Harry. - Colocámos tantos microfones naquele sítio que até se consegue ouvir um rato a dar um traque. Despejámos a família que vive do outro lado da rua e estabelecemos um posto fixo. A vista é perfeita. Quem se aproximar da casa vai ser fotografado.
- E Catherine Blake?
- Localizámos o número de telefone dela, pertence a um apartamento em Earl's Court. Ocupámos um apartamento no prédio em frente.
- bom trabalho, Harry.
Harry olhou para Vicary durante um longo momento e, a seguir, disse:
- Não leve isto a mal, Alfred, mas está com péssimo aspeto.
- Já não me lembro da última vez que dormi. Como é que o Harry se consegue aguentar?
- Umas quantas benzedrinas e dez quartos de chá.
- vou comer qualquer coisa e depois tentar dormir um pouco. E o Harry?
- Por acaso, já tinha planos para hoje à noite.
- Grace Clarendon?
- Ela convidou-me para jantar. Achei que era melhor aproveitar a oportunidade. Não me parece que vamos ter muito tempo livre nas próximas semanas.
Vicary levantou-se e serviu-se de mais uma chávena de chá.
- Harry, não me quero aproveitar da sua relação com Grace, mas gostava de saber se ela me poderia fazer um favor. Gostava que ela me investigasse alguns nomes na base de dados dos Registos para ver se aparece alguma coisa.
- vou falar com ela. Quais são os nomes?
Vicary atravessou o gabinete com o chá e parou à frente da lareira, junto a Harry.
- Peter Jordan, Walker Hardegen e qualquer pessoa ou coisa chamada Broome.
Grace nunca gostava de comer antes de fazer amor. A seguir, Harry estava deitado na cama dela, a fumar um cigarro e a ouvir a orquestra de Glenn Miller no gramofone e a algazarra feita por Grace a preparar a comida na cozinha minúscula. Passados dez minutos, voltou para o quarto. Vestia um roupão, periclitantemente atado à cintura elegante, e trazia um tabuleiro com o jantar: sopa
e pão. Harry endireitou-se, encostou-se à cabeceira, e Grace sentou-se aos pés da cama. O tabuleiro estava entre os dois. Ela passou-lhe uma taça de sopa. Já era quase meia-noite e estavam ambos esfomeados. Harry adorava observá-la. A maneira como ela parecia retirar tanto prazer daquela refeição simples. A maneira como o roupão se tinha aberto, deixando ver o seu corpo perfeito e em forma. Ela reparou que ele estava a olhar para si e perguntou-lhe:
- Em que é que estás a pensar, Harry Dalton?
- Estava a pensar que não quero mesmo que isto termine nunca. Estava a pensar que queria imenso que todas as noites da minha vida pudessem ser exatamente assim.
O rosto dela fechou-se por completo; era absolutamente incapaz de esconder o que sentia. Quando estava feliz, a cara parecia iluminar-se. Quando estava zangada., os olhos verdes chamejavam. Quando ficava triste, como naquele momento, o corpo imobilizava-se totalmente.
- Não podes dizer coisas dessas, Harry. E contra as regras.
- Eu sei que é contra as regras, mas é a verdade.
- As vezes, é melhor guardarmos a verdade para nós próprios. Se não a deitarmos cá para fora, não dói tanto.
- Grace, acho que estou apaixonado...
Ela bateu com a colher com força no tabuleiro.
- Jesus, Harry! Não digas coisas dessas! Raios, às vezes, dificultas tanto as coisas. Primeiro, dizes-me que não podes estar comigo porque te sentes culpado, e agora dizes-me que estás apaixonado por mim.
- Desculpa, Grace, é que é verdade. Pensava que podíamos dizer sempre a verdade um ao outro.
- Muito bem, aqui tens a verdade. Estou casada com um homem maravilhoso, de quem gosto muitíssimo e que não quero magoar. Mas apaixonei-me perdidamente por um polícia transformado em caça-espiões chamado Harry Dalton. E quando esta maldita guerra terminar, tenho de abdicar dele. E dói como o caraças sempre que me deixo pensar nisso - desabafou ela, com os olhos cheios de lágrimas. - Agora, cala-te, Harry, e come a sopa. Por favor. Vamos
falar de outra coisa. Estou enfiada nos tenebrosos Registos o dia inteiro, com o Jago e o deplorável cachimbo dele. Quero saber o que se está a passar no resto do mundo.
- Muito bem. Quero pedir-te um favor.
- Que tipo de favor?
- Um favor profissional. Ela sorriu-lhe maliciosamente.
- Raios, estava com esperanças de que fosse um favor sexual.
- Preciso que me investigues discretamente uns nomes na base de dados dos Registos. Para ver se aparece alguma coisa.
- Claro, quais são? Harry disse-lhe.
- OK, vou ver o que consigo descobrir.
Ela acabou a sopa, recostou-se e ficou a ver Harry comer o resto da sopa dele. Quando terminou, ela empilhou a louça no tabuleiro e pousou-o no chão, ao lado da cama. Apagou as luzes e acendeu uma vela na mesinha de cabeceira. Despiu o roupão e fez amor com ele como nunca tinha feito: lenta e pacientemente, como se o corpo dele fosse de cristal. Os seus olhos nunca se desviaram da cara dele. No final, deixou-se cair em cima do peito de Harry, com o corpo exaurido e húmido e a respiração quente no pescoço dele.
- Querias a verdade, Harry. A verdade é esta.
- Tenho de ser sincero contigo, Grace. Não doeu nada.
Começou poucos minutos depois das dez da manhã, no dia seguinte, quando Peter Jordan, que se encontrava na biblioteca do andar de cima da casa de Vicary em West Halkin Street, marcou o número de telefone do apartamento de Catherine Blake. Durante muito tempo, a gravação dessa conversa de um minuto teve a honra de ser a escuta mais ouvida da história dos Serviços de Segurança do Império Britânico. O próprio Vicary ouviria o raio da coisa uma centena de vezes, à procura de imperfeições como um mestre joalheiro examina um diamante à procura de defeitos. Boothby fez o mesmo. Uma cópia da gravação foi enviada a toda a velocidade, por um correio de mota, para St. James's Street e, ao longo de uma hora, a luz vermelha
iluminou a porta de Sir Basil enquanto ele ouvia a gravação uma
e outra vez.
Da primeira vez, Vicary ouviu apenas Jordan. Estava a poucos passos de distância, de costas voltadas educadamente para ele e os olhos postos na lareira.
- Ouve, desculpa não ter tido hipótese de ligar mais cedo. É só que tenho andado ocupadíssimo. Estive fora da cidade mais um dia do que o esperado e não tinha possibilidade de telefonar.
Silêncio, enquanto ela lhe diz que não é preciso pedir desculpa.
- Tive imensas saudades tuas. Pensei em ti o tempo todo que estive fora.
Silêncio, enquanto ela lhe diz que também sentiu imenso a falta dele e que mal pode esperar para o ver outra vez.
- Eu também te quero ver. Aliás, é por isso que estou a ligar. Reservei uma mesa para nós no Mirabelle. Espero que possas almoçar.
Silêncio, enquanto ela lhe diz que lhe parece maravilhoso.
- Otimo. Encontramo-nos lá à uma.
Silêncio, enquanto ela lhe diz que o ama muito.
- Eu também te amo, querida.
Jordan ficou calado quando tudo terminou. Observando-o, Vicary recordou-se de Karl Becker e do estado de espírito sombrio que se apoderava dele sempre que Vicary o obrigava a enviar uma mensagem da Operação Double Cross. Passaram o resto da manhã a jogar xadrez. Jordan fez um jogo matemático e preciso; Vicary enveredou pelo logro e por subterfúgios. Enquanto jogavam, conseguiam ouvir os vigias na galhofa e o barulho das datilógrafas lá em baixo, no centro de operações. Jordan estava a derrotar Vicary sem apelo nem agravo e, por isso, Vicary desistiu.
Ao meio-dia, Jordan foi para o seu quarto e vestiu o uniforme. Às 12H15, saiu pela porta dos fundos da casa e subiu para a parte de trás de uma carrinha do departamento. Vicary e Harry instalaram-se nos seus lugares no centro de operações ao mesmo tempo que Jordan subia Park Lane em grande velocidade, como um prisioneiro de alta segurança. Foi levado para uma porta traseira, bem escondida, do quartel-general do SHAEF, em Blackburn Street, e entrou. Durante os seis minutos seguintes, ninguém da equipa de Vicary o viu.
Às 12h35,Jordan saiu pela porta da frente do SHAEF. Atravessou a praça com uma pasta algemada ao pulso e desapareceu por outra entrada. Desta vez, o período de ausência durou dez minutos. Quando reapareceu, já não tinha a pasta. Dirigiu-se de Grosvenor Square para South Audley Street e de South Audley Street para Curzon Street. Ao longo do percurso, foi seguido discretamente por três dos melhores vigias do departamento, Clive Roach, Tony Blair e Leonard Reeves. Nenhum deles viu qualquer
sinal de que Jordan se encontrasse sob vigilância do inimigo.
Às 12h55, Jordan chegou ao Mirabelle. Esperou à porta, tal como Vicary lhe tinha dito para fazer. À uma hora em ponto, um táxi travou, estacionando em frente ao restaurante, e uma mulher alta e atraente saiu. Ginger Bradshaw, o melhor fotógrafo de vigilância do departamento, estava agachado na parte de trás de uma carrinha do departamento estacionada do outro lado da rua; quando Catherine Blake pegou na mão de Peter Jordan e o beijou na cara, Bradshaw tirou rapidamente seis fotografias. O rolo foi levado a correr para West Halkin Street e as fotos já se encontravam à frente de Vicary, no centro de operações, quando o almoço terminou.
A posteriori, Blair iria dizer que a culpa era sua; Reeves disse que não, ele é que era o culpado. Roach, detendo o posto mais elevado, assumiu toda a responsabilidade. Mas concordaram os três que ela era bem melhor do que qualquer outro agente alemão que já tivessem seguido: a melhor, sem tirar nem pôr. E se cometessem algum erro, se se aproximassem demasiado, ficariam de certeza queimados.
Depois de saírem do Mirabelle, Catherine e Peter dirigiram-se para Grosvenor Square. Pararam na esquina sudoeste da praça e conversaram durante dois minutos. Ginger Bradshaw tirou mais uma série de fotografias, incluindo uma do beijo de despedida muito curto que deram. Quando Jordan se afastou, Catherine fez sinal a um táxi para parar e entrou nele. Blair, Roach e Reeves pularam para dentro da carrinha de vigilância e seguiram o táxi em direção a leste, atravessando Regent Street. Depois, o táxi dirigiu-se para norte, em direção a Oxford Street, onde Catherine saiu após pagar ao taxista.
Mais tarde, Roach iria classificar o passeio que ela deu por Oxford Street como a melhor demonstração que já tinha visto da arte de se escapar na rua. Parou, no mínimo, à frente de meia dúzia de montras. Voltou para trás duas vezes, uma delas tão depressa que Blair teve de se lançar para dentro de um café para se desviar dela. Em Tottenham Court Road, desceu as escadas para o metropolitano e comprou um bilhete para a estação de Waterloo. Roach e Reeves conseguiram entrar no metro ao mesmo tempo que ela - com Roach a uns seis metros de distância, na mesma carruagem, e Reeves na seguinte. Quando as portas se abriram em Leicester Square, deixou-se ficar quieta, como se fosse prosseguir a viagem; foi então que se levantou de repente e avançou para a plataforma. Roach teve de se comprimir todo para conseguir passar pelas portas que se fechavam e continuar a acompanhá-la. Reeves ficou preso dentro do metro; estava fora de jogo.
Nas escadas, desapareceu no meio da multidão e Roach perdeu-a momentaneamente. Quando Catherine chegou à rua, atravessou rapidamente Charing Cross Road e voltou a descer as escadas para a estação de Leicester Square.
Roach podia jurar que a tinha visto entrar num autocarro e passou o resto da tarde a repreender-se por ter cometido um erro tão estúpido. Atravessou a rua a correr e saltou para dentro do autocarro no momento em que este começava a afastar-se do passeio. Passados dez segundos, percebeu que se tinha enganado na mulher. Saiu na paragem seguinte e telefonou para West Halkin Street para avisar Vicary de que ela lhes tinha escapado.
- Clive Roach nunca perdeu um agente alemão - disse Boothby nessa noite, no seu gabinete, olhando ferozmente para o relatório de vigilância.
Fixou os olhos em Vicary.
- O homem até era capaz de seguir um mosquito por Hampstead Heath.
- E o melhor. Só que o raio da mulher é mesmo boa.
- Veja-me bem isto: um táxi, uma caminhada longa para verificar se estava a ser seguida e depois enfia-se no metro, onde compra um bilhete para uma estação e sai noutra.
- E extremamente cuidadosa. Foi por isso que nunca tínhamos dado por ela.
- Mas há outra explicação, Alfred. É possível que ela tenha detetado que a estavam a seguir.
- Eu sei. Já pensei nessa possibilidade.
- E, se for esse o caso, a operação vai toda por água abaixo ainda antes de começar - desabafou Boothby, batendo ao de leve na fina pasta metálica de diplomata que continha a primeira leva de material para a Operação Kettledrum. - Se ela souber que está a ser vigiada e lhe dermos isto, então mais vale mandar publicar o segredo da invasão no Daily Mail, com uma manchete gigante. Vão saber que estão a ser enganados. E, se souberem que estão a ser enganados, vão saber que o contrário é verdade.
- Roach está convencido de que ela não o detetou.
- E onde está ela agora?
- No apartamento dela?
- E a que horas é que ela ficou de se encontrar com Jordan?
- Às dez, em casa de Jordan. Ele disse-lhe que hoje ia ficar a trabalhar até tarde.
- E com que impressão é que Jordan ficou?
- Disse que não detetou nenhuma alteração no comportamento dela, nenhum sinal de nervosismo ou tensão.
Vicary fez uma pausa.
- Ele é bom, o nosso comandante Jordan, mesmo bom. Se não fosse um engenheiro tão extraordinário, daria um espião maravilhoso.
Boothby bateu ao de leve com o indicador grosso na pasta metálica de diplomata.
- Mas se ela detetou que a estavam a seguir, porque está sentada no apartamento? Porque não está a tentar fugir?
Vicary respondeu:
- Se calhar, quer ver o que é que está dentro dessa pasta.
- Ainda não é demasiado tarde, Alfred. Não temos de ir para a frente com isto. Podemos prendê-la imediatamente e pensar noutra maneira de repararmos os danos.
- Acho que isso seria um erro. Não sabemos quem são os outros agentes da rede e não sabemos como é que andam a comunicar com Berlim.
Boothby bateu levemente com os nós dos dedos na pasta.
- Ainda não me perguntou o que está dentro desta pasta, Alfred.
- Não queria outro sermão sobre a necessidade de saber. Boothby soltou um risinho e disse:
- Muito bem. Está a aprender. Não é necessário saber isto, mas, já que a ideia genial foi sua, vou dizer-lhe. O Comité dos Vinte quer convencê-los de que a Mulberry é na realidade um complexo antiaéreo com destino a Calais. As unidades Phoenix já têm instalações para as tripulações e armas antiaéreas, por isso até encaixa bastante bem. Limitaram-se a alterar um bocadinho as plantas.
- Perfeito - lançou Vicary.
- Têm mais uns estratagemas em mente, para ajudar a vender esse logro através de outros canais. Será informado deles à medida que for necessário.
- Compreendo, Sir Basil.
Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo, cada um a olhar atentamente para o seu ponto específico nas paredes almofadadas.
- A decisão é sua - disse Boothby por fim. - O Alfred é que controla esta parte da operação. Seja o que for que recomendar, pode contar com o meu apoio.
Vicary pensou: Porque me sinto como se me estivessem a tirar as medidas para o caixão? Não ficou reconfortado com o apoio oferecido por Boothby. Ao primeiro sinal de problemas, Boothby estaria a mergulhar para a trincheira mais próxima. O mais fácil seria prender Catherine Blake e fazer as coisas à maneira de Boothby - tentar fazê-la mudar de lado e obrigá-la a colaborar com eles. Vicary continuava convencido de que não resultaria, de que a única maneira de canalizar o material da Operação Double Cross através de Catherine seria fazê-lo sem que ela soubesse.
- Lembro-me de uma época em que os homens não tinham de tomar decisões destas - disse Boothby nostalgicamente. - Se tomarmos a errada, podemos muito bem perder a guerra.
- Obrigado por me recordar isso - retorquiu Vicary. - Por acaso, não tem uma bola de cristal atrás dessa secretária, pois não, Sir Basil?
- Lamento dizê-lo, mas não.
- E que tal uma moeda?
- Alfred!
- Uma fraca tentativa de me mostrar descontraído, Sir Basil. Boothby estava outra vez a bater levemente na pasta.
- Qual é a sua decisão, Alfred?
- Digo que a deixemos à solta. Boothby desabafou:
- Peço a Deus que tenha razão, Alfred. Dê-me o seu braço direito.
Vicary estendeu o braço. Boothby algemou-lhe a pasta ao pulso.
Meia hora mais tarde, Grace Clarendon encontrava-se parada na Northumberland Avenue, a bater com os pés com toda a força no passeio para se aquecer enquanto observava o trânsito do início da noite a passar por ela. Por fim, avistou o grande Humber preto de Boothby quando o motorista piscou os faróis encobertos. O carro encostou ao passeio. Boothby abriu a porta de trás de rompante e Grace entrou.
Grace tremia.
- Está um frio dos diabos lá fora! Devia ter-se encontrado comigo há quinze minutos. Não percebo porque não podemos simplesmente fazer isto no seu gabinete.
- Demasiados olhos à espreita, Grace. Demasiadas coisas em jogo.
Ela enfiou um cigarro na boca e acendeu-o. Boothby fechou o separador de vidro.
- Diga-me lá, o que tem para mim?
- Vicary quer que eu lhe investigue uns nomes na base de dados dos Registos.
- E porque não me vem pedir uma requisição?
- Calculo que ache que não lha vai dar.
- E quais são os nomes?
- Peter Jordan e Walker Hardegen.
- Sacana inteligente - murmurou Boothby. - Mais alguma coisa?
- Sim. Queria que eu fizesse uma investigação à palavra Broome.
- Muito ampla?
- Nomes do nosso próprio pessoal. Nomes de código de agentes, alemães e britânicos. Nomes de código de operações, atuais e fechadas.
- Por amor de Deus! - exclamou Boothby, virando-se e observando o trânsito. - Foi Vicary que veio ter consigo diretamente ou fez o pedido através de Dalton?
- Foi Harry.
- Quando?
- Ontem à noite.
Boothby virou-se novamente e sorriu-lhe.
- Foi outra vez uma menina travessa, Grace? Ela não lhe deu resposta, apenas perguntou:
- O que quer que eu lhe diga?
- Diga-lhe que investigou os nomes de Jordan e de Hardegen em todas as bases de dados de que se lembrou e que não descobriu nada. E a mesma coisa para a palavra Broome. Entendido, Grace?
Ela assentiu com a cabeça. Boothby disse:
- Não fique com esse ar tão macambúzio. Está a dar uma contribuição inestimável para a defesa da sua nação.
Ela voltou-se para ele, com os olhos verdes semicerrados de raiva.
- Estou a enganar uma pessoa de quem gosto muito. E isso não me agrada.
- Vai terminar tudo dentro de pouco tempo. E quando isso acontecer, levo-a a jantar fora, tal e qual como nos velhos tempos.
Ela fez força no puxador da porta, com um pouco de vigor a mais, e pôs um pé fora do carro.
- Deixo-o levar-me a jantar a um restaurante caro, Basil. Mas é tudo. Os velhos tempos acabaram de vez.
Saiu, fechou a porta com violência e ficou a ver o carro de Boothby a sumir-se na escuridão.
Vicary ficou à espera na biblioteca, no andar de cima. As raparigas trouxeram-lhe as atualizações, uma a uma.
21hl5: O posto fixo em Earl's Court avista Catherine Blake a sair do apartamento. Fotografias a caminho.
21 hl7: Catherine Blake desloca-se para norte, em direção a Cromwell Road. Um vigia segue-a a pé. Carrinha de vigilância a segui-la.
21h20: Catherine Blake apanha um táxi e dirige-se para leste. A carrinha de vigilância recolhe o vigia que ia a pé e segue o táxi.
21h35: Catherine Blake chega a Marble Arch e sai do táxi. Novo vigia sai da carrinha e segue-a a pé.
21h40: Catherine Blake apanha outro táxi, em Oxford Street. A carrinha de vigilância quase a perde. Impossível apanhar o vigia que ia a pé.
21h50: Catherine Blake sai do táxi em Piccadilly Circus. A dirigir-se para leste, por Piccadilly. Novo vigia segue-a a pé. Carrinha de vigilância a segui-la.
21h53: Catherine Blake apanha autocarro. Carrinha de vigilância a segui-la.
21h57: Catherine Blake sai do autocarro. Entra no Green Park e avança por um trilho. Um vigia a segui-la.
Cinco minutos mais tarde, Harry entrou na biblioteca.
- Perdemo-la no Green Park - anunciou ele. - Ela voltou para trás. O vigia teve de continuar.
- Não faz mal, Harry, nós sabemos para onde é que ela vai. Mas, durante os vinte minutos seguintes, ninguém a viu. Vicary
desceu as escadas e pôs-se a percorrer o centro de operações nervosamente. Pelos microfones, Vicary conseguia ouvir Jordan às voltas dentro de casa, à espera dela. Será que tinha visto os vigias? Será que tinha detetado a carrinha de vigilância? Será que tinha sido atacada no Green Park? Será que tinha ido encontrar-se com outro agente? Será que estava a tentar escapar-se? Lá fora, Vicary ouviu o barulho
Já carrinha de vigilância a regressar e, a seguir, os passos suaves dos vigias abatidos a entrarem discretamente na mansão. Ela tinha-os derrotado de novo. Depois, Boothby telefonou. Estava a monitorizar a operação no gabinete e queria saber que raio se estava a passar. Quando Vicary lhe explicou, Boothby resmungou qualquer coisa ininteligível e desligou.
Por fim, o posto fixo instalado em frente da casa de Jordan comunicou.
22h25: Catherine Blake a aproximar-se da porta de Jordan. Catherine Blake a tocar à campainha.
Vicary não precisava de saber essa última informação, pois tinham sido colocados tantos microfones e escutas na casa de Jordan que, através dos altifalantes no centro de operações, a campainha da porta soou como um alerta de ataque aéreo.
Vicary fechou os olhos e escutou. As vozes subiam e desciam à medida que eles passavam de divisão em divisão, fora do alcance de um microfone e dentro do alcance de outro. Ouvi-los a trocar trivialidades fez Vicary lembrar-se dos diálogos de um dos romances de Alice Simpson: Posso encher-te o copo? Não, assim está ótimo. E não queres comer qualquer coisa? Deves estar faminta. Não, comi um pouco antes de vir para cá. Mas há uma coisa que eu quero imenso imediatamente.
Ouviu-os beijarem-se. Perscrutou a voz dele à procura de notas falsas. Tinha uma equipa de agentes à espera na casa do outro lado da rua, só para o caso de correr tudo mal e ele resolver prendê-la. Ouviu-a a dizer a Jordan que o amava muitíssimo e, por alguma razão, deu por si a pensar em Helen. Tinham deixado de falar. Copos a tinirem. Água a correr. Passos a subirem as escadas. Silêncio à medida que avançavam por uma zona sem cobertura dos microfones. O som da cama de Jordan a ranger sob o peso dos seus corpos. O som de roupa a ser despida. Sussurros. Vicary já tinha ouvido o suficiente. Virou-se para Harry e disse:
- vou subir. Vá buscar-me quando ela for à caça dos documentos.
Clive Roach ouviu-o primeiro, depois Ginger Bradshaw. Harty tinha adormecido no sofá, com as pernas compridas penduradas por cima do descanso para o braço. Roach esticou-se e bateu-lhe na sola do sapato. Sobressaltado, Harry endireitou-se e escutou com atenção. Subiu as escadas pulando os degraus e quase deitou a porta da biblioteca abaixo. Vicary tinha trazido a cama de campanha do seu gabinete. Estava a dormir, como era hábito, com a luz a bater-lhe na cara. Harry baixou-se e abanou-lhe o ombro. Vicary acordou subitamente e olhou para o relógio: 2h45. Seguiu Harry pelas escadas abaixo, sem dizer uma palavra, e entraram no centro de operações. Vicary tinha mexido em máquinas fotográficas alemãs capturadas e reconheceu o som de imediato. Catherine Blake estava trancada no escritório de Jordan a fotografar rapidamente a primeira leva de material da Operação Kettledrum. Passado um minuto, o barulho parou. Vicary ouviu o som de papéis a serem endireitados e da porta do cofre a ser fechada. A seguir, um clique quando ela desligou as luzes e voltou para o andar de cima.
QUARENTA LONDRES
- Ora, ora, o homem do momento! - exclamou Boothby, abrindo a porta de trás do Humber de rompante. - Entre, Alfred, antes que morra gelado aí fora. Acabei de informar o Comité dos Vinte. Escusado será dizer, estão encantados. Pediram-me para lhe transmitir os parabéns. Por isso, parabéns, Alfred.
- Obrigado, acho eu - respondeu Vicary, pensando: Quando é que ele teve tempo para informar o Comité dos Vinte?
Ainda mal eram sete da manha: a chover, um frio dos diabos e Londres velada à meia-luz mortiça da madrugada de inverno. O carro afastou-se do passeio, avançando pela rua sossegada e reluzente. Vicary afundou-se no banco, encostou a cabeça para trás e fechou os olhos por um momento apenas. Estava mais do que exausto. A fadiga moía-lhe os membros. Apertava-lhe o peito como o vencedor de uma luta no pátio da escola, comprimia-lhe a cabeça como um torno. Não conseguira voltar a adormecer, não depois de ouvir Catherine Blake a fotografar o material da Operação Kettledrum. O que o teria mantido acordado, a excitação de ter enganado o inimigo tão engenhosamente ou a repulsa perante a maneira como isso fora feito?
Vicary abriu os olhos. Estavam a dirigir-se para leste, atravessando a desolação gelada e georgiana de Belgravia, depois Hyde Park Corner e, a seguir, Park Lane, a caminho de Bayswater Road. As ruas
estavam desertas - um ou outro táxi, aqui e ali, um camião ou dois, peões solitários a apressarem-se pelo passeio.
Fechando os olhos novamente, Vicary perguntou:
- Qual é o assunto, afinal?
- Lembra-se de eu lhe ter dito que o Comité dos Vinte estava a considerar a hipótese de utilizar mais alguns dos nossos trunfos da Operação Double Cross para ajudar a reforçar a credibilidade da Operação Kettledrum em Berlim?
- Lembro-me - respondeu Vicary.
E também se lembrava de ter ficado estupefacto com a rapidez com que se tinha chegado a essa decisão. O Comité dos Vinte era conhecido pelas suas guerras burocráticas. Todas as mensagens da Operação Double Cross, sem exceção, tinham de ser aprovadas pelo Comité dos Vinte antes de poderem ser enviadas aos alemães por agentes que tinham mudado de lado. Por vezes, Vicary esperava durante dias até que o Comité aprovasse mensagens da Operação Double Cross para a sua rede Becker. Como tinham sido eles capazes de atuar tão depressa naquela ocasião?
Estava demasiado cansado para se pôr a vasculhar o cérebro à procura de respostas. Fechou os olhos outra vez.
- Para onde vamos?
- Para a zona leste de Londres. Hoxton, para ser preciso. Vicary abriu os olhos uma nesga e depois deixou que se fechassem de novo.
- Se vamos para a zona leste, porque estamos a seguir para oeste e a ir por Bayswater Road?
- Para termos a certeza de que não estamos a ser seguidos por membros de nenhum outro serviço, amigo ou inimigo.
- E quem havia de nos seguir, Sir Basil, os americanos?
- Por acaso, Alfred, estou mais preocupado com os russos. Vicary levantou a cabeça e virou-a na direção de Boothby, deixando-a depois pousar novamente no banco de couro.
- Eu até pediria uma explicação a esse comentário, mas estou demasiado cansado.
- Daqui a poucos minutos, vai ficar a perceber tudo.
- E vai haver café lá? Boothby soltou uma gargalhada.
- Sim, posso garantir-lhe isso.
- Ótimo. Não se importa que eu aproveite esta oportunidade para dormir uns minutinhos, pois não?
Mas Vicary já tinha adormecido e não ouviu a resposta de Boothby.
O carro parou com um solavanco. Flutuando num sono leve, Vicary sentiu a cabeça cair para a frente e depois para trás. Ouviu o ruído metálico de um puxador de porta a ceder e sentiu uma rajada de ar frio a arranhar-lhe a cara. Acordou de repente. Olhou para a esquerda e pareceu surpreendido por ver Boothby ali sentado. Lançou uma olhadela ao relógio.
Deus do céu, quase oito horas - estavam a andar pelas ruas de Londres há uma hora. Doía-lhe o pescoço por causa da posição incómoda em que tinha adormecido, afundado no banco, com o queixo encostado ao tórax. Tinha a cabeça a latejar e desejava desesperadamente cafeína e nicotina. Agarrou-se ao descanso para o braço e fez força para se endireitar. Espreitou pela janela: a zona leste de Londres, Hoxton, uma horrível fila de casas vitorianas parecida com uma fábrica caída em desgraça. A fila de casas do outro lado da rua tinha sido bombardeada - uma casa aqui, um monte de destroços ali, depois outra casa e a seguir mais destroços - com o aspeto de uma boca com dentes podres.
Ouviu Boothby dizer:
- Acorde, Alfred, chegámos. Mas, afinal, com que raio é que estava a sonhar?
De repente, sentiu-se constrangido. com que tinha sonhado ele de facto? Teria falado durante o sono? Já não sonhava com a França desde - desde quando? -, desde que tinham encurralado Catherine Blake. Interrogou-se se teria sonhado com Helen. Ao sair do carro, foi inundado por uma onda de cansaço e teve de se equilibrar colocando a mão no guarda-lamas traseiro. Boothby pareceu não reparar, já que se encontrava parado no passeio, a fitar Vicary com impaciência e a chocalhar uns trocos que tinha no bolso. A chuva começou
a cair com mais força. De alguma forma, a paisagem desoladora fez com que parecesse estar ainda mais frio. Juntando-se a Boothby no passeio, Vicary respirou fundo,
absorvendo o ar frio e húmido, e de imediato sentiu-se melhor.
Entraram pela porta da frente e Boothby conduziu-o pelo vestíbulo. A casa devia ter sido transformada em apartamentos, já que havia caixas de correio metálicas numa das paredes. Ao fundo do corredor, mesmo em frente da porta, havia uma escadaria. Vicary deixou que a porta se fechasse e foram envolvidos pela escuridão. Estendeu a mão e pôs-se às apalpadelas, à procura de um interruptor - tinha visto ali um, algures. Encontrou-o e carregou nele. Nada.
- Aqui levam o blackout um bocadinho mais a sério do que nós fazemos na zona oeste - disse Boothby.
Vicary tirou uma lanterna para o blackout do bolso do impermeável. Passou-a a Boothby, que o conduziu pelas escadas de madeira acima.
Vicary não conseguia ver quase nada, apenas a silhueta larga de Boothby e uma poça de luz pouco intensa a sair da fraca lanterna. Como um cego, os seus outros sentidos ganharam vida de repente. Foi agraciado com uma parada de cheiros desagradáveis - urina, cerveja morta, desinfetante, ovos secos a fritarem em gordura velha. Depois, os sons - um pai a bater num filho, um casal a discutir, outro casal a fazer amor ruidosamente. Algures, ouviu notas a saírem de um órgão e um coro de vozes masculinas. Perguntou-se se haveria uma igreja ali perto e foi então que se apercebeu de que era somente a BBC. Foi apenas nessa altura que compreendeu que era domingo. A Operação Kettledrum e Catherine Blake tinham-lhe roubado os dias da semana.
Chegaram ao patamar do último andar. Boothby apontou a lanterna para o corredor. A luz refietiu nos olhos amarelos de um gato escanzelado. O animal bufou-lhes, furioso, e depois desatou a fugir. Boothby seguiu o som da cerimónia religiosa. A cantoria tinha terminado e a congregação estava a rezar o pai-nosso. Boothby tinha uma chave. Enfiou-a na fechadura e apagou a lanterna antes de entrar.
Era uma salinha miserável: uma cama por fazer, que não era maior do que a de Vicary no quartel-general do MI5, uma cozinha de navio minúscula, com café a aquecer num bico do fogão, e uma pequena mesa de café, diante da qual estavam dois homens sentados como estátuas a ouvir rádio. Tinham ambos horrendos cigarros Gauloises na boca e o ar estava azul devido ao fumo. As luzes estavam apagadas, com a única iluminação a vir das janelas estreitas que davam para a parte de trás de uma fila de casas na rua seguinte. Vicary aproximou-se da janela e espreitou para uma ruela repleta de lixo. Dois rapazinhos estavam a atirar latas para o ar e a acertarem-lhes com paus. Levantou-se vento, fazendo com que jornais velhos esvoaçassem pelo ar como gaivotas a deslocarem-se em círculos. Boothby estava a deitar o café queimado para dentro de duas canecas em esmalte de aspeto duvidoso. Entregou uma a Vicary e ficou com a outra. O café era tenebroso - amargo e demasiado forte -, mas estava quente e tinha cafeína.
Boothby serviu-se da caneca lascada para fazer as apresentações, inclinando-a primeiro na direção do mais velho e maior dos dois homens.
- Alfred Vicary, apresento-lhe o Pelicano. O nome verdadeiro dele não é esse, atenção, é só o nome de código. Lamento informá-lo, mas não tem direito a saber o nome verdadeiro. Nem eu tenho a certeza se sei o nome verdadeiro dele - atirou, inclinando a caneca para o segundo homem sentado à mesa. - E este sujeito é o Hawke. Isso não é um nome de código, é mesmo o nome verdadeiro dele. Hawke trabalha para nós, não é, Hawke?
Mas Hawke não deu sinal de ter ouvido Boothby falar. Ele não era um Hawke - era mais um Stick ou um Rod ou um Cane1, de tão cadavérico e penosamente magro. O fato barato do tempo de guerra pendia-lhe dos ombros magros como se tivesse sido pendurado num cabide de corpo inteiro. Tinha a palidez de alguém que trabalhava à noite e debaixo do chão. O cabelo louro estava a ficar ralo e rapidamente grisalho, embora ele não fosse mais velho do que os rapazes
1 No original, trocadilho com as palavras hawk, stick, rod e cane, que significam, respetivamente, falcão, pau, vareta e bengala. (N. do T.)
a quem Vicary tinha dado aulas no último período, na universidade. Pegava no Gauloises como um francês, segurando-o entre a ponta do longo polegar e o indicador. Vicary teve a sensação desconfortável de já o ter visto algures - na cantina, talvez, ou a sair dos Registos com uma pilha de dossiês debaixo do braço. Ou teria sido a sair do gabinete de Boothby pela passagem secreta, como tinha visto Grace Clarendon sair naquela outra noite? Hawke não olhou para Vicary. A única altura em que se mexeu foi quando Boothby deu dois passos na sua direção. E mesmo aí limitou-se a desviar a cabeça um centímetro, inclinando-a, e retesou o rosto, como se receasse que Boothby lhe pudesse bater.
A seguir, Vicary olhou para o Pelicano. Podia ser um escritor ou podia ser um trabalhador das docas, podia ser alemão ou podia ser francês. Polaco, talvez - estavam por todo o lado. Ao contrário de Hawke, o Pelicano retribuiu o olhar de Vicary, fitando-o com firmeza e ligeiramente perplexo. Vicary não conseguia ver verdadeiramente os olhos do Pelicano porque ele usava os óculos mais grossos que Vicary já tinha visto, com lentes ligeiramente coloridas, como se fosse sensível a luzes fortes. Por baixo do casaco de cabedal preto, trazia duas camisolas grossas, uma cinzenta e de gola alta e a outra bege e de malha, esfiapada e com ar de ter sido feita por um familiar bem-intencionado e com olhos tão bons como os dele. Fumou o Gauloises até ao fim e depois esmagou-o com a unha partida do polegar grosso.
Boothby tirou o casaco e baixou o som do rádio. A seguir, olhou para Vicary e disse:
- bom, então muito bem. Por onde é que hei de começar?
Hawke não trabalhava para nós, Hawke trabalhava para Boothby.
Boothby conhecia o pai de Hawke. Tinha trabalhado com ele na índia. Nos serviços de segurança. Conheceu o jovem Hawke no Reino Unido, em 1935, num almoço organizado na herdade da família em Kent. O jovem Hawke estava a beber e a falar demasiado, repreendendo o pai e Boothby pelo tipo de trabalho que faziam, recitando Marx e Lenine como se fossem Shakespeare e agitando os braços na direção dos esplêndidos jardins, como fossem prova da corrupção das classes dominantes inglesas. Depois do almoço, o pai
de Hawke sorriu debilmente para Boothby e pediu desculpas pelo comportamento abominável do filho: As crianças hoje em dia... sabe como é... só aprendem parvoíces na escola... uma educação cara que não serve para nada.
Boothby também sorriu. Há imenso tempo que andava à procura de um Hawke.
Boothby recebeu uma nova missão: manter os comunistas debaixo de olho. Em especial nas universidades, em Oxford e Cambridge. O Partido Comunista Britânico, com amor e encorajamento dos seus mestres russos, andava pelas universidades à pesca de novos fiéis para o rebanho. O NKVD andava à procura de espiões. Hawke foi para Oxford trabalhar para Boothby. Boothby seduziu Hawke. Boothby deu rumo a um coração à deriva. Boothby era bom nisso. Hawke andava com os comunistas: bebia com eles, discutia com eles, jogava ténis com eles, fornicava com eles. Quando o Partido o contactou, Hawke disse-lhes para se foderem.
Foi então que o Pelicano o contactou.
Hawke telefonou para Boothby. Hawke era um menino bem-comportado.
O Pelicano era alemão, judeu e comunista. Boothby viu de imediato as possibilidades. Tinha sido um comunista envolvido em lutas de rua na Berlim dos anos 20, mas, com a chegada de Hitler ao poder, achou melhor procurar paragens mais seguras. Emigrou para Inglaterra em 1933. O NKVD sabia da existência do Pelicano e dos tempos que passara em Berlim. Quando descobriram que se tinha instalado em Londres, recrutaram-no para ser seu agente. Supostamente, funcionaria como caçador de talentos, nada de trabalhos pesados. E o primeiro talento que tentou caçar foi o agente de Boothby, Hawke. No encontro seguinte entre Hawke e o Pelicano, Boothby surgiu do nada e aterrorizou-o de morte. O Pelicano aceitou passar a trabalhar para Boothby.
- Ainda me está a acompanhar, Alfred?
A ouvir junto à janela, Vicary pensou: Oh, sim. Na verdade, até estou quatro passos à sua frente.
Em agosto de 1939, Boothby levou Hawke para o MI5. Cumprindo as ordens de Boothby, o Pelicano informou os agentes que o controlavam a partir de Moscovo que o seu recruta principal tinha começado a trabalhar para os serviços secretos britânicos. Moscovo ficou em êxtase. O estatuto do Pelicano subiu em flecha. Boothby serviu-se do Pelicano para transmitir material verdadeiro, mas inofensivo, aos russos, todo ele supostamente oriundo da fonte no interior do MI5, Hawke, e tudo informações que os russos podiam confirmar por outras fontes. O estatuto do Pelicano disparou ainda mais.
Em novembro de 1939, Boothby enviou o Pelicano para a Holanda. Um jovem e arrogante agente dos serviços secretos das SS chamado Walter Schellenberg costumava viajar regularmente para território holandês, sob um nome falso, para se encontrar com dois agentes do MI6.
Schellenberg estava a fazer-se passar por membro da Schwarze Kapelle e a pedir auxílio aos britânicos. Na realidade, queria que os britânicos lhe fornecessem os nomes de verdadeiros traidores alemães para os poder prender. O Pelicano encontrou-se com Schellenberg, num café de uma cidadezinha holandesa logo a seguir à fronteira, e ofereceu-se para trabalhar para ele como espião no Reino Unido. Admitiu que tinha feito um ou outro trabalho para o NKVD, incluindo recrutar um rapaz de Oxford chamado Hawke, que tinha acabado de ingressar no MI5 e com quem o Pelicano continuava a contactar regularmente. Em sinal de boa-fé, deu um presente a Schellenberg, uma coleção de arte erótica asiática. Schellenberg entregou ao Pelicano mil libras, uma máquina fotográfica e um rádio transmissor e mandou-o voltar para o Reino Unido.
Em 1940, o MI5 sofreu uma reorganização. Vernon Kell, o antigo diretor-geral que fundara o departamento em 1909, foi abruptamente despedido por Churchill. Sir David Petrie assumiu o controlo.
Boothby conhecia-o da índia. Boothby foi enviado para o andar de cima. Passou o Pelicano para um responsável operacional - um amador como o Alfred, mas um advogado, não um professor-, mas manteve-o bem sob controlo. O Pelicano era demasiado importante para ser deixado nas mãos de alguém que mal sabia o caminho para a cantina. Além disso, as negociatas entre o Pelicano e Schellenberg estavam a ficar muitíssimo interessantes.
Schellenberg ficou impressionado com os primeiros relatórios do Pelicano. O material era fidedigno, mas tudo coisas inofensivas produção de munições, movimentos de tropas, avaliação de danos provocados por bombas. Schellenberg absorveu tudo vorazmente, embora soubesse que isso vinha de um judeu comunista que tinha trabalhado como caçador de talentos para o NKVD. Ele e o resto das SS desprezavam Canaris e os oficiais de carreira dos serviços secretos da Abwehr. Desconfiavam das informações que Canaris estava a fornecer a Hitler. Schellenberg viu a sua oportunidade. Podia criar uma rede distinta no Reino Unido, que reportasse diretamente a ele e a Heinrich Himmler, passando por cima da Abwehr por completo.
Boothby também viu uma oportunidade. Podia servir-se da rede do Pelicano para dois objetivos: verificar as informações falsas que estavam a ser enviadas a Canaris através do sistema da Operação Double Cross e, ao mesmo tempo, semear a desconfiança entre as duas organizações rivais dos serviços secretos. Era um equilíbrio difícil de manter. O MI5 queria que Canaris continuasse a ocupar o cargo - afinal de contas, a sua agência encontrava-se totalmente comprometida e manipulada -, mas um pouco de intriga palaciana também era bom. Os serviços secretos britânicos podiam atiçar suavemente as chamas da dissensão e da traição. Boothby começou a passar informações a Schellenberg, através do Pelicano, que levantavam dúvidas sobre a lealdade de Canaris - não de modo a Schellenberg espetar um punhal nas costas da Velha Raposa, atenção, mas apenas o suficiente para pôr o raio da arma nas mãos dele.
Em 1942, Boothby achou que o jogo estava a ficar descontrolado. Schellenberg compilou uma extensa lista dos pecados de Canaris e apresentou-a a Himmler. O Comité da Operação Double Cross resolveu dar uma mãozinha a Canaris para o ajudar a desfazer o nó que lhe
apertava o pescoço - informações de qualidade superior que poderia mostrar ao Fúhrer para comprovar a eficácia da Abwehr. Resultou. Himmler enfiou o dossiê de Schellenberg na gaveta e a Velha Raposa manteve-se no cargo.
Boothby estava a servir-se de mais uma caneca do café repugnante. Vicary não tinha sido capaz de terminar a primeira caneca. Estava encostada à janela, bebida até metade, ao lado de uma traça morta que se estava a transformar lentamente em pó. O vento tinha afugentado os dois rapazinhos da ruela. Soprava em rajadas, lançando chuva contra o vidro da janela. A sala estava às escuras. O silêncio tinha tomado conta da casa após as atividades da manhã. O único som que se ouvia era o ranger do soalho por baixo dos pés impacientes de Boothby, a andar de um lado para o outro. Vicary desviou os olhos da janela e observou-o. Parecia deslocado naquele apartamento imundo - como um padre num prostíbulo -, mas tinha o ar de quem se estava a divertir imenso. Às vezes, até os espiões gostam de contar segredos.
Boothby enfiou a mão no bolso do peito do fato, tirou uma única folha de papel e entregou-a a Vicary. Era o memorando que este tinha escrito a Boothby umas semanas antes, pedindo-lhe que emitisse um alerta de segurança. Vicary olhou para o canto superior esquerdo: tinha sido carimbado com a palavra ação. Ao lado do carimbo, estavam duas iniciais praticamente ilegíveis: BB. Boothby estendeu a mão para que Vicary lhe devolvesse a folha. A seguir, passou-a ao Pelicano.
O Pelicano mexeu-se pela primeira vez. Pousou o memorando de Vicary em cima da mesa e acendeu a luz. Parado ao lado dele, Vicary conseguiu ver o Pelicano a semicerrar os olhos desconfortavelmente por trás das lentes escuras. Depois, tirou do bolso uma máquina fotográfica de fabrico alemão, a mesma que Schellenberg lhe tinha dado em 1940. Tirou, com todo o cuidado, dez fotografias ao documento, como um profissional, ajustando a luz e o ângulo da máquina de cada vez, para garantir que possuía pelo menos um negativo nítido. A seguir, levantou a máquina e apontou-a a Hawke. A máquina clicou duas vezes e ele voltou a guardá-la no bolso.
O Pelicano vai hoje à noite para Lisboa - revelou Boothby.
Schellenberg e os amigos pediram para se reunirem com ele.
Achamos que vão apertar com ele a fundo. Mas antes de começarem a interrogá-lo, o Pelicano vai dar-lhes este rolo de fotografias. Da próxima vez que Schellenberg e Canaris forem passear a cavalo pelo Tiergarten, Schellenberg vai falar-lhe disso. Canaris e Vogel vão ver nisso a prova de que o material da Operação Kettledrum é excelente. A agente deles não ficou exposta. Os serviços secretos britânicos estão em pânico. Por isso mesmo, as informações que ela anda a enviar sobre a Operação Mulberry só podem ser corretas. Está a perceber, Alfred?
Vicary e Boothby foram-se embora primeiro, com Boothby à frente e Vicary outra vez atrás. Descer as escadas às escuras foi mais difícil do que subi-las. Por duas vezes, Vicary teve de esticar a mão no meio da escuridão e segurar-se ao ombro macio do casaco de caxemira de Boothby. O gato voltou a aparecer e bufou-lhes a um canto. Os cheiros desagradáveis eram os mesmos, só que a ordem tinha sido invertida. Chegaram ao início das escadas. Vicary sentiu as solas dos sapatos a rasparem no linóleo sujo do vestíbulo. Boothby empurrou a porta, abrindo-a. Ao avançar para a rua, Vicary sentiu a chuva na cara.
Nunca na vida tinha ficado tão feliz por sair de um sítio. Enquanto voltavam para o carro, observou Boothby, que estava a observá-lo. Vicary sentia-se como se tivesse acabado de espreitar através do espelho. Boothby tinha-lhe proporcionado uma visita guiada a um mundo secreto de logro que nunca tinha imaginado que existisse. Vicary entrou para o carro. Boothby sentou-se ao lado dele e fechou a porta. Levaram-nos para Kingsland Road e depois para sul, em direção ao rio. Vicary olhou uma vez de relance para Boothby e, a seguir, desviou o olhar. Boothby parecia satisfeito consigo próprio.
Vicary disse:
- Não precisava de me mostrar tudo aquilo. Porque o fez?
- Porque quis.
- E o que aconteceu à necessidade de saber? Não era necessário eu saber tudo aquilo. Podia ter feito chegar o meu memorando a Schellenberg sem nunca me contar nada acerca disso.
- É verdade.
- Então porque o fez, para me impressionar?
- De certa forma, sim - respondeu Boothby. - O Alfred deixou imensa gente impressionada com a sua ideia de deixar que a Catherine Blake continuasse infiltrada, incluindo eu. Dei-me conta de que o tinha subestimado, Alfred... a sua inteligência e a sua implacabilidade. É preciso ser-se um sacana impiedoso para fazer Peter Jordan voltar para aquele quarto com uma pasta cheia de material da Operação Double Cross. Quis mostrar-lhe o nível seguinte do jogo.
- É assim que vê isto, Sir Basil, como um jogo?
- Não é só um jogo, Alfred, é o jogo.
Boothby sorriu. Podia ser a sua maior arma. Contemplando-lhe a cara, Vicary imaginou que fosse o mesmo sorriso que ele utilizava para a mulher, Penelope, quando lhe assegurava que tinha desistido do seu amorzinho mais recente.
A ilusão da Operação Kettledrum exigia que Vicary passasse grande parte do dia no seu exíguo gabinete em St. James's Street afinal de contas, estavam a tentar convencer
a Abwehr, e o resto do departamento, de que Vicary continuava a perseguir um agente alemão com acesso a material ultrassecreto. Fechou a porta e sentou-se à secretária.
Precisava desesperadamente de dormir. Deitou a cabeça na secretária, como um aluno sonolento, e fechou os olhos. Quando o fez, regressou de imediato ao apartamento imundo em Hoxton. Viu o Pelicano e viu Hawke. Viu os rapazinhos na ruela suja, com pernas pálidas e malnutridas a saírem-lhes dos calções. Viu a traça a transformar-se em pó. Ouviu a música de órgão a ecoar pela imponente catedral. Pensou em Matilda; foi acometido de rompante por um sentimento de culpa por ter faltado ao funeral dela, como se lhe tivessem despejado água quente pelo pescoço.
Raios. Porque não consigo desligar só por uns minutos e adormecer?
Foi nessa altura que viu Boothby a andar a passos largos pelo apartamento, contando a história de Hawke e do Pelicano e o intrincado logro que tinha impingido a Walter Schellenberg. Apercebeu-se de que nunca tinha visto Boothby tão feliz: Boothby no terreno, rodeado pelos seus agentes, Boothby a beber um café tenebroso por uma caneca em esmalte lascada. Apercebeu-se de que se tinha enganado em relação a Boothby ou, mais precisamente, de que tinha sido enganado por Boothby. O departamento inteiro tinha sido. Boothby era uma mentira. O burocrata cómico, a pavonear-se pelo gabinete majestoso, as máximas tontas, a luz vermelha e a luz verde, a obsessão ridícula com as manchas de humidade na prezada mobília - era tudo mentira. Basil Boothby não era isso. Basil Boothby não era um manga de alpaca. Basil Boothby controlava agentes. Era um mentiroso. Um manipulador. Um enganador. Ao adormecer, Vicary descobriu que abominava Boothby um bocadinho menos. Mas uma coisa apoquentava-o. Por que razão tinha Boothby levantado o véu? E porquê naquela altura?
Vicary sentiu-se cair num sono sem sonhos. Ao longe, o Big Ben marcou as dez horas. Os sinos deixaram de se ouvir, apenas para serem substituídos pelo barulho abafado dos teleimpressores, do lado de lá da porta fechada. Queria dormir durante muito tempo. Queria esquecer tudo por uns minutos apenas. Mas, passado pouco tempo, começaram
as sacudidelas, primeiro, suaves, depois, violentas. A seguir, o som da voz de uma rapariga - primeiro, dócil e agradável, depois, ligeiramente assustada.
- Professor Vicary... Professor Vicary. Acorde, por favor. Professor Vicary. Consegue ouvir-me?
com a cabeça ainda apoiada nas mãos entrelaçadas, Vicary abriu os olhos. Por um instante, pensou ser Helen. Mas era apenas Prudence, um anjo louro do grupo das datilógrafas.
- Peço imensa desculpa por o acordar, professor Vicary. Mas Harry Dalton está ao telefone e diz que é urgente. Deixe-me trazer-Ihe uma chávena de chá quente.
QUARENTA E UM
LONDRES
Catherine Blake saiu do seu apartamento pouco antes das onze horas, com uma chuva miudinha e fria a cair. Os céus cada vez mais escuros prometiam que o tempo ainda iria piorar. Faltavam três horas para ela se encontrar com Neumann. Em dias feios como aquele, sentia-se tentada a saltar o ritual dos meticulosos passeios por Londres e seguir diretamente para o local do encontro. Era um trabalho monótono e esgotante, estar constantemente a parar e a verificar se estava a ser seguida, a saltar para dentro e fora de metros e a entrar e sair de táxis. Mas era necessário, especialmente naquela altura.
Parou à porta do prédio, dando um nó ao lenço por baixo do queixo e olhando para a rua. Uma manhã de domingo tranquila, pouco trânsito, as lojas ainda fechadas. Só o café do outro lado da rua estava aberto. Um homem careca estava sentado à mesa da janela a ler o jornal. Levantou os olhos por um instante, virou a página e voltou a baixá-los.
A frente do café, meia dúzia de pessoas esperavam por um autocarro. Catherine olhou para as caras delas e achou que já tinha visto uma, talvez na paragem de autocarro, talvez noutro sítio. Olhou para os apartamentos do outro lado da rua. Se te estiverem a vigiar,
vão fazê-lo de uma posição fixa, um apartamento do outro lado da rua ou um quarto por cima de uma loja. Sondou as janelas à procura de alguma alteração, de alguma cara que estivesse a olhar para ela. Não viu nada. Acabou de atar o
lenço, abriu o guarda-chuva e começou a andar pela rua molhada.
Apanhou o primeiro autocarro em Cromwell Road. Estava praticamente vazio: duas senhoras de idade; um velho a murmurar para si próprio; um homem franzino que tinha feito mal a barba usava um jmpermeável encharcado e lia o jornal. Catherine saiu em Hyde Park Corner. O homem do jornal também. Catherine dirigiu-se para o parque. O homem do jornal seguiu na direção contrária, para Piccadilly. O que tinha Vogel dito sobre os vigias do MI5? Homens para quem não olharias duas vezes quando passasses
por eles na rua. Se Catherine estivesse a selecionar homens para serem vigias do MI5, teria escolhido o homem do jornal.
Seguiu para norte por um trilho que fazia fronteira com Park Lane. Na ponta norte do parque, em Bayswater Road, deu meia-volta e voltou para Hyde Park Corner. A
seguir, deu nova meia-volta e fez outra vez o caminho para norte. Estava segura de que não havia ninguém a segui-la a pé. Andou um pouco por Bayswater Road. Parou junto a um marco de correio e enfiou pela ranhura um envelope vazio e em branco, aproveitando a oportunidade para verificar uma vez mais se a seguiam. Nada. As nuvens adensaram-se e a chuva começou a cair com mais força. Arranjou um táxi e deu uma morada em Stockwell ao taxista.
Catherine recostou-se no banco, observando os padrões da chuva a escorrer pelo vidro da janela. Quando atravessaram a ponte de Battersea, houve uma rajada de vento, fazendo com que o táxi estremecesse. Ainda havia muito pouco trânsito. Catherine voltou-se e espreitou pela pequena abertura de um dos vidros traseiros. Atrás deles, talvez a uns duzentos metros de distância, ia uma carrinha preta. Ela conseguia ver duas pessoas na parte da frente.
Catherine virou-se outra vez para a frente e reparou que o taxista a estava a observar pelo retrovisor. Os olhos deles cruzaram-se por breves instantes; a seguir, ele pôs-se a olhar novamente para a estrada. Por instinto, Catherine enfiou a mão na carteira e tocou no cabo da faca de ponta e mola. O táxi cortou para uma rua com filas de casas vitorianas idênticas e desoladas. Não havia sinal de vivalma: nada de trânsito, nada de peões no passeio. Catherine voltou a virar-se. A carrinha preta já lá não estava.
Acalmou-se. Estava especialmente ansiosa que o encontro daquele dia se realizasse. Queria saber a resposta de Vogel ao pedido para
a tirarem de Inglaterra. Parte dela desejava nunca o ter enviado. Tinha a certeza de que o MI5 se estava a aproximar cada vez mais; tinha cometido erros terríveis. Mas, ao mesmo tempo, andava a recolher informações extraordinárias do cofre de Peter Jordan. Na noite anterior, tinha fotografado um documento com a insígnia do SHAEF, uma espada e um escudo, e um carimbo que dizia MUITO SECRETO. Era bem possível que estivesse a roubar o segredo da invasão. Da posição em que se encontrava, não podia ter a certeza - o projeto de Peter Jordan era apenas uma peça de um quebra-cabeças gigantesco e complexo. Mas, em Berlim, onde estavam a tentar montar esse quebra-cabeças, as informações que estava a tirar do cofre de Peter Jordan poderiam ser de um valor incalculável, ouro puro. Deu por si a querer continuar, mas porquê? Era ilógico, claro. Nunca quisera ser espia; tinha sido chantageada por Vogel. Nunca tinha sentido grande lealdade para com a Alemanha. Na verdade, Catherine não sentia lealdade para com nada nem por ninguém - calculava que fosse isso que fazia dela uma boa agente. Mas havia outra coisa. Vogel sempre lhe chamara um jogo. bom, ela estava viciada no jogo. Gostava do desafio do jogo. E queria ganhar o jogo. Não queria roubar o segredo da invasão para que a Alemanha pudesse vencer a guerra e os nazis governarem a Europa durante mil anos. Queria roubar o segredo da invasão para provar que era a melhor, melhor do que todos os idiotas incompetentes enviados para Inglaterra pela Abwehr. Queria mostrar a Vogel que se podia sair melhor do que ele no seu próprio jogo.
O táxi parou. O taxista virou-se para trás e perguntou:
- Tem a certeza de que é aqui?
Ela olhou pela janela. Tinham parado junto a uma fila de armazéns bombardeados e abandonados. As ruas estavam desertas. Se alguém a estivesse a seguir, não podia passar despercebido ali. Pagou ao taxista e saiu. O táxi afastou-se. Passados uns segundos, uma carrinha preta aproximou-se, com dois homens à frente. Passou por ela e seguiu pela estrada fora. A estação de metro de Stockwell ficava perto dali. Abriu o guarda-chuva para se proteger, avançou depressa até à estação e comprou um bilhete para Leicester Square. O metro estava prestes a partir quando ela chegou à plataforma. Entrou na carruagem antes que as portas se fechassem e arranjou um lugar.
Parado à frente de uma porta perto de Leicester Square, Horst Neumann estava a comer fish & chips embrulhados em papel de jornal. Engoliu o último bocado de peixe
e sentiu-se imediatamente agoniado. Avistou-a a entrar na praça, no meio de um pequeno emaranhado de pessoas. Amarrotou o papel de jornal oleoso, deitou-o num caixote
do lixo e seguiu-a. Passado um minuto, colocou-se ao lado dela. Catherine continuou a olhar em frente, como se não soubesse que Neumann estava a caminhar ao seu
lado. Estendeu a mão e enfiou o rolo na dele. Sem dizer nada, Neumann entregou-lhe um papelinho. Separaram-se. Neumann sentou-se num banco da praça e ficou a vê-la
ir-se embora.
Alfred Vicary perguntou:
- E o que aconteceu a seguir?
- Ela entrou na estação de metro de Stockwell - respondeu Harry. - Enviámos um homem para lá, mas ela já tinha apanhado o metro e partido.
- Maldição - murmurou Vicary.
- Metemos um homem nesse metro, em Waterloo, e recomeçámos a segui-la.
- E quanto tempo é que ela esteve sozinha?
- À volta de cinco minutos.
- Tempo mais do que suficiente para se encontrar com outro
agente.
- Receio bem que sim, Alfred.
- E depois?
- A rotina do costume. Fez os vigias percorrerem o West End inteiro durante uma hora e meia. Lá acabou por entrar num café e deu-nos meia hora de descanso. A seguir,
foi para Leicester Square. Atravessou a praça e voltou para Earl's Court.
- Não houve contacto com ninguém?
- Nenhum que tivéssemos observado.
- Então e em Leicester Square?
- Os vigias não viram nada.
- E o marco de correio em Bayswater Road?
- Confiscámos o que estava lá dentro. Encontrámos um envelope vazio e em branco no cimo da pilha de correspondência. Foi só um estratagema para verificar se estava a ser seguida.
- Raios partam, ela é mesmo boa.
- É uma profissional.
Vicary juntou os dedos, pensativamente.
- Não me parece que ela ande por aí às voltas só porque gosta de apanhar ar, Harry. Das duas uma: ou fez uma entrega clandestina em algum sítio predeterminado ou
se encontrou com um agente.
- Deve ter sido no metro - disse Harry.
- Raios, pode ter sido em qualquer sítio! - retorquiu Vicary, batendo com o braço na cadeira. - Maldição!
- Temos de continuar a segui-la e pronto. Mais tarde ou mais cedo, ela vai cometer um erro.
- Eu não contaria com isso, Harry. E quanto mais tempo a mantivermos sob vigilância apertada, maiores serão as hipóteses de ela detetar que a estão a seguir. E se ela detetar que a estão a seguir...
- ... estamos arrumados - continuou Harry, completando-lhe o pensamento.
- Exato, Harry. Estamos arrumados.
Vicary soltou os dedos para abafar com a mão um longo bocejo;
- Falou com a Grace?
- Sim. Ela investigou os nomes de todas as formas e feitios. Não descobriu nada.
- E em relação à palavra Broome?
- A mesma coisa. Não é o nome de código de nenhuma operação ou agente - respondeu Harry, olhando para Vicary durante um longo momento. - Quer explicar-me agora porque pediu à Grace para investigar esses nomes?
Vicary olhou para cima e fitou Harry olhos nos olhos.
- Se o fizesse, o Harry mandava-me internar. Não é nada, são só os meus olhos a pregarem-me partidas.
Vicary olhou para o relógio e bocejou outra vez.
- Tenho de informar Boothby e ir buscar a próxima leva de material para a Operação Kettledrum.
- Então vamos avançar?
- A não ser que Boothby diga o contrário, vamos avançar.
- E no que está a pensar para hoje à noite?
Vicary fez um esforço para se levantar e vestiu o impermeável.
- Achei que ir jantar e dançar um pouco ao Four Hundred Club seria uma mudança agradável de registo. vou precisar de alguém lá dentro para ficar de olho neles. Porque não convida a Grace para ir consigo? Passam uma noite agradável à custa do departamento.
QUARENTA E DOIS
BERCHTESGADEN
- Sentir-me-ia melhor se aqueles sacanas fossem à nossa frente e não atrás de nós - desabafou Wilhelm Canaris taciturnamente, com o Mercedes oficial a avançar a grande velocidade pela autoestrada de betão, a caminho da aldeiazinha de Berchtesgaden, do século XVI.
Vogel voltou-se e espreitou pelo vidro de trás. Atrás deles, num segundo carro oficial, iam o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e o Brigadefúhrer Walter Schellenberg.
Vogel virou a cabeça e olhou pelo vidro da sua própria janela. A neve caía suavemente sobre a pitoresca aldeia. com o mau humor com que estava, achou que isso fazia o sítio parecer um postal barato. Visite a linda Berchtesgaden! A terra do Fuhrer! Estava irritado por ter sido arrastado para tão longe de Tirpitz Ufer numa altura tão crucial. Pensou: Porque é que ele não pode ficar em Berlim como todos nós? Está sempre enfiado no Wolfschanze, em Rastenburg, ou no cimo do seu Adlerhorst, na Baviera.
Vogel tinha resolvido tirar algum proveito da viagem; estava a contar jantar e passar a noite com Gertrude e as meninas. Estavam em casa da mãe de Trude, numa aldeia a duas horas de carro de Berchtesgaden. Meu Deus, já tinha passado tanto tempo! Um dia no Natal; e, antes disso, dois dias em outubro. Ela tinha-lhe prometido um jantar com porco assado, batatas e couves e, com aquele seu tom de voz brincalhão, prometera também fazer coisas maravilhosas ao corpo
dele, em frente à lareira, quando as crianças e os pais dela já estivessem deitados. Trude gostava sempre de fazer amor dessa maneira, num sítio inseguro, onde pudessem ser apanhados. Havia qualquer coisa nisso que tornava tudo mais excitante para ela, como tinha acontecido vinte anos antes, quando ele estava a estudar em Leipzig. Para Vogel, o entusiasmo já se tinha perdido há muito. A responsabilidade era dela - uma responsabilidade intencional -, como castigo por ele a ter enviado para
Inglaterra.
Olha para mim e lembra-te disto da próxima vez que estiveres com a tua mulher.
Vogel pensou: Meu Deus, porque estou a pensar nisso agora? Tinha conseguido esconder os seus sentimentos de Gertrude, tal como tinha conseguido esconder tudo o resto
dela. Não era um mentiroso nato, mas tinha-se transformado num bom mentiroso. Gertrude ainda julgava que ele era um conselheiro interno de Canaris. Não fazia ideia de que era o agente que controlava a rede de espiões mais secreta da Abwehr no Reino Unido. Como de costume, tinha-lhe mentido em relação ao que iria fazer naquele dia. Trude pensava que ele estava na Baviera a tratar de um assunto de rotina para Canaris - e não a subir a montanha Kehlstein para informar o Fúhrer dos planos do inimigo para invadir a França. Vogel tinha medo de que ela o deixasse se soubesse a verdade. Tinha-lhe mentido demasiadas vezes, tinha-a enganado durante demasiado tempo. Nunca mais voltaria a confiar nele. Pensava frequentemente que seria mais fácil falar-lhe de Anna do que confessar que tinha sido um mestre espião ao serviço de Hitler.
Canaris estava a dar biscoitos aos cães. Vogel olhou para ele de relance e, a seguir, desviou o olhar. Seria realmente possível? Seria o homem que o tinha arrancado do direito e transformado num espião de topo ao serviço da Abwehr um traidor? Sem dúvida que Canaris não tentava esconder minimamente o seu desprezo pelos nazis
- a recusa em filiar-se no partido, o fluxo constante de comentários sarcásticos sobre Hitler. Mas será que o desprezo se tinha transformado em traição? Se Canaris fosse um traidor, as consequências para as redes da Abwehr no Reino Unido seriam desastrosas; Canaris estava numa posição que lhe permitiria revelar tudo. Vogel pensou: Se
Canaris é um traidor, porque é que a maior parte das redes da Abwehr em Inglaterra continua a funcionar? Não fazia sentido. Se Canaris tivesse traído as redes, os britânicos tê-las-iam desativado de um dia para o outro. O mero facto de a grande maioria dos agentes alemães enviados para Inglaterra ainda continuar infiltrada podia ser considerado uma prova de que Canaris não era um traidor.
Teoricamente, a rede controlada por Vogel era imune à traição. Segundo o acordo entre ambos, Canaris tinha apenas conhecimento de pormenores muito vagos sobre a Corrente-V. Os agentes de Vogel não se cruzavam com os outros agentes. Tinham os seus próprios códigos para comunicação por rádio, procedimentos para encontros e linhas de financiamento específicas. E Vogel mantinha-se longe de Hamburgo, o centro de controlo das redes inglesas. Lembrou-se de alguns dos idiotas que Canaris e os outros agentes de controlo tinham enviado para Inglaterra, especialmente no verão de 1940, altura em que a invasão do Reino Unido parecia iminente e Canaris mandou a prudência às urtigas. Esses agentes estavam mal treinados e mal financiados. Vogel sabia que alguns tinham recebido apenas duzentas libras - uma miséria - porque a Abwehr e o estado-maior acreditavam que o Reino Unido cairia tão facilmente como a Polónia e a França. Quase todos os novos agentes eram uns imbecis, como o idiota do Karl Becker, um tarado, um glutão, que só andava metido na espionagem pelo dinheiro e pela aventura. Vogel interrogava-se como conseguia um homem desses não ser capturado. Vogel não gostava de aventureiros. Não confiava em ninguém que quisesse realmente penetrar nas linhas do inimigo para trabalhar como espião; só um parvo quereria fazer realmente isso. E os parvos dão maus agentes. Vogel queria apenas pessoas com os atributos e a inteligência necessários para serem bons espiões. O resto - a motivação, as artes do ofício, a prontidão para recorrer à violência quando necessário - providenciava ele.
Lá fora, a temperatura estava a baixar abruptamente à medida que iam subindo a sinuosa Kehlsteinstrasse. O motor do carro trabalhava cada vez com mais dificuldade, com os pneus a derraparem na superfície gelada da estrada. Passados uns momentos, o motorista parou diante de duas enormes portas em bronze, no sopé da montanha Kehlstein. Uma equipa de homens das SS executou uma rápida
revista e, a seguir, um botão foi acionado e as portas abriram-se. O carro abandonou o turbilhão de neve da Kehlsteinstrasse e entrou num longo túnel. As paredes de mármore brilhavam com a luz que saía dos candeeiros de bronze.
O famoso elevador de Hitler aguardava-os. Mais parecia um pequeno quarto de hotel, com uma carpete sumptuosa, cadeiras de couro muito confortáveis e uma série de telefones. Vogel e Canaris entraram primeiro. Canaris sentou-se e acendeu de imediato um cigarro, estando o elevador já cheio de fumo quando Himmler e Schellenberg lá entraram. Os quatro homens sentaram-se em silêncio, cada um olhando em frente, enquanto o elevador os transportava rapidamente em direção ao Obersalzberg1, mil e oitocentos metros acima de Berchtesgaden. Irritado com o fumo, Himmler levou a mão enluvada à boca e tossiu suavemente.
Os ouvidos de Vogel estalaram com a mudança rápida de altitude. Olhou para os três homens que subiam consigo no elevador, os três mais poderosos oficiais dos serviços secretos do Terceiro Reich um criador de frangos, um tarado e um almirantezinho niquento que podia muito bem ser um traidor. Era nas mãos desses homens que estava o futuro da Alemanha.
Vogel pensou: Que Deus nos ajude a todos.
O gigante nórdico que chefiava a equipa de guarda-costas das SS de Hitler conduziu-os ao salão. Normalmente indiferente a cenários naturais, Vogel ficou boquiaberto com a beleza da vista panorâmica. Lá em baixo, conseguia ver os campanários e as colinas de Salzburgo, o local de nascimento de Mozart. Perto de Salzburgo, estava a Untersberg, a montanha onde o imperador Frederico Barba Ruiva aguardou o seu lendário chamamento para dar início às suas conquistas e restaurar a glória da Alemanha. A sala de estar propriamente dita tinha quinze metros por dezoito metros, e quando conseguiu chegar à área onde as pessoas se sentavam, ao lado da lareira, Vogel sentia-se tonto devido à altitude. Instalou-se no canto de um sofá
1. Retiro montanhoso. (N. do L.)
rústico, perscrutando as paredes com os olhos. Estavam repletas de enormes pinturas a óleo e tapeçarias. Vogel olhou com admiração para a coleção do Fúhrer - um
nu que se julgava ter sido pintado por Ticiano, uma paisagem da autoria de Spitzweg, ruínas romanas por Pannini. Estavam lá um busto de Wagner e um amplo relógio
com uma águia de bronze no topo. Um empregado serviu discretamente café aos convidados e chá a Hitler. Passado um momento, as portas abriram-se de rompante e Hitler avançou ruidosamente pela sala dentro. Como de costume, Canaris foi o último a levantar-se. O Fúhrer fez-lhes sinal para se voltarem a sentar e depois continuou em pé para poder andar de um lado para o outro da sala.
- Capitão Vogel - disse Hitler, sem qualquer preâmbulo -, pelo que sei, o seu agente em Londres conseguiu mais um golpe de mestre.
- Acreditamos que sim, meu Fúhrer.
- Por favor, vamos lá a desvelar esse segredo.
Sob o olhar atento de um homem das SS, Vogel abriu a pasta.
- O nosso agente roubou outro documento importante. Este documento fornece-nos pistas adicionais sobre a natureza da Operação Mulberry.
Vogel hesitou e, a seguir, disse:
- Agora, podemos prever com muito maior certeza qual é o papel exato que a Mulberry vai desempenhar na invasão.
Hitler assentiu com a cabeça.
- Por favor, continue, capitão Vogel.
- com base nos novos documentos, acreditamos que a Operação Mulberry é um complexo antiaéreo. Será desembarcado na costa francesa, numa tentativa de fornecer proteção contra a Luftwaffe durante as primeiras e decisivas horas da invasão do inimigo - explicou Vogel, enfiando novamente a mão na pasta. - Os nossos analistas utilizaram as plantas presentes no documento do inimigo para fazer um esboço do complexo.
Vogel colocou-o em cima da mesa. Schellenberg e Himmler observaram-no com interesse.
Hitler tinha-se afastado e estava a contemplar as suas montanhas através das janelas. Achava que pensava melhor quando estava em Berghof, onde se encontrava acima de tudo.
E, na sua opinião, onde é que o inimigo vai desembarcar esse
complexo antiaéreo, capitão Vogel?
As plantas roubadas pelo nosso agente não especificam onde
é que a Mulberry vai ser desembarcada - respondeu Vogel. - Mas, com base nas restantes informações recolhidas pela Abwehr, seria lógico concluir que a Mulberry tem como destino Calais.
- E a sua antiga teoria sobre um porto artificial na Normandia?
- Era... - retorquiu Vogel, hesitando, à procura da palavra certa - prematura, meu Fúhrer. Precipitei-me nas minhas conclusões. Dei um veredicto sem que as provas estivessem todas disponíveis. Sou advogado de formação, meu Fúhrer, por isso, peço desculpa pela metáfora.
- Não, capitão Vogel, acho que tinha razão da primeira vez. Acho que a Mulberry é um porto artificial. E acho que tem como destino a Normandia - afirmou Hitler, virando-se para quem o estava a ouvir. - Isto é mesmo típico do Churchill, esse louco! Uma engenhoca grandiosa e disparatada que revela as intenções dele porque nos diz onde é que ele e os amigos americanos vão atacar! O homem acha-se um grande pensador! Um grande estratega! Mas é um imbecil no que diz respeito a assuntos militares! Basta perguntar aos fantasmas dos rapazes que ele enviou para a carnificina do estreito de Dardanelos. Não, capitão Vogel, acertou da primeira vez. É um porto artificial e tem como destino a Normandia. Sei isso - declarou Hitler, batendo com força no peito. - Sei isso aqui.
Walter Schellenberg aclarou a garganta.
- Meu Fúhrer, a verdade é que temos outras provas que reforçam as informações do capitão Vogel.
- Vamos lá a ouvi-las, Herr Brigadefúhrer.
- Há dois dias, em Lisboa, fui informado por um dos nossos agentes em Inglaterra.
Vogel pensou: Oh, Jesus, cá vamos nós outra vez. Schellenberg tirou um documento da pasta.
- Isto é um memorando escrito por um responsável operacional do MI5, de seu nome Alfred Vicary. Foi aprovado por alguém com as iniciais BB e remetido a Churchill e a Eisenhower. Nele, Vicary alerta para uma nova ameaça à segurança e afirma que devem ser
tomadas precauções adicionais até novas ordens. E Vicary também alerta para a necessidade de todos os agentes aliados se mostrarem especialmente cuidadosos com as abordagens feitas por mulheres. O seu agente em Londres... é uma mulher, não é, capitão Vogel? Vogel retorquiu:
- Posso ver isso?
Schellenberg entregou-lhe o documento. Hitler disse:
- Alfred Vicary. Porque é que esse nome me parece familiar? Canaris respondeu:
- Vicary é amigo pessoal de Churchill. Fazia parte do grupo de pessoas a que Churchill dava ouvidos durante a década de 30. Churchill levou-o para o MI5 quando se tornou primeiro-ministro, em maio de 1940.
- Sim, já me lembro. Não foi ele que escreveu uma série de artigos infames sobre o nacional-socialismo durante os anos 30?
Canaris pensou: E todos eles se revelaram verdadeiros. Respondeu:
- Sim, foi ele.
- E quem é BB?
- Basil Boothby. O chefe de uma divisão do MI5.
Hitler estava outra vez a percorrer a sala, mas lentamente. O sossego dos silenciosos Alpes surtia sempre um efeito tranquilizador nele.
- Vogel, Schellenberg e Canaris estão todos convencidos. Pois bem, eu não.
- Uma interessante reviravolta nos acontecimentos, não acha, Herr Reichsfúhrer?
A tempestade tinha passado. Hitler estava a observar o Sol a desaparecer a ocidente, com os picos das montanhas a tomarem tons púrpura e cor-de-rosa à luz do crepúsculo alpino. Toda a gente se tinha ido embora menos Himmler.
- Primeiro, o capitão Vogel diz-me que a Operação Mulberry é um porto artificial; depois, que é um complexo antiaéreo.
- Bastante interessante, meu Fúhrer. Tenho as minhas teorias. Hitler afastou-se da janela.
- Conte-mas.
- Número um: ele está a dizer a verdade. Recebeu novas informações, confia nelas e acredita verdadeiramente no que acabou de lhe contar.
- Possível. Continue.
- Número dois: as informações que acabou de lhe apresentar são totalmente falsas e Kurt Vogel, tal como o seu superior Wilhelm Canaris, é um traidor determinado a destruir o Fúhrer e a Alemanha.
Hitler cruzou os braços e inclinou-se para trás.
- E porque é que eles haviam de nos enganar a propósito da invasão?
- Se o inimigo for bem-sucedido em França e o povo alemão vir que a guerra está perdida, Canaris e o resto da escumalha da Schwarze Kapelle vão virar-se contra nós e tentar destruir-nos. E se os conspiradores conseguirem tomar o poder, vão negociar um acordo de paz e a Alemanha vai acabar como estava depois da Primeira Guerra Mundial - castrada, fraca, a pedinte da Europa, a viver das migalhas caídas das mesas dos britânicos, dos franceses e dos americanos. - Himmler fez uma pausa e, a seguir, acrescentou: - E dos bolcheviques, meu Fúhrer.
Os olhos de Hitler pareceram chamejar, a simples ideia de alemães a viverem sob o domínio russo era demasiado dolorosa de imaginar.
- Nunca podemos deixar que isso aconteça à Alemanha! - exclamou ele, olhando depois para Himmler atentamente. - Pela sua expressão, vejo que tem outra teoria, Herr Reichsfúhrer.
- Sim, meu Fúhrer.
- Vamos lá a ouvi-la.
- Vogel acha que as informações que lhe está a apresentar são verdadeiras. Mas anda a beber de uma fonte envenenada.
Hitler pareceu intrigado.
- Continue, Herr Reichsfúhrer.
- Meu Fúhrer, sempre fui sincero consigo em relação ao que achava do almirante Canaris. E acho que ele é um traidor. Sei que ele
já teve contactos com agentes britânicos e americanos. Se os meus receios a respeito do almirante estiverem corretos, não será lógico pressupor que ele terá comprometido as redes alemãs no Reino Unido? E não será também lógico pressupor que as informações dos espiões de Canaris em Inglaterra também se encontram comprometidas? E se o capitão Vogel até tiver descoberto a verdade e o almirante Canaris o tiver silenciado para se proteger a si próprio?
Hitler estava outra vez a andar impacientemente de um lado para
o outro.
- Brilhante, como de costume, Herr Reichsfúhrer. O senhor é o único em quem posso confiar.
- Não se esqueça, meu Fúhrer, uma mentira é a verdade, só que invertida. Se pusermos uma mentira à frente de um espelho, este vai refletir a verdade.
- O senhor tem um plano. Já percebi isso.
- Sim, meu Fúhrer. E Kurt Vogel é a chave. Vogel pode trazermos o segredo da invasão e provas da traição de Canaris de uma vez por todas.
- Vogel parece-me um homem inteligente.
- Foi considerado uma das mentes jurídicas mais brilhantes da Alemanha antes da guerra. Mas, não se esqueça, foi recrutado pessoalmente por Canaris. Por isso mesmo, tenho as minhas dúvidas acerca da lealdade dele. Vamos ter de lidar com ele com muita cautela.
- Essa é a sua especialidade. Não é, Herr Reichsfúhrer? Himmler exibiu o seu sorriso cadavérico.
- Sim, meu Fúhrer.
A casa estava às escuras quando Vogel lá chegou. Um forte nevão tinha esticado a viagem de duas para quatro horas. Saiu do banco de trás do carro e foi buscar a sua pequena maleta ao porta-bagagens. Mandou o motorista ir-se embora; tinha-lhe reservado um quarto no pequeno hotel da aldeia. Trude estava à porta de casa, aberta, de braços
bem apertados contra o corpo para se aquecer. Tinha um ar absurdamente saudável, com a pele clara cor-de-rosa do frio e o cabelo castanho com madeixas do sol da montanha. Trazia uma camisola de esqui grossa, calças de lã e botas de montanha. Apesar da roupa volumosa, Vogel conseguia ver que ela estava em forma devido à vida ao ar livre. Quando Vogel a abraçou, Trude disse:
- Meu Deus, Kurt Vogel, estás pele e osso. As coisas andam assim tão más em Berlim?
Já estava toda a gente deitada. As meninas dividiam um quarto no andar de cima. Enquanto Trude lhe preparava o jantar, Vogel subiu as escadas para as ir ver. O quarto estava frio. Nicole tinha-se deitado com Lizbet. No escuro, era difícil perceber onde uma acabava e a outra começava. Ficou ali parado, a ouvi-las respirar e a sentir-Ihes o cheiro - a respiração, o sabão, os corpos quentes a libertarem a fragrância da roupa da cama. Trude sempre achara isso estranho, mas ele adorava a maneira como elas cheiravam mais do que tudo o resto.
Quando desceu, tinha à sua espera um prato de comida e um copo de vinho. Trude já tinha comido há várias horas, por isso limitou-se a sentar-se ao seu lado e a falar enquanto ele devorava o porco assado com batatas. Estava surpreendentemente faminto. Terminou o que tinha no prato e ela serviu-lhe uma segunda dose, que ele se forçou a comer mais devagar. Trude falou dos pais e das meninas e da vinda da Wehrmacht à aldeia para levar os homens que restavam e os rapazes da escola. Agradeceu a Deus ter-lhes dado duas filhas e nenhum filho. Não lhe fez perguntas sobre a viagem e ele não revelou quaisquer pormenores.
Acabou de comer. Trude levantou a mesa. Tinha feito uma cafeteira de sucedâneo de café e estava ao fogão, a servi-lo numa chávena com pires, quando se ouviu alguém bater à porta muito levemente. Atravessou a sala e abriu a porta, ficando a olhar incrédula para a figura, toda vestida de preto, à sua frente.
- Oh, meu Deus - murmurou, com a chávena e o pires a caírem-lhe das mãos e a estilhaçarem-se aos pés dela.
- Ainda não consigo acreditar que Heinrich Himmler veio mesmo cá a casa - exclamou Trude, sem nenhuma entoação especial, como se estivesse a falar consigo própria.
Estava diante da lareira, que ardia com pouca intensidade, no quarto deles, direita como uma vara e de braços cruzados. Mesmo com a luz fraca, Vogel conseguia ver que ela tinha o rosto húmido e que o corpo lhe tremia.
- Quando vi aquela cara, a primeira coisa que pensei foi que estava a sonhar. Depois, pensei que estávamos todos presos. E foi então que me ocorreu... Heinrich Himmler estava na minha casa porque precisava de falar com o meu marido.
Voltou as costas à lareira e olhou para ele.
- E porquê, Kurt? Diz-me que não trabalhas para ele. Diz-me que não és um dos capangas de Himmler. Diz-me, mesmo que seja mentira.
- Eu não trabalho para Heinrich Himmler.
- E quem era aquele outro homem?
- Chama-se Walter Schellenberg.
- E o que faz ele? Vogel contou-lhe.
- E o que fazes tu? E não me digas que és apenas o advogado de Canaris.
- Antes da guerra, andava à procura de pessoas muito especiais. Treinava-as e enviava-as para Inglaterra para serem espiões.
Trude assimilou aquela informação como se suspeitasse dela há muito tempo.
- E porque não me contaste isso antes?
- Não estava autorizado a contar a ninguém, nem sequer a ti. Enganei-te para te proteger. Foi o único motivo.
- E onde estiveste hoje?
Era escusado continuar a mentir-lhe.
- Estive em Berchtesgaden para uma reunião com o Fúhrer.
- Deus do céu - murmurou ela, abanando a cabeça. - E que outras mentiras é que me contaste, Kurt Vogel?
- Não te menti em relação a mais nada, só sobre o meu trabalho.
A expressão de Trude indicava que ela não acreditava nele.
- Heinrich Himmler, nesta casa. O que te aconteceu, Kurt? Ias ser um grande advogado. Ias ser o próximo Herman Heller, talvez até ocupar um lugar no Supremo Tribunal. Adoravas Direito.
- Não há Direito na Alemanha, Trude. Só há Hitler.
- E o que queria Himmler? Porque veio cá a estas horas da noite?
- Quer que eu o ajude a matar um amigo.
- Espero que tenhas dito que não o vais ajudar. Vogel olhou para ela.
- Se não o ajudar, ele mata-me. E depois mata-te a ti e mata as meninas. Mata-nos a todos, Trude.
QUARTA PARTE
QUARENTA E TRÊS
LONDRES
- A mesma coisa que antes, Alfred. Fez os vigias andarem atrás dela para nada durante três horas e depois voltou para o apartamento.
- Nada disso, Harry. Foi encontrar-se com outro agente ou então foi fazer uma entrega clandestina em algum sítio predeterminado.
- Se isso aconteceu, então não demos por nada. Mais uma vez.
- Maldição! - exclamou Vicary, servindo-se da beata para acender outro cigarro.
Estava indignado consigo próprio. Fumar cigarros já era mau. Servir-se de um para acender outro era intolerável. Mas era apenas da tensão da operação. Tinha entrado na terceira semana. Ele tinha permitido que Catherine Blake fotografasse quatro levas de documentos da Operação Kettledrum. Por quatro vezes, os vigias tinham andado a dar voltas demoradas por Londres, atrás dela. E, por quatro vezes, não tinham sido capazes de detetar como ela estava a passar o material. Vicary estava a ficar nervoso. Quanto mais tempo a operação continuasse daquela forma, maiores seriam as hipóteses de erro. Os vigias sentiam-se exaustos e Peter Jordan estava prestes a revoltar-se.
Vicary disse:
- Se calhar, estamos simplesmente a abordar isto da maneira errada.
- O que quer dizer com isso?
- Andamos a segui-la, na esperança de conseguirmos detetar a entrega. Então e se mudássemos de tática e começássemos à procura do agente que anda a fazer a recolha.
- Mas como? Não sabemos quem ele é nem qual é o aspeto dele.
- Por acaso, até somos capazes de saber. Sempre que Catherine sai, nós acompanhamo-la. E Ginger Bradshaw também. Ele já tirou dezenas e dezenas de fotografias. O nosso homem tem de estar nu-
ma ou noutra.
- É possível, sem dúvida que vale a pena tentar.
Dez minutos mais tarde, Harry regressou com um monte de fotografias com trinta centímetros de largura.
- Para sermos exatos, são cento e cinquenta fotografias, Alfred. Vicary sentou-se à secretária e pôs os óculos de meia-lua. Pegou
nas fotografias uma a uma e examinou as imagens à procura de caras, roupa, ares suspeitos - qualquer coisa. Amaldiçoado com uma memória quase fotográfica, Vicary ia guardando cada imagem na cabeça e passando para a seguinte. Harry estava a beber chá e a percorrer o gabinete em silêncio, envolto pelas sombras.
Passadas duas horas, Vicary achou que tinha encontrado uma correspondência.
- Veja, Harry, aqui está ele, em Leicester Square. E aqui está ele outra vez, à porta da estação de comboios de Euston. Pode ser uma coincidência, podem ser duas pessoas diferentes, mas duvido.
- Raios me partam! - exclamou Harry, analisando o homem nas fotografias: pequeno, com cabelo escuro, ombros largos e roupa convencional.
Não havia nada no seu aspeto que chamasse a atenção para ele
- perfeito para o trabalho de rua.
Vicary juntou as fotografias que sobravam e dividiu-as em dois montes iguais.
- Comece a procurá-lo, Harry. Só a ele. E a mais ninguém. Meia hora mais tarde, Harry detetou-o numa fotografia tirada em
Trafalgar Square e que se revelou a melhor até então.
- Ele precisa de um nome de código - disse Vicary.
- Parece um Rudolf.
- Muito bem - retorquiu Vicary. - Que seja Rudolf.
QUARENTA E QUATRO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Nesse momento, Horst Neumann ia de bicicleta do chalé dos Dogherty para a aldeia. Usava uma camisola grossa de gola alta, um casacão e calças enfiadas dentro de
umas botas de borracha. Estava um dia bonito e soalheiro. Nuvens brancas, impulsionadas pelos fortes ventos do norte, deslocavam-se por um céu azul-escuro. As suas sombras avançavam rapidamente pelos prados e encostas, desaparecendo depois sobre a praia. Seria o último dia decente que veriam durante algum tempo. Estava previsto mau tempo para toda a costa leste do país, com início a meio do dia seguinte e vários mais de duração. Neumann quis sair do chalé por algumas horas enquanto tinha essa possibilidade. Precisava de pensar. O vento soprava em rajadas, tornando praticamente impossível manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos e de um só sentido. Neumann baixou a cabeça e pedalou com mais força. Voltou-se e olhou por cima do ombro. Dogherty tinha desistido. Saíra de cima da bicicleta e empurrava-a pelo trilho.
Neumann fingiu não reparar e prosseguiu em direção à aldeia. Inclinou-se para a frente, sobre o guiador, com os cotovelos para fora, e pedalou furiosamente por uma pequena colina acima. Chegou ao topo e, a seguir, deixou-se descer pela encosta. O trilho estava duro devido à geada da noite anterior e a bicicleta chocalhava pelos sulcos profundos com tanta violência que Neumann temeu que o pneu da frente se pudesse soltar. O vento abrandou e a aldeia surgiu. Neumann
atravessou a ponte que passava por cima da enseada e parou do lado de lá. Deitou a bicicleta na vegetação densa à beira do trilho e sentou-se ao lado dela. Levantou a cara na direção do sol. Estava quente, apesar do ar fresco. Um esquadrão de gaivotas voava em círculos silenciosamente lá no alto. Fechou os olhos e escutou o barulho do mar. Foi invadido por uma ideia absurda - iria ter saudades daquela aldeiazinha quando fosse altura de se ir embora.
Abriu os olhos e avistou Dogherty no cimo da colina. Dogherty tirou o gorro, limpou a testa e acenou-lhe. Neumann gritou:
- Demora o tempo que quiseres, Sean!
Depois, apontou para o Sol com a mão, para explicar por que razão não tinha pressa de sair dali. Dogherty voltou a subir para a bicicleta e deixou-se descer pela encosta.
Neumann observou Dogherty e, a seguir, virou-se e contemplou o mar. A mensagem que tinha recebido de Vogel ao início da manhã estava a perturbá-lo. Tinha evitado pensar nela, mas não podia continuar a fazê-lo. O operador de rádio em Hamburgo tinha transmitido uma frase em código que significava que Neumann deveria colocar Catherine Blake em contravigilâncía em Londres. No léxico do ofício, contravigilância significava que ele tinha de a seguir para confirmar que ela não estava por
sua vez a ser seguida pelo inimigo. O pedido podia querer dizer uma série de coisas. Podia querer dizer que Vogel apenas queria ter a certeza de que as informações
que Catherine estava a receber eram fidedignas. Ou podia querer dizer que ele suspeitava que ela estivesse a ser manipulada pela outra parte. Se fosse esse o caso, Neumann poderia estar a meter-se numa situação muito perigosa. Se Catherine estivesse a ser vigiada e ele começasse a segui-la também, estaria a andar lado a lado com agentes do MI5 treinados para detetarem contravigilância. Estaria a ir direito a uma armadilha. Pensou: Raios te partam, Vogel, que jogo estás a fazer?
E se ela estivesse mesmo a ser seguida pela outra parte? Neumann tinha duas opções. Se possível, deveria contactar Vogel via rádio e solicitar autorização para tirar Catherine Blake de Inglaterra. Se não houvesse tempo, tinha a permissão de Vogel para atuar por sua conta.
Dogherty deixou-se deslizar pela ponte e parou junto a Neumann. Uma nuvem grande passou à frente do Sol. Neumann tremeu
de frio. Levantou-se e acompanhou Dogherty em direção à aldeia, cada um a empurrar a sua bicicleta.
O vento soprava em rajadas, a uivar por entre as lápides inclinadas
do cemitério. Neumann levantou a gola do casaco.
- Ouve, Sean, é possível que tenha de me ir embora dentro de pouco tempo, e bastante à pressa.
Dogherty olhou para Neumann com um rosto inexpressivo e depois olhou outra vez em frente. Neumann disse:
- Fala-me do barco.
- No início da guerra, Berlim mandou-me criar um percurso de fuga pela costa do Lincolnshire, uma maneira de um agente chegar a um submarino estacionado a dezasseis quilómetros da costa. O nome dele é Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca numa terra chamada Cleethorpes, na foz do rio Humber. Já vi o barco. Está um bocadinho em mau estado - caso contrário, teria sido confiscado pela Marinha Britânica -, mas vai dar conta do recado.
- E Kincaid? O que sabe ele?
- Acha que eu estou envolvido no mercado negro. Kincaid está metido numa série de coisas duvidosas, mas suspeito que trabalhar para a Abwehr já seria ir demasiado longe para ele. Paguei-lhe cem libras e disse-lhe para estar preparado para fazer o trabalho de repente
- a qualquer momento, dia ou noite.
- Contacta-o hoje - ordenou-lhe Neumann. - Diz-lhe que somos capazes de aparecer dentro de pouco tempo.
Dogherty assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Eu não devia propor-te isto, mas vou fazê-lo à mesma. Quero que tu e a Mary pensem na hipótese de irem comigo quando eu me for embora.
Dogherty riu-se para si mesmo.
- E o que é que eu ia fazer em Berlim, raios?
- Ias estar vivo, logo para começar. Já deixámos demasiadas pegadas. Os britânicos não são estúpidos. Vão encontrar-te. E quando o fizerem, vais direitinho para a forca.
- Já pensei nisso. Muitos homens bons já deram a vida pela causa. Homens melhores do que eu. E eu não tenho medo de dar a minha.
- Isso é um belo discurso, Sean. Mas não sejas parvo. Eu diria que apostaste no cavalo errado. Não estarias a morrer pela causa, estarias a morrer porque fizeste
espionagem a favor do inimigo a Alemanha nazi. Hider e os amigos dele estão-se nas tintas para a Irlanda. E ajudá-los agora não vai libertar a Irlanda do Norte da opressão inglesa, nem agora, nem nunca. Estás a compreender?
Dogherty não disse nada.
- E há mais uma coisa que precisas de perguntar a ti mesmo. Até podes estar disposto a sacrificar a tua própria vida, mas e a de Mary?
Dogherty olhou para ele bruscamente.
- Do que é que estás a falar?
- Mary sabe que tu andavas a espiar para a Abwehr e sabe que eu era um agente. Se os britânicos descobrirem isso, no mínimo, não vão ficar muito contentes. E ela vai para a prisão durante muito tempo... se tiver sorte. Se não tiver sorte, também a enforcam.
Dogherty fez um gesto de despreocupação.
- Eles não vão tocar na Mary. Ela não teve participação nenhuma nisto.
- Chamam a isso ser-se cúmplice, Sean. Mary foi cúmplice da tua espionagem.
Dogherty caminhou em silêncio durante um bocado, matutando nas palavras de Neumann. Por fim, lançou:
- Que raio é que eu ia fazer na Alemanha? Não quero ir para a Alemanha.
- Vogel pode arranjar-te passagem para outro país. Portugal ou Espanha. Até pode ser que ele consiga que voltes para a Irlanda.
- Mary nunca irá. Nunca deixará Hampton Sands. Se eu fosse contigo, teria de ir sozinho... deixá-la para trás, à mercê dos malditos britânicos.
Chegaram ao pub Hampton Arms. Neumann encostou a bicicleta à parede e Dogherty fez o mesmo.
Deixa-me pensar nisso hoje à noite - pediu Dogherty. -
vou falar com a Mary e dou-te uma resposta de manhã.
Entraram no Arms, que estava vazio, à exceção do dono, que se encontrava ao balcão a polir copos. A lareira ardia com grande intensidade. Neumann e Dogherty despiram os casacos, penduraram-nos numa fila de cabides ao lado da porta e sentaram-se na mesa mais próxima da lareira. Naquele dia, só havia uma coisa no menu, empada de porco. Pediram duas empadas e dois copos de cerveja. A lareira estava incrivelmente quente. Neumann tirou a camisola. O dono do pub trouxe as empadas passados uns minutos e eles pediram mais cerveja. De manhã, Neumann tinha ajudado Sean a reparar algumas cercas e sentia-se esfomeado. A única altura em que Neumann tirou os olhos do prato foi quando a porta se abriu e um homem grande entrou. Neumann já o tinha visto pela aldeia e sabia quem ele era. Martin Colville, o pai de Jenny.
Colville pediu uísque e deixou-se ficar ao balcão. Neumann, enquanto acabava o que faltava da empada de porco, lançava-lhe olhares com intervalos regulares. Era um homem grande e forte, com cabelo preto, que lhe caía para os olhos, e barba preta salpicada de grisalho. O seu casaco estava imundo e cheirava a óleo de motor. Tinha as mãos enormes gretadas e permanentemente sujas. Colville bebeu o primeiro copo de uísque de um só trago e pediu um segundo. Neumann terminou a empada e acendeu um cigarro.
Colville bebeu o segundo copo de uísque e deitou um olhar feroz na direção de Neumann e Dogherty.
- Quero que se afaste da minha filha - disse Colville. - Ouvi dizer que os dois têm sido vistos um com o outro na aldeia e isso não me agrada.
com os dentes cerrados, Dogherty exclamou:
- Não entres em confusões, amigo.
- Jenny e eu passamos tempo um com o outro porque somos amigos - respondeu Neumann. - Nada mais.
- Está à espera que eu acredite nisso? Você quer ir para a cama com ela. Pois bem, a Jenny não é dessas raparigas,
- Sinceramente, estou-me nas tintas para aquilo que você pensa.
- Eu ainda tolero que ela se dê com esse irlandês de meia-tijela e a mulher dele. Mas não o vou tolerar a si. Você não presta para ela. E se alguma vez voltar a ouvir que estiveram um com o outro... ameaçou Colville, de indicador espetado para Neumann - ... vou atrás de si.
Dogherty disse:
- Acena só com a cabeça e sorri e despacha o assunto.
- Ela passa tempo com o Sean e a Mary porque eles se preocupam com ela. Dão-lhe um lar agradável e seguro. Que é mais do que posso dizer de si.
- O lar de Jenny não é da sua conta. Não meta mas é o nariz nisso! E se souber o que é bom para a tosse, vai manter-se bem longe dela, foda-se!
Neumann apagou o cigarro com força. Dogherty tinha razão. Ele devia simplesmente ficar ali sentado de boca calada. A última coisa de que precisava naquela altura era de provocar uma luta com uma pessoa da aldeia. Olhou para Colville. Conhecia o género. O sacana tinha aterrorizado toda a gente durante a vida inteira, incluindo a própria filha. Neumann viu com satisfação a oportunidade de o pôr no seu devido lugar. Pensou: Se lhe mostrar como é que as coisas são, talvez ele nunca mais volte a magoar a Jenny.
Atirou:
- O que é que vai fazer, bater em mim? Essa é a sua resposta para tudo, não é? Sempre que acontece alguma coisa de que não gosta, limita-se a bater em alguém. É por isso que Jenny passa tanto tempo com os Dogherty. É por isso que não consegue suportar estar ao pé de si.
O rosto de Colville retesou-se. Ele disparou:
- Quem é que você é, foda-se? Não acredito na sua história. Atravessou opub rapidamente, com poucas passadas, pegou na
mesa e atirou-a para longe.
- Você é meu, e eu vou gostar disto. Neumann levantou-se e ripostou:
- Que sorte a minha.
Um pequeno grupo de pessoas, pressentindo sarilhos, juntou-se
à porta do pub, em redor dos dois homens. Colville desferiu um gancho de direita atabalhoado, a que Neumann se esquivou com facilidade. Colville desferiu mais dois murros. Neumann desviou-se deles movendo a cabeça uns centímetros apenas, mantendo as mãos à frente da cara, protegendo-a, e os olhos fixos nos de Colville. Neumann continuou à defesa. Se tentasse aproximar-se o suficiente para lhe acertar com um murro, Colville poderia ser capaz de o agarrar com os seus braços poderosos e ele poderia nunca mais conseguir escapar. Teria de esperar até que Colville cometesse um erro. Nessa altura, passaria ao ataque e acabaria com aquilo o mais depressa possível.
Colville desferiu mais uma sucessão de socos atabalhoados. Já estava sem fôlego e em esforço. Neumann conseguia ver a frustração a crescer-lhe no rosto. Colville esticou os braços e atirou-se a ele como um touro. Neumann afastou-se rapidamente, dando um passo para o lado, e pregou uma rasteira a Colville quando este passou por ele a toda a velocidade. Aterrou de cara no chão, com um baque forte. Neumann avançou depressa, quando Colville já se encontrava de gatas, e espetou-lhe dois pontapés seguidos na cara. Colville ergueu o forte antebraço, amortecendo o terceiro pontapé, e levantou-se, cambaleante.
Neumann tinha conseguido partir-lhe o nariz. O sangue jorrava-Ihe das narinas para a boca.
Neumann disse:
- Já levou a sua conta, Martin. Vamos parar com isto e voltar lá para dentro.
Colville não disse nada. Deu um passo em frente, socou com a mão esquerda e lançou uma poderosa e brutal direita. O golpe acertou com força na maçã do rosto de Neumann, cortando-lhe a carne. Neumann sentiu-se como se tivesse sido atingido por uma marreta. A cabeça começou a zumbir, vieram-lhe lágrimas aos olhos e ficou com a visão desfocada. Sacudiu a cabeça para recuperar do abalo e lembrou-se de Paris - de estar deitado na ruela imunda por trás do café, com o sangue a correr para as poças da água da chuva e os homens das SS por cima dele, pontapeando-o com as botas militares,
espancando-o com os punhos, as coronhas das pistolas, garrafas de vinho, fosse o que fosse.
Colville lançou mais um murro irrefletido. Neumann agachou-se e, a seguir, rodou e aplicou-lhe um pontapé de lado, acertando com toda a força na rótula direita de Colville. O homem mais alto soltou um grito de dor profunda. Rapidamente, Neumann pontapeou-o mais três vezes. Colville estava incapacitado; Neumann suspeitou que ele tivesse deslocado a rótula. E Colville também estava aterrorizado. Era óbvio que nunca tinha encontrado ninguém que lutasse como Neumann.
Neumann não parou de se deslocar para a direita, obrigando Colville a apoiar o peso do corpo na perna aleijada. Colville não conseguia praticamente manter-se em pé. Neumann achou que o adversário estava acabado.
Quando Neumann se encontrava de costas para o pub, Colville passou todo o peso do corpo para a perna boa e precipitou-se contra ele. Neumann, surpreendido, não foi capaz de se desviar suficientemente depressa. Colville abalroou-o e atirou-o de encontro à parede. Foi o mesmo que ser atropelado por um camião a toda a velocidade. Esforçou-se por recuperar o fôlego. Colville ergueu a cabeça com violência, acertando em Neumann debaixo do queixo. Neumann mordeu a língua e o sangue esguichou-lhe para dentro da boca.
Antes que Colville pudesse voltar a atacá-lo, Neumann deu-lhe uma joelhada na virilha. Colville dobrou-se com a dor, soltando um gemido profundo. Neumann levantou novamente o joelho, acertando desta vez na cara de Colville, estilhaçando ossos. Neumann deu um passo em frente, ergueu o braço e espetou o cotovelo na cabeça de
Colville.
Os joelhos de Colville cederam e ele foi ao chão, quase inconsciente.
Neumann disse:
- Não se levante, Martin. Se sabe o que é bom para si, deixe-se ficar exatamente onde está.
Foi então que Neumann ouviu alguém gritar. Levantou os olhos e viu Jenny correr na sua direção.
Nessa noite, Neumann estava deitado na cama, acordado. Tinha dormido um pouco, mas a dor acordara-o. Naquele momento, estava completamente imóvel a ouvir o vento
a fustigar o chalé. Ao longe, Conseguia ouvir o barulho das ondas a rebentarem na praia. Não sabia que horas eram. Tinha o relógio na mesinha de cabeceira ao lado da cama. Ergueu-se, apoiado no cotovelo, esticou-se para o agarrar, gemendo de dor, e olhou para o mostrador luminoso. Quase meia-noite.
Deixou-se cair outra vez na almofada e ficou a olhar para o teto. Ter lutado com Martin Colville fora um erro idiota. Pusera a sua cobertura em perigo, bem como a segurança da operação. E magoara Jenny. À porta do pub, ela tinha gritado e batido com os punhos no peito dele. Estava furiosa com Neumann por este ter ferido o pai. Ele quisera apenas dar uma lição ao sacana, mas saíra-lhe o tiro pela culatra. Naquele momento, deitado na cama, a ouvir o ritmo confuso do vento ininterrupto, interrogou-se se toda a operação estaria condenada. Lembrou-se do aviso de Catherine em Hampstead Heath: Houve coisas que correram mal. Acho que a minha cobertura não vai aguentar muito mais tempo. Pensou na ordem de Vogel para efetuar contravigilância. Interrogou-se se todos eles - Vogel, Catherine, ele próprio
- não teriam já cometido erros fatais.
Neumann avaliou os ferimentos. Parecia ter dores em todo o lado. Tinha as costelas pisadas e doridas - doía-lhe de cada vez que respirava -, mas parecia não ter partido nenhum osso. Tinha a língua inchada e, quando a passou pelo céu da boca, sentiu o corte na superfície. Levantou a mão e tocou na face. Mary tinha feito todos os possíveis por fechar a ferida sem recurso a pontos - ir a um médico estava fora de questão. Verificou o penso para se certificar de que estava bem seguro. Bastava o mínimo toque para que o rosto latejasse de dor.
Neumann fechou os olhos e tentou dormir. Estava a começar a adormecer quando ouviu o barulho de passos no patamar, do outro lado da porta do quarto. Instintivamente, esticou-se para agarrar na Mauser. Ouviu outro passo e, a seguir, o chão a ranger sob o peso de um corpo. Ergueu a Mauser e apontou-a à porta. Ouviu o barulho de alguém a abrir o trinco. Pensou: Se o MI5 viesse atrás de mim, de
certeza que ninguém estaria a tentar entrar à socapa no meu quarto, à noite. Mas se não era o MI5 nem a polícia, então quem raio seria? A porta abriu-se e uma pequena figura ficou parada à entrada do quarto. com a luz fraca que entrava pela persiana aberta, Neumann conseguiu perceber que se tratava de Jenny Colville. Pousou a
Mauser discretamente no chão, ao lado da cama, e sussurrou:
- O que pensas que estás a fazer?
- Vim ver se o senhor estava bem.
- Sean e Mary sabem que estás aqui?
- Não, eu entrei sozinha - respondeu ela, sentando-se na beira da pequena cama. - Como é. que se sente?
- Já passei por pior. O teu pai dá uns socos e pêras. Mas, pensando bem, sabes isso melhor do que ninguém.
Ela estendeu a mão no escuro e tocou-lhe na cara.
- Devia ter ido ao médico. Tem aí um belo corte na cara.
- Mary fez um trabalho excelente. Jenny sorriu.
- Ela já teve muito treino com Sean. Disse-me que, quando Sean era novo, um sábado à noite não era um sábado à noite se não terminasse com uma bela pancadaria à porta do pub.
- E como está o teu pai? Acho que lhe bati demasiado.
- Vai ficar bom. Oh, a cara dele está uma linda desgraça. Mas também nunca foi muito bonito logo para começar.
- Peço desculpa, Jenny. Tudo aquilo foi ridículo. Devia ter tido mais juízo. Devia tê-lo ignorado e pronto.
- O dono do pub disse que o meu pai é que começou. Mereceu o que lhe aconteceu. Já há muito tempo que andava a pedi-las.
- Então já não estás zangada comigo?
- Não. Nunca ninguém me tinha defendido. O que o senhor fez foi uma coisa muito corajosa. O meu pai é forte como um touro. Podia tê-lo matado - disse ela, afastando a mão da cara de Neumann e passando-a pelo peito dele. - Onde é que aprendeu a lutar dessa maneira?
- No exército.
- Foi assustador. Meu Deus, tem o corpo todo cheio de cicatrizes.
- Tenho vivido uma vida muito rica e preenchida.
Ela aproximou-se dele.
Quem é o senhor, James Porter? E o que está a fazer em
Hampton Sands?
- Vim para cá para te proteger.
- É o meu cavaleiro andante?
- Qualquer coisa do género.
Jenny levantou-se subitamente e despiu a camisola. -Jenny, o que pensas que estás...
- Chiu, vai acordar a Mary.
- Não podes ficar aqui.
- Já passa da meia-noite. Não era capaz de me mandar embora com uma noite destas, pois não?
Jenny já tinha tirado as botas de borracha e as calças antes que ele pudesse responder à pergunta. Enfiou-se na cama e enroscou-se ao lado de Neumann, debaixo do braço dele.
Neumann exclamou:
- Se Mary te encontra aqui, mata-me a mim.
- Não tem medo de Mary, pois não?
- com o teu pai posso eu bem. Mas com Mary a história já é completamente diferente.
Ela deu-lhe um beijo na cara e disse:
- Boa noite.
Passados uns minutos, a respiração dela entrou num ritmo próprio do sono. Neumann encostou a cabeça à dela, pôs-se a escutar o vento e, momentos depois, adormeceu também.
QUARENTA E CINCO
BERLIM
Os Laticasters apareceram às duas da manhã. Vogel, que estava a dormir intermitentemente na cama de campanha do seu gabinete, levantou-se e foi à janela. Berlim
tremia sob o impacto das bombas. Abriu o cortinado opaco e espreitou lá para fora. O carro ainda lá estava - um grande carro preto, estacionado do outro lado da rua. Tinha ali estado a noite toda e a tarde inteira antes disso. Vogel sabia que estavam pelo menos três homens lá dentro, pois conseguia ver as pontas dos cigarros a brilharem no escuro. Sabia que o motor estava a trabalhar, pois conseguia ver o fumo a sair do tubo de escape para o ar gélido da noite. Do alto do seu profissionalismo, ficou espantado com a má qualidade daquela vigilância. Homens a fumarem, sabendo perfeitamente que as pontas dos cigarros seriam visíveis na escuridão. A deixarem o motor ligado para se poderem aquecer, mesmo tendo em conta que até o pior amador seria capaz de detetar o fumo. Mas a verdade é que a Gestapo não precisava de se preocupar muito com a técnica e as artes do ofício. Confiava no terror e na força bruta. Golpes de martelo.
Vogel pensou na conversa que tivera com Himmler na casa na Baviera. Tinha de admitir que a teoria de Himmler fazia um certo sentido. O facto de a maioria das redes dos serviços secretos germânicos no Reino Unido continuar operacional não provava a lealdade de Canaris para com o Fúhrer. Provava o contrário - a sua traição. Se o chefe da Abwehr for um traidor, para quê darmo-nos ao trabalho
de prender e enforcar publicamente os espiões dele no Reino Unido? Porque não servirmo-nos desses espiões e, juntamente com Canaris, tentar enganar o Fúhrer com informações falsas e erróneas?
Vogel considerou que era um cenário plausível. Mas um logro dessa magnitude era quase inimaginável. Todos os agentes alemães teriam de estar presos ou ter sido convencidos a mudar de lado. Centenas de agentes britânicos responsáveis por casos teriam de estar envolvidos no projeto, a produzirem quantidades imensas de relatórios falsos, que seriam depois transmitidos via rádio para Hamburgo. Poderia haver um logro desses? Seria um empreendimento gigantesco e arriscado, mas Vogel concluiu que era possível.
O conceito era brilhante, mas Vogel reconheceu que possuía uma falha evidente. Era necessária a total manipulação das redes germânicas no Reino Unido. Os agentes tinham de estar todos sob controlo
- a trabalhar para o inimigo ou presos num sítio onde não pudessem causar problemas. Se houvesse um só agente fora da teia de controlo do MI5, esse único agente poderia enviar um relatório contraditório e era possível que a Abwehr ficasse desconfiada. Poderia servir-se dos relatórios desse único agente verdadeiro para concluir que todas as outras informações que estava a receber eram falsas. E se todas as outras informações apontassem para Calais enquanto local da invasão, a Abwehr poderia concluir que, na realidade, o contrário era verdade. O inimigo iria desembarcar na Normandia.
O que lhe tinha dito Himmler? Uma mentira é a verdade, só que invertida. Se pusermos uma mentira à frente de um espelho, este vai refletir a verdade.
Teria a sua resposta em breve. Se Neumann descobrisse que Catherine Blake se encontrava sob vigilância, Vogel poderia descartar as informações que ela andava a enviar e toma-las como uma cortina de fumo engendrada pelos serviços secretos britânicos - parte de um logro.
Afastou-se da janela e deitou-se na cama de campanha. Um calafrio percorreu-o. Era bem possível que viesse a descobrir provas de que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num logro de grandes proporções. E, por sua vez, isso iria indiciar fortemente que o almirante Wilhelm Canaris, chefe dos serviços secretos militares alemães, era um traidor. Sem dúvida que Himmler o consideraria
uma prova irrefutável. E havia apenas uma punição para um crime desses: uma corda de piano à volta do pescoço, uma morte lenta e tortuosa por estrangulamento, tudo filmado para que Hitler pudesse
ver uma e outra vez.
E o que aconteceria se descobrisse de facto provas de um logro? A Wehrmacht estaria à espera com os seus Panzers no local da invasão. O inimigo seria chacinado.
A Alemanha venceria a guerra e os nazis dominariam a Alemanha e a Europa durante décadas.
Não há Direito na Alemanha, Trude. Só há Hitler.
Vogel fechou os olhos e tentou adormecer, mas era escusado. Os dois aspetos incompatíveis da sua personalidade estavam em conflito aberto - Vogel, o espião mestre
e o manipulador, e Vogel, o crente no império do Direito. A possibilidade de desvendar um gigantesco logro britânico, de se mostrar mais astuto do que os seus adversários britânicos, de lhes destruir o joguinho deixava-o de água na boca. Ao mesmo tempo, sentia-se aterrorizado pelo que essa vitória traria. Provar a existência de um logro britânico, destruir o seu velho amigo Canaris, vencer a guerra para a Alemanha, assegurar a manutenção eterna dos nazis no poder.
Deixou-se ficar deitado na cama de campanha, acordado e a ouvir o ruído dos bombardeiros.
Di-me que não trabalhas para ele, Kurt.
Vogel pensou: Agora trabalho, Trude. Agora trabalho.
QUARENTA E SEIS LONDRES
- Olá, Alfred.
- Olá, Helen.
Ela sorriu, beijou-o na cara e disse:
- Oh, é tão bom ver-te outra vez.
- Também fico contente por te ver.
Enfiou o braço no de Vicary e a mão dentro do bolso do casaco dele, como costumava fazer. Viraram e caminharam em silêncio por um trilho em St. James's Park. Vicary
não achou o silêncio incómodo. Na realidade, achou-o bastante agradável. Uma centena de anos atrás, tinha sido uma das razões por que sabia que a amava verdadeiramente - a maneira como se sentia quando o silêncio se abatia sobre eles. Gostava da companhia dela quando conversavam e riam, mas não havia nenhuma diferença quando ela não dizia nada. Adorava sentar-se com ela em silêncio na varanda da casa dela ou passear pelos bosques ou deitarem-se à beira do lago. Ter o corpo dela ao lado do seu - ou a mão na sua - já lhe bastava.
Naquela tarde, o ar estava pesado e quente, um sopro de verão em fevereiro, e o céu negro e instável. O vento fazia as árvores moverem-se e surgirem ondas na superfície do lago. Um bando de patos baloiçava com a corrente, como se estivesse atracado.
Olhou para ela com atenção pela primeira vez. Tinha envelhecido bem. Em muitos aspetos, estava ainda mais bonita do que antes. Era alta e direita, e o pouco que tinha engordado ao longo dos anos estava
lindamente escondido pelo fato de corte perfeito. Tinha o cabelo, que costumava usar comprido pelo meio das costas, como se fosse uma capa loira, puxado para trás e muito bem preso com ganchos. Na cabeça, trazia um pequeno chapéu redondo e cinzento.
Vicary deixou que o seu olhar se fixasse no rosto dela. O nariz, em tempos ligeiramente comprido para o rosto, parecia agora, perfeitamente apropriado. As faces tinham ficado um pouco mais cavadas com a idade, tornando-lhe os ossos da cara mais proeminentes. Virou-se e reparou que Vicary a estava a fitar. Sorriu-lhe, mas o sorriso não se estendeu aos olhos. Havia ali uma tristeza distante, como se alguém chegado a ela tivesse morrido recentemente.
Vicary foi o primeiro a quebrar o silêncio. Desviou os olhos dela e disse:
- Peço desculpa pelo almoço, Helen. Surgiu uma coisa no trabalho e não me consegui escapar nem telefonar-te.
- Não te preocupes, Alfred, só fiquei sozinha numa mesa do Connaught e apanhei uma grande bebedeira.
Vicary olhou para ela bruscamente.
- Estou só a meter-me contigo. Mas não vou fazer de conta que não fiquei desiludida. Levei imenso tempo a arranjar coragem para ir falar contigo. Fui tão horrível...
A voz começou a sumir-se e ela não terminou o que ia dizer. Vicary pensou: Pois foste, Helen. Disse:
- Isso já foi há muito tempo. Como raio é que me conseguiste descobrir?
Ela tinha-lhe telefonado para o gabinete vinte minutos antes. Quando ele levantou o auscultador, esperava ouvir tudo menos a voz dela: Boothby, a pedir-lhe para subir para o presentear com mais uma demonstração da sua genialidade; Harry, a avisá-lo de que Catherine Blake tinha dado um tiro na cara a mais alguém; Peter Jordan,
a mandá-lo à merda, não iria continuar a vê-la. O som da voz de Helen quase o tinha feito engasgar-se.
Olá, querido, sou eu, tinha dito, e, como uma boa agente,
não tinha utilizado o nome dela. Ainda me queres ver? Estou numa cabine telefónica em frente do teu gabinete.
Oh, por favor, Alfred.
- O meu pai é amigo do teu diretor-geral - explicou ela. E David dá-se muito bem com Basil Boothby. Já sabia há algum tempo que tinhas sido convocado.
- O teu pai, David e Basil Boothby... as pessoas de quem mais gosto.
- Não te preocupes, Alfred, eles não se reúnem todos para falar
de ti.
- bom, graças a Deus! Ela apertou-lhe a mão.
- E como raio acabaste tu a fazer isto?
Vicary contou-lhe a história. Como tinha ficado amigo de Churchill antes da guerra. Como tinha sido arrastado para o círculo de conselheiros de Churchill em Chartwell. Como Churchill lhe tinha lançado o anzol naquela tarde de maio, em 1940.
- E ele fez mesmo isso enquanto estava na banheira? - perguntou Helen, estupefacta.
Vicary assentiu com a cabeça, sorrindo perante a recordação.
- E como é o primeiro-ministro nu?
- É muito rosado. Foi imponente. Dei por mim a cantarolar Rute Britatmia o resto do dia.
Helen riu-se.
- O teu trabalho deve ser extremamente emocionante.
- Pode ser. Mas também pode ser terrivelmente aborrecido e entediante.
- E alguma vez te sentes tentado a contar a alguém todos os segredos que sabes?
- Helen!
- Sentes? - insistiu ela.
- Não, claro que não.
- Eu sinto - revelou ela, desviando o olhar. Passado um momento, olhou outra vez para ele.
- Estás com ótimo aspeto, Alfred. Estás muito bonito. Esta maldita guerra parece fazer-te bem.
- Obrigado.
- Mas tenho de admitir que sinto falta da bombazina e do tweed. Agora estás todo cinzento, como todos os outros.
- Lamento dizê-lo, mas é o uniforme oficial de Whitehall. Acostumei-me a ele. E também gostei da mudança. Mas vou ficar satisfeito quando acabar tudo e eu puder voltar para o University College, o meu lugar é lá.
Mal podia acreditar que aquelas palavras lhe tinham saído de facto da boca. Em tempos, pensara que o MI5 era a sua salvação. Mas já tinha a certeza de que isso não era verdade. Gostara do tempo que passara no MI5: a tensão, as longas horas, a comida imprópria para consumo da cantina, as batalhas travadas com Boothby, o extraordinário grupo de dedicados amadores, tal como ele próprio, que labutava em segredo. Outrora, tinha contemplado a hipótese de pedir para lá continuar depois da guerra. Mas não seria a mesma coisa - não sem a ameaça de destruição nacional a pender sobre as suas cabeças como a espada de Dâmocles.
Mas havia outra coisa. Embora até estivesse bem preparado, em termos intelectuais, para a atividade propriamente dita da espionagem, abominava a natureza desta em si mesma. Ele era historiador. Por natureza e formação, dedicava-se a procurar a verdade. A espionagem tinha que ver com a mentira e o logro. com a traição. com os fins a justificarem os meios. com apunhalar um inimigo pelas costas
- e talvez apunhalar um amigo pelas costas, se necessário. Não estava minimamente seguro de gostar da pessoa que se tinha tornado.
Vicary perguntou:
- E como é que anda David, já agora? Helen soltou um suspiro profundo.
- O David é o David- respondeu, como se não fosse necessária mais nenhuma explicação. - Desterrou-me para o campo e fica aqui em Londres. Conseguiu arranjar uma comissão de serviço e faz qualquer coisa para o Almirantado. Venho ter com ele de tantas em tantas semanas. Ele gosta quando eu estou longe. Dá-lhe liberdade para perseguir os seus outros interesses.
Sentindo-se constrangido com a franqueza de Helen, Vicary desviou o olhar. Além de ser incrivelmente rico e bonito, David Lindsay era um conhecido mulherengo. Vicary pensou: Não admira que ele e Boothby sejam tão bons amigos.
Helen disse:
- Não precisas de fingir que não sabes, Alfred. Tenho bem a noção de que toda a gente sabe de David e do passatempo preferido dele.
já me habituei a isso. David gosta de mulheres e elas gostam dele. É uma coisa que encaixa bastante bem. .- E porque não o deixas?
- Oh, Alfred - exclamou ela, gesticulando com a mão enluvada e descartando a sugestão.
- E há mais alguém na tua vida?
- Queres dizer, outros homens? Vicary assentiu com a cabeça.
- Tentei uma vez, mas ele era o homem errado. Era o David com outra roupa. Além disso, fiz um voto numa igreja de província há vinte e cinco anos e parece que sou incapaz de o quebrar.
- Gostava que tivesses sentido o mesmo em relação ao voto que me fizeste - desabafou Vicary, arrependendo-se de imediato do tom de amargura que se lhe insinuou na voz.
Mas Helen limitou-se a olhar para ele, piscando os olhos rapidamente, e a responder:
- Às vezes, também gostava. Pronto, já o disse. Meu Deus, mas que coisa tão pouco inglesa que fui fazer. Por favor, desculpa-me. Deve ser por causa de todos estes malditos americanos que andam pela cidade.
Vicary sentiu-se corar. Helen perguntou:
- Continuas a sair com Alice Simpson?
- Como raio sabes da Alice Simpson?
- Sei de todas as tuas mulheres, Alfred. Ela é muito bonita. Até gosto dos malfadados livros que ela escreve.
- Ela foi-se. Disse a mim mesmo que tinha sido a guerra, o meu trabalho. Mas a verdade é que ela não eras tu, Helen. Por isso, deixei-a ir. Tal como todas as outras.
- Oh, maldito sejas, Alfred Vicary! Maldito sejas por dizeres isso.
- É a verdade. Além disso, é o que tu querias ouvir. Foi por isso que me procuraste, logo para começar.
- A verdade é que eu queria ouvir que tu estavas feliz - retorquiu ela, com os olhos húmidos. - Não queria que me dissesses que eu te tinha dado cabo da vida.
- Não te lisonjeies, Helen. Não me deste cabo da vida. Não me sinto infeliz. Só nunca encontrei lugar no coração para mais ninguém. Não confio muito nas pessoas. Suponho que tenha de te agradecer por isso.
- Tréguas - atirou ela. - Por favor, vamos fazer umas tréguas. Não queria que isto se transformasse numa continuação da nossa última conversa. Só queria passar algum tempo contigo. Meu Deus, preciso mesmo de uma bebida! Querido, és capaz de me levar a algum sítio agradável e enfrascares-me com uma garrafa de vinho?
Foram a pé até ao Duke's. Estava sossegado àquela hora do dia. Indicaram-lhes uma mesa a um canto. Vicary estava sempre à espera que um dos amigos de Helen e David entrasse e os reconhecesse, mas estavam sozinhos. Vicary pediu licença para ir telefonar e avisar Harry de onde estava. Quando voltou, estava uma garrafa de champanhe absurdamente cara em cima da mesa, dentro de um balde com gelo.
- Não te preocupes, querido - disse ela. - A festa é do David.
Sentaram-se e beberam metade do champanhe muito depressa. Falaram dos livros de Vicary e falaram dos filhos de Helen. Até falaram mais um pouco de David. Ele nunca tirou os olhos da cara de Helen enquanto ela falava. Havia qualquer coisa na tristeza distante dos olhos dela, a vulnerabilidade provocada pelo casamento falhado, que a tornava ainda mais atraente para ele. Ela estendeu a mão e pousou-a na de Vicary. Ele sentiu o coração a bater-lhe no peito pela primeira vez em vinte e cinco anos.
- Costumas pensar nisso, Alfred?
- Pensar em quê?
- Naquela manhã.
- Helen, de que estás...
- Meu Deus, Alfred, às vezes, consegues ser mesmo tapado. A manhã em que fui ter contigo à cama e devassei o teu corpo pela primeira vez.
Vicary engoliu o que lhe restava do champanhe e encheu os copos novamente. Disse:
- Não, nem por isso.
- Meu Deus, Alfred Vicary, és mesmo um péssimo mentiroso. Como é que te consegues safar na tua nova atividade?
- Sim, pronto. Penso nisso.
Pensou: Quando foi a última vez? Naquela manhã em Kent, quando estava a escrever uma mensagem da Operação Double Cross para o seu agente falso com o nome de código de Partridge.
- Dou por mim a pensar nisso nas alturas mais inacreditáveis.
- Eu menti a David, sabes? Disse-lhe sempre que ele tinha sido o primeiro. Mas ainda bem que foste tu - revelou ela, passando o dedo sobre a base do copo e olhando pela janela. - Foi tão rápido... apenas um momento ou dois. Mas, quando me lembro disso agora, dura horas.
- Sim, sei o que queres dizer. Ela olhou para ele outra vez.
- Ainda tens a casa em Chelsea?
- Dizem-me que ainda lá está. Já não vou lá desde 1940 - respondeu Vicary jocosamente.
Ela afastou-se da janela e fitou Vicary olhos nos olhos. Inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe:
- Gostava que me levasses para lá agora e fizesses amor comigo
na tua cama.
- Eu também gostava disso, Helen. Mas tu apenas me irias partir o coração outra vez. E, na minha idade, não me parece que te conseguisse esquecer uma segunda vez.
O rosto de Helen perdeu toda a expressão e a voz, quando se ouviu por fim, surgiu-lhe monocórdica e apagada:
- Meu Deus, Alfred, quando é que te tornaste um sacana tão impiedoso?
As palavras soaram-lhe familiares. Foi então que se lembrou que Boothby, quando lhe pegou pelo braço após o interrogatório a Peter Jordan, lhe tinha dito a mesma coisa.
Uma sombra caiu entre ambos. Perpassou pelo rosto dela, entristecendo-o, e depois desapareceu. Estava sentada muito calada e muito quieta. Os olhos humedeceram-se. Piscou-os para reprimir as lágrimas e recuperou a compostura. Vicary sentiu-se um idiota. Tudo aquilo tinha ido demasiado longe - ficado fora de controlo. Tinha
sido um idiota ao ir ter com ela. Não poderia sair nada de bom
dali. Naquele momento, o silêncio parecia metal a ser afiado. Distraidamente, pôs-se a bater nos bolsos do peito, à procura dos óculos em meia-lua, e tentou pensar
numa desculpa para se escapar. Helen pressentiu o desconforto dele. Ainda virada para a janela, disse:
- Já te fiz demorar muito tempo. Sei que tens de voltar para o gabinete.
- Sim, tenho mesmo. Desculpa. Helen continuava a falar para a janela:
- Não te deixes seduzir por eles. Quando a guerra terminar, livra-te desses horrorosos fatos cinzentos e volta para casa, para os teus livros. Gostava mais de ti nessa altura.
Vicary não disse nada, limitando-se a olhar para ela. Debruçou-se para lhe dar um beijo na cara, mas ela ergueu-a e, segurando-lhe o pescoço com os dedos, beijou-o ao de leve na boca. Sorriu e disse:
- Espero que mudes de opinião... e depressa.
- Até pode ser que sim.
- Otimo.
- Adeus, Helen.
- Adeus, Alfred. Ela pegou-lhe na mão.
- Tenho mais uma coisa para te dizer. Faças o que fizeres, não confies em Basil Boothby. Nunca, mas mesmo nunca, te vires de costas para ele.
E foi então que ele se lembrou do que ela tinha dito sobre o seu único amante: Era o Davtd com outra roupa. Não, Helen, pensou ele. Era o Boothby.
Caminhou. Se pudesse, teria corrido. Caminhou sem direção, sem destino. Caminhou até a cicatriz no joelho lhe começar a arder como se tivesse sido marcada com um ferro em brasa. Caminhou até o catarro de fumador se parecer com tuberculose. As árvores despidas de folhas do Green Park contorciam-se com o vento. O barulho do ar lembrava a água espumosa de um rápido. O vento levantou-lhe o impermeável desabotoado e quase o arrancou do corpo. Agarrou-o
com força pela gola e voou-lhe dos ombros como uma capa. O blacfcout caiu sobre Londres, como um véu. Na escuridão, foi de encontro a um americano agressivo. Ei, cuidadinho, Mac! Vicary murmurou um pedido de desculpas - Lamento imenso, mil perdões - e depois arrependeu-se. Ainda é o nosso país, raios.
Sentiu-se como se estivesse a ser conduzido, como se os movimentos já não fossem seus. De repente, lembrou-se do hospital em Sussex, onde tinha recuperado dos ferimentos. Do rapaz que tinha apanhado um tiro na coluna e já não conseguia mexer os braços nem as pernas. Da maneira como tinha descrito a Vicary a dormência flutuante que
sentia quando os médicos lhe moviam os membros inertes. Meu Deus, Helen! Como é que foste
capaz? O Boothby! Meu Deus, Helen! Irromperam-lhe pela cabeça imagens repugnantes
dos dois a fazerem amor. Fechou os olhos e tentou reprimi-las. Raios me partam! Raios me partam! Toda agente menos Basil Boothby! Ficou espantado com a forma absurda
como uma parte da sua vida se tinha entrelaçado e tocado noutra. Helen e Boothby - absurdo. Demasiado absurdo para considerar a hipótese. Mas era verdade, ele sabia-o.
Onde estava naquele preciso momento? Sentiu o cheiro do rio e seguiu nessa direção. Victoria Embankment. Rebocadores arrastavam barcaças pelo rio, com as luzes de navegação apagadas e uma sirene de nevoeiro a tocar ao longe. Ouviu um homem gemer de prazer e achou que era apenas imaginação sua. Olhou para a esquerda e, no escuro,
conseguiu vislumbrar uma prostituta com as mãos enfiadas na braguilha de um soldado. Oh, Deus do céu! Peço desculpa.
Estava a andar novamente. Sentiu um impulso irresistível de ir até ao gabinete de Boothby e de lhe espetar um murro na cara. Lembrou-se do tamanho de Boothby e dos rumores acerca da sua destreza nas artes marciais e resolveu que seria o mesmo que uma tentativa de suicídio. Sentiu uma vontade imensa de voltar para o Duke's, ir buscar Helen e levá-la para casa, sem querer saber das consequências. Foi então que as imagens do caso lhe começaram a irromper pela cabeça, como acontecia sempre. O dossiê de Vogel vazio. Karl Becker na sua cela cheia de humidade - Contei a Boothby. A cara desfeita a tiro de Rose Morely. A saída em lágrimas de Grace Clarendon do covil
de Boothby. O Pelicano. Hawke, o espião de Boothby de Oxford. Teve a sensação desconfortável de o estarem a dirigir. Pensou: Será que também sou um Hawke?
E onde estava naquele momento? Northumberland Avenue. Andou mais devagar, ouvindo o rugido agradável do trânsito do final da tarde. Levantou os olhos e viu uma rapariga atraente a olhar impacientemente para os carros que passavam. Era Grace Clarendon não havia hipótese de confundir o seu cabelo loiro e os lábios vermelhos cor de sangue. Um grande Humber azul encostou ao passeio. A viatura de Boothby. A porta abriu-se e Grace entrou para o carro, que se meteu no trânsito. Vicary virou a cabeça e desviou o olhar quando o carro passou por ele velozmente.
Vicary foi de carro para West Halkin Street. A noite tinha caído e, com ela, tinha vindo uma forte chuvada, como um temporal de primavera. Vicary limpou o vidro da janela embaciada e espreitou pela abertura. Uma multidão de londrinos deslocava-se pelos passeios como refugiados a fugirem de um exército em marcha - encolhidos debaixo de gabardinas e chapéus de chuva, alguns virados pelo vento, com as lanternas para o blackout a perscrutarem tenuemente a escuridão molhada. Vicary refletiu sobre a estranha ironia do destino que o tinha colocado no banco de trás de um carro governamental e não lá fora, com o resto das pessoas. De repente, pensou em Helen e interrogou-se onde estaria ela - num sítio seguro e seco, esperava. Pensou em Grace Clarendon, a entrar para o banco de trás do carro de Boothby, e perguntou-se o que raio estaria ela a fazer ali. Seria a resposta muito simples? Andaria a dormir com Boothby e Harry ao mesmo tempo? Ou seria alguma coisa mais sinistra? Lembrou-se
das palavras iradas gritadas a Boothby no segredo do gabinete deste: Não me pode
fazer isto! Sacana! Sacana dum raio! Vicary pensou: Diga-me o que é que ele a obrigou
a fazer, Grace, porque, por mais que eu tente, não consigo percebê-lo sozinho.
O carro parou à porta da mansão. Vicary saiu e, utilizando a pasta como escudo para se proteger da chuva, entrou a correr na casa. Parecia um teatro do West End a braços com os preparativos para
uma hesitante noite de estreia. Tinha aprendido a gostar do ambiente Daquele lugar - os vigias a tagarelarem ruidosamente enquanto vestiam o equipamento próprio para o mau tempo antes de mais uma noite passada nas ruas, o técnico a verificar se a captação de som pelos microfones instalados em casa de Jordan estava a ser transmitida em condições, o cheiro a comida a vir da cozinha.
Qualquer coisa no aspeto de Vicary devia irradiar tensão, já que ninguém se dirigiu a ele quando avançou cuidadosamente pela confusão do centro de operações e subiu as escadas para a biblioteca. Despiu o impermeável e pendurou-o no cabide atrás da porta. Pousou a pasta em cima da secretária. A seguir, atravessou o corredor e deu com Peter Jordan diante de um espelho a vestir o uniforme da marinha.
Pensou: Se os vigias são os meus ajudantes de cena, então Jordan é a minha vedeta e o uniforme o guarda-roupa dele.
Vicary observou-o atentamente. Não parecia sentir-se confortável a usar o uniforme - tal como Vicary não se sentia quando desenterrava o smoking uma vez em cada dez anos e tentava lembrar-se de como encaixava tudo aquilo. Vicary aclarou a garganta delicadamente para anunciar a sua presença. Jordan virou a cabeça, fitou Vicary por um instante e depois voltou a dirigir a atenção para o seu reflexo no espelho.
Jordan perguntou:
- Quando é que isto vai acabar?
Tinha-se tornado parte do ritual noturno deles. Todas as noites, antes de Vicary o enviar para mais um encontro com Catherine Blake, com uma nova leva de material da Operação Kettledrum dentro da pasta, Jordan fazia-lhe a mesma pergunta. Vicary esquivava-se sempre a ela. Mas naquele momento disse:
- Por acaso, até é capaz de acabar muito depressa.
Jordan levantou os olhos bruscamente, depois olhou para uma cadeira vazia e disse:
- Sente-se. Está com um aspeto horrível. Quando foi a última vez que dormiu?
- Creio que foi numa noite em maio de 1940 - respondeu Vicary, deixando-se cair na cadeira.
- Calculo que não me possa dizer porque é que tudo isto está prestes a acabar, pois não?
Vicary abanou a cabeça lentamente.
- Lamento, mas não.
- Também me parecia que não.
- E faz-lhe diferença?
- Suponho que nem por isso.
Jordan acabou de se vestir. Acendeu um cigarro e sentou-se à frente de Vicary.
- E estou autorizado a fazer-lhe alguma pergunta?
- Isso depende inteiramente da pergunta. Jordan sorriu de forma simpática.
- Para mim, é evidente que o senhor não é um agente dos serviços secretos profissional. O que fazia antes da guerra?
- Era professor de história europeia no University College London.
Vicary teve uma sensação de estranheza ao dizer aquilo, como se estivesse a ler o currículo de outra pessoa. Parecia-lhe ter sido há uma vida - há duas vidas.
- E como acabou a trabalhar para o MI5?
Vicary hesitou, mas decidiu que não estaria a violar nenhum decreto de segurança se respondesse e contou-lhe a história.
- E gosta do seu trabalho?
- Às vezes. E depois há vezes em que o detesto e mal posso esperar para regressar ao mundo académico e trancar a porta.
- Por exemplo, em que alturas?
- Por exemplo, agora - respondeu Vicary sem nenhuma entoação especial.
Jordan não teve qualquer reação. Foi como se percebesse que nenhum agente dos serviços secretos, por mais calejado que fosse, pudesse de facto desfrutar de uma operação daquele tipo.
- Casado?
- Não.
- E já foi?
- Nunca.
- Porque não?
Três horas antes, tinha respondido à mesma pergunta defronte Já mulher que sabia a resposta. E, naquele preciso instante, o agente dele estava a perguntar-lhe o raio da mesma coisa. Sorriu tenuemente e disse:
Suponho que nunca encontrei a mulher certa.
Jordan estava a examiná-lo. Vicary sentia-o e não gostava especialmente disso. Estava habituado a que o relacionamento fosse ao contrário - com Jordan e com os espiões alemães que tinha controlado. Era Vicary que espiolhava, era Vicary que arrombava os cofres onde se escondiam as emoções e esgravatava feridas antigas até começarem a sangrar, era Vicary que perscrutava à procura dos pontos fracos e depois espetava o punhal. Calculou que essa fosse uma das razões que fazia de si um bom agente para a Operação Double Cross. O cargo permitia-lhe contemplar as vidas de desconhecidos e aproveitar-se dos defeitos deles sem ter de enfrentar os seus. Pensou em Karl Becker sentado na cela, com o pardacento pijama da prisão. Vicary apercebeu-se de que gostava de ser ele a deter o controlo absoluto, de ser ele a manipular e a enganar, de ser ele a puxar os cordelinhos. Pensou: Será que eu sou assim por a Helen me ter despachado há vinte e cinco anos? Tirou um maço de Plajer's do casaco
e acendeu um distraidamente.
Jordan apoiou o cotovelo no braço da cadeira e encostou o queixo ao punho. Franziu o sobrolho e fitou Vicary como se este fosse uma ponte instável em risco de desabar.
- Acho que o mais certo é ter encontrado a mulher certa algures pelo caminho e ela não ter retribuído o seu amor.
- Ouça lá...
- Ah, então afinal tenho razão. Vicary soprou o fumo para o teto.
- O senhor é um homem inteligente. Sempre soube isso.
- Como é que ela se chamava?
- Chamava-se Helen. -- E o que aconteceu?
- Lamento, Peter.
- E ainda a vê?
Abanando a cabeça, Vicary respondeu:
- Não.
- Arrependimentos?
Vicary lembrou-se das palavras de Helen: Não queria que me dissesses que eu te tinha dado cabo da vida. E será que ela lhe tinha dado cabo da vida? Gostava de dizer a si próprio que ela não o tinha feito. Como a maioria dos solteiros, gostava de dizer a si próprio que tinha muita sorte em não ter o fardo de uma mulher e de uma família. Tinha a sua privacidade e o seu trabalho e gostava de não ter de prestar satisfações a mais ninguém. Tinha o dinheiro de que precisava para fazer o que queria. A casa estava decorada ao seu gosto e não tinha de se preocupar com a hipótese de alguém lhe andar a remexer nas coisas ou nos papéis. Mas, na verdade, sentia-se sozinho - por vezes, terrivelmente sozinho. Na verdade, desejava ter alguém com quem partilhar os triunfos e as desilusões. Desejava que alguém quisesse partilhar os seus com ele. Quando analisava as coisas com algum distanciamento e olhava para a sua vida objetivamente, faltava qualquer coisa: risos, ternura, por vezes um pouco de barulho e desordem. Era meia vida, apercebeu-se. Meia vida, meio lar e, em última análise, meio homem.
Se tenho arrependimentos?
- Sim, arrependo-me de uma coisa - afirmou Vicary, surpreendido por se estar a ouvir a dizer realmente aquelas palavras. - Arrependo-me de o facto de não me ter casado me ter privado de filhos. Sempre achei que devia ser maravilhoso ser pai. Acho que teria dado um bom pai, apesar de todas as minhas idiossincrasias e dos meus defeitos.
Um sorriso passou rapidamente pelo rosto de Jordan, na quase escuridão, e a seguir dissipou-se.
- O meu filho é o mundo inteiro para mim. É o meu elo de ligação com o passado e a minha porta para o futuro. Ele é tudo o que me resta, a única coisa que é verdadeira. A Margaret foi-se e a Catherine era uma mentira.
Parou por uns instantes, olhando fixamente para a cinza do cigarro a extinguir-se.
- Mal posso esperar que isto termine para poder voltar para ele. Não paro de pensar no que lhe vou dizer quando ele me perguntar: Patinho, o que fizeste na guerra?
Que raio é que eu lhe devo dizer?
A verdade. Diga-lhe que era um engenheiro talentoso e que
construiu uma engenhoca que nos ajudou a vencer a guerra.
- Mas isso não é verdade.
Houve qualquer coisa no tom de voz de Jordan que fez com que Vicary levantasse os olhos bruscamente. Pensou: Que parte é que não é verdade?
Vicary perguntou:
- Importa-se que lhe faça agora umas perguntas?
- Pensava que estava autorizado a perguntar-me o que lhe apetecesse, com ou sem a minha permissão.
- Ambiente diferente, razões diferentes para perguntar.
- Esteja à vontade.
- Amava-a?
- Já a viu?
Vicary deu-se conta de que nunca a tinha visto em pessoa, apenas em fotografias de vigilância.
- Sim, amava-a. Era linda, era inteligente, era encantadora e é óbvio que era uma atriz com um talento incrível. E, acredite se quiser, mas achei que ela daria uma boa mãe para o meu filho.
- E ainda a ama? Jordan desviou o olhar.
- Amo a pessoa que julgava que ela era. Não amo a mulher que me diz que ela é. Uma parte de mim quase acredita que tudo isto não passa de uma brincadeira qualquer. Por isso, suponho que eu e o senhor tenhamos uma coisa em comum.
- E qual é? - retorquiu Vicary.
- Apaixonámo-nos os dois pela mulher errada. Vicary riu-se. Olhou para o relógio e disse:
- Está a ficar tarde.
- Sim - concordou Jordan.
Vicary levantou-se e conduziu Jordan pelo corredor até à biblioteca. Abriu a pasta e tirou de lá um molho de documentos. Entregou-os a Jordan, que os guardou na sua pasta. Ficaram a olhar um para o outro, num silêncio incómodo, até que Vicary disse:
- Lamento. Se houvesse outra forma qualquer de fazer isto, eu usá-la-ia. Mas não há. Pelo menos, ainda não.
Jordan não disse nada.
- Mas há uma coisa que sempre me incomodou no seu interrogatório: porque é que não se conseguiu recordar dos nomes dos homens que o abordaram no sentido de participar na Operação Mulberry.
- Encontrei-me com dezenas de pessoas nessa semana. Não me consigo lembrar de metade.
- Disse que um deles era inglês.
- Sim.
- E o nome dele não seria por acaso Broome?
- Não, o nome dele não era Broome - respondeu Jordan sem hesitar. - Acho que me iria lembrar disso. Provavelmente, o melhor é pôr-me a caminho.
Jordan avançou para a porta.
- Só tenho mais uma pergunta. Jordan voltou-se e perguntou:
- E qual é?
- O senhor é o Peter Jordan, não é?
- Que raio de pergunta é essa?
- Na verdade, até é bastante simples. O senhor é o Peter Jordan?
- Claro que sou o Peter Jordan. Sabe, o senhor devia mesmo dormir um pouco, professor.