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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPIÃO IMPROVAVEL / Daniel Silva
O ESPIÃO IMPROVAVEL / Daniel Silva

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

"Em tempo de guerra", escreveu Winston Churchill, "a verdade é tão preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras." No caso das operações de contraespionagem britânicas, isto implicava encontrar um agente o mais improvável possível: um professor de História chamado Alfred Vicary, escolhido pessoalmente por Churchill para expor um traidor extremamente perigoso, mas desconhecido. Contudo, os nazis também escolheram um agente improvável: Catherine Blake, a bela viúva de um herói de guerra, voluntária num hospital e espia naxi sob as ordens diretas de Hitler, incumbida de desvendar os planos dos Aliados para o Dia D...

 

 

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE

UM
SUFFOLK, INGLATERRA: NOVEMBRO DE 1938
Beatrice Pymm morreu porque perdeu o último autocarro para Ipswich.
Vinte minutos antes de morrer, encontrava-se na sombria paragem de autocarros e consultava o horário à luz mortiça do único candeeiro de rua da povoação. Daí a poucos
meses, o candeeiro seria desligado, de acordo com o regulamento do blackout. Beatrice Pymm nunca viria a saber do blackout.
Por agora, o candeeiro brilhava apenas o suficiente para que Beatrice conseguisse ler o horário mergulhado nas sombras. Para o ver melhor, pôs-se em bicos de pés
e seguiu os números com a ponta do indicador, manchado de tinta. A sua mãe, já falecida, queixava-se sempre da tinta com amargura. Considerava impróprio de uma senhora
ter as mãos sempre manchadas. Tinha desejado que Beatrice se tivesse dedicado a um passatempo mais asseado - música, voluntariado, até mesmo a escrita, embora a
mãe de Beatrice não tivesse os escritores em grande conta.
- Raios! - resmungou Beatrice, com a ponta do dedo ainda colada ao horário.
Normalmente, era extremamente pontual. Numa vida sem responsabilidades financeiras, sem amigos, sem família, tinha delineado um plano pessoal rigoroso. Naquele dia, tinha-se desviado dele pintara demasiado tempo e regressara demasiado tarde.
Retirou a mão do horário e levou-a ao rosto, fazendo um esgar de preocupação. A cara do teu pai, dizia a mãe com uma ponta
desespero - uma testa larga e plana, um grande nariz nobre, um queixo recuado. com apenas trinta anos, tinha o cabelo prematuramente raiado de grisalho.
Perguntou-se o que fazer. A sua casa em Ipswich ficava a pelo menos oito quilómetros, demasiado para ir a pé. Ao início da noite, haveria ainda a luz do trânsito na estrada. Talvez alguém lhe desse boleia.
Deixou escapar um longo suspiro de frustração. A sua respiração gelou, pairou diante do seu rosto e depois afastou-se ao sabor do vento frio vindo do pântano. As nuvens dispersaram-se e uma Lua luminosa brilhou através delas. Beattice olhou para cima e viu um halo de gelo em redor dela. Arrepiou-se, sentindo o frio pela primeira vez.
Pegou nas suas coisas: uma mochila de couro, uma tela, um cavalete gasto. Tinha passado o dia a pintar ao longo do estuário do Orwell. A pintura era o seu único
amor e a paisagem da East Anglia o seu único tema. Isso levava-a de facto a uma certa repetição no trabalho. A mãe gostava de ver pessoas nos quadros - cenas de
rua, cafés cheios. Uma vez, até sugeriu a Beatrice que passasse algum tempo em França, de modo a prosseguir a carreira. Beatrice recusou. Adorava os pântanos e os
diques, os estuários e as lagoas, os terrenos pantanosos a norte de Cambridge, as pastagens ondulantes de Suffolk.
com relutância, começou a dirigir-se para casa, caminhando a bom ritmo ao longo da beira da estrada, apesar do peso que transportava. Vestia uma camisa de homem
de algodão, manchada de tinta tal como os seus dedos, uma pesada camisola de lã grossa que a fazia sentir-se como um urso de peluche, um casacão demasiado comprido
nas mangas e calças enfiadas dentro das botas de borracha. Afastou-se do alcance da esfera amarela do candeeiro; a escuridão engoliu-a. Não sentiu qualquer apreensão
por caminhar na escuridão do campo. A mãe, assustada com as suas longas caminhadas solitárias, avisava-a constantemente para ter cuidado com os violadores. Beatrice
descartava sempre a ameaça, considerando-a improvável.
Arrepiou-se com o frio. Pensou na sua casa, um grande chalé nos arredores de Ipswich, que lhe fora deixado pela mãe. Por trás da casa,
no extremo da alameda do jardim, tinha construído um estúdio banhado de luz, onde passava a maior parte do tempo. Para ela, não era invulgar passar dias sem falar
com outro ser humano.
Tudo isto, e ainda mais, era do conhecimento do seu assassino.
Após cinco minutos de caminhada, ouviu o barulho de um motor atrás de si. Um veículo comercial, pensou. Antigo, a julgar pelo ruído irregular do motor. Beatrice
observou o brilho dos faróis espalhar-se como o nascer do Sol através da erva, de ambos os lados da estrada. Ouviu o motor perder potência e o carro começar a avançar
em ponto morto. Sentiu uma rajada de vento quando o veículo a ultrapassou. Sufocou com o fedor do escape.
De seguida, viu-o encostar à berma da estrada e parar.
A mão, visível sob o intenso luar, impressionou Beatrice pela sua estranheza. Saiu pela janela do condutor segundos depois de a carrinha ter parado e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Uma grossa luva de pele, reparou Beatrice, do género das utilizadas pelos trabalhadores que transportam coisas pesadas. Um fato-macaco azul-escuro, talvez.
A mão acenou-lhe uma vez mais. Lá estava outra vez - havia qualquer coisa no modo como se movia que não batia certo. Ela era artista e os artistas conhecem o movimento e o fluir. E havia mais qualquer coisa. Quando a mão se movia, expunha a pele entre a ponta da manga e a base da luva. Mesmo sob a luz fraca, Beatrice conseguia ver que a pele era clara e sem pelos - não parecia o pulso de nenhum trabalhador que já tivesse visto, invulgarmente delgado.
Contudo, não se sentiu alarmada. Acelerou o ritmo e alcançou a porta do passageiro com alguns passos. Abriu-a e colocou as coisas no espaço em frente ao banco. De seguida, ergueu os olhos pela primeira vez para o interior da carrinha e apercebeu-se de que o condutor tinha desaparecido.
Nos últimos segundos conscientes da sua vida, Beatrice Pymm interrogou-se por que razão utilizaria alguém uma carrinha para
transportar uma moto. Ali estava ela, deitada de lado na parte de trás, com dois recipientes de gasolina junto dela.
Ainda de pé junto da carrinha, fechou a porta e chamou. Não houve resposta.
Segundos mais tarde, ouviu o som de uma bota de couro no cascalho.
Ouviu de novo o som, mais perto.
Virou a cabeça e viu o condutor ali parado. Olhou para a cara dele e viu apenas uma máscara de lã preta. Dois poços de um azul-pálido fixavam-na friamente por detrás dos buracos para os olhos. Lábios de aspeto feminino, ligeiramente entreabertos, brilhavam por detrás da abertura para a boca.
Beatrice abriu a boca para gritar. Só conseguiu soltar um breve suspiro antes de o condutor lhe enfiar a mão enluvada na boca. Os dedos penetraram-lhe na carne macia da garganta. A luva sabia horrivelmente a poeira, gasolina e óleo de motor. Beatrice começou a vomitar os restos do almoço do seu piquenique - frango assado, queijo Stilton e vinho tinto.
Depois sentiu a outra mão a tatear-lhe o seio esquerdo. Por um instante, Beatrice pensou que os receios da mãe em relação a violações tinham sido finalmente comprovados. Mas a mão que lhe tocava no peito não era a mão de um molestador ou de um violador. A mão era hábil, como a de um médico, e curiosamente delicada. Moveu-se do peito para as costelas, pressionando com força. Beatrice estremeceu, arquejou e mordeu com força. O condutor pareceu não sentir nada através da luva grossa.
A mão alcançou o fundo das costelas e sondou a carne macia ao cimo do abdómen. Não foi mais além. Um dedo continuou a apertar essa zona. Beatrice ouviu um estalido
agudo.
Um instante de dor insuportável, uma explosão de luz branca e brilhante.
A seguir, uma escuridão benévola.
O assassino tinha treinado vezes sem conta para aquela noite, mas era a primeira vez. O assassino retirou a mão enluvada da boca
da vítima, virou-se e vomitou violentamente. Não havia tempo para sentimentalismos. O assassino era um soldado - major dos serviços secretos - e Beatrice Pymm em
breve seria a inimiga. A sua morte, embora lamentável, era necessária.
O assassino limpou o vómito dos bordos da máscara e meteu mãos à obra. O assassino agarrou na faca de ponta e mola e puxou-a. A ferida reteve-a com força, mas o
assassino puxou com mais força e a lâmina deslizou para fora.
Um assassínio excelente, limpo, com muito pouco sangue.
Vogelficaria orgulhoso.
O assassino limpou o sangue da navalha, voltando a fechar a lâmina, e guardou-a no bolso do fato-macaco. Depois, o assassino agarrou o corpo por baixo dos braços,
arrastou-o para a parte de trás da carrinha e deixou-o cair na berma de alcatrão esboroada.
O assassino abriu as portas traseiras. O corpo entrou em convulsões.
Foi uma luta levantar o corpo e colocá-lo na parte de trás da carrinha, mas um momento depois estava feito. O motor hesitou, depois pegou. A seguir, a carrinha estava de novo a caminho, com os faróis a brilharem através da povoação às escuras, virando para a estrada deserta.
O assassino, tranquilo apesar da presença do corpo, cantou calmamente uma canção da infância para ajudar a passar o tempo. Era uma viagem longa, quatro horas pelo menos. Durante os preparativos, o assassino tinha percorrido a estrada de moto, a mesma que agora se encontrava ao lado de Beatrice Pymm. A viagem levaria muito mais tempo na carrinha. O motor tinha pouca potência, os travões eram maus e fugia bastante para a direita.
O assassino prometeu a si mesmo roubar uma melhor na vez seguinte.
As facadas no coração, por regra, não matam instantaneamente. Mesmo que a arma penetre numa cavidade, o coração continua a bater durante algum tempo até a vítima se esvair em sangue.
Enquanto a carrinha avançava ruidosamente pela estrada, a cavidade torácica de Beatrice Pymm encheu-se rapidamente de sangue.
A sua mente ficou num estado próximo do coma. Teve a sensação de estar prestes a morrer.
Recordou-se dos avisos que a mãe lhe fazia por andar sozinha à noite. Sentiu a viscosidade húmida do seu próprio sangue a escoar-se do corpo para a blusa. Interrogou-se se o seu quadro teria sido danificado.
Depois ouviu o canto. Um belo canto. Levou algum tempo, mas percebeu por fim que o condutor não estava a cantar em inglês. A canção era alemã e a voz a de uma mulher.
Foi então que Beatrice Pymm morreu.
Primeira paragem, dez minutos depois, na margem do rio Orwell, o mesmo lugar onde Beatrice Pymm tinha estado a pintar naquele dia. A assassina deixou o motor da carrinha ligado e saiu. Dirigiu-se ao lugar do passageiro, abriu a porta e tirou o cavalete, a tela e a mochila.
O cavalete foi montado muito próximo da água, que corria lentamente, e a tela colocada nele. A assassina abriu a mochila, retirou de lá as tintas e a palete e pousou-as no solo molhado. Lançou um olhar ao quadro inacabado e achou que era bastante bom. Fora uma pena que não tivesse podido matar alguém com menos talento.
De seguida, retirou a garrafa meio cheia de vinho tinto, derramou o que restava no rio e atirou-a para junto das pernas do cavalete. Pobre Beatrice. Demasiado vinho, um passo descuidado, um mergulho na água gelada, uma lenta viagem até ao mar alto.
Causa da morte: presumivelmente afogada, presumivelmente acidental.
Caso encerrado.
Seis horas mais tarde, a carrinha atravessou a aldeia de Whitchurch, nas West Midlands, e virou para um caminho de terra batida que contornava um campo de cevada. A vala tinha sido cavada na noite anterior - suficientemente profunda para esconder um cadáver, mas não tão profunda que ele não pudesse vir a ser descoberto.
Ela arrastou o corpo de Beatrice Pymm para fora da carrinha e despiu-lhe a roupa ensanguentada. Agarrou o cadáver nu pelos pés e arrastou-o até junto da vala. A seguir, a assassina voltou à carrinha e tirou de lá três artigos - um malho em ferro, um tijolo vermelho e uma pequena pá.
Esta era a parte que ela mais temia; por algum motivo, pior do que o assassínio em si. Largou os três artigos junto ao cadáver e acalmou-se. Lutando contra outra onda de náusea, segurou o malho na mão enluvada, ergueu-o e esmagou o nariz de Beatrice Pymm.
Quando terminou, mal conseguia olhar para o que restava do rosto de Beatrice Pymm. Utilizando primeiro o malho e depois o tijolo, tinha-o esmagado numa massa de sangue, tecido, ossos quebrados e dentes esmigalhados.
Conseguira o efeito pretendido - as feições tinham sido apagadas, o rosto tornara-se irreconhecível.
Fizera tudo o que lhe tinham mandado fazer. Era para ser diferente. Tinha sido treinada num campo especial durante muitos meses, muito mais tempo do que os outros agentes. Iria ser infiltrada mais fundo. Fora por isso que tivera de matar Beatrice Pymm. Não iria desperdiçar o seu tempo a fazer o que outros, agentes menos dotados, poderiam fazer - contar tropas, monitorizar caminhos de ferro, avaliar danos causados por bombas. Isso era fácil. Seria reservada para maiores e melhores coisas. Seria como uma bomba-relógio em contagem decrescente no interior de Inglaterra, à espera de ser ativada, à espera de explodir.
Encostou a bota às costelas e empurrou. O cadáver caiu na vala. Cobriu o corpo com terra. Recolheu as roupas manchadas de sangue e atirou-as para as traseiras da carrinha. Do banco da frente, retirou uma pequena bolsa contendo um passaporte holandês e uma carteira. A carteira tinha documentos de identificação, uma carta de condução de Amesterdão e fotografias de uma família holandesa, gorda e sorridente.
Tudo isto tinha sido forjado pela Abwehr em Berlim.
Atirou a bolsa para as árvores na orla do campo de cevada, a alguns metros da vala. Se tudo corresse conforme planeado, o corpo, já em avançado estado de decomposição e mutilado, seria encontrado daí a alguns meses, juntamente com a bolsa. A polícia iria julgar que a mulher morta era Christa Kunst, uma turista holandesa que entrara no país em outubro de 1938 e cujas férias tinham terminado de modo lamentável e violento.
Antes de partir, deu uma última olhadela à vala. Sentiu uma ponta de tristeza por Beatrice Pymm. Na morte, tinham-lhe sido roubados
o rosto e o nome.
Outra coisa: a assassina tinha agora perdido a sua própria identidade. Durante seis meses, tinha vivido na Holanda, visto que o holandês era uma das suas línguas. Tinha construído cuidadosamente um passado, votado numa eleição local em Amesterdão, permitindo-se mesmo arranjar um jovem amante, um rapaz de dezanove anos com um imenso apetite e disposição para aprender coisas novas. Agora, Christa Kunst jazia numa vala rasa, na orla de um campo de cevada inglês.
A assassina assumiria uma nova identidade pela manhã.
Mas naquela noite não era ninguém.
Voltou a encher o depósito da carrinha e conduziu durante vinte minutos. A povoação de Alderton, assim como Beatrice Pymm, tinha sido cuidadosamente escolhida -
um local onde uma carrinha a arder na berma da estrada, a meio da noite, não seria imediatamente notada.
Tirou a mota da carrinha, apoiando-a numa pesada prancha de madeira, uma tarefa difícil até para um homem forte. Debateu-se com a mota e desistiu quando esta se
encontrava a um metro da estrada. A mota caiu no chão com grande estrondo, o único erro que cometeu durante toda a noite.
Pegou na mota e fê-la deslizar, em ponto morto, até ficar a cerca de cinquenta metros da carrinha. Depois regressou à carrinha. Um dos recipientes ainda continha
alguma gasolina. Espalhou-a no interior da carrinha, despejando a maioria do combustível na roupa de Beatrice Pymm, manchada de sangue.

Quando a carrinha se transformou numa bola de fogo, já ela tinha ligado a mota. Observou a carrinha a arder durante alguns segundos, com a luz alaranjada a dançar
no campo árido e a linha das árvores um pouco mais longe.
A seguir, virou a mota para sul e dirigiu-se para Londres.
DOIS
OYSTER BAY, NOVA IORQUE: AGOSTO DE 1939
Dorothy Lauterbach considerava a sua imponente mansão de pedra a mais bela da North Shore. A maioria dos seus amigos concordava, porque ela era mais rica e eles
queriam convites para as duas festas que os Lauterbach davam todos os verões - um encontro turbulento e ébrio, em junho, e uma ocasião mais meditativa, no final
de agosto, quando a temporada de verão findava num desenlace melancólico.
As traseiras da casa tinham vista para o estuário do Sound. Havia uma agradável praia de areia branca trazida de camião do Massachusetts. Da praia, partia um relvado
bem fertilizado que corria em direção às traseiras da casa, interrompido aqui e ali para orlar os requintados jardins, o campo de ténis em terra vermelha, a piscina
em azul-real.
Os empregados tinham-se levantado cedo para prepararem o bem merecido dia de inatividade da família, montando o equipamento do croquet e a rede de badminton em que
ninguém tocaria, retirando a lona protetora do barco a motor com casco de madeira, que nunca seria desamarrado da doca. Um dia, um empregado apontara corajosamente
à senhora Lauterbach a insensatez desse ritual quotidiano. A senhora Lauterbach tinha-lhe dado uma áspera reprimenda e esse hábito nunca mais fora questionado. Os
brinquedos eram colocados nos seus lugares em cada manhã, ficando abandonados com a mesma tristeza das decorações de Natal em maio, até serem cerimoniosamente retirados
ao pôr do Sol e passarem a noite outra vez guardados.
O piso térreo da casa estendia-se ao longo da água desde o jardim de inverno até à sala de estar, à sala de jantar e, finalmente, à sala Florida embora nenhum dos
outros Lauterbach compreendesse por que razão Dorothy insistia em chamá-la sala Florida quando o sol de verão na North Shore também podia ser tão quente.
A casa tinha sido comprada trinta anos antes, quando os jovens Lauterbach supunham que iriam produzir um pequeno exército como prole. Em vez disso, tiveram apenas
duas filhas que não gostavam muito da companhia uma da outra - Margaret, uma frequentadora dojef-sef bela e muito popular, e Jane. Por isso, a casa tornou-se um
lugar pacífico, de sol quente e cores suaves, onde a maioria do ruído era produzida pelo roçagar de cortinas brancas ao sabor de ligeiras brisas e a incansável busca
da perfeição em todas as coisas de Dorothy Lauterbach.
Naquela manhã - a manhã após a última festa dos Lauterbach -, as cortinas pendiam imóveis nas janelas abertas, à espera de uma brisa que nunca viria. O sol resplandecia
e uma neblina difusa pairava sobre a baía. O ar estava tenso e compacto.
No andar de cima, no seu quarto, Margaret Lauterbach-Jordan tirou a camisa de dormir e sentou-se em frente do toucador. Penteou
o cabelo rapidamente. Era de um louro quase cinza, aclarado pelo sol e curto, fora de moda. Mas era confortável e fácil de cuidar. Além disso, gostava do modo como lhe enquadrava o rosto e realçava a longa e graciosa linha do pescoço.
Olhou para o seu corpo no espelho. Tinha finalmente perdido os últimos e renitentes quilos que tinha ganho quando ficara grávida do seu primeiro filho. As estrias tinham desaparecido e o ventre ostentava um bronzeado intenso. A barriga à mostra estava na moda naquele verão e ela gostava do modo como toda a gente na North Shore tinha ficado surpreendida com a sua forma física. Apenas os seios estavam diferentes - estavam maiores, o que não a apoquentava, porque Margaret sempre se sentira pouco à vontade em relação ao tamanho deles. Os novos sutiãs daquele verão eram mais pequenos e mais rígidos, concebidos para elevar os seios. Margaret gostava deles porque Peter gostava do aspeto que lhe davam.
Vestiu um par de calças de algodão, uma blusa sem mangas, atada com um nó abaixo dos seios, e umas sandálias rasas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho
uma última vez. Era linda - sabia disso -, mas não de um modo ousado, que fizesse virar cabeças nas ruas de Manhattan. A beleza de Margaret era intemporal e subtil, perfeita para a camada social em que tinha nascido.
Pensou: E não tarda nada vais ficar outra vez uma vaca gorda!
Afastou-se do espelho e abriu as cortinas. A luz erma do sol derramou-se pelo quarto. O relvado estava um caos. A tenda era desmontada, os fornecedores embalavam as mesas e as cadeiras, a pista de dança era levantada peça por peça e retirada. A relva, anteriormente verde e exuberante, tinha ficado toda pisada. Abriu as janelas
e aspirou o aroma adocicado a champanhe derramado. Algo nisso a deixou deprimida. Hitlerpode estar a preparar-se para conquistar a Polónia, mas foi reservado um
momento esplendoroso a todos os que assistiram este sábado à noite à gala anual de agosto dada por Bratton e Dorothy Lauterbach. Margaret já quase podia escrever
ela própria as colunas sociais.
Ligou o rádio na mesinha de cabeceira e sintonizou a WNYC. "Til Never Smile Again" tocava com suavidade. Peter agitou-se, ainda a dormir. À luz brilhante do sol,
mal se conseguia distinguir a sua pele de porcelana dos lençóis brancos de cetim. Outrora, ela pensava que os engenheiros eram homens com o cabelo cortado rente,
óculos pretos com lentes grossas e um monte de lápis nos bolsos das camisas. Peter não era assim - maçãs do rosto pronunciadas, uma fina linha do maxilar, suaves
olhos verdes, cabelo quase preto. Nesse momento, deitado na cama, com a parte superior do corpo exposta, tinha o aspeto, pensava Margaret, de um Miguel Angelo tombado.
Destacava-se na North Shore, destacava-se dos rapazes de cabelos claros que tinham nascido no meio de fortunas extraordinárias e planeavam viver a vida em espreguiçadeiras.
Peter era perspicaz, ambicioso e vivo. Mostrava-se muito superior a todos os outros. Margaret gostava disso.
Lançou um olhar ao céu nublado e franziu a testa. Peter detestava dias assim em agosto. Ficaria irritável e rabugento durante todo o dia. Haveria provavelmente uma
tempestade para arruinar a viagem de regresso à cidade.
Pensou: Talvez eu devesse esperar para lhe contar as novidades.
- Levanta-te, Peter, ou vamos ouvir das boas - disse Margaret, empurrando-o com o dedo grande do pé.
- Só mais cinco minutos.
- Não temos cinco minutos, querido. Peter não se mexeu.
- Café - suplicou.
As empregadas tinham deixado café à porta do quarto. Era um hábito que Dorothy Lauterbach detestava; achava que isso fazia o corredor do andar de cima parecer o
Plaza Hotel. Mas permitia-o, se isso significasse que as crianças cumpririam a única regra dos fins de semana - que desceriam para tomar o pequeno-almoço às nove horas em ponto.
Margaret encheu uma chávena de café e entregou-a a Peter. Este deslizou sobre o cotovelo e bebeu um pouco. De seguida, sentou-se na cama e observou Margaret.
- Como é que consegues ficar tão linda dois minutos depois de saíres da cama?
Margaret sentiu-se aliviada.
- Não há dúvida de que estás de bom humor. Temi que estivesses de ressaca e fosses andar perfeitamente insuportável o dia inteiro.
- E estou mesmo de ressaca. Benny Goodman está a tocar na minha cabeça e a minha língua parece que precisa de ser barbeada. Mas não tenho nenhuma intenção de me comportar de maneira...
Fez uma pausa.
- Qual foi a palavra que utilizaste?
- Insuportável.
Ela sentou-se na borda da cama.
- Há uma coisa de que temos de falar e esta parece ser uma altura tão boa como qualquer outra.
- Hum. Parece-me sério, Margaret.
- Depende - respondeu ela, olhando-o com o seu ar brincalhão e depois fingindo-se irritada. - Mas levanta-te e veste-te. Ou não és capaz de te vestir e ouvir ao mesmo tempo?
- Sou um engenheiro altamente preparado e altamente conceituado - retorquiu Peter, obrigando-se a sair da cama, gemendo com o esforço. - Talvez consiga.
- É sobre o telefonema de ontem à tarde.
- Aquele de que não quiseste falar?
- Sim, esse. Era o doutor Shipman. Peter parou de se vestir.
- Estou grávida outra vez. Vamos ter outro filho. - Margaret baixou os olhos e pôs-se a mexer no nó da blusa. - Não planeei nada disto. Limitou-se a acontecer. O meu corpo finalmente recuperou de ter tido o Billy e, bem, a natureza tomou o seu caminho - explicou ela, voltando a olhar para ele. - Suspeitava há algum tempo, mas tinha medo de to dizer.
- E por que raio é que haverias de ter medo de mo dizer?
Mas Peter sabia a resposta à sua própria pergunta. Tinha dito a Margaret que não queria ter mais filhos até ter realizado o sonho da sua vida: abrir a sua própria empresa de engenharia. com apenas trinta e três anos, tinha granjeado a reputação de ser um dos melhores engenheiros do país. Depois de se formar em primeiro lugar no seu ano, no prestigiado Rensselaer Polytechnic Institute, foi trabalhar para a Northeast Bridge Company, a maior empresa de construção da Costa Leste. Cinco anos mais tarde, foi nomeado engenheiro-chefe, tornou-se sócio e foi-lhe atribuída uma equipa de cem pessoas. A American Society of Civil Engineering nomeou-o engenheiro do ano, em
1938, pelo seu trabalho inovador numa ponte sobre o rio Hudson, no norte do estado de Nova Iorque. A Sdentific American publicou um perfil de Peter descrevendo-o como a mente da engenharia mais promissora da sua geração. Mas ele queria mais - queria a sua própria empresa. Bratton Lauterbach tinha prometido financiar a empresa de Peter quando chegasse a altura ideal, possivelmente no ano seguinte. Mas a ameaça de guerra tinha posto um travão a tudo isso. Se os Estados Unidos fossem arrastados para a guerra, deixaria de haver dinheiro, da noite para o dia, para obras públicas de grande envergadura. A nova empresa de Peter afundar-se-ia antes de ter uma hipótese de levantar voo.
- De quanto tempo estás? - perguntou ele.
- Quase dois meses.
O rosto de Peter abriu-se num sorriso.
- Não estás aborrecido comigo? - perguntou Margaret.
- Claro que não!
- E a tua empresa e tudo aquilo que disseste sobre termos de esperar para ter mais filhos?
Beijou-a.
- Isso não importa. Nada disso importa.
- A ambição é uma coisa maravilhosa, mas não demasiada ambição. Às vezes, tens de relaxar e divertir-te, Peter. A vida não é um ensaio geral.
Peter pôs-se de pé e acabou de se vestir.
- E quando é que tencionas dizer à tua mãe?
- No momento certo. Lembras-te da reação dela quando eu fiquei grávida do Billy. Pôs-me maluca. Tenho muito tempo para lhe dizer.
Peter sentou-se junto dela, na cama.
- Vamos fazer amor antes do pequeno-almoço.
- Não podemos, Peter. A mãe vai matar-nos se não descermos. Ele beijou-lhe o pescoço.
- O que foi que disseste sobre a vida não ser um ensaio geral? Ela fechou os olhos e a sua cabeça deslizou para trás.
- Isso não é justo. Estás a deturpar as minhas palavras.
- Não, não estou, estou a beijar-te.
- Sim...
- Margaret!
A voz de Dorothy Lauterbach ecoou pelas escadas acima.
- Estamos a ir, mãe.
- Quem me dera - murmurou Peter, seguindo-a depois para o andar de baixo a fim de tomar o pequeno-almoço.
Walker Hardegen juntou-se-lhes para o almoço junto à piscina. Sentaram-se debaixo do guarda-sol: Bratton e Dorothy, Margaret e Peter, Jane e Hardegen. Uma brisa
húmida e inconstante soprava do Sound. Hardegen era o braço direito de Bratton Lauterbach no banco. Era alto e largo de peito e ombros, e a maioria das mulheres
achava que ele se parecia com Tyrone Power. Era um homem de Harvard e durante o seu último ano tinha marcado um touchdown no jogo com Yale. Os seus tempos de futebol americano tinham-no deixado
com um joelho arruinado e ligeiramente coxo, o que de certo modo o tornava ainda mais atraente. Tinha o sotaque indolente de New England e sorria facilmente.
Pouco tempo depois de Hardegen ter chegado ao banco, convidou Margaret para sair e tiveram vários encontros. Hardegen queria que a relação continuasse, mas Margaret não quis. Terminou tudo discretamente, mas ainda via Walker com regularidade em festas e continuaram amigos. Seis meses mais tarde, conheceu Peter e apaixonou-se. Hardegen ficou fora de si. Uma noite no Copacabana, um pouco bêbado e com muitos ciúmes, acercou-se de Margaret e implorou-lhe que voltasse a andar com ele. Quando ela recusou, agarrou-a bruscamente pelo ombro e abanou-a. Pela expressão gelada no seu rosto, Margaret tornou claro que lhe destruiria a carreira se ele não acabasse com o seu comportamento infantil.
O incidente ficou entre eles. Nem mesmo Peter sabia. Hardegen rapidamente ascendeu nas fileiras do banco e tornou-se o executivo de elevada posição em quem Bratton depositava mais confiança. Margaret notava que existia uma tensão silenciosa entre Hardegen e Peter, uma competitividade natural. Ambos eram jovens, bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. A situação tinha piorado um pouco antes do verão, quando Peter descobriu que Hardegen se opunha ao empréstimo para a sua empresa de engenharia.
- Eu não sou grande adepto de Wagner, especialmente no clima atual - disse Hardegen, fazendo uma pausa para dar um gole no vinho branco gelado, enquanto toda a gente ria do seu comentário. Mas tem mesmo de ir ao Metropolitan ver o Herbert Janssen no Tannhàuser. É maravilhoso.
- Tenho ouvido falar muitíssimo bem dessa ópera - respondeu Dorothy.
Ela adorava falar de ópera, teatro, livros e filmes novos. Hardegen, que conseguia ver e ler tudo apesar de uma imensa carga de trabalho no banco, fazia-lhe a vontade. As artes eram um tema seguro, ao contrário de assuntos familiares e de mexericos, que Dorothy deplorava.
- Vimos a Ethel Merman no novo musical do Cole Porter disse Dorothy, enquanto o primeiro prato, uma salada fria de camarão, era servido. - Não me lembro agora do título.
- Dubany Was a Laãy - interveio Hardegen. - Adorei. Hardegen continuou a falar. Na véspera, tinha ido a Forest Hills
à tarde e visto Bobby Riggs ganhar o jogo que estava a disputar. Achava que Riggs seria garantidamente o vencedor do Open desse ano. Margaret observou a mãe, que observava Hardegen. Dorothy adorava Hardegen, tratando-o praticamente como um membro da família. Tinha tornado claro que preferia Hardegen a Peter. Hardegen era oriundo de uma família rica e conservadora do Maine, não tão rica quanto os Lauterbach, mas que andava lá perto, o que era reconfortante. Peter viera de uma família irlandesa da classe média baixa e crescera na zona ocidental de Manhattan. Podia ser um engenheiro brilhante, mas nunca seria um dos nossos. A disputa ameaçou destruir a relação de Margaret com a mãe. Foi terminada por Bratton, que não iria tolerar objeções ao marido que a filha tinha escolhido. Margaret tinha casado com Peter, numa cerimónia de conto de fadas na St. James' Episcopal Church, em junho de 1935. Hardegen foi um dos seiscentos convidados. Dançara com Margaret durante a receção e comportara-se como um cavalheiro. Até ficou para se despedir do casal antes da lua de mel de dois meses pela Europa. Foi como se o incidente no Copa nunca tivesse acontecido.
Os empregados trouxeram o almoço - um prato frio de salmão estufado - e a conversa mudou inevitavelmente para a guerra iminente na Europa.
Bratton perguntou:
- Há alguma maneira de conseguir parar Hitler neste momento ou a Polónia vai tornar-se a província mais a leste do Terceiro Reich?
Hardegen, advogado e um sagaz investidor, tinha tomado a responsabilidade de desembaraçar o banco dos seus investimentos arriscados na Alemanha e na Europa. Dentro do banco, era tratado carinhosamente por "o nosso nazi" devido ao nome, ao seu alemão perfeito e às viagens frequentes a Berlim. Mantinha igualmente uma rede de excelentes contactos em Washington e funcionava como o principal agente dos serviços de informação do banco.
- Falei com um amigo esta manhã. Ele faz parte da equipa do Henry Stimson, no Ministério da Guerra -- disse Hardegen. - Quando Roosevelt regressou a Washington depois do cruzeiro a bordo do
Tuscaloosa, Stimson encontrou-se com ele na Union Station e foram juntos para a Casa Branca. Quando Roosevelt o questionou acerca da situação na Europa, Stimson respondeu que os dias de paz podiam agora ser contados pelos dedos das mãos.
- Roosevelt regressou a Washington há uma semana - disse Margaret.
- É verdade. Faz as contas. E penso que Stimson estava a ser otimista. Acho que a guerra deve estar por horas.
- Mas então e a comunicação a que o Times se refere na edição de hoje? - perguntou Peter.
Hitler tinha enviado uma mensagem ao Reino Unido na noite anterior e o Times sugeria que isso poderia abrir caminho a uma solução negociada para a crise polaca.
- Ele está a protelar - respondeu Hardegen. - Os alemães têm dezasseis divisões ao longo da fronteira polaca à espera da ordem para avançar.
- Então de que é que Hitler está à espera? - estranhou Margaret.
- De uma desculpa.
- com certeza que os polacos não lhe vão dar uma desculpa para invadir.
- Não, claro que não. Mas isso não vai parar Hitler.
- O que é que está a sugerir, Walker? - indagou Bratton.
- Hitler vai inventar um motivo para atacar, uma provocação que lhe permita invadir sem uma declaração de guerra.
- E os britânicos e os franceses? - perguntou Peter. - Vão fazer jus aos seus compromissos e declarar guerra à Alemanha se a Polónia for atacada?
- Creio que sim.
- Não conseguiram deter Hitler na Renânia, na Áustria ou na Checoslováquia - afirmou Peter.
- Sim, mas com a Polónia é diferente. Agora, o Reino Unido e a França compreendem que é preciso tomar medidas em relação a Hitler.
- E quanto a nós? - interveio Margaret. - Podemos ficar de fora?
- Roosevelt continua a afirmar que se quer manter à margem
- respondeu Bratton -, mas não acredito nele. Se a Europa inteira
for arrastada para a guerra, duvido que sejamos capazes de ficar de fora por muito tempo.
- E o banco? - continuou Margaret.
- Estamos a cessar todos os nossos negócios com parceiros alemães - respondeu Hardegen. - Se houver uma guerra, haverá muitas outras oportunidades de investimento. Esta guerra pode ser exatamente do que nós precisamos para arrancar o país da Depressão de uma vez por todas.
- Ah, não há nada melhor do que retirar lucro da morte e da destruição - disse Jane.
Margaret olhou com severidade para a irmã mais nova e pensou: típico da Jane. Gostava de se apresentar como uma iconoclasta; uma intelectual sombria e taciturna, crítica da sua classe e de tudo o que ela representava. Ao mesmo tempo, frequentava festas sem parar e gastava o dinheiro do pai como se o poço estivesse a ponto de secar. com trinta anos, não tinha meios de subsistência e nenhumas perspetivas de casamento.
- Oh, Jane, andaste a ler Marx outra vez? - perguntou Margaret em tom de brincadeira.
- Margaret, por favor - disse Dorothy.
- Jane passou algum tempo em Inglaterra, há uns anos - continuou Margaret, como se não tivesse ouvido o apelo da mãe para que houvesse paz. - Tornou-se uma grande comunista nessa altura, não foi, Jane?
- Tenho direito a ter uma opinião, Margaret - disparou Jane. Hitler não manda nesta casa.
- Acho que também gostaria de me tornar comunista - disse Margaret. - O verão tem sido bastante aborrecido, com toda esta conversa acerca da guerra. Converter-me ao comunismo seria uma maneira agradável de mudar de rotina. Os Hutton vão dar um baile de máscaras no próximo fim de semana. Podíamos ir disfarçadas de Lenine e Estaline. Depois da festa, podemos ir para North Fork coletivizar todas as quintas. Vai ser muito divertido.
Bratton, Peter e Hardegen desataram a rir às gargalhadas.
- Obrigado, Margaret - disse Dorothy com severidade. - Entretiveste-nos a todos o suficiente para o resto do dia.
A conversa acerca da guerra tinha ido longe demais. Dorothy esticou a mão e tocou no braço de Hardegen.
- Walker, tenho tanta pena que não tenha podido vir à nossa festa ontem à noite. Foi maravilhosa. Deixe-me contar-lhe tudo.
O luxuoso apartamento na Quinta Avenida com vista para o Central Park tinha sido uma prenda de casamento de Bratton Lauterbach. Às sete da noite, Peter Jordan estava à janela. Uma tempestade tinha-se estendido por toda a cidade. No parque, brilhavam relâmpagos sobre as copas das árvores de um verde-profundo. O vento impelia a chuva contra o vidro. Peter tinha regressado sozinho à cidade porque Dorothy insistira para que Margaret comparecesse a uma festa em casa de Edith Blakemore. Margaret estava naquele momento a voltar para a cidade, trazida por Wiggins, o motorista dos Lauterbach. E agora iriam ser apanhados pelo mau tempo.
Peter esticou o braço e lançou uma olhadela ao relógio pela quinta vez em cinco minutos. Tinha ficado de se encontrar com o chefe da comissão responsável pelas estradas e pontes da Pennsylvania, no Stork Club, para um jantar às sete e meia. A Pennsylvania estava a receber propostas e projetos para uma nova ponte sobre o rio Allegheny. O patrão de Peter queria que ele fechasse o negócio nessa noite. Era muitas vezes convocado para receber clientes. Era jovem e esperto, e a sua bela mulher era filha de um dos mais poderosos banqueiros do país. Formavam um par esplêndido.
Pensou: Onde é que ela estará, raios?
Ligou para a casa de Oyster Bay e falou com Dorothy.
- Não sei o que lhe dizer, Peter. Ela já saiu há muito tempo. Porventura, o Wiggins está a demorar mais por causa do mau tempo. Sabe como é o Wiggins... basta um sinal de chuva e quase que para.
- Dou-lhe mais quinze minutos. Depois, tenho de sair.
Peter sabia que Dorothy não faria conversa de circunstância, por isso desligou antes de se instalar um silêncio incómodo. Preparou um gim tónico e bebeu-o rapidamente enquanto esperava. Às 19h15, desceu no elevador e aguardou no vestíbulo enquanto o porteiro saía para enfrentar a chuva e chamava um táxi.
Quando a minha mulher chegar, peça-lhe para ir diretamente
para o Stork Club.
- Sim, senhor Jordan.
O jantar correu bem, apesar de Peter se ter levantado três vezes para telefonar para o apartamento e para a casa de Oyster Bay. Às
20h30, já não estava aborrecido, estava preocupadíssimo.
Às 20h45, Paul Delano, o chefe de mesa, dirigiu-se a Peter.
- O senhor tem uma chamada no bar.
- Obrigado, Paul.
Peter pediu licença. No bar, teve de levantar a voz acima do tinir dos copos e do ruído das conversas.
- Peter, é a Jane.
Peter ouviu a voz dela tremer.
- O que se passa?
- Temo que tenha havido um acidente.
- Onde estás?
- Estou na esquadra de polícia do condado de Nassau.
- O que aconteceu?
- Um carro meteu-se à frente deles, na autoestrada. Wiggins não conseguiu vê-lo com a chuva. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde.
- Oh, meu Deus!
- Wiggins está em muito mau estado. Os médicos não têm muita esperança que ele sobreviva.
- E a Margaret, raios?
Os Lauterbach não choravam em funerais; o luto era feito em privado. A cerimónia foi realizada na St. James' Episcopal Church, a mesma igreja em que Peter e Margaret se tinham casado quatro anos antes. O presidente Roosevelt enviou uma nota de condolências e expressou o seu pesar por não poder estar presente. Mas a maioria da alta sociedade de Nova Iorque compareceu. Bem como a maioria do mundo das finanças, ainda que os mercados estivessem em tumulto. A Alemanha tinha invadido a Polónia e o mundo estava à espera da eclosão da guerra na Europa.
Billy permaneceu junto de Peter durante as exéquias. Vestia calças curtas, um pequeno blaer e gravata. Quando a família começou a sair da igreja em fila, estendeu a mão e puxou a bainha do vestido preto da tia Jane.
- A mamã vai voltar algum dia a casa?
- Não, Billy, não vai voltar. Ela deixou-nos.
Edith Blakemore ouviu por acaso a pergunta da criança e começou a chorar.
- Que tragédia - lamentou ela. - Que tragédia sem sentido!
Margaret foi enterrada sob um céu brilhante na campa de família, em Long Island. Durante as últimas palavras do reverendo Pugh, um murmúrio atravessou os enlutados em redor da campa e depois dissipou-se.
Quando terminou, Peter regressou à limusina com o seu melhor amigo, Shepherd Ramsey. Shepherd tinha apresentado Peter a Margaret. Mesmo com o seu fato escuro sombrio, tinha o aspeto de ter acabado de sair do convés do seu veleiro.
- De que estava toda a gente a falar? - perguntou Peter. Foi bastante grosseiro.
- Houve pessoas que chegaram atrasadas e que tinham estado a ouvir as notícias no rádio do carro - disse Shepherd. - O Reino Unido e a França acabaram de declarar guerra à Alemanha.
TRÊS
LONDRES: MAIO DE 1940
O professor Alfred Vicary desapareceu sem explicação do University College London, na terceira sexta-feira de maio de 1940. Uma secretária chamada Lillian Walford
foi o último membro do staffa. ver Vicary antes do seu abrupto desaparecimento. Numa rara indiscrição, revelou aos outros professores que a última chamada telefónica
que Vicary recebera tinha sido do novo primeiro-ministro. Na verdade, ela até tinha falado pessoalmente com o senhor Churchill.
- Aconteceu a mesma coisa com Masterman e Cheney em Oxford - disse tom Perrington, um egiptólogo, enquanto dava uma vista de olhos à entrada no livro de registos
telefónicos. - Chamadas misteriosas, homens de fatos escuros. Suspeito que o nosso caro amigo Alfred tenha passado para trás do véu.
Depois acrescentou sotto você:
- Para o interior da Acrópole secreta.
O sorriso lânguido de Perrington não conseguia esconder a sua desilusão, comentaria posteriormente Miss Walford. Era uma pena que o Reino Unido não estivesse em guerra com os antigos egípcios
- talvez Perrington também tivesse sido escolhido.
Vicary passou as suas últimas horas no seu gabinete abarrotado e desorganizado, com vista para Gordon Square, dando os últimos retoques num artigo para o Sundoy Times. A atual crise poderia ter
sido evitada, sugeria o texto, se o Reino Unido e a França tivessem atacado a Alemanha em 1939, quando Hitler ainda estava absorto com a Polónia. Sabia que seria severamente criticado devido ao atual clima; o último artigo que escrevera tinha sido condenado como chunhilliano e belicista por uma publicação da extrema-direita
pró-nazi. Vicary esperava no seu íntimo que o novo artigo fosse recebido de um modo semelhante.
Era um glorioso dia de fim de primavera - sol brilhante, mas tempo dececionantemente fresco. Vicary, um jogador de xadrez talentoso, ainda que relutante, apreciava
o logro. Levantou-se, vestiu um casaco de malha e depois retomou o trabalho.
O clima agradável dava uma imagem falsa da realidade. O Reino Unido era uma nação sitiada - sem defesas, assustada, titubeando em total confusão. Foram elaborados planos para evacuar a família real para o Canadá. O governo pediu que o outro tesouro nacional do Reino Unido, as suas crianças, fosse enviado para o campo, onde estariam a salvo dos bombardeiros da Luftwaffe.
Através da utilização de hábil propaganda, o governo tinha tornado a população extremamente consciente da ameaça colocada por espiões e quinta-colunistas. Estava agora a sofrer as consequências. Os regimentos de polícia estavam a ser soterrados por relatórios sobre estranhos, indivíduos de ar esquisito ou cavalheiros com aspeto de alemães. Os cidadãos escutavam conversas empabs, ouvindo o que queriam e comunicando depois à polícia. Relatavam sinais de fumo, luzes a piscarem na costa e espiões paraquedistas. Um rumor atravessou o país, segundo o qual agentes alemães se tinham feito passar por freiras durante a invasão dos Países Baixos; de repente, as freiras tornaram-se suspeitas. A maioria só saía do santuário murado dos seus conventos quando era absolutamente necessário.
Um milhão de homens demasiado novos, demasiado velhos ou demasiado débeis para ingressar nas forças armadas apressou-se a alistar-se na Guarda Territorial. Não havia espingardas para a guarda, por isso armavam-se com o que podiam - caçadeiras, espadas, cabos de vassoura, clavas medievais, facas nepalesas, até tacos de golfe. Aqueles que por algum motivo não conseguiam encontrar a arma adequada recebiam ordens para andar com pimenta para lançar aos olhos dos soldados alemães saqueadores.
Vicary, um reputado historiador, observou a agitação dos preparativos da sua nação para a guerra com um misto de enorme orgulho e silencioso desânimo. Ao longo dos anos trinta, os seus artigos de jornal e conferências tinham avisado que Hitler representava uma séria ameaça à Inglaterra e ao resto do mundo. Mas o Reino Unido, esgotado pela última guerra com os alemães, não tinha estado com disposição para ouvir falar de outra. Mas, naquele preciso momento, o exército alemão avançava pela França com a tranquilidade de um passeio automobilístico de fim de semana. Em breve, Adolf Hitler estaria no topo de um império que se estenderia do Círculo Polar Ártico até ao Mediterrâneo. E o Reino Unido, insuficientemente armado e mal preparado, encontrava-se sozinho contra ele.
Vicary terminou o artigo, pousou o lápis e leu-o desde o início. Lá fora, o Sol estava a pôr-se num mar alaranjado sobre Londres. O cheiro de flores primaveris que floresciam nos jardins da Gordon Square entrava pela janela. A tarde tinha arrefecido; era provável que as flores dessem início a uma crise de espirros. Mas a brisa sabia-lhe maravilhosamente no rosto e, por alguma razão, fazia o chá saber melhor. Deixou a janela aberta e desfrutou.
A guerra estava a fazê-lo pensar e agir de um modo diferente. Estava a fazê-lo olhar mais afetuosamente para os seus compatriotas, que normalmente observava com uma atitude próxima do desespero. Espantava-se com o facto de serem capazes de dizer piadas enquanto entravam em fila indiana no abrigo da estação de metro e com o modo como cantavam nos pubs para esconderem o medo. Levou algum tempo até que Vicary reconhecesse os seus sentimentos pelo que eles eram - patriotismo. Ao longo de uma vida de estudo, tinha concluído que aquela era a força mais destrutiva do planeta. Mas, naquele momento, sentia a agitação do patriotismo no seu próprio peito e não estava envergonhado. Nós somos bons e eles são maus. O nosso nacionalismo é justificado.
Vicary tinha decidido que queria contribuir. Queria fazer algo em vez de observar o mundo através da sua janela bem protegida.
Às seis da tarde, Lillian Walford entrou sem bater. Era alta, com pernas de lançador de pesos e óculos redondos que ampliavam um olhar inabalável. Começou a pôr papéis em ordem e a fechar livros com a tranquila eficiência de uma enfermeira noturna.
Nominalmente, Miss Walford trabalhava para todos os professores do departamento. Mas ela acreditava que Deus, na sua infinita sabedoria, confiava a cada pessoa uma alma para dela cuidar. E se havia uma pobre alma a precisar de que cuidassem dela, era o professor Vicary. Durante dez anos, tinha orientado os pormenores da vida simples de Vicary com uma precisão militar. Certificava-se de que havia comida na casa dele em Draycott Place, em Chelsea. Assegurava-se de que as camisas lhe eram entregues e continham a quantidade exata de goma - não em demasia, pois isso irritar-lhe-ia a pele suave do pescoço. Tratava-lhe das contas e censurava-o regularmente sobre o estado da sua conta bancária mal gerida. Contratava novas empregadas com uma regularidade sazonal porque os ataques de mau feitio dele afugentavam as anteriores. Apesar da proximidade das suas relações profissionais, nunca se tratavam pelos nomes de batismo. Ela era Miss Walford e ele, o professor Vicary. Ela preferia ser vista como uma assistente pessoal e, de maneira pouco característica, Vicary fazia-lhe a vontade.
Miss Walford tocou de raspão em Vicary, ao passar, e fechou a janela, lançando-lhe um olhar de censura.
- Se não se importa, professor Vicary, vou-me embora para casa.
- Claro, Miss Walford.
Ele olhou para ela. Era um homem pequeno, inquieto e com ar de estudioso, careca no cimo da cabeça, à exceção de alguns fios de cabelo grisalho despenteados. Os seus maltratados óculos em meia-lua repousavam-lhe na ponta do nariz. Estavam manchados com dedadas por causa do hábito de os retirar e voltar a pôr sempre que se sentia nervoso. Usava um casaco de tweed fustigado pelas intempéries e uma gravata manchada de chá, escolhida com desleixo. O seu modo de andar era objeto de piadas na universidade e, sem que tivesse conhecimento, alguns dos seus alunos tinham aprendido a imitá-lo na perfeição. Um joelho destruído durante a guerra anterior tinha-o deixado com um coxear mecanizado e as articulações presas - um soldado de brincar que já não funcionava em condições, pensava Miss Walford. A cabeça tinha tendência a inclinar-se para baixo a fim de lhe permitir ver por cima dos óculos e ele parecia estar sempre a correr para algum lugar onde preferiria não estar.
O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas
de cordeiro em sua casa - disse Miss Walford, franzindo o sobrolho a uma confusa pilha de papéis como se se tratasse de uma criança desobediente. - Disse que poderia ser o último cordeiro que se conseguiria arranjar nos próximos tempos.
- Creio bem que sim - respondeu Vicary. - Há várias semanas que já não aparece carne na ementa do Connaught.
- Isto está a tornar-se um pouco absurdo, não acha, professor Vicary? Hoje, o governo decretou que os tejadilhos dos autocarros londrinos fossem pintados do cinzento dos couraçados - revelou Miss Walford. -- Acham que será mais difícil para a Luftwaffe bombardeá-los.
- Os alemães são implacáveis, Miss Walford, mas mesmo assim não vão perder tempo a bombardear autocarros de passageiros.
- E também decretaram que não devíamos abater pombos-correios. Fazia o favor de me explicar como é que eu sou capaz de distinguir um pombo-comw de um pombo normal?
- Nem lhe consigo dizer quantas vezes me sinto tentado a abater pombos - atirou Vicary.
- Já agora, também tomei a liberdade de lhe encomendar molho de hortelã - anunciou Miss Walford. - Sei que comer uma costeleta de cordeiro sem molho de hortelã lhe pode dar cabo da semana.
- Obrigado, Miss Walford.
- O seu editor ligou para dizer que as provas do novo livro estão prontas para revisão.
- E com apenas quatro semanas de atraso. Um recorde para Cagley. Lembre-me de procurar um novo editor, Miss Walford.
- Sim, professor Vicary. Miss Simpson ligou para dizer que não estará disponível para jantar consigo esta noite. A mãe adoeceu. Pediu-me para lhe dizer que não é nada de grave.
- Raios - murmurou Vicary.
Andava ansioso por se encontrar com Alice Simpson. Era a relação mais séria que tinha com uma mulher em muito tempo.
- É tudo?
- Não, o primeiro-ministro telefonou.
- O quê? Por que raio não me avisou?
- O senhor deixou instruções rigorosas para não ser incomodado. Quando lhe expliquei isso, o senhor Churchill foi bastante compreensivo. Diz que nada o transtorna mais do que ser interrompido quando está a escrever.
Vicary franziu o sobrolho.
- A partir deste momento, Miss Walford, tem a minha explícita permissão para me interromper quando o senhor Churchill telefonar.
- Sim, professor Vicary - respondeu ela, ainda com a plena convicção de que tinha agido corretamente.
- O que disse o primeiro-ministro?
- Que conta consigo para o almoço de amanhã em Chartwell.
Vicary variava de percurso quando regressava a casa, de acordo com a sua disposição. Por vezes, preferia abrir caminho por uma rua comercial movimentada ou passar
pelo meio do rebuliço da multidão no Soho. Noutras noites, deixava as vias principais e percorria as tranquilas ruas residenciais, ora detendo-se a contemplar um
exemplar de arquitetura georgiana esplendidamente iluminado, ora retardando o passo para ouvir os sons de música, risos e tinir dos copos provenientes de uma festa
divertida.
Naquela noite, ia andando indolentemente por uma rua sossegada durante os últimos resquícios do crepúsculo.
Antes da guerra, passara a maioria das noites a fazer investigação na biblioteca, percorrendo os corredores entre as estantes como um fantasma até altas horas da
noite. Numa ou noutra noite, adormecia. Miss Walford deu instruções aos porteiros noturnos - quando o encontrassem deveriam acordá-lo, enfiar-lhe o impermeável e enviá-lo para casa.
O blackout tinha modificado essa situação. Todas as noites, a cidade mergulhava numa profunda escuridão. Os londrinos de gema perdiam-se nas ruas em que andavam
há anos. Para Vicary, que sofria de cegueira noturna, o blackout tornava a navegação próxima do impossível. Imaginava que as coisas deveriam ter sido assim dois milénios antes, quando Londres era um aglomerado de cabanas em madeira ao longo das margens pantanosas do rio Tamisa. O tempo tinha-se
dissipado, os séculos, recuado, e o progresso inegável da humanidade fora interrompido pela ameaça dos bombardeiros de Góring. Todas as tardes, Vicary fugia da universidade
e apressava-se em direção a casa antes que ficasse encalhado nas ruas secundárias de Chelsea. Uma vez seguro dentro de casa, bebia os dois copos de Borgonha da praxe e devorava o prato de costeletas e ervilhas que a empregada lhe deixava num fogão quente. Se não lhe preparassem as refeições, passaria fome, já que ainda se debatia com as complexidades da moderna cozinha inglesa.
Depois do jantar, um pouco de música, uma peça de teatro na telefonia, ou mesmo um romance policial, uma obsessão privada que não revelava a ninguém. Vicary gostava de mistérios; gostava de enigmas. Gostava de utilizar as suas capacidades de raciocínio e dedução para resolver os casos muito antes de o autor fazer isso por ele. Também gostava dos estudos de personagem nos mistérios e muitas vezes encontrava paralelos no seu próprio trabalho - a razão pela qual, por vezes, pessoas boas faziam coisas más.
Adormecer era um processo gradual. Começava na sua cadeira preferida, com o candeeiro de leitura ainda aceso. Depois, mudava-se para o sofá. De seguida, normalmente nas últimas horas antes do amanhecer, subia para o quarto, no andar de cima. Por vezes, a concentração necessária para despir a roupa deixava-o demasiado desperto para voltar a adormecer e, por isso, ficava acordado a pensar, à espera do amanhecer cinzento e do riso malicioso da velha pega que chapinhava todas as manhãs na fonte do jardim, lá fora.
Tinha dúvidas se iria conseguir dormir grande coisa nessa noite
- ainda por cima, depois da convocatória de Churchill.
Não era invulgar Churchill ligar-lhe para o gabinete, era mais o timing. Vicary e Churchill eram amigos desde o outono de 1935, quando Vicary assistira a uma conferência dada por Churchill em Londres. Churchill, confinado à desolação dos lugares de trás do parlamento britânico, era uma das poucas vozes no Reino Unido a alertar para a ameaça colocada pelos nazis. Nessa noite, afirmara que a Alemanha se estava a rearmar a um ritmo frenético, que Hitler pretendia combater assim que fosse capaz. A Inglaterra tinha de se rearmar imediatamente, defendeu ele, ou enfrentar ser escravizada pelos nazis.
O público pensou que Churchill tinha perdido a cabeça e apupou-o sem misericórdia. Churchill interrompera abruptamente as suas observações e regressara a Chartwell, mortificado.
Naquela noite, Vicary tinha-se deixado ficar ao fundo do auditório a assistir ao espetáculo. Também ele andava a observar a Alemanha cuidadosamente desde que Hitler ascendera ao poder. Tinha previsto discretamente perante os colegas que a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra dentro de pouco tempo, talvez ainda antes do final da década. Ninguém prestara atenção. Havia muita gente que pensava que Hitler era um bom contrapeso à União Soviética e que devia ser apoiado. Vicary achava que isso era um absurdo total. À semelhança do resto do país, considerava Churchill um pouco aventureiro, um tanto belicoso. Mas em se tratando dos nazis, Vicary achava que Churchill tinha toda a razão.
Quando regressou a casa, Vicary sentou-se à secretária e escreveu-lhe rapidamente um bilhete, com uma única frase: Assisti à sua conferência em Londres e concordo com cada palavra que proferiu. Cinco dias mais tarde, chegou um bilhete de Churchill a casa de Vicary: Meu Deus, afinal não estou sozinho. O grande Vicary está ao meu lado! Por favor, conceda-me a honra de vir almoçar a Chartwell este domingo.
O primeiro encontro entre ambos foi um sucesso. Vicary foi imediatamente incorporado no círculo de académicos, jornalistas, funcionários públicos e oficiais que iria aconselhar e fornecer informações a Churchill acerca da Alemanha durante o resto da década. Winston forçava Vicary a ouvi-lo enquanto percorria o antigo piso de madeira da sua biblioteca e explicava as suas teorias acerca das intenções alemãs. Por vezes, Vicary discordava, forçando Churchill a clarificar os seus pontos de vista. Por vezes, Churchill perdia a calma e recusava voltar atrás. Vicary mantinha-se firme. A amizade entre ambos foi cimentada desse modo.
Naquele preciso momento, caminhando através da escuridão crescente, Vicary pensou na convocatória de Churchill para ir até Chartwell. Não era certamente apenas para uma conversa amistosa.
Vicary virou para uma rua de casas brancas geminadas, de estilo georgiano, pintadas de rosa pelos últimos minutos do crepúsculo primaveril. Caminhou lentamente, como se estivesse perdido, com uma
mão a agarrar a mala, pesada como chumbo, e a outra enfiada no bolso do impermeável. Uma mulher atraente, aproximadamente da sua idade, emergiu da soleira de uma
porta. Um homem elegante e de ar aborrecido seguia-a. Mesmo ao longe - mesmo com a sua terrível visão -, conseguiu perceber que era Helen. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar - a postura ereta, o pescoço alto, o caminhar desdenhoso, como se estivesse sempre prestes a pisar qualquer coisa desagradável. Vicary viu-os entrar para o
banco de trás de um carro conduzido por um motorista. O carro arrancou, afastando-se do passeio, e avançou na sua direção. Dá meia-volta, meu grande parvo! Não olhes
para ela! Mas foi incapaz de seguir o seu próprio conselho. Quando o carro passou por ele, virou a cabeça e olhou para o banco de trás. Ela viu-o - por um instante,
apenas -, mas foi o suficiente. Embaraçada, baixou imediatamente os olhos. Vicary, através do vidro traseiro do carro, observou-a a virar-se e a sussurrar alguma
coisa ao marido que o fez soltar uma gargalhada, atirando a cabeça para trás.
Idiota! Idiota dum raio!
Vicary recomeçou a andar. Olhou em frente e observou o carro a desaparecer ao virar da esquina. Interrogou-se para onde iriam a outra festa, talvez ao teatro. Porque
não a esqueço simplesmente? já passaram vinte e cinco anos, por amor de Deus! E depois pensou:
- E porque é que o teu coração está a bater como se fosse a primeira
vez que a visses?
Continuou a andar o mais rapidamente que pôde até ficar cansado e sem fôlego. Pensou em qualquer coisa que lhe viesse à mente - tudo menos ela. Chegou a um parque infantil e ficou parado junto ao portão de ferro, a olhar fixamente para as crianças através das grades. Tinham roupa a mais para maio e andavam aos encontrões umas
às outras, como minúsculos pinguins roliços. Um qualquer espião alemão que estivesse à espreita iria certamente aperceber-se de que muitos londrinos tinham ignorado
o aviso do governo e mantido os filhos junto de si, na cidade. Vicary, normalmente indiferente a crianças, manteve-se ao portão, a ouvir, hipnotizado, pensando que
não havia nada tão reconfortante como o som dos pequeninos a brincar.
O carro de Churchill esperava-o na estação. Acelerou, com a capota descida, através dos campos verdes e ondulados do sudeste de Inglaterra. Estava fresco, corria uma brisa e parecia que tudo estava em flor. Vicary ia sentado no banco de trás, com uma mão a manter o casaco fechado e a outra a segurar o chapéu na cabeça. O
vento soprava por cima do descapotável como o temporal sobre a proa de um navio. Pensou se haveria de pedir ao condutor para parar o carro e subir a capota. Foi
então que começou o inevitável ataque de espirros, primeiro como se fossem disparos esporádicos de um atirador furtivo, depois progredindo para uma autêntica barragem de artilharia. Vicary não conseguia decidir que mão libertar para cobrir a boca. Virava a cabeça repetidamente ao espirrar, fazendo com que as pequenas rajadas de humidade e germes fossem levadas pelo vento.
O condutor viu os constantes movimentos de Vicary pelo retrovisor e ficou alarmado.
- Quer que pare o carro, professor Vicary? - perguntou, levantando o pé do acelerador.
O ataque de espirros acalmou e por fim Vicary foi capaz de apreciar a viagem. Em regra, não se interessava pelo campo. Era um londrino. Gostava das multidões, do ruído e do trânsito e tendia a ficar desorientado em espaços abertos. Também detestava a tranquilidade das noites. A sua mente vagueava e ele ficava convencido de que havia assaltantes deambulando na escuridão. Mas, naquele momento, recostou-se no banco do carro, maravilhado com a beleza natural de Inglaterra.
O carro virou para o caminho de entrada de Chartwell. A pulsação de Vicary aumentou quando saiu do carro. Ao aproximar-se da porta, esta abriu-se e lá estava o homem de Churchill, Inches, para o cumprimentar.
- bom dia, professor Vicary. O senhor primeiro-ministro tem estado a aguardar a sua chegada com muitíssima ansiedade.
Vicary entregou o casaco e o chapéu e entrou. Cerca de uma dúzia de homens e um par de raparigas estavam a trabalhar na sala de estar, alguns de uniforme, outros,
como Vicary, à civil. Falavam num tom abafado e confessional, como se todas as notícias fossem mas.
Um telefone tocou, depois outro. Todos eram atendidos ao primeiro toque.
- Espero que tenha tido uma viagem agradável - estava a dizer Inches.
- Maravilhosa - respondeu Vicary, mentindo educadamente.
- Como é hábito, o senhor Churchill está atrasado esta manhã
- disse Inches. De seguida, acrescentou em tom de confidência: Ele estabelece uma agenda impossível de cumprir e todos nós passamos o resto do dia a tentar respeitá-la.
- Compreendo, Inches. Onde quer que eu espere?
- Na verdade, o senhor primeiro-ministro está muito ansioso por vê-lo esta manhã. Pediu para o levar ao andar de cima assim que o senhor chegasse.
- Ao andar de cima?
Inches bateu suavemente e abriu a porta da casa de banho. Churchill estava estendido na banheira, com um charuto na mão e o segundo copo de uísque do dia pousado numa pequena mesa de fácil acesso. Inches anunciou Vicary e retirou-se.
- Vicary, meu caro amigo - disse ele, colocando de seguida a boca ao nível da água e fazendo bolhas. - Que bom ter vindo.
Vicary achou opressiva a temperatura quente da casa de banho. E também achou difícil não se rir perante o enorme homem rosado a chapinhar na banheira como uma criança.
Despiu o casaco de tweed e, com relutância, sentou-se na sanita.
- Queria trocar umas palavras consigo em privado... foi por isso que o convidei a vir aqui à minha toca. - Churchill franziu os lábios.
- Vicary, devo admitir desde já que estou aborrecido consigo.
Vicary endireitou-se.
Churchill abriu a boca para continuar, mas deteve-se. Um olhar perplexo e derrotado despontou-lhe no rosto.
- Inches! - berrou Churchill.
Inches entrou.
- Sim, senhor Churchill?
- Inches, creio que a água da minha banheira baixou dos 40 graus. É capaz de verificar o termómetro?
Arregaçando a manga, Inches retirou o termómetro da água. Estudou-o como um arqueólogo a examinar um fragmento de osso antigo.
- Ah, tem razão, senhor. A temperatura da água caiu para os 39 graus. Devo aquecê-la?
- Claro.
Inches abriu a torneira da água quente e deixou-a correr por instantes. Churchill sorriu quando a água da banheira atingiu a temperatura adequada.
- Muito melhor, Inches.
Churchill virou-se de lado. A água caiu em cascata por cima do bordo da banheira, molhando a perna das calças de Vicary.
- O senhor primeiro-ministro estava a dizer?
- Ah, sim, estava a dizer, Vicary, que estou aborrecido consigo. Nunca me tinha dito que quando era novo era bastante bom a jogar xadrez. Batia todos os jovens promissores em Cambridge, segundo me disseram.
Vicary, absolutamente confuso, respondeu:
- Peço desculpa, senhor primeiro-ministro, mas o xadrez nunca foi tema que surgisse em nenhuma das nossas conversas.
- Brilhante, implacável, arriscado: foi como as pessoas me descreveram o seu jogo. - Churchill calou-se por uns instantes e, a seguir, disse: - E também fez parte do Corpo dos Serviços Secretos durante a Primeira Guerra Mundial.
- Estive apenas na Unidade de Motocicletas. Fazia de correio, nada mais.
Churchill desviou o olhar de Vicary para o teto, fitando-o.
- Em 1250 a.C., o Senhor disse a Moisés que enviasse agentes para espiar a terra de Canaã. O Senhor teve a amabilidade de dar alguns conselhos a Moisés sobre como recrutar os espiões. Apenas os melhores e mais brilhantes homens eram capazes de uma tarefa tão importante, disse o Senhor, e Moisés cumpriu as instruções à risca.
- Isso é verdade, senhor primeiro-ministro - disse Vicary. Mas também é verdade que a informação recolhida pelos espiões de Moisés foi mal utilizada. Em resultado disso, os israelitas passaram mais quarenta anos a percorrer o deserto.
Churchill sorriu.
- Já devia ter aprendido há muito a nunca discutir consigo. O Alfred tem uma mente ágil. Sempre admirei isso.
- O que quer o senhor que eu faça?
- Quero que aceite um lugar nos serviços secretos militares.
- Mas, senhor primeiro-ministro, eu não estou qualificado para esse tipo de...
- Não há ninguém que saiba o que anda a fazer por aquelas bandas - disse Churchill, interrompendo Vicary. - Especialmente os agentes profissionais.
- Mas e os meus alunos? A minha investigação?
- Os seus alunos entrarão em breve no serviço militar, para lutar pela vida. E quanto à sua investigação, ela pode esperar. - Churchill fez uma pausa. - Conhece John Masterman e Christopher Cheney, de Oxford?
- Não me diga que eles foram convocados?
- com efeito, e não espere encontrar nenhum matemático digno desse nome em qualquer universidade - retorquiu Churchill. Foram todos abocanhados e empacotados para Bletchley Park.
- E que raio andam eles a fazer por lá?
- A tentar descobrir os códigos alemães.
Por breves instantes, Vicary fez questão de mostrar que estava a ponderar o assunto.
- Julgo que aceito.
- Otimo! - exclamou Churchill, batendo com o punho no rebordo da banheira. - Na segunda-feira, deve apresentar-se logo pela manhãzinha a Sir Basil Boothby. Ele é o chefe da divisão para a qual vai ser destacado. E também é o perfeito imbecil inglês. Opor-se-ia a mim, se pudesse, mas é demasiado estúpido para isso. Um idiota
de primeira apanha.
- Parece encantador.
- Ele sabe que eu e o Alfred somos amigos e por isso vai fazer-lhe frente. Não deixe que ele o intimide. Entendido?
- Sim, senhor primeiro-ministro.
- Preciso de alguém em quem possa confiar dentro daquele departamento. Está na altura de voltar a colocar a inteligência nos
serviços secretos militares1. Além do mais, isto será bom para si, Alfred. Está na altura de sair da sua biblioteca empoeirada e regressar ao mundo dos vivos.
Vicary foi apanhado desprevenido pela repentina intimidade de Churchill. Pensou na noite anterior, no passeio até casa, no olhar lançado ao carro de Helen.
- Sim, senhor primeiro-ministro, creio que está na altura. E o que irei fazer exatamente pelos serviços secretos militares?
Mas Churchill tinha mergulhado debaixo da linha da água e desaparecido.
1 No original, Military Intelligence; trocadilho com a palavra intettigence, que pode significar, entre outras coisas, inteligência e serviços secretos. (N. do T.)
QUATRO
RASTENBURG, ALEMANHA: JANEIRO DE 1944
O contra-almirante Wilhelm Franz Canaris era um homem pequeno e nervoso que falava com um ligeiro ceceio e possuía um humor sarcástico nas raras ocasiões em que
decidia exibi-lo. De cabelo branco e olhos azuis penetrantes, estava sentado no banco de trás de um Mercedes oficial, que se deslocava ruidosamente do aeródromo
de Rastenburg até ao búnquer secreto de Hitler, a cerca de 15 quilómetros de distância. Normalmente, Canaris evitava uniformes e aparatos militares de todo o género,
preferindo um fato escuro de homem de negócios. Mas visto que se ia encontrar com Adolf Hitler e com os mais importantes oficiais da Alemanha, envergava o seu uniforme
da Kriegsmarine por baixo do sobretudo formal.
Conhecido como a Velha Raposa tanto pelos amigos como pelos seus detratores, a personalidade distante e reservada de Canaris adequava-se na perfeição ao mundo impiedoso da espionagem. Preocupava-se mais com os seus dois dachshunds, que dormiam nesse momento aos seus pés, do que com qualquer outra pessoa, exceto a mulher, Erika, e as filhas. Quando o trabalho obrigava a viagens noturnas, reservava um segundo quarto, com camas duplas, de modo que os cães pudessem dormir confortavelmente. Quando era necessário deixá-los em Berlim, Canaris contactava constantemente os seus assessores para se certificar de que os animais tinham comido e defecado apropriadamente. Os membros da Abwehr que ousassem falar mal dos cães enfrentavam a ameaça bem real de ficarem com as carreiras destruídas
se uma palavra da sua maledicência alcançasse os ouvidos de Canaris. Educado numa villa murada em Aplerbeck, nos subúrbios de Dortmund, Wilhelm Canaris fazia parte da elite tão detestada por Adolf Hitler - filho de um barão das chaminés e descendente de italianos
emigrados para a Alemanha no século xvi. Falava as línguas dos amigos da Alemanha, bem como as dos seus inimigos - italiano, espanhol, inglês, francês e russo -, e presidia regularmente a recitais de música de câmara no salão da sua imponente casa de Berlim. Em
1933, tinha o posto de comandante de um entreposto naval no mar Báltico, em Swinemúnde, quando Hitler o escolheu inesperadamente para dirigir a Abwehr, os serviços de informação e contraespionagem do estado-maior alemão. Hitler deu instruções ao seu novo mestre espião para criar uns serviços secretos que seguissem o modelo britânico - uma ordem, afazer o seu trabalho com paixão - e Canaris assumiu formalmente o comando da agência de espionagem no dia de Ano Novo de 1934, a data do seu quadragésimo sétimo aniversário.
Esta decisão iria revelar-se uma das piores de Hitler. Desde que assumira o comando da Abwehr, Wilhelm Canaris andava embrenhado numa ação altamente arriscada - garantir ao estado-maior as informações de que necessitava para conquistar grande parte da Europa, ao mesmo tempo que utilizava os serviços como uma ferramenta para livrar a Alemanha de Hitler. Era o líder do movimento de resistência apelidado de Orquestra Negra - Schwarçe Kapelle - pela Gestapo. Um grupo muito unido de oficiais alemães, membros do governo e líderes civis, a Orquestra Negra tinha tentado, sem sucesso, derrubar o Fúhrer e negociar um acordo de paz com os Aliados. Canaris também tinha estado envolvido noutras atividades de traição. Em 1939, depois de saber dos planos de Hitler para invadir a Polónia, avisou os britânicos numa vã tentativa de os induzir à ação. Fez o mesmo em 1940, quando Hitler anunciou os seus planos para a invasão dos Países Baixos e da França.
Canaris virou-se e olhou pela janela, observando a floresta de Gõrlitz a passar diante de si - negra, silenciosa, densamente arborizada, como um cenário de conto de fadas dos irmãos Grimm. Canaris, perdido na tranquilidade das árvores cobertas de neve, pensava no
recente atentado à vida do Fúhrer. Dois meses antes, em novembro, um jovem capitão de nome Axel von dem Bussche tinha-se voluntariado para assassinar Hitler durante a inspeção de um novo sobretudo para a Wehrmacht. Bussche planeou esconder algumas granadas debaixo do casaco e, a seguir, detoná-las durante a demonstração, matando-se
e ao Fúhrer. Mas, um dia antes da tentativa de assassínio, os bombardeiros aliados destruíram o edifício onde os casacos estavam armazenados. A demonstração foi
cancelada e nunca chegou a ser reagendada.
Canaris sabia que haveria mais tentativas - mais alemães corajosos prontos a sacrificar a própria vida a fim de derrubar Hitler -, mas também sabia que o tempo fugia.
A invasão anglo-americana da Europa era uma certeza. Roosevelt tinha tornado claro que não aceitaria nada menos do que uma rendição incondicional. A Alemanha seria
destruída, tal como Canaris temera em 1933, quando as ambições messiânicas de Hitler se tinham tornado claras para ele. Também se apercebeu de que o seu ténue controlo sobre a Abwehr enfraquecia de dia para dia. Vários membros da equipa executiva de Canaris, no quartel-general da Abwehr, em Berlim, tinham sido presos pela Gestapo e acusados de traição. Os seus inimigos andavam a conspirar para se apoderarem do comando da agência de espionagem e colocar-lhe o pescoço num nó de corda de piano. Percebeu que tinha os dias contados - que a sua longa, perigosa e arriscada ação estava a chegar ao fim.
O carro oficial passou pela miríade de portões e postos de controlo, depois virou para o complexo no Wolfschanze1 de Hitler a Toca do Lobo. Os dachshunds acordaram,
ganindo nervosamente, e saltaram para o colo de Canaris. A conferência iria ter lugar na sala de mapas glacial e abafada, no búnquer subterrâneo. Canaris saiu do
carro e atravessou, com ar sombrio, o complexo. Ao fundo das escadas, encontrava-se um guarda-costas corpulento das SS, pronto para aliviar Canaris de quaisquer
armas que pudesse levar. Canaris, que evitava armas e detestava violência, abanou a cabeça e passou por ele.
1 Quartel-general de Hitler na Prússia Oriental. (N. do T.)
- Em novembro, emiti a Diretiva Número Cinquenta e Um do Fúhrer - começou a dizer Hitler sem preâmbulos, caminhando furiosamente pela sala com as mãos cruzadas atrás
das costas.
Envergava uma túnica cinzento-clara, calças pretas e botas de cano alto resplandecentes. No bolso do peito do lado esquerdo usava a Cruz de Ferro que tinha conquistado
em Ypres enquanto soldado de infantaria no Regimento List, durante a Primeira Guerra Mundial.
- A Diretiva Número Cinquenta e Um exprimia a minha convicção de que os anglo-saxões tentarão invadir o noroeste da França o mais tardar na primavera, talvez antes.
Durante os dois últimos meses, não vi nada que me fizesse mudar de opinião.
Sentado à mesa da conferência, Canaris observou o Fúhrer a pavonear-se ao redor da sala. A inclinação pronunciada de Hitler, causada pela cifose da coluna, parecia
ter piorado. Canaris interrogou-se se ele estaria finalmente a sentir a pressão. Tinha razões para isso. O que tinha dito Frederico, o Grande?Quem defende tudo, não defende nada. Hitler deveria ter prestado atenção ao conselho do seu guia espiritual, já que a Alemanha estava na mesma posição em que se encontrara durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha conseguido conquistar mais território do que o que podia defender.
A culpa era exclusivamente de Hitler - o raio do louco Canaris lançou uma olhadela ao mapa. A leste, as tropas alemãs combatiam ao longo de uma frente de 2000 quilómetros.
Qualquer esperança de uma vitória militar contra os russos tinha sido esmagada em julho, em Kursk, onde o Exército Vermelho tinha dizimado uma ofensiva da Wehrmacht e infligido baixas vertiginosas. Naquele preciso momento, o exército alemão tentava manter uma linha que se estendia desde Leninegrado até ao mar Negro. Ao longo do Mediterrâneo, a Alemanha defendia 3000 quilómetros de costa. E a ocidente Meu Deus!, pensou Canaris -, 6000 quilómetros de território que se estendia desde a Holanda até à extremidade sul da baía de Biscaia. A Festung Europa de Hitler - a Fortaleza Europa - estava dispersa e vulnerável por todos os lados.
Canaris olhou em redor para os homens sentados ao seu lado. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, comandante supremo de todas as forças alemãs a ocidente; o marechal de campo Erwin Rommel, comandante do Grupo B do Exército, no noroeste da França; o Reichsfúhrer Heinrich Himmler, líder das SS e chefe da polícia alemã. Meia dúzia dos homens mais cruéis e leais a Himmler estava de vigia, apenas no caso de algum dos membros da cúpula do Terceiro Reich decidir fazer um atentado contra a vida do Fúhrer.
Hitler parou e disse:
- A Diretiva Cinquenta e Um também mencionava a minha convicção de que já não podemos justificar a redução do nosso número de tropas a ocidente de modo a apoiar as forças que combatem os bolcheviques. No leste, a vastidão da área vai permitir-nos, como último recurso, abdicar de grandes áreas de território antes de o inimigo ameaçar a pátria alemã. Não é assim a ocidente. Se a invasão anglo-saxónica tiver êxito, as consequências serão desastrosas. Portanto, é aqui, no noroeste da França, que a batalha mais decisiva da guerra terá lugar.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- A invasão enfrentará todo o nosso poderio e será destruída no mar alto. Se tal não for possível, e se os anglo-saxões conseguirem assegurar temporariamente uma cabeça de praia, devemos estar preparados para reposicionar rapidamente as nossas forças, organizar um contra-ataque gigantesco e obrigar os invasores a retroceder para o mar - afirmou Hitler, cruzando os braços. - Mas para alcançar esse objetivo, temos de conhecer a ordem de batalha do inimigo. Temos de saber quando é que pretende atacar. E, o mais importante, onde. Herr Generalfeldmarshal?
O marechal de campo Gerd von Rundstedt levantou-se e deslocou-se num andar cansado até ao mapa, segurando com a mão direita o bastão incrustado de jóias de marechal de campo com que andava sempre. Conhecido como o último dos cavaleiros alemães, Rundstedt tinha sido demitido e chamado de novo ao serviço por Adolf Hitler mais vezes do que Canaris, ou mesmo o seu próprio staff, se conseguia lembrar. Detestava o mundo fanático dos nazis e tinha sido
Rundstedt quem apelidara escarninhamente Hitler de caboinho da boémia. A tensão de cinco longos anos de guerra começava a notar-se nas finas feições aristocráticas
do seu rosto. Os rígidos e precisos maneirismos que caracterizavam os oficiais do Estado-Maior do tempo do Império tinham desaparecido. Canaris sabia que Rundstedt
bebia mais champanhe do que devia e precisava de grandes quantidades de uísque para dormir à noite. Levantava-se com regularidade às dez da manhã, uma hora muito
pouco militar; o staffào seu quartel-general, em St. Germain-en-Laye, raramente agendava reuniões para antes do meio-dia.
Apesar da idade avançada e do declínio moral, Rundstedt continuava a ser o melhor soldado da Alemanha - um estratega e planeador brilhante, como tinha demonstrado aos polacos, em 1939, e aos franceses e britânicos, em 1940. Canaris não invejava a situação de Rundstedt. No papel, dirigia a força mais poderosa do Ocidente um milhão e meio de homens, incluindo 350 000 tropas de choque Waffen-SS, dez divisões Panzer e duas divisões de paraquedistas de elite Fallschirmjager. Se fossem posicionadas rápida e corretamente, as tropas de Rundstedt ainda seriam capazes de impor aos Aliados uma derrota devastadora. Mas se o velho cavaleiro teutónico tivesse um palpite errado - se mobilizasse as suas forças incorretamente ou cometesse erros táticos uma vez começada a batalha - os Aliados estabeleceriam a sua preciosa base de operações no continente e a guerra no Ocidente estaria perdida.
- Na minha opinião, a equação é simples - começou a dizer Rundstedt. - A leste do Sena, no Pas-de-Calais, ou a oeste do Sena, na Normandia. Cada um tem as suas vantagens e desvantagens.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal. Rundstedt prosseguiu num tom monótono:
- Calais é o fulcro da costa no canal da Mancha. Se o inimigo assegurar uma cabeça de praia em Calais, pode virar-se para leste e ficar a poucos dias de marcha do Ruhrgebiet, o nosso coração industrial. Os americanos querem que a guerra termine por altura do Natal. Se conseguirem desembarcar em Calais, talvez sejam capazes de concretizar esse desejo.
Rundstedt fez uma pausa para permitir que o seu aviso fosse assimilado e, a seguir, retomou o relatório.
- Há outra razão por que Calais faz sentido militarmente: é o ponto onde o canal da Mancha é mais estreito. O inimigo será capaz de despejar homens e equipamento em Calais quatro vezes mais depressa do que na Normandia ou na Bretanha. Não se esqueçam, o relógio começa a contar para o inimigo no momento em que a invasão se iniciar. Tem de acumular tropas, armas e material a um ritmo extremamente rápido. Há três portos de águas profundas na região do Pas-de-Calais - explicou Rundstedt, indicando cada um com a ponta do bastão, subindo pela costa. - Bolonha, Calais e Dunquerque.
O inimigo precisa de portos. É minha convicção que o primeiro objetivo dos invasores será capturar e reabrir um porto importante e reabri-lo o mais rapidamente possível, porque sem um porto importante o inimigo não pode abastecer as
tropas. Se não conseguir abastecer as tropas, está acabado.
- Impressionante, Herr Generalfeldmarshal - disse Hitler. Mas porque não a Normandia?
- A Normandia apresenta muitos problemas ao inimigo. A distância pelo canal da Mancha é muito maior. Em alguns pontos, encontram-se falésias elevadas entre as praias e o continente. O porto mais próximo é Cherburgo, na ponta de uma península altamente defendida. O inimigo poderia levar vários dias para nos conseguir tirar Cherburgo. E mesmo que o conseguisse, sabe que preferiríamos inutilizá-lo a abdicar dele. Mas o argumento mais lógico contra o ataque na Normandia, na minha opinião, é a sua localização geográfica. Fica demasiado a ocidente. Mesmo que o inimigo consiga desembarcar na Normandia, corre o risco de ficar preso e estrategicamente isolado. Tem de nos combater em toda a extensão da França antes de atingir sequer solo alemão.
- Qual é a sua opinião, Herr Generalfeldmarshal? - disparou Hitler.
- Talvez os Aliados tentem alguma trapaça - respondeu Rundstedt cautelosamente, com os dedos a agitarem-se sobre o bastão. - Talvez um desembarque a servir de manobra de diversão, como o senhor mesmo sugeriu, meu Fúhrer. Mas o verdadeiro ataque vai dar-se aqui - afirmou, batendo no mapa. - Em Calais.
- Almirante Canaris? - exclamou Hitler. - De que informações dispõe para apoiar esta teoria?
Pouco propenso a exibições formais diante do mapa, Canaris continuou sentado. Enfiou a mão no bolso direito interior do casaco, onde tinha um pacote de cigarros. Os homens das SS estremeceram nervosamente. Abanando a cabeça, Canaris tirou lentamente os cigarros
e mostrou-os. Acendeu um com toda a calma e lançou uma baforada
de fumo na direção de Himmler, sabendo muito bem da especial irritação que o Reichsfúhrer nutria pelo tabaco. Himmler olhou fixamente para ele, através da cortina
de fumo azul em espiral, não revelando qualquer emoção no olhar e com a face a contrair-se nervosamente.
Canaris explicou que a Abwehr estava a recolher e a analisar três tipos de informação relacionada com os preparativos para a invasão - fotografias aéreas das tropas
inimigas, no sul de Inglaterra, comunicações do inimigo via rádio, monitorizadas pela Funkabwehr, o serviço de escutas da agência, e relatórios de agentes a atuarem
no interior do Reino Unido.
- E o que lhe dizem essas informações, Herr Admirai? - vociferou Hitler.
- A nossa recolha inicial de informações tende a apoiar a avaliação do marechal de campo: que os Aliados pretendem atacar em Calais. De acordo com os nossos agentes,
tem havido um aumento da atividade do inimigo no sudeste de Inglaterra, do outro lado do canal da Mancha, em frente ao Pas-de-Calais. Nós monitorizámos as transmissões telegráficas referentes a uma nova força denominada First United States Army Group. Também temos vindo a analisar a atividade aérea do inimigo no noroeste da França. Está a passar muito mais tempo a sobrevoar Calais, com o propósito de bombardeamento e de reconhecimento, do que a Normandia ou a Bretanha. E tenho ainda mais uma nova informação a relatar, meu Fúhrer. Um dos nossos agentes em Inglaterra tem uma fonte dentro do alto comando aliado. Na noite passada, o agente transmitiu um relatório. O general Eisenhower chegou a Londres. Os americanos e os britânicos pretendem manter a sua presença em segredo por enquanto.
Hitler pareceu impressionado com o relatório do agente. Canaris pensou: se ao menos Hitler soubesse a verdade - que, neste momento, apenas a poucos meses da batalha mais importante da guerra,
as redes de informação da Abwehr em Inglaterra estão muito provavelmente em frangalhos. Canaris culpava Hitler. Durante os preparativos para a operação Seelõwe -
a invasão abortada do Reino Unido -, Canaris e a sua equipa enviaram temerariamente uma torrente de espiões para Inglaterra. Toda a cautela foi mandada às malvas,
por causa da necessidade urgente de informações sobre as defesas costeiras e o posicionamento das tropas britânicas. Os agentes foram recrutados à pressa, mal treinados
e equipados de forma ainda pior. Canaris suspeitava que a maioria tivesse ido parar diretamente às mãos do MI5, infligindo danos permanentes em redes que tinham
sido construídos ao longo de vários anos de trabalho meticuloso. Naquele momento, não o podia admitir; fazê-lo seria assinar a sua própria sentença de morte.
Adolf Hitler começou de novo a dar voltas pela sala. Canaris sabia que Hitler não temia a futura invasão. Muito pelo contrário, acolhia-a com pra2er. Tinha dez milhões de alemães mobilizados e uma indústria de armamento que, apesar do bombardeamento implacável dos Aliados e da escassez de mão de obra e matéria-prima, continuava a produzir quantidades colossais de armas e material. Mantinha-se confiante na sua capacidade de repelir a invasão e infligir aos Aliados uma derrota cataclísmica. À semelhança de Rundstedt, acreditava que um desembarque no Pas-de-Calais fazia sentido estratégico e era aí que a sua Atlantikwall mais se parecia com a visão de uma fortaleza inexpugnável. com efeito, tinha tentado forçar os Aliados a invadir em Calais, ordenando que as plataformas de lançamento das bombas V-1 e V-2 fossem aí colocadas. No entanto, Hitler também estava ciente de que os britânicos e os americanos tinham recorrido ao logro durante a guerra e de que o voltariam a fazer antes de invadirem a França.
- Vamos inverter os papéis - disse Hitler por fim. - Se eu fosse invadir a França a partir de Inglaterra, o que faria? Viria pelo caminho mais óbvio? O caminho que o meu inimigo espera que eu siga? Organizaria um ataque frontal à parte da costa mais protegida? Ou seguiria outro caminho e tentaria surpreender o inimigo? Transmitiria mensagens falsas via rádio e enviaria relatórios falsos através dos espiões? Faria declarações enganadoras à imprensa? A resposta
a todas estas questões é sim. Temos de contar que os britânicos recorram ao logro e até a um grande desembarque como manobra de diversão. Por mais que eu gostasse que eles tentassem desembarcar em Calais, devemos estar preparados para a possibilidade de uma invasão na Normandia ou na Bretanha. Para isso, os nossos Panzers devem manter-se bem afastados da costa até que as intenções do inimigo fiquem claras. De seguida, concentraremos a nossa base militar no ponto principal da invasão e obrigá-los-emos a retroceder para
o mar.
- Há outra coisa a ter em conta e que pode fundamentar a sua argumentação - disse o marechal de campo Erwin Rommel.
Hitler rodou nos calcanhares e encarou-o.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal.
Rommel apontou para o enorme mapa, que se estendia do chão até ao teto, atrás de Hitler.
- Se me der licença que faça uma demonstração, meu Fúhrer.
- Claro.
Rommel enfiou a mão na pasta, tirou um compasso de calibre e, a seguir, levantou-se e dirigiu-se para o mapa. Em dezembro, Hitler tinha-lhe atribuído o comando do
Grupo B do exército ao longo da costa do canal da Mancha. O Grupo B do exército incluía o 7.º Exército na região da Normandia, o 15.º Exército entre o estuário do
Sena e o golfo Zuiderzee, e o Exército da Holanda. Física e psicologicamente recuperado das desastrosas derrotas no Norte de África, a famosa Raposa do Deserto tinha-se
atirado à sua nova missão com uma incrível demonstração de energia, lançando-se a toda a hora pela costa francesa no seu Mercedes 230 cabriolei, inspecionando as defesas costeiras e o posicionamento das tropas e bases militares. Tinha prometido transformar o litoral francês num jardim do Diabo - um cenário de artilharia, campos de minas, fortificações em cimento e arame farpado do qual o inimigo nunca conseguiria sair. No entanto, em privado, Rommel defendia que qualquer fortificação concebida pelo ser humano podia também ser destruída por ele.
De pé, junto ao mapa, abriu o compasso e disse:
- Isto representa o raio de ação dos caças Spitfm e Mustang do inimigo. E estas são as posições das principais bases dos caças no sul de Inglaterra.
Rommel colocou as pontas do compasso em cada um dos locais e desenhou uma série de arcos no mapa.
- Como pode ver, meu Fúhrer, tanto a Normandia como Calais se encontram bem dentro do raio de ação dos caças do inimigo. Por esse motivo, devemos considerar ambas as áreas como possíveis locais para a invasão.
Hitler assentiu com a cabeça, impressionado com a demonstração de Rommel.
- Agora, coloque-se na posição do inimigo por um momento, Herr Generalfeldmarshal. Se estivesse a tentar invadir a França a partir de Inglaterra, onde é que atacaria?
Por breves instantes, Rommel fez questão de mostrar que estava a ponderar bem a questão e, a seguir, respondeu:
- Devo admitir, meu Fúhrer, que todos os indícios apontam para uma invasão no Pas-de-Calais. Mas não consigo livrar-me da convicção de que o inimigo nunca iria tentar um ataque frontal à nossa maior concentração de forças. E também me sinto influenciado pela experiência em África, meu Fúhrer. Os britânicos recorreram ao logro antes da Batalha de Alamein e vão voltar a fazê-lo antes de invadirem a França.
- E a Westwall, Herr Generalfeldmarshal? Como é que têm avançado os trabalhos?
- Ainda há muito a fazer, meu Fúhrer. Mas estamos a avançar bem.
- E vai estar tudo terminado antes da primavera?
- Creio que sim. Mas as fortificações costeiras não chegam para deter o inimigo. Temos de ter as nossas bases militares devidamente dispostas. E para isso receio bem que tenhamos de saber onde é que eles planeiam atacar. Só isso nos servirá de alguma coisa. Se o inimigo for bem-sucedido, a guerra pode estar perdida.
- Isso é um absurdo - lançou Heinrich Himmler. - Sob o comando do Fúhrer, a vitória final da Alemanha é ponto assente. As praias da França vão ser um cemitério para os britânicos e os americanos.
- Não - interveio Hitler, gesticulando. - O marechal de campo Rommel tem razão. Se o inimigo conseguir assegurar uma cabeça
de praia, então a guerra estará perdida. Mas, se aniquilarmos a invasão antes de ter sequer começado - prosseguiu Hitler, com a cabeça inclinada para trás e os olhos a chamejarem -, seriam necessários vários meses para organizar outra tentativa. O inimigo nunca voltaria a tentar! Roosevelt nunca seria reeleito. Até poderia acabar preso num sítio qualquer! O moral dos britânicos iria desabar da noite para o dia. Churchill, aquele velho gordo e doente, seria destruído! com os americanos e os britânicos paralisados, a lamberem as feridas, podemos deslocar homens e matériel do Ocidente e despejá-los no Leste. Estaline vai ficar à nossa mercê. Vai tentar negociar um acordo de paz. Tenho a certeza disso.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- Mas, se queremos deter o inimigo, temos de saber o local da invasão - afirmou. - Os meus generais pensam que será em Calais. Eu estou cético - confessou, rodando nos calcanhares e olhando fixamente para Canaris. - Herr Admirai, quero que resolva o impasse.
- Isso pode não ser possível - disse Canaris cautelosamente.
- A missão da Abwehr não é fornecer informações militares?
- E claro que sim, meu Fúhrer.
- Dispõe de espiões a atuarem dentro do Reino Unido, este relatório acerca da chegada do general Eisenhower a Londres é prova disso.
- Obviamente, meu Fúhrer.
- Então, sugiro que comece a trabalhar, Herr Admirai. Quero provas das intenções dos inimigos. Quero que me traga o segredo da invasão. E rapidamente, Herr Admirai. Deixe-me assegurar-lhe: não dispõe de muito tempo.
Hitler empalideceu visivelmente e pareceu subitamente exausto.
- Agora, a menos que os senhores tenham mais alguma má notícia para me dar, vou retirar-me para dormir umas horas. Foi uma noite muito longa.
Levantaram-se todos enquanto Hitler subia as escadas.
CINCO
NORTE DE ESPANHA: AGOSTO DE 1936
Ele encontra-se diante das portas abertas para a noite cálida, segurando uma garrafa de vinho branco gelado. Serve-se de outro copo sem se oferecer para encher novamente o dela. Ela está deitada na cama, a fumar e a ouvir a vo dele. Escutando o vento quente que agita as árvores lá fora, junto à varanda. Relâmpagos tremelum silenciosamente sobre o vale. O seu vale, como ele está sempre a dier. A porra do meu vale. E se os filhos da puta dos lealistas alguma ve mo tentarem tirar, corto-lhes a merda dos tomates e atiro-os aos cães.
-Quem te ensinou a disparar assim?-pergunta ele.
Tinham ido à caça de manhã e ela tinha capturado quatro faisÕes contra um dele.
- O meu pai.
- Disparas melhor do que eu. -Já reparei.
Uma vez mais, os relâmpagos surgem silenciosamente na sala e ela consegue ver Emílio com clareza durante alguns segundos. É trinta anos mais velho e, no entanto,
ela acha-o lindo. Tem cabelo louro-grisalho e o sol pôs-lhe a cara da cor do couro polido de uma sela. O nariz é longo e afilado, como a lâmina de um machado. Queria
ser beijada pelos lábios dele, mas desde a primeira vez ele queria-a muito depressa e de modo rude e o Emilio consegue sempre toda a merda que quer, querida.
- Falas inglês muito bem - informa-a ele, como se ela estivesse a ouvir isso pela primeira
vez - O teu sotaque é perfeito. Nunca consegui perder o meu, por mais
que tentasse.
- A minha mãe era inglesa.
- Onde está ela agora?
- Morreu há muito tempo.
- Também falas francês?
- Sim - responde ela.
- Italiano.
- Sim, falo italiano.
- O teu espanhol é que não é assim tão bom.
- Chega para o que é preciso - di ela.
Ele está a tocar no pénis enquanto fala. Adora-o tal como adora o seu dinheiro e a sua terra. Fala dele como se fosse um dos seus melhores cavalos. Na cama, é como
uma terceira pessoa.
- Deitas-te com a Maria ao pé da ribeira, mas depois à noite deixas que eu entre na tua cama efoda contigo - diz ele.
- É uma maneira de pôr as coisas - responde ela. -Queres que eu pare com a Maria?
- Tu fazes a maria feliz - responde ele, como se a felicidade justificasse alguma coisa.
- Ela faze-me feliz.
- Nunca conheci uma mulher como tu - disse ele, pondo um cigarro no canto da boca e acendendo-o, com as mãos em concha para o proteger da brisa noturna. - Fodes comigo
e com a minha filha no mesmo dia, sem pestanejar.
- Não acredito nisso de criar afetos. Ele ri-se, no seu riso calmo e controlado.
- Isso é maravilhoso - responde ele, sorrindo outra vez calmamente. Não acreditas nisso de criar afetos. Isso é magnífico. Tenho pena do pobre canalha que cometa
o erro de se apaixonar por ti.
- Também eu.
- E tens alguns sentimentos?
- Não, nem por isso.
- Amas alguém ou alguma coisa?
- Amo o meu pai - responde ela. - E amo estar deitada ao pé da ribeira com a Maria.
Maria é a única mulher que conheceu até hoje cuja beleza a ameaça.
Neutralaria essa ameaça pilhando a beleza de Maria para si mesma. A sua juba de
cabelos castanhos encaracolados. A imaculada pele cor de azeitona. Os seios perfeitos que são como pêras no verão na sua boca. Os lábios que são a coisa mais suave em que já tocou. "Vem passar o verão a Espanha comigo, na estancia da minha família",
diz Maria numa tarde chuvosa em Paris, onde ambas se encontram a estudar, na
Sorbonne. O pai vai ficar desiludido, mas a ideia de passar um verão na Alemanha a observar a merda dos nais a desfilar pelas ruas não significa nada para ela. Mas
não sabia que a alternativa seria enfiar-se bem no meio de uma guerra civil.
Mas a guerra não perturba o insolente enclave paradisíaco de Emílio, no sopé dos Pirenéus. É o verão mais maravilhoso da vida dela. De manhã, os três caçam ou passeiam
os cães e, à tarde, ela e Maria vão até à ribeira, nadam nos lagos profundos e gélidos e
bronzeiam-se nas rochas cálidas. Maria gosta mais quando estão lá fora. Gosta
da sensação do sol nos seios e de Anna entre as pernas. "O meu pai também te quer, sabes?", anuncia Maria uma tarde em que estão deitadas à sombra de um eucalipto.
"Podes tê-lo. Só não te apaixones por ele. Toda a gente está apaixonada por ele."
Emílio está outra vez a falar:
-Quando voltares para Paris, no próximo mês, quero que te encontres com uma pessoa.
Faz isso por mim?
- Depende.
- De quê?
- De quem for.
- Ele vai entrar em contacto contigo. Quando lhe falar de ti, vai ficar muito interessado.
- Não vou dormir com ele.
- Ele não vai estar interessado em dormir contigo. É um homem de família. Tal como eu - acrescenta, rindo-se com o seu riso mais uma vez.
- E qual é o nome dele?
- Os nomes não são importantes para ele.
- Dime o nome dele.
- Não tenho a certeza do nome que ele usa atualmente.
- E o que é que o teu amigo faz?
- Trabalha com informação.
Ele regressa à cama. A. conversa excitou-o. Tem o pénis novamente duro e deseja-a outra
vez de imediato. Está a afastar-lhe as pernas e a tentar penetrá-la. Ela
pega-lhe nas mãos para o ajudar e a seguir crava as unhas nele.
- Ahhhh! Meu Deus, Anna! com tanta força, não!
- Diz-me o nome dele.
- É contra as regras... não posso.
- Diz-me - insiste ela, cravando-lhe as unhas com mais força.
- Vogel- murmura ele. - O nome dele é Kurt Vogel. Jesus!
BERLIM: JANEIRO DE 1944
A Abwehr tinha dois tipos básicos de espiões em ação contra o Reino Unido. A Corrente-S consistia em agentes que entravam no país, se instalavam com identidades
falsas e desenvolviam atividades de espionagem. Os agentes da Corrente-R eram maioritariamente cidadãos de outros países que entravam periodicamente no Reino Unido,
de forma legal, recolhiam informações e enviavam relatórios aos seus superiores em Berlim. Havia uma terceira rede de espiões mais pequena e altamente secreta referida
como a Corrente-V- um punhado de agentes adormecidos, excecionalmente treinados, que se infiltravam de forma profunda na sociedade inglesa e esperavam, por vezes
durante anos, até serem ativados. Foi assim chamada devido ao seu criador e único agente que a comandava, Kurt Vogel.
O modesto império de Vogel consistia em duas salas no quarto piso do quartel-general da Abwehr, localizado num par de austeros prédios geminados, em pedra cinzenta,
nos números 74 e 76 da Tirpitz Ufer. As janelas davam para o Tiergarten, o parque com 255 hectares no coração de Berlim. Em tempos, tinha tido uma vista espetacular. Mas meses de bombardeamentos por parte dos Aliados tinham deixado crateras do tamanho de Panzers nos caminhos equestres e reduzido a maioria dos castanheiros e das tílias a tocos carbonizados. Grande parte do gabinete de Vogel estava ocupada por uma fila de armários de aço trancados e um pesado cofre. Vogel suspeitava que os empregados do registo central da Abwehr tinham passado a trabalhar para a Gestapo e recusava-se a guardar lá os dossiês. O seu único assistente - um tenente condecorado da Wehrmacht chamado
Werner Ulbricht, que tinha ficado estropiado a lutar contra os russos . trabalhava na antessala. Guardava um par de pistolas Luger na gaveta de cima da secretária
e Vogel tinha-lhe ordenado que disparasse contra qualquer pessoa que entrasse sem autorização. Ulbricht sofria de pesadelos em que matava Wilhelm Canaris por engano.
Oficialmente, Vogel detinha o posto de capitão na Kriegsmarine, mas era apenas uma formalidade concebida para lhe permitir o acesso necessário para atuar junto de
determinados grupos. Tal como o seu mentor, Canaris, raramente envergava o uniforme. O seu guarda-roupa variava pouco - um fato cinzento-escuro a lembrar o de um
cangalheiro, uma camisa branca, uma gravata negra. Tinha cabelo grisalho-escuro, que parecia ter sido ele a cortar, e o olhar intenso de um revolucionário de café.
A voz era como uma dobradiça enferrujada e, depois de quase uma década de conversas clandestinas em cafés, salas de hotel e escritórios sob escuta, raramente se
elevava acima de um murmúrio de capela. Ulbricht, surdo de um ouvido, esforçava-se constantemente por o ouvir.
A paixão de Vogel pelo anonimato raiava o absurdo. No gabinete havia apenas um objeto pessoal, um retrato da mulher, Gertrude, e das filhas gémeas. Enviara-as para
a casa da mãe de Gertrude, na Baviera, quando os bombardeamentos começaram e via-as com pouca frequência. Sempre que saía do gabinete, mesmo por curtos momentos,
retirava o retrato de cima da secretária e fechava-o na gaveta. Até mesmo o seu distintivo de identificação era um enigma. Não tinha fotografia - Vogel recusava
ser fotografado há anos - e o nome era falso. Possuía um pequeno apartamento perto do gabinete, a que se chegava depois de um agradável passeio ao longo das frondosas
margens do Landwehr Kanal, para aquelas raras noites em que se permitia escapar. A senhoria achava que ele era um professor universitário com uma série de namoradas.
Mesmo dentro da Abwehr, pouco mais se sabia dele.
Kurt Vogel tinha nascido em Dusseldorf. O pai era o diretor de um Gymnasium local, a mãe uma professora de música em part-time que tinha abandonado uma carreira
promissora como pianista para casar e criar uma família. Vogel tinha feito um doutoramento em Direito, na Universidade de Leipzig, onde estudara Direito Civil e
Político com duas das maiores mentes jurídicas da Alemanha, Herman
Heller e Leo Rosenberg. Era um aluno brilhante, o melhor da sua turma, e os professores previram discretamente que Vogel se sentaria um dia no Reichsgericht, o Supremo
Tribunal da Alemanha.
Hitler alterou tudo isso. Hitler acreditava no poder dos homens, não no poder do Direito. Poucos meses após ter tomado o poder, já tinha virado do avesso todo o sistema judicial da Alemanha. O Fíihrergewalt - o poder do Fúhrer - tornou-se a única lei do país e todos os caprichos de Hitler eram imediatamente traduzidos em códigos e regulamentos. Vogel lembrava-se de algumas máximas ridículas cunhadas pelos arquitetos da revisão legal da Alemanha imposta por Hitler. A lei é o que é útil ao povo alemão! A lei deve ser interpretada através de saudáveis emoções populares! Quando o poder judiciário ordinário se interpôs, os nazis estabeleceram os seus próprios tribunais, os Volksgerichtshof, os Tribunais do Povo. Na opinião de Vogel, o dia mais negro na história da jurisprudência alemã ocorreu em outubro de 1933, quando dez mil advogados, nos degraus do Reichsgericht, em Leipzig, ergueram os braços na saudação nazi e juraram seguir o rumo do Ftihrer até ao fim dos nossos dias. Vogel tinha sido um deles. Naquela noite, regressou ao pequeno apartamento que partilhava com Gertrude, queimou os livros de Direito no fogão e bebeu até não poder mais.
Vários meses mais tarde, no inverno de 1934, foi abordado por um homem pequeno e austero, com um par de dachshunds - Wilhelm Canaris, o novo chefe dos serviços secretos militares alemães. Canaris perguntou a Vogel se estaria disposto a trabalhar para a Abwehr. Vogel aceitou, com uma condição - que não fosse obrigado a filiar-se no partido nazi e, na semana seguinte, desapareceu no mundo dos serviços secretos militares alemães. Oficialmente, estava ao serviço como conselheiro legal interno de Canaris. Extraoficialmente, foi-lhe atribuída a tarefa de preparar a guerra contra os britânicos que Canaris considerava inevitável.
Naquele preciso momento, Vogel estava sentado à secretária debruçado sobre um memorando, com os nós dos dedos a pressionar as têmporas. Esforçava-se por se concentrar no meio do ruído o chocalhar do velho elevador à medida que se arrastava para cima e para baixo no poço mesmo por trás da parede, o respingar da chuva gelada nas janelas, a cacofonia das buzinas dos automóveis que
acompanhava a hora de ponta no entardecer de Berlim. Tirou as mãos das têmporas e tapou os ouvidos, apertando até fazer silêncio. O memorando tinha-lhe sido dado por Canaris naquele dia, algumas horas depois de a Velha Raposa ter regressado de uma reunião com Hitler, em Rastenburg. Canaris achava que parecia promissor e Vogel não podia deixar de concordar.
- Hitler quer resultados, Kurt - tinha dito Canaris, sentando-se atrás da antiga secretária desgastada, como um velho fidalgo impenetrável, com os olhos a percorrerem as prateleiras transbordantes de livros como se estivesse à procura de um volume precioso há muito perdido. - Ele quer provas de que é em Calais ou na Normandia. Talvez seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Vogel tinha lido o memorando uma vez, rapidamente. Naquele instante, estava a lê-lo uma segunda vez, mais cuidadosamente. Na verdade, era mais do que prometedor - era perfeito, a oportunidade de que estava à espera. Quando terminou, ergueu o olhar e sussurrou o nome de Ulbricht várias vezes, como se estivesse a falar diretamente ao ouvido dele. Por fim, não recebendo resposta, levantou-se e dirigiu-se à antessala. Ulbricht estava a limpar as Lugers.
- Werner, estou a chamá-lo há cinco minutos - disse Vogel, com uma voz quase inaudível.
- Peço desculpa, capitão. Não o ouvi.
- Quero ver o Míiller logo pela manhãzinha. Marque-me uma reunião para amanhã.
- Sim, senhor.
- E, Werner, faça qualquer coisa ao raio dos ouvidos. Tive de gritar a plenos pulmões ali dentro.
Os bombardeiros chegaram à meia-noite quando Vogel dormia uma sesta intermitente no gabinete numa dura cama de campanha. Pôs os pés no chão, levantou-se e dirigiu-se para a janela enquanto os aviões zumbiam lá em cima. Berlim estremecia à medida que os primeiros fogos deflagravam nos bairros de Pankow e Weissensee. Vogel
interrogou-se quanto mais poderia a cidade aguentar. Vastas secções da capital do Reich de mil anos já tinham sido reduzidas a destroços. Muitos dos mais famosos bairros da cidade pareciam desfiladeiros de tijolo pulverizado e aço retorcido. As tílias do Unter den Linden tinham sido queimadas, tal como grande parte dos bancos e lojas, outrora resplandecentes, que se estendiam pela ampla avenida. O famoso relógio da Igreja Memorial Kaiser Wilhelm tinha-se imobilizado nas 7h30 desde novembro, quando os bombardeiros aliados tinham devastado quatrocentos hectares de Berlim numa única noite.
O memorando girava na sua cabeça enquanto ele observava o ataque noturno.
ABWEHR/BERLIM XFU0465848261
PARA: CANARIS
DE: MULLER
DATA: 2 NOV43
A 21 DE OUTUBRO, O CAPITÃO DIETRICH DA BASE DE ASUNCION INTERROGOU O
OPERACIONAL AMERICANO SCORPIO NA CIDADE DO PANAMÁ. COMO SABE, SCORPIO É UM DOS NOSSOS AGENTES MAIS IMPORTANTES NA AMÉRICA. OCUPA UMA POSIÇÃO IMPORTANTE NOS CÍRCULOS FINANCEIROS DE NOVA IORQUE E TEM BOAS RELAÇÕES EM WASHINGTON. É AMIGO PESSOAL DE MUITOS QUADROS SUPERIORES DO MINISTÉRIO DA
GUERRA E DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS . ENCONTROU-SE PESSOAL-
MENTE com ROOSEVELT. AO LONGO DA GUERRA, AS SUAS INFORMAÇÕES TÊM SIDO ATEMPADAS E ALTAMENTE PRECISAS. RECORDO-LHE A INFORMAÇÃO QUE NOS FORNECEU
ACERCA DAS REMESSAS DE ARMAS AMERICANAS PARA OS BRITÂNICOS .
DE ACORDO com SCORPIO, UM REPUTADO ENGENHEIRO AMERICANO CHAMADO PETER
JORDAN FOI RECRUTADO PELA MARINHA AMERICANA NO MÊS PASSADO E ENVIADO PARA
LONDRES PARA TRABALHAR NUM PROJETO DE CONSTRUÇÃO ALTAMENTE SECRETO. JORDAN NÃO POSSUI NENHUMA EXPERIÊNCIA MILITAR ANTERIOR. SCORPIO CONHECE
JORDAN PESSOALMENTE E FALOU com ELE ANTES DA SUA PARTIDA PARA LONDRES.
SCORPIO AFIRMA QUE O PROJETO ESTÁ SEM DÚVIDA RELACIONADO com O PLANO DO
INIMIGO PARA INVADIR A FRANÇA.
JORDAN É RESPEITADO PELO TRABALHO DESENVOLVIDO EM VÁRIOS PROJETOS IMPORTANTES
DE PONTES AMERICANOS. JORDAN É VIÚVO. A MULHER, FILHA DO BANQUEIRO
AMERICANO BRATTON LAUTERBACH, MORREU NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM AGOSTO DE 1939 . SCORPIO ACHA QUE JORDAN É BASTANTE VULNERÁVEL A UMA ABORDAGEM
DE UM ELEMENTO FEMININO.
JORDAN VIVE ATUALMENTE SOZINHO, NA ZONA DE LONDRES CONHECIDA COMO KENSINGTON
. SCORPIO FORNECEU A MORADA DA CASA, BEM COMO A COMBINAÇÃO DO COFRE QUE SE ENCONTRA NO ESTÚDIO .
SUGIRA AÇÃO.
Vogel reparou num feixe de luz na soleira da porta e ouviu o arrastar da perna de pau de Ulbricht contra o chão. Os bombardeamentos perturbavam Ulbricht de um modo que ele não conseguia pôr em palavras e que Vogel nunca seria capaz de compreender. Retirou o porta-chaves da gaveta da secretária e dirigiu-se a um dos armários de aço. O ficheiro encontrava-se dentro de uma pasta negra sem identificação. Vogel voltou para a secretária, serviu-se de um grande copo de conhaque e abriu o dossiê. Estava lá tudo, as fotografias, o material relativo aos antecedentes, os relatórios de execução. Mas não precisava de o ler. Tinha sido ele a escrevê-lo e, tal como a pessoa em questão, era amaldiçoado com uma memória perfeita.
Virou mais algumas páginas e encontrou as notas que tinha redigido depois do primeiro encontro entre ambos, em Paris. Por baixo delas, estava uma cópia do telegrama que lhe fora enviado pelo homem que a tinha descoberto, Emilio Romero, um rico proprietário rural espanhol, um fascista, um caçador de talentos para a Abwehr.
Ela é tudo aquilo de que andas à procura. Gostava de ficar com ela para mim, mas, como sou amigo, vou dar-ta. A um preço razoável, é claro.
Na sala, fez-se de repente um frio de gelar os ossos. Vogel deitou-se na cama de campanha e tapou-se com um cobertor.
Hitler quer resultados, Kurt. Talve seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Por vezes, imaginava-se a deixá-la infiltrada até tudo ter terminado e, a seguir, a encontrar algum modo de a tirar de lá. Mas ela era perfeita para aquilo, claro. Era linda, era inteligente e o seu inglês e o conhecimento que tinha da sociedade britânica eram irrepreensíveis. Virou-se e viu a fotografia de Gertrude e das filhas. Pensar que tinha fantasiado abandoná-las por ela. Tinha sido tão tolo. Desligou as luzes. O ataque aéreo tinha terminado. A noite era uma sinfonia de sirenes. Tentou dormir, mas era escusado. Não a conseguia tirar da cabeça.
Pobre Vogel, pus-te o coração de pernas para o ar, não foi?
Os olhos da fotografia perfuravam-no. Era obsceno olhar para eles, recordá-la. Levantou-se, dirigiu-se para a secretária e guardou a foto na gaveta.
- Por amor de Deus, Kurt! - exclamou Múller quando Vogel entrou no seu gabinete, na manhã seguinte. - Quem é que te tem cortado o cabelo, meu amigo? Deixa-me dar-te o nome da mulher que tem cortado o meu, talvez ela te possa ajudar.
Vogel, exausto depois de uma noite de pouco sono, sentou-se e contemplou em silêncio a figura diante dele. Paul Múller era responsável pela rede dos serviços de informações da Abwehr nos Estados Unidos. Era baixo, atarracado e estava impecavelmente vestido com um fato francês lustroso. Tinha o cabelo liso com brilhantina penteado para trás, deixando a descoberto o rosto de querubim. A boca pequena era generosa e vermelha, como a de uma criança que acabou de comer doce de cereja.
- Vejam só, o grande Kurt Vogel aqui, no meu gabinete - exclamou Múller, com um sorriso afetado. - A que devo o privilégio?
Vogel retirou a cópia do memorando de Múller do bolso do casaco e abanou-a diante dele.
- Fala-me de Scorpio - disse.
- Então, o Velho lá fez circular finalmente o meu memorando. Olha para a data dessa maldita coisa. Dei-lhe isso há um mês e meio. Tem estado a apanhar pó na secretária dele. Essa informação é ouro. Mas vai para a Toca do Lobo e não volta mais - queixou-se Múller, fazendo depois uma pausa, acendendo um cigarro e lançando o fumo para o teto. - Sabes, Kurt, às vezes, pergunto-rne de que lado estará Canaris.
A observação não era invulgar naqueles tempos. Desde a prisão de vários membros do comando da Abwehr sob a acusação de traição, o moral em Tirpitz Ufer tinha caído para níveis até aí inauditos. Vogel pressentiu que a agência de serviços secretos militares da Alemanha se encontrava perigosamente à deriva. Tinha ouvido rumores de que Canaris deixara de agradar a Hitler. Havia até rumores entre
o staffde que Himmler estava a conspirar para fazer cair Canaris e colocar a Abwehr sob o controlo das SS.
- Fala-me de Scorpio - repetiu Vogel.
- Jantei com ele em casa de um diplomata americano - revelou Miiller, atirando a cabeça redonda para trás e contemplando o teto. - Antes da guerra, em 1937, creio
eu. vou verificar no dossiê dele para ter a certeza. O alemão do tipo era melhor do que o meu. Achava que os nazis eram um maravilhoso bando de companheiros a fazer
grandes coisas pela Alemanha. A única coisa que ele odiava mais do que os judeus eram os bolcheviques. Foi como uma audição. Recrutei-o eu mesmo no dia seguinte.
A presa mais fácil da minha carreira.
- Quais são os antecedentes dele? Múller sorriu:
- Investimento bancário. Ivy League, bons contactos com a indústria, amizades com meia Washington. As informações dele sobre a produção de armamento têm sido excelentes.
Vogel estava a dobrar o memorando e a guardá-lo outra vez no bolso.
- E o nome dele?
- Vá lá, Kurt. É um dos meus melhores agentes.
- Quero o nome dele.
- Este sítio é como uma peneira, sabes disso. Se eu te disser, toda a gente fica a saber.
- Quero uma cópia do dossiê dele na minha secretária daqui a uma hora - ordenou Vogel, com a voz baixa pouco mais do que um sussurro. - E quero tudo o que tenhas sobre o engenheiro.
- Posso dar-te as informações relacionadas com o Jordan.
- Quero tudo, e, se tiver de ir falar com o Canaris, faço isso.
- Oh, por amor de Deus, Kurt, não vais a correr ter com o tio Willy, pois não?
Vogel levantou-se e abotoou o casaco.
- Quero o nome dele e quero o dossiê dele. Vogel virou-se e saiu do gabinete.
- Kurt, volta aqui - gritou Múller. - Vamos resolver isto, por amor de Deus.
- Se quiseres falar, estou no gabinete do Velho - atirou Vogel afastando-se pelo corredor estreito.
- Muito bem, ganhaste - lançou Múller, com as mãos bem tratadas a vasculharem num arquivo. - Aqui está a merda do dossiê. Não tens de ir a correr ter com o tio Willy outra vez. Meu Deus, às vezes, és pior do que os cabrões dos nazis.
Vogel passou o resto da manhã a ler o dossiê sobre Peter Jordan. Quando terminou, retirou um par de ficheiros de um dos arquivos, voltou para a secretária e leu-os cuidadosamente.
O primeiro ficheiro continha informações sobre um irlandês que tinha trabalhado como espião durante um curto período de tempo, mas que deixara de o fazer porque as informações que recolhia eram consideradas fracas. Vogel ficara com o dossiê dele e colocara-o na folha de salários da Corrente-V. Vogel não estava preocupado com a péssima avaliação que o espião tinha recebido no passado - não andava à procura de um espião. Havia outras qualidades no agente que Vogel considerava interessantes. Era dono de uma pequena quinta, numa região isolada na costa de Norfolk, no Reino Unido. Era uma casa segura perfeita - suficientemente perto de Londres para se fazer a viagem de comboio em três horas, suficientemente longe para não estar cheia de agentes do MI5 à sua volta.
O segundo ficheiro continha o dossiê de um antigo paraquedista da Wehrmacht que fora impedido de continuar a saltar por causa de um ferimento na cabeça. O homem possuía todas as qualidades de que Vogel gostava - um inglês perfeito, bom olho para o pormenor, inteligência fria. Ulbricht tinha-o encontrado num posto de escuta de comunicações da Abwehr, no norte da França. Vogel colocou-o na folha de salários da Corrente-V e guardou-o para missões adequadas.
Vogel afastou os ficheiros e redigiu duas mensagens. Acrescentou os códigos a serem utilizados, as frequências em que as mensagens seriam enviadas e o horário de transmissão. De seguida, olhou para cima e chamou Ulbricht.
- Sim, Herr Kapitàn - disse Ulbricht ao entrar no escritório, coxeando pesadamente com a perna de pau.
Vogel olhou para Ulbricht durante um instante antes de falar, interrogando-se se o homem estaria à altura das exigências de uma operação como a que queria empreender. Ulbricht tinha vinte e sete anos, mas parecia ter, no mínimo, quarenta. Tinha o cabelo preto, cortado rente, salpicado de cinzento. Rugas de dor corriam como afluentes desde o canto do olho bom. Perdera o outro olho na explosão; a órbita vazia estava escondida por uma elegante pala negra. Uma Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro balançava-lhe ao pescoço. O botão de cima da túnica de Ulbricht estava desapertado porque o esforço que significava o mais simples movimento o punha a transpirar. Durante todo o tempo em que tinham trabalhado juntos, Vogel nunca ouvira Ulbricht queixar-se uma única vez.
- Quero que vá a Hamburgo amanhã à noite - informou Vogel, entregando a Ulbricht as transcrições das mensagens. - Mantenha-se ao pé do operador de rádio enquanto ele as estiver a enviar. Assegure-se de que não há nenhum engano. Certifique-se de que as confirmações dos agentes estão corretas. Se houver alguma coisa de invulgar,
quero ser informado. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Antes de ir, quero que me localize Horst Neumann. - Está em Berlim, creio eu.
- E onde é que está hospedado?
- Não tenho a certeza - disse Ulbricht. - Mas acho que há uma mulher envolvida.
- Normalmente há - disse Vogel, indo até à janela e olhando para baixo. - Contacte o staffàa quinta Dahlem. Diga-lhes que contem connosco hoje à noite. Quero que
vá lá ter amanhã, quando regressar de Hamburgo. Diga-lhes que vamos ficar uma semana. Temos muita coisa a estudar. E diga-lhes para preparar a plataforma de salto
no celeiro. Neumann já não salta de um avião há muito tempo. Vai precisar de treinar.
- Sim, senhor.
Ulbricht saiu, deixando Vogel sozinho no gabinete. Este ficou à janela durante bastante tempo, a pensar naquilo mais uma vez. Era o segredo mais bem guardado da guerra e planeava roubá-lo com uma mulher, um aleijado, um paraquedista que não podia saltar e um
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traidor britânico. Que grande equipa que tu reuniste, Kurt, meu velho. Se a sua pele não estivesse em jogo, teria achado tudo aquilo engraçado. Em vez disso, limitou-se a ficar ali, como uma estátua, observando a neve a acumular-se silenciosamente sobre o Tiergarten, roendo-se de preocupação.
SEIS LONDRES
Os Serviços Secretos e de Segurança do Império Britânico mais conhecidos pela sua designação enquanto serviços secretos militares, MI5 - tinham a sua sede num pequeno
e exíguo prédio de escritórios, no número 58 da St. James's Street. A ocupação do MI5 era a contraespionagem. No léxico da espionagem, contraespionagem significa
proteger segredos; e, quando necessário, capturar espiões. Durante grande parte dos seus quarenta anos de existência, os Serviços de Segurança labutaram à sombra do seu primo mais charmoso, os Serviços Secretos, ou MI6. Essas rivalidades internas não preocupavam muito o professor Vicary. Foi no MÍ5 que Vicary ingressou, .em maio de 1940, e era aí que, numa noite sombria e chuvosa cinco dias depois da conferência secreta de Hitler em Rastenburg, continuava a poder ser encontrado.
O último andar era a reserva particular dos quadros superiores o gabinete do diretor-geral, o seu secretariado, os diretores-adjuntos e os chefes de divisão. Era lá que ficava o gabinete do brigadeiro Sir Basil Boothby, escondido por trás de um par de intimidantes portas de carvalho. Um par de luzes brilhava por cima das portas: uma vermelha, que significava que a sala estava demasiado exposta para se permitir o acesso, e outra verde, cujo significado era: entre por sua própria conta e risco. Vicary, como sempre, hesitou antes de carregar na campainha.
Vicary tinha sido convocado às nove horas, enquanto estava a fechar as suas coisas à chave no armário cinzento-escuro e a arrumar
a cabana, o nome que dava ao seu pequeno gabinete. Quando o MI5 explodiu em tamanho, no início da guerra, o espaço tornou-se um bem precioso. Vicary foi relegado para um cubículo sem janelas, do tamanho de um armário de vassouras, com uma burocrática e desgastada carpete verde e uma pequena e robusta secretária de diretor de escola. O parceiro de Vicary, um antigo agente da Polícia Metropolitana chamado Harry Dalton, sentava-se com os outros membros menos importantes numa área comum,
no centro do piso. Em torno desse sítio, havia uma azáfama própria de uma sala de redação, e Vicary apenas se aventurava até lá quando era absolutamente necessário.
Oficialmente, Vicary ocupava o posto de major no Corpo dos Serviços Secretos, embora os postos militares não significassem quase nada dentro do departamento. A maioria do staff referia-se habitualmente a ele como Professor, e Vicary apenas tinha vestido o uniforme duas vezes. No entanto, a maneira de vestir de Vicary mudara. Abandonara os fatos de tweed da universidade, vestindo em vez disso fatos de um cinzento-escuro que tinha comprado antes de a roupa, tal como tudo o resto, ter sido racionada. Por vezes, deparava com um conhecido ou com um velho colega do University College. Apesar dos incessantes avisos do governo sobre os perigos de conversas imprudentes, perguntavam inevitavelmente a Vicary o que estava a fazer ao certo. Normalmente, ele sorria com ar cansado, encolhia os ombros e dava a resposta prescrita: estava a trabalhar num departamento muito aborrecido do Ministério da Guerra.
Por vezes, era aborrecido, mas não acontecia frequentemente. Churchill tinha razão - era tempo de regressar ao mundo dos vivos. A chegada ao MI5, em maio de 1940, tinha sido um renascimento. Desabrochou na atmosfera dos serviços secretos em tempo de guerra: as longas horas, as crises, até mesmo o chá horrível da cantina. Até tinha voltado a fumar cigarros, a que tinha renunciado no último ano em Cambridge. Adorava ser ator no teatro da realidade. Duvidava seriamente se conseguiria voltar a sentir-se satisfeito no santuário do mundo académico.
Era evidente que as horas e a tensão estavam a produzir os seus efeitos, mas nunca se sentira tão bem. Conseguia trabalhar mais tempo e precisava de dormir menos. Quando acabava por ir para a cama,
adormecia imediatamente. À semelhança dos outros agentes, passava muitas noites na sede do MI5, dormindo na pequena cama de campanha que conservava fechada junto à secretária.
Apenas os maus-tratos infligidos aos óculos em meia-lua sobreviveram à catarse de Vicary - continuavam manchados e ameigados e eram uma espécie de piada dentro do departamento. Em momentos de aflição, ainda os procurava batendo nos bolsos distraidamente e punha-os para se reconfortar.
Era o que fazia naquele momento, quando a luz por cima da porta do gabinete de Boothby ficou de repente verde. Vicary carregou na campainha, com o ar pensativo de um homem prestes a assistir ao funeral de um amigo de infância. A campainha tocou suavemente, a porta abriu-se e Vicary entrou.
O gabinete de Boothby era grande e largo, com belas pinturas, uma lareira a gás, valiosos tapetes persas e uma vista magnífica fornecida pelas janelas altas. Sir Basil deixou Vicary à espera os dez minutos da praxe e entrou por fim na sala, por uma segunda porta, que ligava o gabinete ao secretariado do diretor-geral.
O brigadeiro Sir Basil Boothby tinha o tamanho e a escala típicos de um inglês - alto, magro, exibindo ainda sinais da agilidade física que tinha feito dele um atleta
famoso nos tempos de estudante. Via-se isso no modo fácil como o braço forte segurava a bebida, nos ombros quadrados e no pescoço grosso, nos quadris estreitos onde calças, colete e casaco convergiam numa perfeição graciosa. Tinha a beleza vigorosa que um certo tipo de mulheres mais novas acha atraente. O cabelo e as sobrancelhas de um louro-acinzentado eram tão exuberantes que os espirituosos do departamento se referiam a ele como o escovilhão do quinto andar.
Oficialmente, pouco se sabia acerca da carreira de Boothby apenas que tinha feito parte das organizações de serviços secretos e contraterrorismo britânicas ao longo de toda a sua vida profissional. Vicary achava que a má-língua e os rumores que envolviam um homem diziam mais sobre ele do que o seu currículum vitae. As especulações acerca de Boothby tinham dado origem a uma atividade verdadeiramente próspera dentro do departamento. Segundo o que se
dizia, Boothby tinha dirigido uma rede de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial, que se infiltrara no estado-maior alemão. Em Deli, executou ele próprio um indiano acusado do assassínio de um cidadão britânico. Na Irlanda, espancou um homem até à morte com a coronha da pistola por se recusar a divulgar a localização de um esconderijo de armas. Era especializado em artes marciais e utilizava o tempo livre para manter a sua perícia. Era ambidestro e conseguia escrever, fumar, beber o gim e a cerveja amarga ou partir um pescoço com qualquer uma das mãos. Jogava ténis tão bem que poderia ter ganho o torneio de Wimbledon. Enganadora era a palavra utilizada mais frequentemente para descrever a forma como jogava e a capacidade para mudar de mão a meio de um jogo continuava a desconcertar os adversários. A sua vida sexual era muito discutida e debatida
- um mulherengo implacável que tinha levado para a cama metade das datilógrafas e das raparigas da divisão dos Registos e, simultaneamente, homossexual.
Na opinião de Vicary, Sir Basil Boothby simbolizava tudo o que havia de errado nos serviços secretos britânicos entre as duas guerras mundiais - o inglês de boas famílias, educado em Eton e Oxford, que achava que o exercício secreto do poder era um direito adquirido por nascimento, tal como a fortuna da família e a mansão secular em Hampshire. Inflexível, indolente, ortodoxo, um polícia de sapatos feitos à mão e fato da Savile Row. Boothby tinha sido eclipsado intelectualmente pelos novos recrutas atraídos para o MI5 desde o início da guerra - os melhores cérebros das universidades, os melhores advogados dos escritórios mais prestigiados de Londres. Naquele momento, encontrava-se numa posição nada invejável - a supervisionar homens que eram mais espertos do que ele, ao mesmo tempo que tentava ficar com os louros burocráticos pelas façanhas deles.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Alfred. Tive uma reunião nas Salas de Guerra Subterrâneas com Churchill, o diretor-geral, Menzies e Ismay. Receio bem que tenhamos uma grave crise nas nossas mãos. vou beber brandy com soda. O que vai tomar?
- Uísque - respondeu Vicary, observando Boothby.
Apesar de ser um dos agentes mais importantes do MI5, Boothby ainda tinha um orgulho infantil em pronunciar os nomes das pessoas poderosas com quem se encontrava regularmente. O grupo de
homens que se tinha acabado de reunir na fortaleza subterrânea do primeiro-ministro era a elite da comunidade dos serviços secretos britânica durante o período da guerra - o diretor-geral do MI5, Sir David Petrie; o diretor-geral do MI6, Sir Stewart Menzies; e o chefe da equipa pessoal de Churchill, o general Sir Hastings Ismay. Boothby carregou num botão na mesa e pediu à secretária para trazer a bebida de Vicary. Foi até à janela, levantou a cortina opaca e olhou lá para fora.
- Peço a Deus que não venham outra vez hoje à noite, a maldita Luftwaffe. Era diferente em 1940. Era tudo novo e excitante, de um modo estranho. Transportar o próprio capacete de aço debaixo do braço para ir jantar. Correr para os abrigos. Assistir ao fogo nos telhados. Mas não acho que Londres consiga suportar outro inverno com uma Blitz em plena força. As pessoas estão todas tão cansadas. Cansadas, esfomeadas, esfarrapadas e fartas das humilhações mesquinhas que acompanham uma guerra. Não sei bem quanto mais é que este país consegue aguentar.
A secretária de Boothby trouxe a bebida de Vicary. Vinha no centro de uma bandeja de prata, em cima de um guardanapo de papel branco. Boothby tinha uma obsessão com as manchas de água na mobília do escritório. Sentou-se numa cadeira ao lado de Vicary e cruzou as pernas compridas, com a biqueira do sapato engraxado a apontar para a rótula de Vicary como uma arma carregada.
- Temos uma nova missão para si, Alfred. E de modo que possa compreender verdadeiramente a sua importância, decidimos que é necessário levantar um pouco o véu e mostrar-lhe um bocadinho mais do que lhe foi permitido ver até agora. Compreende o que lhe estou a dizer?
- Creio que sim, Sir Basil.
- O Alfred é que é o historiador. Sabe muito acerca de Sun-Tzu?
- A China do século iv a.C. não é propriamente a minha área, Sir Basil. Mas já o li.
- E sabe o que é que Sun-Tzu escreveu sobre o logro militar, Alfred?
- Sun-Tzu escreveu que toda a guerra tem por base o logro. Pregava que todas as batalhas eram ganhas ou perdidas antes de sequer serem travadas. O conselho era simples...
ataca o inimigo quando ele está desprevenido e surge onde não és esperado. Disse que era vital minar o inimigo, subvertê-lo e corrompê-lo, semear a discórdia interna entre os seus líderes e destruí-lo sem o combater.
- Muito bem, Alfred - exclamou Boothby, visivelmente impressionado. - Infelizmente, nunca seremos capazes de destruir Hitler sem o combatermos. E para termos alguma hipótese de o derrotar num combate, temos de o enganar primeiro. Temos de prestar atenção a essas palavras sábias de Sun-Tzu. Temos de surgir onde não somos esperados.
Boothby levantou-se, dirigiu-se à secretária e trouxe uma pasta segura. Era de metal - da cor da prata polida - e tinha algemas presas à pega.
- Está prestes a ser Bigoted- disse Boothby, abrindo a pasta.
- Peço desculpa?
- Bigoted- é uma classificação ultrassecreta desenvolvida especialmente para ocultar a invasão. O nome vem de um selo que colocámos em documentos transportados por agentes britânicos para Gibraltar para a invasão do Norte de África. To Gib - para Gibraltar. Apenas pusemos as letras ao contrário. To Gib tornou-se BIGOT.
- Estou a perceber - disse Vicary.
Quatro anos depois de ter chegado ao MI5, Vicary ainda considerava ridículos muitos dos nomes de código e classificações de segurança.
- BIGOT refere-se agora a quem conheça o segredo mais importante da Operação Overlord... o momento e o local da invasão da França. Se souber o segredo, é um BIGOT. Todos os documentos relacionados com a invasão levam um selo BIGOT.
Boothby abriu a pasta, meteu a mão lá dentro e tirou um dossiê bege. Pousou-o cuidadosamente na mesa de café. Vicary olhou para a capa e de seguida para Boothby. Estava identificada com a espada e o escudo do SHAEF - o Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas - e carimbada com um selo BIGOT. Por baixo, estavam as palavras Plano Bodyguard [Escolta], seguidas pelo nome de Boothby e um número de distribuição.
- É uma irmandade muito pequena aquela em que está prestes a entrar... apenas algumas centenas de agentes - retomou Boothby. E há quem ache que isso já é demasiado. E também o devo informar de que os seus antecedentes pessoais e profissionais foram amplamente investigados. Nenhuma pedra ficou por virar, como se costuma dizer. Fico feliz por lhe transmitir que não é membro conhecido de nenhuma organização fascista ou comunista, que não bebe em excesso, pelo menos em público, que não anda com mulheres dissolutas e que não é homossexual nem qualquer outro tipo de depravado sexual.
- É bom saber.
- E também o devo informar de que pode ser alvo de verificações de segurança e vigilância adicionais em qualquer altura. Nenhum de nós foi isentado disso. Nem mesmo o general Eisenhower.
- Compreendo, Sir Basil.
- Muito bem. Primeiro, gostava de lhe fazer uma pergunta ou duas. O seu trabalho tem-se debruçado sobre a invasão. O número de casos que tratou tem-lhe dado uma ideia sobre alguns dos preparativos. Onde acha que planeamos atacar?
- Baseado no pouco que sei, diria que os vamos atacar na Normandia.
- E como é que avalia as possibilidades de sucesso de um desembarque na Normandia?
- As invasões anfíbias são, por natureza, a mais complexa de todas as operações militares - respondeu Vicary. - Especialmente quando envolvem o canal da Mancha. Júlio César e Guilherme, o Conquistador, conseguiram fazê-lo. Napoleão e os espanhóis falharam. Hitler acabou por desistir em 1940. Eu diria que as probabilidades de uma invasão bem-sucedida não ultrapassam os cinquenta por cento.
Boothby resmungou:
- Se tanto, Alfred, se tanto.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete.
- Até agora, conseguimos levar a bom porto três operações anfíbias... Norte de África, Sicília e Salerno. Mas nenhum desses desembarques envolveu uma costa fortificada.
Boothby parou de caminhar e olhou para Vicary.
- Tem razão, já agora. É na Normandia. E está agendado para o final da primavera. E para termos sequer essas suas probabilidades de sucesso de cinquenta por cento,
Hitler e os generais deles têm de pensar que vamos atacar noutro lugar - revelou Boothby, sentando-se e pegando no dossiê. -
É por isso que desenvolvemos isto: chama-se
Plano Bodyguard. Sendo historiador, acho que terá uma estima especial pelo Plano Bodyguard. É uma ruse deguerre de uma amplitude e ambição nunca antes tentadas.
O nome de código não significava nada para Vicary. Boothby prosseguiu com a sua palestra de doutrinação:
-Já agora, o Plano Bodyguard chamava-se Plano Jael. Recebeu o seu novo nome por respeito a uma observação bastante eloquente que o primeiro-ministro fez a Estaline,
em Teerão. Churchill disse: Em tempo de guerra, a verdade é Ião preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras. O Velho tem um certo jeito
para as palavras, reconheço-lhe. O Plano Bodyguard não é apenas uma operação.
É o nome de código para todas as operações estratégicas de cobertura e logro que serão
levadas a cabo numa escala global, com o intuito de enganar Hitler e o seu cstado-maior em relação às nossas intenções no Dia D.
Boothby pegou no dossiê e folheou-o furiosamente.
- A componente mais importante do Plano Bodyguard é a Operação Fortitude [Fortaleza]. O objetivo da Fortitude é atrasar ao máximo a reação da Wehrmacht à invasão,
levando-os a acreditar que outras partes do noroeste da Europa também estão sob ameaça direta de ataque, especificamente a Noruega e o Pas-de-Calais.
"O nome de código do logro norueguês é Fortitude Norte. O objetivo é forçar Hitler a deixar vinte e sete divisões na Escandinávia, convencendo-o de que planeamos atacar a Noruega, antes ou mesmo depois do Dia D. A Fortitude Su] é a mais crucial e, atrevo-me a dizer, a mais perigosa das duas operações.
Boothby passou para outra página do dossiê e suspirou profundamente.
- O objetivo da Fortitude Sul é convencer lentamente Hitler, os generais e os agentes secretos dele de que pretendemos organizar não
uma invasão da França, mas duas. O primeiro ataque, de acordo com a Fortitude Sul, deverá ser uma manobra de diversão na baía do Sena, na Normandia. O segundo ataque,
o golpe principal, terá lugar três dias mais tarde, do outro lado do estreito de Dover, em Calais. A partir de Calais, os nossos exércitos invasores podem seguir
diretamente para leste e entrar na Alemanha em poucas semanas - explicou Boothby, fazendo uma pausa para dar um gole no brandy com soda e permitir que as suas palavras
fossem assimiladas. - Segundo a Operação Fortitude, o objetivo do primeiro assalto é forçar Rommel e Von Rundstedt a lançarem as unidades Panzer de elite do Décimo
Quinto Exército Alemão na Normandia, deixando assim Calais desprotegida quando a verdadeira invasão ocorrer. Obviamente, nós queremos que aconteça o contrário. Queremos que os Panzers do Décimo Quinto Exército se mantenham em Calais, à espera da verdadeira invasão, paralisados pela indecisão, enquanto desembarcamos na Normandia.
- De uma simplicidade brilhante.
- Absolutamente - retorquiu Boothby. - Mas com uma fraqueza flagrante. Não dispomos de homens suficientes para a levar a cabo. No final da primavera, haverá apenas trinta e sete divisões no Reino Unido, americanas, britânicas e canadianas, o que mal chega para organizar um ataque contra a França, muito menos dois. Para que a Operação Fortitude tenha alguma possibilidade de sucesso, temos de convencer Hitler e os seus generais de que temos as divisões necessárias para organizar duas invasões.
- E como raio vamos fazer isso?
- Ora, vamos criar simplesmente um exército de um milhão de homens. Vamos fazê-lo aparecer como que por encanto, a partir, receio bem, do nada.
Vicary deu um gole na bebida e olhou fixamente para Boothby, de rosto incrédulo.
- Não podem estar a falar a sério.
- Podemos, sim, Alfred, estamos a falar muito a sério. Para que a invasão tenha a tal hipótese em duas de ser bem-sucedida, temos de convencer Hitler, Rommel e Von Rundstedt de que dispomos de uma força gigantesca e poderosa dissimulada nas falésias de Dover,
à espera para atacar em força o outro lado do canal da Mancha, em Calais. Não a teremos, como é óbvio. Mas, quando terminarmos, os alemães vão acreditar que se encontram face a uma força viva e verdadeira, com umas trinta divisões. Se não acreditarem que essa força existe, se falharmos e perceberem o nosso logro, há uma grande probabilidade de o regresso à Europa, como Churchill lhe chama, acabar num fracasso sangrento e cataclísmico.
- E esse exército fantasma tem nome? - perguntou Vicary.
- Naturalmente: o First United States Army Group. FUSAG, para abreviar. Até tem um comandante, o próprio Patton. À sua disposição, Patton terá à volta de um milhão de homens. Correspondendo maioritariamente a nove divisões do Terceiro Exército dos Estados Unidos e a duas divisões do Primeiro Exército Canadiano. O FUSAG até tem um quartel-general em Londres, em Bryanston Square.
Vicary pestanejou rapidamente, tentando digerir as informações extraordinárias que estava a receber. Imagine-se, criar um exército de um milhão de homens a partir do nada. Boothby tinha razão: era uma rase de guerre de proporções inimagináveis. Fazia o cavalo de Tróia de Ulisses parecer uma brincadeira de crianças.
- Hitler não é nenhum tolo, nem os generais dele. Aprenderam bem as lições de Clausewitz e Clausewitz deu alguns conselhos muito valiosos sobre a espionagem em tempo de guerra: Grande parte das informações obtidas na guerra é contraditória, uma parte ainda considerável é falsa
e, de longe, a maior parte é duvidosa. Os alemães não vão acreditar que existe um exército de um milhão de homens acampado na zona rural de Kent só porque nós lhes dizemos que assim é.
Boothby sorriu, voltou a meter a mão na pasta e tirou outro dossiê.
- É verdade, Vicary. E foi por isso que inventámos isto: a Operação Mercury. O objetivo da Operação Mercury é dar carne e ossos ao nosso pequeno exército de fantasmas. Nas próximas semanas, à medida que as forças fantasma do FUSAG começarem a chegar ao Reino Unido, vamos inundar as ondas rádio de tráfego, com algumas comunicações enviadas em códigos que sabemos que os alemães já quebraram e outras en clair. Tudo tem de ser perfeito, exatamente como aconteceria se fôssemos colocar um verdadeiro exército de um milhão de homens em Kent. Quartéis-mestres a queixarem-se da falta
de tendas. Messes insurgindo-se contra a escassez de comida e de talheres. Conversas via rádio durante os exercícios. A partir deste momento e até à invasão, vamos bombardear os postos de escuta deles no norte da França com perto de um milhão de mensagens. E algumas dessas mensagens darão aos alemães uma pequena pista, ínfimas informações sobre a localização das forças ou o seu posicionamento. Obviamente, queremos que os alemães descubram essas pistas e se agarrem a elas.
- Um milhão de mensagens via rádio? Como é isso possível?
- com o US 3103 Signals Service Battalion. Vão trazer uma equipa formidável - atores da Broadway, estrelas da rádio, especialistas em vozes. Homens que conseguem imitar o sotaque de um judeu de Brooklyn num minuto e o horrível tom arrastado de um trabalhador agrícola do Texas no outro. Vão gravar as mensagens falsas num estúdio, em discos de dezasseis polegadas, e depois emiti-las em camiões a circular pela zona rural de Kent.
- Inacreditável - exclamou Vicary baixinho.
- Sim, completamente. E isso é só uma parte. A Operação Mercury é responsável pelo que os alemães vão ouvir através do ar. Mas também temos de ter em conta o que eles vão ver a partir ao ar. Temos de fazer com que pareça que um gigantesco exército se está a reunir lenta e metodicamente no canto sudeste do país. Tendas que cheguem para albergar um milhão de homens, uma gigantesca armada de aviões, tanques e barcos de desembarque. Até vamos construir o raio de um depósito de gasolina em Dover.
Vicary disse:
- Mas, Sir Basil, de certeza que não dispomos de aviões, tanques e lanchas de desembarque suficientes para desperdiçar num logro.
- Claro que não. Vamos ser nós próprios a construí-los, com contraplacado e lona. Vistos do solo, vão parecer exatamente o que são: falsificações toscas e preparadas à pressa. Mas vistos do ar, pelas objetivas das câmaras de vigilância da Luftwaffe, vão parecer verdadeiros.
- E como podemos ter a certeza de que os aviões de vigilância vão conseguir penetrar nas nossas defesas?
Boothby fez um grande sorriso, terminou a bebida e acendeu um cigarro calmamente.
- Agora está a compreender, Alfred. Nós temos a certeza de que eles vão conseguir penetrar nas nossas defesas porque vamos deixar. Nem todos, claro. Eram capazes de perceber que havia marosca se fizéssemos isso. A RAF e os aviões americanos vão patrulhar constantemente os céus sobre o nosso FUSAG. E vão perseguir alguns dos invasores. Mas a alguns deles, apenas àqueles que estiverem a voar acima dos trinta mil pés, devo acrescentar, será permitido penetrar. Se tudo correr de acordo com o guião, os analistas de vigilância aérea de Hitler vão dizer-lhe a mesma coisa que os agentes responsáveis pelas escutas no norte da França lhe estão a dizer, que existe uma gigantesca força aliada a postos no Pas-de-Calais.
Vicary estava a abanar a cabeça.
- Comunicações via rádio e fotografias aéreas, duas das formas que os alemães têm para recolher informações acerca das nossas intenções. A terceira forma é, claro, através de espiões.
Mas sobravam realmente alguns espiões? Em setembro de 1939, no dia em que a guerra rebentou, o MI5 e a Scotland Yard empreenderam uma gigantesca rusga, reunindo todos aqueles de que desconfiavam. Foram todos presos, transformados em agentes duplos ou enforcados. Em maio de 1940, quando Vicary chegou, o MI5 estava prestes a capturar os novos espiões que Canaris enviava para Inglaterra para recolherem informações sobre a futura invasão. Esses novos espiões sofreram o mesmo destino que a vaga anterior.
Caçador de espiões não era a expressão apropriada para descrever o que Vicary fazia no MI5. Era tecnicamente um agente da Operação Double Cross [Dupla Traição]. Tinha a missão de garantir que a Abwehr continuava a acreditar que os seus espiões ainda se encontravam infiltrados, a recolher informações e a enviá-las para os agentes que os controlavam a partir de Berlim. Manter os agentes vivos, para a Abwehr, trazia vantagens óbvias. O MI5 tinha sido capaz de manipular os alemães desde o início da guerra, controlando o fluxo de informações saído das Ilhas Britânicas. Isso também fez com que a Abwehr não enviasse novos agentes para Reino Unido, já que Canaris e os agentes de controlo julgavam que a maioria dos espiões ainda se encontrava ativa.
- Exato, Alfred. A terceira fonte de informações de Hitler sobre a invasão são os espiões dele. Os espiões de Canaris, melhor dizendo.
E nós sabemos como eles são eficazes. Os agentes alemães sob o nosso controlo vão dar um contributo vital ao Plano Bodyguard, confirmando a Hitler muito do que ele consegue ver a partir dos céus e ouvir através das ondas rádio. De facto, um dos nossos agentes duplos, Tate, já foi posto em jogo.
Tate ficou com esse nome de código por causa de uma extraordinária parecença com o popular comediante de music hall Harry Tate. O seu nome verdadeiro era Wulf Schmidt, um agente da Abwehr que saltou de paraquedas de um Heinkel 111 para a zona rural de Cambridgeshire, na noite de 19 de setembro de 1940. Vicary, embora não lhe tivessem atribuído o caso Tate, sabia o essencial. Tendo passado a noite ao relento, enterrou o paraquedas e o rádio e, a seguir, dirigiu-se à povoação mais próxima. O primeiro sítio em que parou foi a barbearia de Wilfred Searle, onde comprou um relógio de bolso para substituir o relógio de pulso que tinha esmagado ao saltar do Heinkel. Depois, comprou um exemplar do Times à senhora Field, a vendedora de jornais, lavou o tornozelo inchado na bomba da povoação e tomou o pequeno-almoço num pequeno café. Por fim, às dez da manhã, foi preso pelo soldado tom Cousins, da reserva territorial da zona. No dia seguinte, levaram-no de carro para as instalações de interrogatório do MI5, em Ham Common, no condado de Surrey, e foi aí que, após treze dias de interrogatório, Tate concordou em trabalhar como agente duplo e enviar mensagens da Operação Double Cross para Hamburgo através do rádio.
- A propósito, Eisenhower está em Londres. Do nosso lado, só um número muito restrito é que sabe disso. No entanto, Canaris sabe disso. E agora Hitler também o sabe. Na verdade, os alemães sabiam que Eisenhower estava cá antes de ele se instalar para passar a primeira noite em Hayes Lodge. E sabiam que ele estava cá porque Tate lhes disse que ele estava cá. Foi perfeito, claro, uma informação aparentemente importante, mas no entanto completamente inofensiva. Agora, a Abwehr acha que Tate tem uma fonte importante e credível dentro do SHAEF. Essa fonte será crucial à medida que a invasão se aproximar. Vão dar uma mentira importante a Tate para ele transmitir. E, com alguma sorte, a Abwehr também vai acreditar nela.
"Nas próximas semanas, os espiões de Canaris vão começar a ver sinais de um grande aumento de homens e material no sudeste de Inglaterra. Vão ver tropas canadianas e americanas. Vão ver acampamentos e áreas de reagrupamento. Vão ouvir histórias do povo britânico acerca dos terríveis inconvenientes de ter tantos soldados amontoados num lugar tão pequeno. Vão ver o general Patton a andar pelas povoações da East Anglia com as suas botas engraxadas e o seu revólver com a coronha de marfim. Os que forem bons até vão ficar a saber os nomes dos comandantes de topo deste exército e enviar esses nomes para Berlim. A sua própria rede da Operação Double Cross vai desempenhar um papel decisivo, Alfred.
Boothby parou por uns instantes, esmagou o cigarro e acendeu outro logo de imediato.
- Mas o Alfred está a abanar a cabeça. Suspeito que tenha descoberto o calcanhar de Aquiles de todo este plano de logro.
Os lábios de Vicary curvaram-se num sorriso cuidadoso. Porventura, Boothby, sabendo do amor de Vicary pela história e tradições gregas, percebera que ele iria pensar automaticamente na Guerra de Tróia ao ser informado dos pormenores da Operação Fortitude.
- Posso? - perguntou Vicary, apontando para o maço de cigarros Player's. - Acho que deixei os meus lá em baixo.
- Claro - respondeu Boothby, passando o maço a Vicary e oferecendo-lhe a chama do seu isqueiro.
- Aquiles morreu depois de ser atingido por uma seta no seu único ponto vulnerável, o calcanhar - disse Vicary. - O calcanhar de Aquiles da Operação Fortitude é o facto de poder ir por água abaixo com um relatório genuíno de uma fonte em que Hitler confie. Será necessário manipular por completo todas as fontes de informação que Hitler e os seus agentes secretos possuam. Têm todas de ser envenenadas para que a Operação Fortitude funcione. Hitler tem de ser apanhado numa rede completa de mentiras. Se uma nesga de verdade conseguir passar, todo o estratagema poderá ir por água abaixo.
Parando para fumar o seu Player's, Vicary não pôde resistir a estabelecer um paralelo histórico.
- Quando acabaram com Aquiles, a armadura dele foi dada a Ulisses. A nossa armadura, receio bem, vai ser dada a Hitler.
Boothby pegou no copo vazio e girou-o conscientemente na sua larga palma da mão.
- Esse é o perigo inerente a todos os logros militares, não é, Alfred? Indicam quase sempre o caminho para a verdade. O general Morgan, o autor do plano da invasão,
disse-o melhor. Bastaria um espião decente alemão percorrer a costa sul de Inglaterra, da Cornualha a Kent. Se isso acontecesse, tudo isto desabaria. E, ao mesmo tempo, as esperanças da Europa. E foi por isso que estivemos a noite toda enfiados numa sala com o primeiro-ministro e é por isso que o Alfred está aqui agora.
Boothby levantou-se e recomeçou a andar lentamente de um lado para o outro do gabinete.
- A partir deste momento, estamos a agir partindo do pressuposto de que envenenámos de facto todas as fontes de informação de Hitler. E também estamos a agir partindo do pressuposto de que temos todos os espiões de Canaris no Reino Unido contabilizados e de que nenhum está a atuar fora do nosso controlo. Não nos estaríamos a lançar num estratagema como a Operação Fortitude se não fosse esse o caso.
Boothby afastou-se da fraca luz do candeeiro e desapareceu num canto escuro do gabinete.
- Na semana passada, Hitler organizou uma conferência em Rastenburg. Estiveram lá os pesos pesados todos, Rommel, Von Rundstedt, Canaris e Himmler. O assunto foi a invasão. Especificamente, o momento e o local da invasão. Hitler encostou uma arma à cabeça de Canaris - figurativamente, não literalmente - e ordenou-lhe que descobrisse a verdade ou teria de enfrentar consequências bastante penosas. Canaris, por sua vez, atribuiu essa tarefa a um homem da sua equipa chamado Vogel, Kurt Vogel. Até agora, sempre acreditámos que Kurt Vogel era o conselheiro legal de Canaris. Como é óbvio, estávamos enganados. A sua missão, Alfred, é garantir que Kurt Vogel não descobre a verdade. Não tive oportunidade de ler o dossiê dele. Suspeito que a divisão dos Registos possa ter alguma coisa sobre ele.
- Certo - exclamou Vicary.
Boothby estava outra vez iluminado pela ténue luz. Franziu o sobrolho ligeiramente, como se tivesse ouvido por acaso alguma coisa
desagradável na sala ao lado, e depois mergulhou num longo silêncio especulativo.
- Alfred, quero que uma coisa fique completamente clara desde o início deste caso. O
primeiro-ministro insistiu para que a missão lhe fosse atribuída a si, perante
as enérgicas objeções do diretor-geral e as minhas.
Vicary fitou Boothby olhos nos olhos por um momento e, a seguir, sentindo-se embaraçado com o comentário, desviou o olhar. Deixou que os olhos divagassem pelas paredes.
Pelas dezenas de fotografias de Sir Basil com pessoas famosas. Pelo painel de carvalho muito bem polido. Pelo velho remo pendurado na parede, estranhamente desenquadrado naquele cenário formal. Talvez fosse uma recordação de tempos mais felizes e menos complicados, pensou Vicary. De um rio gelado ao nascer do Sol. De Oxford contra Cambridge. De viagens de comboio para casa em tardes frescas de outono.
- Permita-me que lhe explique o comentário. O Alfred tem feito um ótimo trabalho. A sua rede Becker tem-se revelado um sucesso assombroso. Mas tanto o diretor-geral
como eu achamos que um homem mais experiente se poderia adequar melhor a um caso como este.
- Compreendo - retorquiu Vicary.
Um homem mais experiente significava um oficial de carreira e não um desses novos recrutas de que Boothby desconfiava tanto.
- Mas, obviamente - retomou Boothby -, não fomos capazes de convencer o primeiro-ministro de que o Alfred não era o melhor homem para este caso. Por isso, é seu. Vá-me atualizando regularmente sobre os desenvolvimentos. E boa sorte, Alfred. Suspeito que vá precisar.
SETE LONDRES
Em janeiro de 1944, o clima tinha reocupado o seu lugar enquanto obsessão principal do povo britânico. O verão e outono tinham sido invulgarmente secos e quentes;
o inverno, quando chegou, invulgarmente frio. Nevoeiros gelados subiam do rio, assolavam Westminster e Belgravia, pairavam como o fumo de um revólver sobre as ruínas de Battersea e Southwark. A Blitz era pouco mais do que uma recordação longínqua. As crianças tinham regressado. Enchiam as lojas de brinquedos e os grandes armazéns, com as mães a reboque, trocando prendas de Natal que não queriam por artigos mais convenientes. Na noite de Ano Novo, grandes multidões atolaram Piccadilly Circus. Tudo poderia até ter parecido normal, não fosse a celebração ter tido lugar na escuridão do blackout. Mas, passados alguns dias, a Luftwaffe, depois de uma longa e agradável ausência, regressou aos céus de Londres.
Às oito horas dessa noite, Catherine Blake correu pela ponte de Westminster. Havia incêndios ao longo do East End e das docas, projéteis luminosos e holofotes cruzavam o céu noturno. Catherine conseguia ouvir o baque surdo do fogo proveniente das baterias antiaéreas em Hyde Park e ao longo do Embankment e sentir o sabor acre do fumo vindo dos céus. Sabia que a aguardava uma noite longa e atarefada.
Virou para a Lambeth Palace Road e ocorreu-lhe um pensamento absurdo - estava absolutamente esfomeada. Nunca houvera tão
pouca comida disponível. O outono seco e o frio implacável do inverno tinham-se aliado para eliminar quase todas as verduras do país. As batatas e as couves-de-bruxelas eram iguarias. Os nabos e as rutabagas eram os únicos alimentos abundantes. Pensou: Se eu tiver de comer mais um nabo, dou um tiro na cabeça. Ainda assim, suspeitava que as coisas estariam muito piores em Berlim.
Um polícia - um homem baixo e gordo que parecia demasiado velho para entrar no exército - vigiava a entrada da Lambeth Palace Road. Levantou a mão e, gritando acima dos uivos das sirenes de ataque aéreo, pediu-lhe a identificação.
Como sempre, o coração de Catherine pareceu parar.
Mostrou-lhe um distintivo que a identificava como membro do Serviço de Voluntariado Feminino. O polícia deu uma olhadela ao distintivo e depois à cara dela. Catherine tocou no ombro do polícia e inclinou-se para ele de modo que quando falasse ele sentisse a respiração dela no ouvido. Era uma técnica que utilizava há vários anos para neutralizar os homens.
Catherine disse:
- Sou enfermeira voluntária no Hospital St. Thomas.
O polícia levantou os olhos. Pela expressão que tinha no rosto, Catherine percebeu que ele já não era uma ameaça. Estava a sorrir estupidamente, contemplando-a como se tivesse acabado de se apaixonar. A reação não era nenhuma novidade para Catherine. Ela era extraordinariamente bonita e tinha utilizado essa beleza como uma arma durante toda a vida.
O polícia devolveu-lhe a sua identificação.
- As coisas estão muito más?
- Bastante: tenha cuidado e mantenha a cabeça baixa.
A necessidade de ambulâncias em Londres excedia de longe a oferta. As autoridades deitavam a mão a tudo o que pudesse servir, carrinhas de entrega, camiões do leite, qualquer coisa com quatro rodas, um motor e espaço na parte de trás para um ferido e um médico. Catherine reparou numa cruz vermelha pintada sobre o nome desbotado de uma popular padaria local, numa das ambulâncias que seguiam em catadupa para a entrada das urgências do hospital.
Catherine começou a andar mais depressa, seguindo a ambulância, e entrou no hospital. A confusão era total. As urgências estavam
cheias de feridos. Pareciam estar por todo o lado: no chão, nos corredores, até mesmo no posto das enfermeiras. Alguns gritavam. Outros estavam sentados a olhar espantados, demasiado aturdidos para compreenderem o que lhes tinha acontecido. Dezenas de doentes ainda não tinham sido vistos por um médico ou uma enfermeira. E a cada minuto chegavam mais.
Catherine sentiu uma mão no ombro.
- Não há tempo para ficar aí especada, Miss Blake. Catherine virou-se e viu o rosto severo de Enid Pritt. Antes da
guerra, Enid era uma mulher simpática, por vezes confusa, acostumada a lidar com casos de gripe e, de vez em quando, com quem fosse derrotado numa luta de navalhas à porta de um pub, num sábado à noite. Tudo isso tinha mudado com a guerra. Andava direita como uma estaca e falava numa voz clara de parada militar, nunca utilizando mais do que as palavras necessárias para se referir a um assunto. Dirigia uma das enfermarias mais movimentadas de toda a cidade de Londres sem qualquer dificuldade. Um ano antes, o marido, de vinte e oito anos, morrera na Blitz. Enid Pritt não tinha feito luto. Isso podia esperar até que os alemães fossem derrotados.
- Não os deixe perceberem aquilo em que está a pensar, Miss Blake - disse Enid Pritt rispidamente. - Assusta-os ainda mais. Tire o casaco e mãos à obra. Há pelo menos cento e cinquenta feridos só neste hospital e as morgues estão a encher-se rapidamente. Disseram-me para esperar ainda mais gente.
- Já não via isto assim desde setembro de 1940.
- É por isso que eles precisam de si. Agora, mãos à obra, minha menina, o mais depressa que puder.
Enid Pritt atravessou as urgências como um comandante num campo de batalha. Catherine observou-a a repreender outra jovem enfermeira por causa de um curativo desajeitado. Enid Pritt não tinha favoritas, era dura com todas as enfermeiras e voluntárias. Catherine pendurou o casaco e avançou por um corredor cheio de feridos. Começou por uma rapariguinha que estava a apertar um urso de peluche esfarrapado e chamuscado.
- Onde te dói, pequenina?
- No braço.
Catherine enrolou a manga da camisola da rapariga, deixando ver um braço que se encontrava obviamente partido. A criança estava em choque e não tinha consciência da dor. Catherine manteve-a a falar, tentando com que não pensasse na ferida.
- Como te chamas, querida? -;
- Ellen.
- E onde moras?
- Em Stepney, mas a nossa casa já não está lá. A voz dela estava calma e não revelava emoção.
- E onde estão os teus pais? Estão aqui contigo?
- O bombeiro disse-me que agora estão com Deus. Catherine não disse nada, apenas segurou a mão da menina.
- O médico já vem ver-te. Fica só quietinha e não tentes mexer o braço. Está bem, Ellen?
- Sim - respondeu ela. - És muito bonita. Catherine sorriu.
- Obrigada. Queres saber uma coisa?
- O quê?
- Tu também.
Catherine avançou novamente pelo corredor. Um homem de idade, com uma contusão no cimo da careca, olhou para ela enquanto Catherine examinava a ferida.
- Estou ótimo, menina. Há muita gente pior do que eu. Olhe por eles primeiro.
Ela alisou-lhe o parco e desgrenhado cabelo grisalho e fez o que ele pediu. Era uma qualidade que ela tinha visto nos ingleses uma e outra vez. Era um disparate
Berlim retomar a Blitz. Quem lhe dera que lhe fosse permitido dizer-lhes isso.
Catherine continuou a avançar pelo corredor, cuidando dos feridos, ouvindo as histórias deles enquanto trabalhava.
- Eu estava na cozinha a servir-me da porra de uma chávena de chá quando BOOM! Uma bomba de quatrocentos e cinquenta quilos rebenta-me mesmo à porra da porta de
casa. Quando dei por mim, estou estatelado de costas no meio do que dantes era o meu jardim, a olhar para uma pilha de destroços que dantes era a porra da minha
casa.
- Tem cuidado com a língua, George. Estás a ser mal-educado. Além disso, há crianças aqui.
Isso não foi assim tão mau, companheiro. A casa em frente
à minha, do outro lado da rua, apanhou com uma bomba mesmo em cima. Uma família de quatro pessoas, gente boa, exterminada.
Uma bomba caiu ali perto; o hospital estremeceu.
Uma freira, gravemente ferida, abençoou-se e começou a dizer um pai-nosso para que as outras pessoas a acompanhassem.
- Vai ser preciso mais do que uma oração para expulsar a Luftwaffe dos céus hoje à noite, irmã.
- ... venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade...
- Perdi a minha mulher na Blitz de 1940. Acho que também devo ter perdido a minha única filha esta noite.
- ... assim na Terra como no Céu...
- Que guerra, irmã, que porra de guerra.
- ... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
- Sabes, Mervin, tenho a impressão de que Hitler não gosta muito de nós.
- Também reparei nisso.
Nas urgências irromperam gargalhadas.
Dez minutos mais tarde, quando a freira decidiu que a oração tinha chegado ao fim, começou a inevitável cantoria.
- ... Atira capara fora o barril... Catherine abanou a cabeça.
- ... Vamos ter um barril de alegria...
Mas, passado um momento, deu por si a cantar com o resto das pessoas.
Na manhã seguinte, eram oito horas quando entrou no seu apartamento. O correio da manhã tinha chegado. A senhoria, a senhora Hodges, enfiava-lho sempre por baixo da porta. Catherine curvou-se, apanhou o correio e lançou de imediato três dos envelopes no caixote do lixo da cozinha. Não precisava de os ler porque ela mesma os tinha escrito e enviado de diferentes locais de Londres. Em circunstâncias normais, Catherine não receberia cartas pessoais, já que não
tinha amigos nem família no Reino Unido. Mas seria estranho que uma rapariga atraente e educada nunca se correspondesse com ninguém - e a senhora Hodges era um pouco bisbilhoteira - e, por isso, Catherine lançou-se num intricado estratagema para garantir que recebia um fluxo constante de postais e cartas pessoais.
Foi à casa de banho e abriu as torneiras por cima da banheira. A pressão era baixa, a água gotejava da torneira num fio, mas pelo menos estava quente. Havia pouca água por causa do verão e outono secos e o governo ameaçava racioná-la também. Encher a banheira demoraria alguns minutos.
Quando foi recrutada, Catherine Blake não estava em posição de fazer exigências, mas tinha feito uma - dinheiro que lhe permitisse viver confortavelmente. Tinha
sido educada em grandes casas geminadas e em vastas propriedades rurais - os pais eram da classe alta, e passar a guerra numa pensão qualquer parecida com um casebre, partilhando uma casa de banho com seis outras pessoas, estava fora de questão. Segundo o seu disfarce, era uma viúva de guerra, de uma família da classe média de respeitáveis recursos, e o apartamento assentava na perfeição - um conjunto de divisões, modesto mas confortável, numa casa vitoriana em Earl's Court.
A sala de estar era acolhedora, parcamente mobilada, embora um estranho pudesse ficar impressionado com a completa ausência de artigos pessoais. Não havia fotografias nem lembranças. Tinha um quarto com uma cama de casal confortável, uma cozinha com todos os eletrodomésticos modernos e a sua própria casa de banho, com uma grande banheira.
O apartamento tinha outras características que uma inglesa comum a viver sozinha poderia não exigir. Ficava no último piso, onde a mala rádio AFU podia receber transmissões de Hamburgo com pouca interferência, e a janela de sacada vitoriana, na sala de estar, tinha uma vista desimpedida da rua lá em baixo.
Dirigiu-se para a cozinha e colocou uma chaleira de água ao lume. O trabalho de voluntariado consumia-lhe tempo e deixava-a exausta, mas era essencial para o disfarce. Toda a gente estava a fazer alguma coisa para ajudar. Não iria parecer bem uma rapariga saudável
e sem família não fazer nada em prol do esforço de guerra. Ir trabalhar para uma fábrica de munições era arriscado - o disfarce poderia não resistir a uma verificação de antecedentes minuciosa - e alistar-se no ramo feminino da Marinha Real Britânica estava fora de questão. O Serviço de Voluntariado Feminino era a solução de compromisso perfeita. Precisavam desesperadamente de pessoas. Quando Catherine se candidatou, em setembro de 1940, foi colocada ao serviço nessa mesma noite. Tratava de feridos no Hospital St. Thomas e distribuía livros e biscoitos no metropolitano durante os ataques aéreos noturnos. A julgar pelas aparências, era a rapariga inglesa modelo a cumprir o seu dever.
Por vezes, não podia deixar de se rir.
A chaleira apitou. Voltou para a cozinha e fez chá. Como todos os londrinos, tinha ficado viciada em chá e cigarros; parecia que o país inteiro vivia de tanino e tabaco e Catherine não era exceção. Tinha esgotado a ração de leite em pó e de açúcar e, por isso, bebeu o chá sem mais nada. Em momentos como aquele, sentia saudades do café forte e amargo de casa e de um pedaço de bolo de Berlim.
Terminou a primeira chávena de chá e encheu a segunda. Queria tomar banho, enfiar-se na cama e dormir sem parar, mas tinha trabalho a fazer e precisava de se manter acordada. Teria chegado a casa uma hora mais cedo se se deslocasse por Londres como uma mulher comum. Teria atravessado Londres de metro até EarPs Court. Mas Catherine não se deslocava por Londres como uma mulher comum. Tinha apanhado um comboio, depois um autocarro, a seguir um táxi e depois outro autocarro. Tinha saído do autocarro antes da paragem indicada e feito os últimos quatrocentos metros até ao apartamento a pé, verificando constantemente se não estava a ser seguida. Quando chegou por fim a casa, estava ensopada da chuva, mas tinha a certeza de que estava só. Passados mais de cinco anos, alguns agentes poderiam ficar tentados a tornarem-se complacentes. Era uma das razões que explicavam que ela tivesse sobrevivido quando outros tinham sido presos e enforcados.
Entrou na casa de banho e despiu-se à frente do espelho. Era alta e estava em forma; vários anos de duras cavalgadas e caçadas tinham-na tornado muito mais forte do que a maioria das mulheres e muitos
homens. Era larga de ombros e tinha braços macios e firmes como uma estátua. Os seios eram redondos e pesados, muitíssimo bem feitos, e a barriga firme e lisa. Como quase toda a gente, estava mais magra do que era antes da guerra. Retirou o gancho que lhe prendia o cabelo num discreto carrapito de enfermeira, deixando-o cair para o pescoço e ombros, enquadrando-lhe o rosto. Os olhos eram de um azul muito claro - da cor de um lago prussiano, dizia-lhe o pai sempre - e as maçãs do rosto largas e proeminentes, mais alemãs do que inglesas. O nariz era comprido e delicado, a boca generosa e com lábios sensuais.
Pensou: Bem vistas as coisas, ainda és uma mulher muito atraente, Catherine Blake.
Entrou na banheira, sentindo-se de repente muito só. Vogel tinha-a advertido em relação à solidão. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão intensa. Por vezes, conseguia ser até pior do que o medo. Achava que seria preferível estar completamente só - isolada numa ilha deserta ou no cimo de uma montanha - em vez de rodeada de pessoas em que não podia tocar.
Não tinha permitido a si própria ter um amante desde o rapaz na Holanda. Sentia falta dos homens e sentia falta do sexo, mas conseguia viver sem ambos. O desejo, tal como todas as suas emoções, era algo que conseguia ligar e desligar como um interruptor. Além disso, ter um homem era difícil com o seu tipo de trabalho. Os homens tinham tendência a ficar obcecados com ela. A última coisa de que precisava era de um homem perdido de amores a investigar o seu passado.
Catherine acabou de tomar banho e saiu da banheira. Penteou o cabelo molhado rapidamente e vestiu o roupão. Foi à cozinha e abriu a porta da despensa. As prateleiras estavam vazias. A mala rádio estava na prateleira de cima. Tirou-a de lá e levou-a para a sala de estar, junto à janela, onde a receção era melhor. Abriu a tampa e ligou o rádio.
Havia outra razão que explicava que nunca tivesse sido apanhada
- Catherine não fazia transmissões. Todas as semanas, ligava o rádio por um período de dez minutos. Se Berlim tivesse ordens para ela, enviar-lhas-ia.
Durante cinco anos, não tinha havido nada, apenas o assobiar da atmosfera.
Tinha comunicado com Berlim apenas uma vez, na noite a seguir a ter assassinado a mulher em Suffolk e assumido a identidade dela. Eeatríce Pymm... Nesse momento, pensou na mulher sem sentir remorsos. Catherine era um soldado e durante a guerra os soldados eram obrigados a matar. Além disso, o crime não tinha sido gratuito - era absolutamente necessário.
Havia duas maneiras de um agente se introduzir no Reino Unido: clandestinamente, de paraquedas ou num pequeno barco, ou abertamente, como passageiro de um barco ou avião. Cada um dos métodos tinha os seus inconvenientes. Tentar introduzir-se no país sem ser detetado a partir do ar ou de um pequeno barco era arriscado. O agente poderia ser localizado ou ferir-se na queda; aprender simplesmente a saltar de paraquedas teria acrescentado meses ao treino já interminável de Catherine. O segundo método, entrar por meios legais, também acarretava os seus perigos. O agente teria de passar pela zona de controlo de passaportes. A data e o porto de entrada ficariam registados. Quando a guerra rebentasse, o MI5 iria certamente contar com esses registos para localizar os espiões. Se um estrangeiro entrasse no país e nunca mais saísse, o MI5 poderia assumir com segurança que essa pessoa era um agente alemão. Vogel engendrou uma solução - entrar no Reino Unido de barco, em segurança, e a seguir eliminar o registo da entrada eliminando a pessoa em causa. Simples, tirando uma coisa - era necessário um cadáver. Beatrice Pymm, ao morrer, tornou-se Christa Kunst. O MI5 nunca descobrira Catherine porque nunca a tinha procurado. A entrada e a saída dela do país estavam ambas justificadas. Não faziam ideia de que ela existisse sequer.
Catherine encheu outra chávena de chá, colocou rapidamente os auscultadores e aguardou.
Quase entornou o chá em cima de si quando, cinco minutos mais tarde, o rádio começou a fazer barulho.
O operador em Hamburgo premiu ritmadamente uma sucessão de sinais em código.
Os operadores de rádio alemães tinham a reputação de serem os mais precisos do mundo. E também os mais rápidos. Catherine esforçou-se por acompanhá-lo. Quando o operador em Hamburgo terminou, ela pediu-lhe que repetisse a mensagem.
Ele fê-lo, mais lentamente. ;
Catherine agradeceu e desligou.
Levou alguns minutos a encontrar o livro de códigos e mais outros tantos para descodificar a mensagem. Quando terminou, olhou pasmada para ela, incrédula.
Executar rendezvous alfa...
Kurt Vogel queria finalmente que ela se encontrasse com outro agente.
OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
A chuva varria a costa de Norfolk enquanto Sean Dogherty, entorpecido por cinco canecas de cerveja aguada, tentava montar a bicicleta à porta do Hampton Arms. Conseguiu,
à terceira tentativa, e dirigiu-se para casa. Dogherty, pedalando com firmeza, mal reparou na aldeia. Era de facto um lugar desolador, um aglomerado de chalés ao longo de uma única rua, a loja da aldeia, o pub Hampton Arms. A tabuleta já não era pintada desde 1938; a tinta, como quase tudo o resto, tinha sido racionada. A St. John's Church elevava-se na extremidade leste. O cemitério ficava à saída da aldeia. Dogherty benzeu-se inconscientemente ao passar pelo portão e, a seguir, atravessou a ponte de madeira que se estendia sobre a enseada. Passado um momento, a aldeia já tinha desaparecido atrás dele.
Caía a noite; Dogherty esforçou-se por manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos. Era um homem baixo, com cinquenta anos, olhos verdes muito enterrados na cara e uma barba grisalha desmazelada. O nariz, arrebitado e torto, tinha sido partido mais vezes do que se queria lembrar durante uma breve carreira como pugilista de peso meio-médio, em Dublin, e mais umas quantas em lutas de rua, bêbado. Usava um oleado e um gorro de lã. O ar frio cortava-Ihe a pele exposta do rosto: o ar do mar do Norte, parecido com uma lâmina, com o perfume dos campos de gelo do Ártico e dos fiordes noruegueses por onde tinha passado antes de assolar a costa de Norfolk.
A cortina de chuva afastou-se e o terreno tornou-se visível: extensos campos cor de esmeralda, planícies de lama cinzenta sem fim, pântanos de água salgada cheios de juncos e vegetação. À esquerda, uma praia vasta, aparentemente infinita, estendia-se até ao mar. À direita, não muito longe, colinas verdes erguiam-se suavemente até atingirem uma nuvem baixa. Dois gansos-de-brent, vindos da Sibéria para passarem o inverno, levantaram voo dos pântanos e depois pousaram sobre a água, com as asas a baterem delicadamente. Um habitat perfeito para muitas espécies de pássaros, a costa de Norfolk tinha sido em tempos um destino turístico popular. Mas a guerra tinha tornado a observação de aves praticamente impossível. Grande parte de Norfolk estava transformada numa zona militar restrita e o racionamento de gasolina tinha deixado poucos cidadãos com meios para viajarem para um canto tão isolado do país. E quando os tinham, era difícil encontrar o caminho para lá. Na primavera de 1940, com a febre provocada pelo receio de uma invasão a aumentar, o governo tinha retirado todos os sinais de trânsito.
Mais do que outros residentes da costa de Norfolk, Sean Dogherty reparava nessas coisas com especial atenção. Em 1940, tinha sido recrutado para espiar ao serviço da Abwehr e tinha-lhe sido atribuído o nome de código de Esmeralda.
O chalé surgiu ao longe, com o fumo a elevar-se suavemente da chaminé para logo depois ser cortado pelo vento e estender-se pelo prado extenso. Era uma pequena propriedade num terreno arrendado, mas proporcionava uma subsistência modesta - um pequeno rebanho de ovelhas que lhes dava lã e carne, galinhas, uma pequena colheita de tubérculos que, por esses dias, obtinha bons preços no mercado. Dogherty possuía inclusivamente uma velha carrinha em mau estado e transportava géneros das quintas vizinhas para o mercado de King's Lynn. Em resultado disso, foi-lhe atribuída uma ração de gasolina para a agricultura, mais do que a ração civil normal.
Virou para o caminho de entrada do chalé, saiu da bicicleta e empurrou-a pelo trilho cheio de buracos, em direção ao celeiro. Por cima da cabeça, ouvia o rumor dos bombardeiros Lancaster a levantarem voo das bases em Norfolk. Recordava-se de uma época em que
os aviões vinham da direção contrária - os pesados Heinkels da Luftwaffe, espalhando-se sobre o mar do Norte, em direção aos centros industriais de Birmingham e Manchester. Mas os Aliados tinham estabelecido o seu domínio dos céus e os Heinkels raramente se aventuravam sobre Norfolk. Claramente, Dogherty tinha apostado no cavalo errado.
Ergueu o olhar e viu as cortinas da janela da cozinha abrirem-se ligeiramente, viu a imagem desfocada do rosto de Mary através do vidro salpicado de chuva. Hoje
à noite, não, Mary, pensou, desviando conscientemente os olhos. Por favor, outra vez hoje à noite, não.
Não tinha sido difícil à Abwehr convencer Sean Dogherty a trair a Inglaterra e passar a trabalhar para a Alemanha nazi. Em 1921, o irmão mais velho, Daniel, foi preso e enforcado pelos britânicos por liderar uma unidade terrestre do Exército Republicano Irlandês.
Dentro do celeiro, Dogherty abriu um armário de ferramentas e tirou o transmissor-recetor fornecido pela Abwehr, o bloco de códigos, um bloco de notas e um lápis. Ligou o rádio e fumou um cigarro enquanto aguardava. As instruções eram simples - ligar o rádio uma vez por semana e aguardar instruções de Hamburgo. Já tinham passado mais de três anos desde que a Abwehr lhe tinha pedido para fazer alguma coisa. Apesar disso, ligava o rádio zelosamente, à hora indicada, e aguardava dez minutos.
Quando faltavam ainda dois minutos, Dogherty guardou novamente o bloco de códigos e o bloco de notas no armário. Já no último minuto, esticou a mão na direção do cabo de alimentação. Estava prestes a desligar o rádio quando este deu subitamente sinais de vida. Agarrou-se ao bloco de notas e pôs-se a escrever furiosamente até que o rádio se calou. Rapidamente, confirmou a receção da mensagem e terminou a comunicação.
Dogherty demorou vários minutos até descodificar a mensagem.
Quando acabou, não acreditou no que estava a ver.
Executar procedimento de receção número um...
Os alemães queriam que ele acolhesse um agente.
Tinham passado quinze minutos desde que Mary Dogherty, à janela da cozinha, vira o marido entrar no celeiro. Perguntou-se por que razão estaria a demorar tanto
tempo. O jantar de Sean ia arrefecer se ele não viesse para dentro depressa. Limpou as mãos ao avental e levou uma caneca de chá a escaldar para a janela da frente.
A chuva caía com mais violência e o vento chicoteava a costa, vindo do mar do Norte.
Pensou: Que noite horrível para andar lá fora, Sean Dogherty.
Pôs as mãos à volta da caneca de esmalte lascada e deixou que o vapor que de lá saía lhe aquecesse o rosto. Sabia o que Sean estava a fazer no celeiro - estava a
comunicar com os alemães pelo rádio.
Mary tinha de admitir que espiar para os nazis tinha rejuvenescido Sean. Na primavera de 1940, ele fez o reconhecimento de vastas partes da zona rural de Norfolk. Mary assistiu com espanto, à medida que ele foi parecendo despertar para a vida com a atribuição dessa tarefa, pedalando vários quilómetros por dia, à procura de sinais de atividade militar, tirando fotografias às defesas costeiras. As informações eram passadas a um contacto da Abwehr em Londres, que por sua vez a passava a Berlim. Sean achava que era tudo muito perigoso e adorava cada momento.
Mas Mary detestava. Temia que Sean fosse apanhado. Toda a gente estava atenta, à procura de espiões; era uma obsessão nacional. Um deslize, um erro, e Sean seria preso. O Treachery Act de
1940 decretava apenas uma pena por espionagem: a execução. Mary tinha lido sobre execuções de espiões nos jornais, os enforcamentos em Wandsworth e Pentonville, e isso provocava-lhe sempre calafrios. Um dia, temia ela, iria ler que Sean tinha sido executado.
A chuva continuava a cair com mais violência ainda e o vento fustigava com tanta fúria o robusto chalezinho que Mary receava que a casa pudesse vir abaixo. Pensou em si a viver sozinha na velha e degradada quinta; seria terrível. Estremecendo, afastou-se da janela e aproximou-se da lareira.
Se calhar, teria sido diferente se ela tivesse sido capaz de lhe dar filhos. Afastou esse pensamento da cabeça; tinha-se punido por demasiado tempo, desnecessariamente. Era inútil desenterrar coisas em
relação às quais não podia fazer nada. Sean era quem era e já não havia nada que ela pudesse fazer para o mudar.
Mary pensou: Sean, em que é que tu te transformaste?
As pancadas na porta assustaram Mary, fazendo-a derramar o chá no avental. Sean não costumava ficar lá fora sem forma de entrar. Pousou a caneca no peitoril da janela e foi a correr para a porta. Estava preparada para lhe dar um berro por ter saído sem levar as chaves de casa. Em vez disso, quando abriu a porta, viu a figura de Jenny Colville, uma rapariga que vivia do outro lado da aldeia. Estava ali à chuva, com um oleado brilhante pendurado nos ombros magros. Não trazia chapéu e tinha o cabelo que usava até aos ombros colado à cabeça, enquadrando um rosto estranho que um dia poderia vir a ser muito bonito.
Mary percebeu que ela estivera a chorar.
- O que aconteceu, Jenny? O teu pai bateu-te outra vez? Anda a beber?
Jenny assentiu com a cabeça e desatou a chorar.
- Entra, sai dessa chuva - disse Mary. - Vais morrer de frio aí fora, numa noite destas.
Quando Jenny entrou, Mary procurou com os olhos a bicicleta dela no jardim da frente. Não estava lá; ela tinha vindo a pé desde o chalé dos Colville, a mais de um quilómetro e meio dali.
Mary fechou a porta.
- Tira essas roupas. Estão encharcadas. vou buscar-te um roupão para vestires até secarem.
Mary desapareceu dentro do quarto. Jenny fez o que lhe mandaram. Exausta, despiu o oleado, deixando-o deslizar dos ombros para o chão. A seguir, tirou a pesada camisola de lã grossa e largou-a no chão junto ao oleado.
Mary voltou com o roupão.
- Tira o resto da roupa, minha menina - atirou ela numa voz suave, fingindo-se zangada.
- Mas então e o Sean?
Mary mentiu:
- Está lá fora a remendar um buraco numa das suas queridas cercas.
- com este tempo? - cantarolou Jenny com o seu forte sotaque de Norfolk, recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. Mary ficava espantada com a resistência dela. - Ele está maluco, Mary?
- Sempre soube que eras uma criança perspicaz. Agora, vamos lá a tirar o resto dessa roupa molhada.
Jenny despiu as calças e a camisola interior. Costumava vestir-se como um rapaz, ainda mais do que as outras raparigas do campo. A pele era de um branco leitoso e estava toda arrepiada. Teria muita sorte se não apanhasse uma bela constipação. Mary ajudou Jenny a vestir o roupão e envolveu-a nele, apertando-o bem.
- Então, não estás melhor?
- Sim, obrigada, Mary - respondeu Jenny, recomeçando a chorar. - Não sei o que faria sem ti.
Mary puxou Jenny para junto de si.
- Nunca vais ficar sem mim, Jenny. Prometo.
Jenny sentou-se numa cadeira antiga junto da lareira e cobriu-se com uma manta bafienta. Colocou os pés por baixo de si e, passado um momento, parou de tremer e sentiu-se quente e em segurança. Mary estava ao fogão, cantarolando suavemente para si mesma.
Passados poucos momentos, o ensopado já estava a borbulhar, enchendo a casa de um cheiro maravilhoso. Jenny fechou os olhos, com a cabeça cansada a saltar de uma sensação agradável para outra
- o cheiro quente do ensopado de borrego, o calor da lareira, a comovente suavidade da voz de Mary. O vento e a chuva fustigavam a janela junto da cabeça de Jenny. A tempestade fê-la sentir como era maravilhoso estar segura dentro de uma casa tranquila. Desejava que a sua vida fosse sempre assim.
Passados poucos momentos, Mary trouxe um tabuleiro com uma tigela de ensopado, um pão duro e uma caneca de chá a escaldar.
- Endireita-te, Jenny - disse ela, mas não obteve resposta.
Mary pousou o tabuleiro, tapou a rapariga com outra manta e deixou-a dormir.
Mary estava a ler junto da lareira quando Dogherty entrou em casa. Olhou para o marido em silêncio quando ele entrou na sala. Sean apontou para a cadeira onde Jenny estava a dormir e perguntou:
- Porque é que ela está aqui? O pai bateu-lhe outra vez?
- Chiu! - sibilou Mary. - Vais acordá-la.
Mary levantou-se e levou-o para a cozinha. Preparou-lhe um lugar na mesa. Dogherty encheu uma caneca de chá e sentou-se.
- Sabes, o que Martin Colville precisa é de alguém que lhe dê a provar do mesmo remédio. E eu sou o homem indicado para lho dar.
- Por favor, Sean, ele tem metade da tua idade e duas vezes o teu tamanho.
- E o que é que isso quer dizer, Mary?
- Quer dizer que te podias magoar. É a última coisa de que precisamos é que atraias a atenção da polícia com uma luta estúpida. Agora, acaba de jantar e cala-te.
Vais acordar a miúda.
Dogherty fez o que lhe ordenaram e recomeçou a comer. Enfiou uma colherada do ensopado na boca e fez uma careta.
- Jesus, esta comida está mesmo gelada.
- Se tivesses chegado a casa a horas decentes, não estava. Onde é que andaste, Sean?
Sem levantar a cabeça do prato, Dogherty lançou um olhar gelado a Mary.
- Estive no celeiro - disse ele friamente.
- Estiveste com o rádio ligado, à espera de instruções de Berlim? - perguntou Mary num sussurro sarcástico.
- Mais tarde, mulher - resmungou Sean.
- Não percebes que estás a desperdiçar o teu tempo lá, Sean? E a arriscar também os nossos pescoços?
- Eu disse mais tarde, mulher!
- Seu bode velho e estúpido!
- Já chega, Mary!
- Talvez os rapazes de Berlim te dêem um dia uma tarefa de verdade, Sean. Depois vais poder libertar todo o ódio que tens dentro de ti e vamos poder continuar com o que resta das nossas vidas
- desabafou ela, levantando-se, olhando para ele e abanando a cabeça. - Estou cansada, Sean. vou para a cama. Põe mais um bocado de lenha na lareira para a Jenny ficar quente. E não faças nada que a acorde. Ela passou um mau bocado hoje à noite.
Maty subiu as escadas para o quarto e sem fazer barulho fechou a porta depois de entrar. Dogherty foi ao guarda-louça buscar uma garrafa de Bushmills. O uísque valia ouro por esses dias, mas era uma noite especial, por isso serviu-se de uma quantidade generosa.
- Talvez os rapazes de Berlim façam isso mesmo, Mary Dogherty
- disse ele, erguendo o copo num brinde silencioso. - De facto, talvez até já tenham feito.
NOVE LONDRES
Para conseguir entrar para os serviços secretos militares durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred Vicary tinha, na verdade, recorrido ao logro. com vinte e um anos, estava à beira de terminar os estudos em Cambridge e convencido de que a Inglaterra se estava a afundar e, como tal, precisava de todos os homens capazes de
que pudesse dispor. Não queria ter nada que ver com a infantaria. Sabia história suficiente para ter noção de que não havia aí qualquer espécie de glória, mas apenas
tédio, sofrimento e, muito provavelmente, a morte ou um ferimento grave.
O seu melhor amigo, um brilhante estudante de filosofia chamado Brendan Evans, encontrou a solução perfeita. Brendan tinha ouvido dizer que o exército estava a formar algo chamado Corpo dos Serviços Secretos. As únicas qualificações requeridas eram fluência no alemão e no francês, considerável experiência de viagens pela Europa, capacidade de guiar e reparar uma mota e visão perfeita. Brendan contactou o Ministério da Guerra e marcou entrevistas para ambos na manhã seguinte.
Vicary ficou desanimado; não reunia as qualificações necessárias. Falava alemão, ainda que de forma pouco inspirada, um francês aceitável e viajara consideravelmente
pela Europa, incluindo dentro da Alemanha. Mas não sabia guiar uma mota - aliás, era uma geringonça que o assustava de morte - e via horrivelmente mal.
Brendan Evans era o oposto de Vicary: alto, loiro, incrivelmente bonito, possuidor de um juvenil desejo de aventura e sem mãos a medir no
que tocava a mulheres. Mas tinham uma característica em comum: uma memória perfeita.
Vicary concebeu o seu plano.
Ao final dessa tarde, na penumbra fresca de agosto, Brendan ensinou-o a andar de mota num trecho deserto de estrada, na região das Fens. Vicary quase os matou aos
dois por diversas vezes, mas, quando a noite chegou, já avançava em grande velocidade pelos trilhos, desfrutando de uma mistura de excitação e imprudência que nunca
tinha sentido. Na manhã seguinte, durante a viagem de comboio de Cambridge para Londres, Brendan instruiu-o sem parar acerca da anatomia das motas.
Quando chegaram a Londres, Brendan entrou no Ministério da Guerra e Vicary ficou à espera à entrada, sob a luz quente do sol. Brendan reapareceu ao fim de uma hora,
com um sorriso largo. Fui admitido, disse Brendan. Agora é a tua vez. Ouve com atenção. Foi então que lhe disse de memória o gráfico inteiro utilizado no teste
de visão, até as letras irremediavelmente pequenas da última linha.
Vicary tirou os óculos, entregou-os a Brendan e entrou como um cego no edifício escuro e ameaçador. Passou facilmente no exame cometeu apenas um erro, confundindo
um B com um D, mas isso por culpa de Brendan. Vicary entrou de imediato ao serviço, como segundo tenente na unidade de motocicletas do Corpo dos Serviços Secretos,
passaram-lhe uma guia para levantar o uniforme e o equipamento e ordenaram-lhe que cortasse o cabelo, que tinha ficado comprido e encaracolado durante o verão. No dia seguinte, mandaram-no ir à estação de Euston recolher a mota, uma Rudge novinha em folha, embalada num caixote de madeira. Uma semana mais tarde, Brendan e Vicary embarcaram num navio de transporte de tropas rumo a França, acompanhados das motas.
Era tudo tão simples nesse tempo. Os agentes penetravam nas linhas inimigas, contavam o número de tropas, vigiavam as linhas de caminho de ferro. Até utilizavam pombos-correio para entregarem mensagens secretas. Agora, as coisas eram bem mais complexas, um duelo de inteligência através das ondas rádio, que requeria imensa
concentração e atenção aos pormenores.
A Operação Double Cross.
Karl Becker era um exemplo paradigmático. Tinha sido enviado para Inglaterra por Canaris durante os tempos tumultuosos de 1940, quando a invasão parecia uma certeza.
Fazendo passar-se por um homem de negócios suíço, Becker estabeleceu-se, com estilo correspondente, em Kensington e começou a amealhar todos os segredos suspeitos
a que conseguia deitar mão. O que levou Vicary até Becker foi a sua utilização de libras falsas e, no espaço de poucas semanas, o alemão estava já enredado na teia
do MI5. Vicary, com a ajuda dos vigias, ia onde quer que Becker fosse: às festas onde trocava mexericos e emborcava champanhe do mercado negro, aos encontros com
outros agentes de carne e osso, às entregas clandestinas em sítios predeterminados e ao quarto dele, para onde Becker levava mulheres, homens, crianças e sabe Deus
que mais. Ao fim de um mês, Vicary desferiu o golpe. Prendeu Becker - arrancando-o dos braços de uma jovem que mantinha trancada e embriagada com champanhe - e acabou
com uma rede inteira de agentes alemães.
A seguir, veio a parte complicada. Em vez de enforcar Becker, fê-lo mudar de lado e convenceu-o a trabalhar para o MI5 como agente duplo. Na noite seguinte, Becker,
na cela da prisão, ligou o rádio e transmitiu um sinal de identificação codificado ao operador em Hamburgo. O operador pediu que Becker se mantivesse no ar para
receber as instruções do agente da Abwehr que o controlava a partir de Berlim. Foi pedido a Becker que averiguasse a localização e o tamanho exatos de uma base de
caças da RAF em Kent. Becker confirmou a mensagem e terminou a comunicação.
Foi Vicary quem se dirigiu ao aeródromo no dia seguinte. Podia ter telefonado à RAF, obtido as coordenadas da base e enviado a informação para a Abwehr. Mas não seria assim tão fácil para um espião. Para que a mensagem parecesse autêntica, Vicary foi fazer o reconhecimento da base, exatamente como um espião faria. Apanhou o comboio em Londres e, devido aos atrasos, não chegou antes do anoitecer. Um polícia militar abordou-o numa colina junto à base e pediu-lhe que se identificasse. Vicary conseguia ver a base lá em baixo, na planície, com a mesma perspetiva de um espião. Viu um conjunto de hangares semicilíndricos e alguns aviões espalhados pela pista coberta de vegetação. Na viagem de regresso a Londres, Vicary
redigiu um relatório curto acerca do que tinha visto. Salientou que a luz já não era muita, por o comboio se ter atrasado, e que um polícia militar o tinha impedido de se aproximar mais. Nessa noite, Vicary obrigou Becker a enviar ele mesmo o relatório, já que cada espião tinha o seu estilo próprio de digitar, o chamado punho, que os operadores de rádio alemães eram capazes de reconhecer. Hamburgo deu-lhe os parabéns e terminou a comunicação.
Vicary contactou a RAF e explicou a situação. Os verdadeiros caças Spitfire foram transferidos para outro aeródromo, o pessoal foi evacuado e vários caças extremamente
danificados foram abastecidos e colocados na pista. A Luftwaffe veio nessa noite. Os aviões falsos explodiram numa bola de chamas; a tripulação dos bombardeiros
Heinkel pensou sem dúvida que tinha desferido um golpe preciso. No dia seguinte, a Abwehr pediu a Becker que regressasse a Kent e avaliasse os danos. Uma vez mais,
foi Vicary quem lá foi, escrevendo um relatório acerca do que tinha conseguido ver e obrigando Becker a enviá-lo.
A Abwehr ficou em êxtase. Becker tornou-se uma estrela, um superespião, e tudo isso tinha apenas custado à RAF um dia a reparar a pista e a remover os esqueletos
carbonizados dos Spitfires.
Os agentes que controlavam Becker estavam de tal forma impressionados que lhe pediram para recrutar mais agentes, coisa que ele fez - que, na realidade, Vicary fez. No final de 1940, Karl Becker já tinha um círculo de uma dúzia de agentes a trabalhar para si, sendo que alguns o informavam do que descobriam e outros informavam diretamente Hamburgo. Eram todos fictícios, produto da imaginação de Vicary. Este tinha em atenção todos os aspetos da vida deles; apaixonavam-se, tinham casos amorosos,
queixavam-se da falta de dinheiro, perdiam casas e amigos na Blitz.
Vicary deu-se até ao luxo de prender um ou outro; nenhuma rede a atuar em solo inimigo era infalível
e a Abwehr nunca acreditaria na possibilidade de não perder nenhum agente. Era um trabalho extenuante e fastidioso, que exigia atenção ao mais ínfimo pormenor; Vicary
achava-o estimulante e adorava cada minuto.
O elevador estava outra vez avariado e, por isso, Vicary teve de descer as escadas do covil de Boothby para a divisão dos Registos.
Ao abrir a porta, foi invadido pelo cheiro daquele lugar: papel a deteriorar-se, pó, um bafio penetrante devido à humidade que se infiltrava pelas paredes da cave. Lembrava-lhe a biblioteca da universidade. Havia dossiês em prateleiras abertas, dossiês em arquivos, dossiês amontoados no chão de pedra gelado, pilhas de documentos à espera de se transformarem em dossiês. Um trio de raparigas bonitas o pessoal da noite, que dormia em camas improvisadas - andava discretamente de um lado para o outro, falando uma linguagem de inventário que Vicary não conseguia perceber. As raparigas - conhecidas como rainhas da divisão dos Registos, no léxico daquele sítio - pareciam estranhamente deslocadas ali, no meio dos papéis e da escuridão. De certa forma, Vicary esperava virar uma esquina e deparar com um par de monges a ler um manuscrito à luz da vela.
Arrepiou-se. Céus, aquele sítio era frio como uma cripta. Arrependeu-se de não ter trazido uma camisola ou qualquer coisa quente para beber. Estava ali tudo - toda a história secreta do serviço. Enquanto vagueava entre as pilhas de documentos, ocorreu-lhe que, muito tempo depois de abandonar o MI5, também ali estaria um registo eterno de todas as suas ações. Se isso era reconfortante ou repugnante, não tinha a certeza.
Vicary pensou nas observações depreciativas que Boothby tecera sobre ele e a raiva que sentiu causou-lhe um calafrio. Vicary era um extraordinário agente da Operação Double Cross e nem mesmo Boothby o podia negar. Estava plenamente convencido de que era a sua formação como historiador que o tornava tão capaz para o trabalho. Um historiador tem muitas vezes de se ocupar de conjeturas
- pegando numa série de pequenas pistas inconclusivas e, a partir delas, chegar a uma conclusão razoável. A Operação Double Cross era muito semelhante a essa elaboração de conjeturas, só que ao contrário. O trabalho de um agente desse tipo consistia em fornecer aos alemães pequenas pistas inconclusivas para que pudessem chegar às conclusões desejadas. O agente precisava de ser cuidadoso e meticuloso nas pistas que revelava. Tinham de corresponder a uma cuidadosa mistura de realidade e ficção, de verdade e de mentiras meticulosamente disfarçadas. Os espiões falsos de Vicary tinham de trabalhar arduamente para conseguirem as suas informações. E estas tinham de ser ministradas aos alemães em doses pequenas e por vezes insignificantes.
Precisavam de ser consistentes com o disfarce do espião. Por exemplo, não se poderia esperar que um motorista de camiões de Bristol estivesse na posse de documentos roubados em Londres. E as informações nunca deveriam parecer boas demais para serem verdade, pois as informações obtidas com demasiada facilidade são facilmente descartadas.
Os dossiês sobre o pessoal da Abwehr estavam armazenados em prateleiras abertas que se estendiam do chão ao teto, numa pequena divisão no extremo desse piso. Os Vs começavam numa das prateleiras de baixo e depois saltavam para uma no topo. Vicary teve de se pôr de gatas e inclinar a cabeça de lado como se estivesse à procura de um objeto valioso debaixo de uma mobília. Raios! O dossiê estava na prateleira de cima, claro. com esforço, levantou-se e, esticando o pescoço, espreitou para os ficheiros por cima dos óculos em meia-lua. Não valia a pena. Os dossiês estavam quase a dois metros de distância, demasiado longe para conseguir ler os nomes - era a vingança de Boothby contra todos os que não atingiam a altura estipulada para o departamento.
Uma das rainhas da divisão dos Registos deparou com ele a olhar fixamente para cima e disse que lhe ia trazer uma escada de biblioteca.
- A semana passada, Claymore tentou usar uma cadeira e quase partiu o pescoço - trauteou ela.
Regressou pouco depois a arrastar a escada. Deu uma nova olhadela a Vicary, sorriu-lhe como se este fosse um tio maluco e ofereceu-se para lhe ir buscar o dossiê. Vicary assegurou-lhe que conseguia tratar do assunto.
Subiu à escada e, usando o indicador como se fosse uma sonda, percorreu os dossiês. Descobriu uma pasta de arquivo de manilha com um separador vermelho: VOGEL, KURT - ABWHER BERLIM. Tirou-a da prateleira, abriu-a e olhou.
O dossiê de Vogel estava vazio.
Um mês depois de chegar ao MI5, Vicary ficou surpreendido por encontrar Nicholas Jago a trabalhar lá. Jago tinha sido arquivista principal no University College
e fora recrutado pelo MI5 na mesma
semana em que Vicary. Tinha sido colocado na divisão dos Registos e fora-lhe ordenado que impusesse um pouco de disciplina na memória, por vezes volúvel, do departamento.
Jago, tal como a própria divisão dos Registos, era empoeirado, irascível e de trato difícil. Mas, uma vez ultrapassada essa couraça exterior, era capaz de ser gentil
e generoso, transbordando de informações valiosas. Jago tinha ainda outro talento precioso: sabia perder e encontrar dossiês.
Apesar da hora tardia, Vicary encontrou Jago a trabalhar, sentado à secretária do seu exíguo gabinete envidraçado. Ao contrário das salas dos arquivos, era um santuário de limpeza e ordem. Quando Vicary bateu à porta envidraçada, Jago levantou os olhos, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Vicary apercebeu-se de que os olhos de Jago não acompanhavam o sorriso dele. Parecia exausto; Jago vivia naquele sítio. Mas havia outra coisa: em 1940, a sua mulher tinha sido morta durante a Blitz. A morte dela deixara-o destroçado. Tinha jurado a si mesmo derrotar os nazis - não com armas, mas com organização e precisão.
Vicary sentou-se e recusou a esbaforida oferta de chá por parte de Jago - material genuíno que acumulei antes da guerra. Nada parecido com o tabaco atroz, próprio da guerra, com que estava a encher o fornilho do cachimbo antes de o acender com um fósforo. O fumo repugnante cheirava a folhas a arder e ficou a pairar entre eles, numa cortina, enquanto trocavam banalidades acerca do regresso à universidade quando o trabalho ali estivesse terminado.
Aclarando a garganta delicadamente, Vicary indicou que queria passar ao assunto que o trouxera ali.
- Estou à procura de um dossiê acerca de um agente algo obscuro da Abwehr - revelou Vicary. - Fiquei surpreendido quando vi que tinha desaparecido. A capa está na prateleira, mas o que devia estar lá dentro desapareceu.
- E qual é o nome? - perguntou Jago.
- Kurt Vogel.
O rosto de Jago ensombrou-se.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos. Espera aqui, Alfred. É só um momento.
- Eu vou contigo - disse Vicary. - Talvez possa ajudar.
- Não, não - insistiu Jago. - Nem quero ouvir falar disso. Eu não te ajudo a encontrar espiões e tu não me ajudas a encontrar dossiês - atirou, rindo-se da sua própria
piada. - Fica aqui e põe-te à vontade. É só um momento.
É a segunda vez que dizes isso, pensou Vicary. É só um momento... Vicary sabia que Jago era obcecado com os seus dossiês, mas a falta de um dossiê sobre um agente
da Abwehr não era caso para uma emergência no departamento. Constantemente, colocavam-se dossiês no sítio errado ou deitavam-se fora por engano. Uma vez, Boothby
fez soar o alerta vermelho depois de ter perdido uma pasta cheia de documentos importantes. Segundo rezava a lenda do departamento, tinha sido encontrada uma semana mais tarde no apartamento da amante dele.
Passado um momento, Jago regressou apressadamente ao gabinete, com uma nuvem do fumo repugnante do cachimbo a flutuar atrás dele como o vapor de uma locomotiva. Entregou o dossiê a Vicary e sentou-se à secretária.
- Tal como eu suspeitava - anunciou Jago, absurdamente orgulhoso de si mesmo. - Estava ali mesmo na prateleira. Uma das raparigas deve tê-lo guardado na pasta errada. Está sempre a acontecer.
Vicary ouviu a desculpa duvidosa e franziu o sobrolho.
- Interessante... nunca me aconteceu tal coisa.
- Bem, talvez tenhas tido sorte. Nós aqui lidamos com milhares de dossiês por semana. Dava-nos jeito mais pessoal. Já discuti o assunto com o diretor-geral, mas ele disse-me que já atingimos a nossa quota e que não podemos ter mais pessoal.
O cachimbo de Jago tinha-se apagado e ele estava a reacendê-lo com toda a pompa e circunstância. Os olhos de Vicary lacrimejaram à medida que o pequeno gabinete se enchia novamente de fumo. Nicholas Jago era um homem perfeitamente bom e honesto, mas Vicary não acreditava numa só palavra da história que tinha contado. Estava convicto de que alguém tinha retirado o dossiê não há muito tempo e que este não tinha voltado para a prateleira. E esse alguém devia ser alguém bem importante, a julgar pela cara que Jago fez quando Vicary lho pediu.
Vicary serviu-se do dossiê para abrir uma clareira no meio da nuvem de fumo.
- Quem foi a última pessoa a mexer no dossiê de Vogel?
- Alfred, vá lá, sabes que não te posso dizer isso.
Era verdade. Comuns mortais como Vicary tinham de assinar um registo cada vez que retiravam um dossiê. Havia registos que indicavam quem retirava que dossiês e quando. Apenas o pessoal da divisão dos Registos e os chefes do departamento tinham acesso a esses registos. Só um grupo restrito de pessoas com cargos de grande relevo podia aceder aos dossiês sem ter de lavrar registo. Vicary suspeitava que o dossiê de Vogel tinha sido retirado por uma dessas pessoas.
- Tudo o que tenho de fazer é pedir a Boothby uma autorização para ver a lista de acessos e ele dá-ma - disse Vicary. - Porque não me poupas tempo e me deixas ver isso já?
- Pode dar-ta ou não.
- O que queres dizer com isso, Nicholas?
- Ouve, meu velho, a última coisa que eu quero é intrometer-me outra vez entre ti e Boothby.
Jago estava novamente às voltas com o cachimbo, enchendo o fornilho e tirando um fósforo da caixa. Segurava o cachimbo entre os dentes, fazendo com que o fornilho baloiçasse enquanto falava.
- Fala com o Boothby. Se ele disser que podes ver a lista de acessos, é toda tua.
Vicary deixou-o sentado no gabinete fumarento, a tentar acender o seu tabaco barato, com o fósforo a flamejar a cada puxadela do cachimbo. Ao afastar-se com o dossiê de Vogel, Vicary deitou uma última olhadela a Jago e achou que ele parecia um farol num local brumoso.
Ao voltar para o gabinete, Vicary parou na cantina. Não se conseguia lembrar da última vez que tinha comido. A sensação de fome não passava de uma moinha. Já não suspirava por comida boa. Comer tinha-se tornado uma tarefa prática, algo que tinha de se fazer por necessidade, não por prazer. Era como andar em Londres à noite: rapidamente e tentando não sair ferido. Lembrou-se da tarde de maio de 1940 em que o tinham contactado. O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas de cordeiro em sua casa. Que tamanha perda de tempo precioso.
Já era tarde e a seleção era pior do que o habitual: um naco de pão escuro, um pedaço de queijo suspeito, um caldeirão borbulhante
de líquido castanho. Alguém tinha riscado da ementa as palavras caldo de carne e escrito em seu lugar sopa de pedra. Vicary dispensou o queijo e cheirou o caldo.
Parecia suficientemente inócuo. Cuidadosamente, serviu-se de uma concha. O pão era duro como a tábua da cozinha. Vicary cortou um pedaço com a faca romba. Utilizando o dossiê de Vogel como tabuleiro, avançou com cautela por entre as mesas e cadeiras. Numa mesa, estava John Masterman, debruçado sobre um livro de latim. Dois advogados famosos estavam sentados numa mesa a um canto, reeditando um antigo duelo no tribunal. Um popular escritor de livros policiais escrevinhava num caderno desgastado. Vicary abanou a cabeça. O MI5 tinha recrutado um conjunto formidável de talentos.
Subiu as escadas cuidadosamente, com a tigela de sopa a balançar precariamente em cima do dossiê. O que mais lhe faltava era sujar o dossiê. Jago tinha escrito inúmeros memorandos enfurecidos, implorando aos agentes que tivessem mais cuidado com os dossiês.
- E qual é o nome?
- Kurt Vogel.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos.
Vicary tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali que não batia certo. Mas era melhor não forçar as coisas. Era preferível não pensar nisso e deixar o subconsciente juntar as peças.
Pousou o dossiê e a tigela de sopa na secretária e ligou a luz. Leu o dossiê de uma ponta a outra enquanto ia comendo a sopa em pequenos tragos. Sabia a bota de couro cozida. O sal era dos poucos condimentos que os cozinheiros possuíam em abundância e tinham-no usado generosamente. Quando acabou de ler o dossiê pela segunda vez, estava com uma sede digna do deserto e tinha os dedos a começarem a inchar.
Vicary ergueu os olhos e disse:
- Harry, acho que temos aqui um problema.
Harry Dalton, que se deixara adormecer à secretária, na área comum à porta do gabinete de Vicary, levantou-se e entrou. Formavam uma parceria insólita, conhecida humoristicamente no departamento como Músculos & Cérebro, Lda. Harry era alto e atlético, elegante, de cabelo negro densamente coberto de brilhantina, olhos azuis vivos
e um sorriso sempre pronto. Antes da guerra, era o inspetor Harry Dalton, do principal departamento de homicídios da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha nascido e crescido em Battersea e ostentava ainda na voz suave e agradável traços da pronúncia da classe operária do sul de Londres.
- Ele é inteligente, isso é certo - disse Vicary. - Olhe para isto: doutoramento em Direito na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Heller e de Rosenberg.
Não me parece o nazi típico. Os nazis perverteram as leis da Alemanha. Uma pessoa com uma educação destas não poderia estar muito entusiasmado com eles. E depois,
em 1935, decide abandonar de repente o direito e passar a trabalhar para o Canaris, como advogado dele, uma espécie de conselheiro interno da Abwehr? Não acredito
nisso. Acho que ele é um espião e esta história de ser o conselheiro legal de Canaris é só mais uma camada do disfarce.
Vicary estava a folhear o ficheiro outra vez.
- Tem alguma teoria? - perguntou Harry.
- Três teorias, na verdade.
- Então, vamos ouvi-las.
- Teoria número um, Canaris perdeu a confiança nas redes britânicas e encarregou Vogel de levar a cabo uma investigação. Um homem com a experiência e formação de Vogel é o oficial perfeito para examinar minuciosamente os dossiês e todos os relatórios de agentes em busca de inconsistências. Temos sido extremamente cuidadosos, Harry, mas manter a Operação Double Cross é uma tarefa muito complexa. Aposto que lá pelo meio já cometemos um erro ou outro. E se a pessoa certa andasse à procura deles - um homem inteligente como Kurt Vogel, por exemplo -, talvez fosse capaz de os descobrir.
- Teoria número dois?
- Teoria número dois, Canaris encarregou Vogel da criação de uma nova rede. Nesta altura do campeonato, já é um pouco tarde para isso. Era preciso descobrir, recrutar e treinar agentes, além de os infiltrar no país. Isso, por norma, leva meses a ser feito em condições. Duvido que seja isso que andam a fazer, mas não podemos descartar essa ideia.
- Teoria número três?
- A teoria número três é que Kurt Vogel é responsável por uma rede de que ainda não temos conhecimento.
- Uma rede completa de agentes que ainda não desmascarámos? E isso é possível?
- Temos de presumir que sim.
- Então todos os nossos agentes duplos estariam em risco.
- É um castelo de cartas, Harry. Basta só um bom agente para se desmoronar tudo.
Vicary acendeu um cigarro. O tabaco tirou-lhe da boca o sabor do caldo.
- Canaris deve estar debaixo de enorme pressão para apresentar resultados. com certeza que iria querer que fosse o melhor homem dele a dirigir a operação.
- Então isso quer dizer que é como se Kurt Vogel fosse uma panela de pressão.
- Certo.
- E isso pode torná-lo perigoso.
- Mas também pode torná-lo descuidado. Tem de arriscar. Tem de usar o rádio ou enviar um agente para Inglaterra. E, quando o fizer, vamos estar em cima dele.
Ficaram sentados em silêncio durante um momento. Vicary estava a fumar e Harry ia folheando o dossiê de Vogel. Foi então que Vicary lhe contou o que tinha acontecido na divisão dos Registos.
- Estão sempre a desaparecer imensos dossiês, Alfred.
- Sim, mas porquê este dossiê? E, mais importante, porquê agora?
- Boas perguntas, mas desconfio que as respostas sejam muito simples. Quando estamos no meio de uma investigação, o melhor é mantermo-nos concentrados e não nos
desviarmos do assunto.
- Eu sei, Harry - respondeu Vicary, franzindo o sobrolho. Mas isto está a pôr-me louco.
Harry disse:
- Eu conheço uma ou duas rainhas da divisão dos Registos. Vicary olhou para ele.
- Tenho a certeza que sim.
- vou meter o nariz por lá e fazer umas perguntas.
- Faça isso discretamente.
- Não há outra forma de o fazer, Alfred.
- Jago está a mentir, está a esconder qualquer coisa.
- E porque havia ele de mentir?
- Não sei - respondeu Vicary, esmagando o cigarro -, mas sou pago para ter pensamentos desagradáveis.

DEZ
BLETCHLEY PARK, INGLATERRA
Oficialmente, chamava-se Escola Governamental de Códigos e Criptografia. No entanto, não era escola nenhuma. Podia parecer ser uma escola qualquer - uma grande e
feia mansão vitoriana, rodeada por uma cerca alta -, mas a maior parte das pessoas daquela terra de ruas estreitas que crescera ao longo da linha de caminho de ferro
percebia que algo mais importante se passava ali. Os grandes relvados estavam cheios de dezenas de cabanas temporárias. O espaço remanescente inha sido pisado, transformando-se
em carreiros de lama congelada. Os jardins estavam em mau estado e por aparar, assemelhando-se a pequenas selvas. O staff era uma mistura excêntrica, os matemáticos
mais brilhantes do país, campeões de xadrez, magos das palavras cruzadas, todos reunidos para o mesmo objetivo: decifrar os códigos alemães.
Mesmo no mundo notoriamente extravagante de Bletchley Park, Denholm Saunders era considerado um excêntrico. Antes da guerra, era um matemático de topo em Cambridge.
Naquele momento, estava entre os melhores criptólogos do mundo. Vivia numa aldeola nos arredores de Bletchley com a mãe e os gatos siameses, Platão e S. Tomás de Aquino.
Era o final da tarde. Saunders estava na mansão, sentado à secretária, ocupado com duas mensagens enviadas pela Abwehr, de Hamburgo, para agentes alemães no Reino Unido. As mensagens tinham sido intercetadas pelo Radio Security Service, assinaladas como suspeitas e encaminhadas para Bletchley Park para descodificação.
Saunders estava a assobiar fora de tom enquanto raspava com o lápis no bloco de notas, um hábito que irritava solenemente os colegas. Trabalhava na secção de descodificação manual de mensagens cifradas. Era uma área de trabalho exígua e estava a abarrotar, mas era relativamente quente. Era melhor estar ali do que lá fora, numa das cabanas onde os criptólogos se esforçavam arduamente por descodificar as mensagens cifradas do exército e da marinha alemães, como esquimós num iglu.
Ao fim de duas horas, Saunders parou de raspar e de assobiar. A única coisa que se ouvia era o som da neve a derreter, gorgolejando nas goteiras da velha casa. O trabalho dessa tarde tinha sido pouco estimulante: as mensagens tinham sido transmitidas numa variante de um código que o próprio Saunders tinha decifrado em 1940.
- Meu Deus, eles estão a tornar-se um pouco aborrecidos, não estão? - comentou Saunders para ninguém em particular.
O seu superior era um escocês chamado Richardson. Saunders bateu à porta, entrou e pousou as duas mensagens descodificadas em cima da secretária. Richardson leu-as
e franziu o sobrolho. Ainda na véspera, um agente do MI5 chamado Alfred Vicary os tinha posto de sobreaviso para esse tipo de coisas.
Richardson mandou chamar um estafeta motorizado.
- Só há um problema - disse Saunders.
- Qual é?
- Na primeira mensagem, o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Na realidade, até pediu a quem estava a digitar a mensagem que a enviasse uma
segunda vez. Eles irritam-se com esse tipo de coisas. Pode não ser nada. Pode ter havido uma interferência qualquer. Mas talvez seja boa ideia contar isto à rapaziada do MI5.
Richardson pensou: Boa ideia, de facto.
Assim que Saunders saiu, Richardson datilografou uma breve nota descrevendo como o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Cinco minutos mais
tarde, as mensagens descodificadas e a nota de Richardson já estavam numa pasta de couro, prontas para a viagem de sessenta e sete quilómetros até Londres.


CONTINUA

"Em tempo de guerra", escreveu Winston Churchill, "a verdade é tão preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras." No caso das operações de contraespionagem britânicas, isto implicava encontrar um agente o mais improvável possível: um professor de História chamado Alfred Vicary, escolhido pessoalmente por Churchill para expor um traidor extremamente perigoso, mas desconhecido. Contudo, os nazis também escolheram um agente improvável: Catherine Blake, a bela viúva de um herói de guerra, voluntária num hospital e espia naxi sob as ordens diretas de Hitler, incumbida de desvendar os planos dos Aliados para o Dia D...

 

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PRIMEIRA PARTE

UM
SUFFOLK, INGLATERRA: NOVEMBRO DE 1938
Beatrice Pymm morreu porque perdeu o último autocarro para Ipswich.
Vinte minutos antes de morrer, encontrava-se na sombria paragem de autocarros e consultava o horário à luz mortiça do único candeeiro de rua da povoação. Daí a poucos
meses, o candeeiro seria desligado, de acordo com o regulamento do blackout. Beatrice Pymm nunca viria a saber do blackout.
Por agora, o candeeiro brilhava apenas o suficiente para que Beatrice conseguisse ler o horário mergulhado nas sombras. Para o ver melhor, pôs-se em bicos de pés
e seguiu os números com a ponta do indicador, manchado de tinta. A sua mãe, já falecida, queixava-se sempre da tinta com amargura. Considerava impróprio de uma senhora
ter as mãos sempre manchadas. Tinha desejado que Beatrice se tivesse dedicado a um passatempo mais asseado - música, voluntariado, até mesmo a escrita, embora a
mãe de Beatrice não tivesse os escritores em grande conta.
- Raios! - resmungou Beatrice, com a ponta do dedo ainda colada ao horário.
Normalmente, era extremamente pontual. Numa vida sem responsabilidades financeiras, sem amigos, sem família, tinha delineado um plano pessoal rigoroso. Naquele dia, tinha-se desviado dele pintara demasiado tempo e regressara demasiado tarde.
Retirou a mão do horário e levou-a ao rosto, fazendo um esgar de preocupação. A cara do teu pai, dizia a mãe com uma ponta
desespero - uma testa larga e plana, um grande nariz nobre, um queixo recuado. com apenas trinta anos, tinha o cabelo prematuramente raiado de grisalho.
Perguntou-se o que fazer. A sua casa em Ipswich ficava a pelo menos oito quilómetros, demasiado para ir a pé. Ao início da noite, haveria ainda a luz do trânsito na estrada. Talvez alguém lhe desse boleia.
Deixou escapar um longo suspiro de frustração. A sua respiração gelou, pairou diante do seu rosto e depois afastou-se ao sabor do vento frio vindo do pântano. As nuvens dispersaram-se e uma Lua luminosa brilhou através delas. Beattice olhou para cima e viu um halo de gelo em redor dela. Arrepiou-se, sentindo o frio pela primeira vez.
Pegou nas suas coisas: uma mochila de couro, uma tela, um cavalete gasto. Tinha passado o dia a pintar ao longo do estuário do Orwell. A pintura era o seu único
amor e a paisagem da East Anglia o seu único tema. Isso levava-a de facto a uma certa repetição no trabalho. A mãe gostava de ver pessoas nos quadros - cenas de
rua, cafés cheios. Uma vez, até sugeriu a Beatrice que passasse algum tempo em França, de modo a prosseguir a carreira. Beatrice recusou. Adorava os pântanos e os
diques, os estuários e as lagoas, os terrenos pantanosos a norte de Cambridge, as pastagens ondulantes de Suffolk.
com relutância, começou a dirigir-se para casa, caminhando a bom ritmo ao longo da beira da estrada, apesar do peso que transportava. Vestia uma camisa de homem
de algodão, manchada de tinta tal como os seus dedos, uma pesada camisola de lã grossa que a fazia sentir-se como um urso de peluche, um casacão demasiado comprido
nas mangas e calças enfiadas dentro das botas de borracha. Afastou-se do alcance da esfera amarela do candeeiro; a escuridão engoliu-a. Não sentiu qualquer apreensão
por caminhar na escuridão do campo. A mãe, assustada com as suas longas caminhadas solitárias, avisava-a constantemente para ter cuidado com os violadores. Beatrice
descartava sempre a ameaça, considerando-a improvável.
Arrepiou-se com o frio. Pensou na sua casa, um grande chalé nos arredores de Ipswich, que lhe fora deixado pela mãe. Por trás da casa,
no extremo da alameda do jardim, tinha construído um estúdio banhado de luz, onde passava a maior parte do tempo. Para ela, não era invulgar passar dias sem falar
com outro ser humano.
Tudo isto, e ainda mais, era do conhecimento do seu assassino.
Após cinco minutos de caminhada, ouviu o barulho de um motor atrás de si. Um veículo comercial, pensou. Antigo, a julgar pelo ruído irregular do motor. Beatrice
observou o brilho dos faróis espalhar-se como o nascer do Sol através da erva, de ambos os lados da estrada. Ouviu o motor perder potência e o carro começar a avançar
em ponto morto. Sentiu uma rajada de vento quando o veículo a ultrapassou. Sufocou com o fedor do escape.
De seguida, viu-o encostar à berma da estrada e parar.
A mão, visível sob o intenso luar, impressionou Beatrice pela sua estranheza. Saiu pela janela do condutor segundos depois de a carrinha ter parado e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Uma grossa luva de pele, reparou Beatrice, do género das utilizadas pelos trabalhadores que transportam coisas pesadas. Um fato-macaco azul-escuro, talvez.
A mão acenou-lhe uma vez mais. Lá estava outra vez - havia qualquer coisa no modo como se movia que não batia certo. Ela era artista e os artistas conhecem o movimento e o fluir. E havia mais qualquer coisa. Quando a mão se movia, expunha a pele entre a ponta da manga e a base da luva. Mesmo sob a luz fraca, Beatrice conseguia ver que a pele era clara e sem pelos - não parecia o pulso de nenhum trabalhador que já tivesse visto, invulgarmente delgado.
Contudo, não se sentiu alarmada. Acelerou o ritmo e alcançou a porta do passageiro com alguns passos. Abriu-a e colocou as coisas no espaço em frente ao banco. De seguida, ergueu os olhos pela primeira vez para o interior da carrinha e apercebeu-se de que o condutor tinha desaparecido.
Nos últimos segundos conscientes da sua vida, Beatrice Pymm interrogou-se por que razão utilizaria alguém uma carrinha para
transportar uma moto. Ali estava ela, deitada de lado na parte de trás, com dois recipientes de gasolina junto dela.
Ainda de pé junto da carrinha, fechou a porta e chamou. Não houve resposta.
Segundos mais tarde, ouviu o som de uma bota de couro no cascalho.
Ouviu de novo o som, mais perto.
Virou a cabeça e viu o condutor ali parado. Olhou para a cara dele e viu apenas uma máscara de lã preta. Dois poços de um azul-pálido fixavam-na friamente por detrás dos buracos para os olhos. Lábios de aspeto feminino, ligeiramente entreabertos, brilhavam por detrás da abertura para a boca.
Beatrice abriu a boca para gritar. Só conseguiu soltar um breve suspiro antes de o condutor lhe enfiar a mão enluvada na boca. Os dedos penetraram-lhe na carne macia da garganta. A luva sabia horrivelmente a poeira, gasolina e óleo de motor. Beatrice começou a vomitar os restos do almoço do seu piquenique - frango assado, queijo Stilton e vinho tinto.
Depois sentiu a outra mão a tatear-lhe o seio esquerdo. Por um instante, Beatrice pensou que os receios da mãe em relação a violações tinham sido finalmente comprovados. Mas a mão que lhe tocava no peito não era a mão de um molestador ou de um violador. A mão era hábil, como a de um médico, e curiosamente delicada. Moveu-se do peito para as costelas, pressionando com força. Beatrice estremeceu, arquejou e mordeu com força. O condutor pareceu não sentir nada através da luva grossa.
A mão alcançou o fundo das costelas e sondou a carne macia ao cimo do abdómen. Não foi mais além. Um dedo continuou a apertar essa zona. Beatrice ouviu um estalido
agudo.
Um instante de dor insuportável, uma explosão de luz branca e brilhante.
A seguir, uma escuridão benévola.
O assassino tinha treinado vezes sem conta para aquela noite, mas era a primeira vez. O assassino retirou a mão enluvada da boca
da vítima, virou-se e vomitou violentamente. Não havia tempo para sentimentalismos. O assassino era um soldado - major dos serviços secretos - e Beatrice Pymm em
breve seria a inimiga. A sua morte, embora lamentável, era necessária.
O assassino limpou o vómito dos bordos da máscara e meteu mãos à obra. O assassino agarrou na faca de ponta e mola e puxou-a. A ferida reteve-a com força, mas o
assassino puxou com mais força e a lâmina deslizou para fora.
Um assassínio excelente, limpo, com muito pouco sangue.
Vogelficaria orgulhoso.
O assassino limpou o sangue da navalha, voltando a fechar a lâmina, e guardou-a no bolso do fato-macaco. Depois, o assassino agarrou o corpo por baixo dos braços,
arrastou-o para a parte de trás da carrinha e deixou-o cair na berma de alcatrão esboroada.
O assassino abriu as portas traseiras. O corpo entrou em convulsões.
Foi uma luta levantar o corpo e colocá-lo na parte de trás da carrinha, mas um momento depois estava feito. O motor hesitou, depois pegou. A seguir, a carrinha estava de novo a caminho, com os faróis a brilharem através da povoação às escuras, virando para a estrada deserta.
O assassino, tranquilo apesar da presença do corpo, cantou calmamente uma canção da infância para ajudar a passar o tempo. Era uma viagem longa, quatro horas pelo menos. Durante os preparativos, o assassino tinha percorrido a estrada de moto, a mesma que agora se encontrava ao lado de Beatrice Pymm. A viagem levaria muito mais tempo na carrinha. O motor tinha pouca potência, os travões eram maus e fugia bastante para a direita.
O assassino prometeu a si mesmo roubar uma melhor na vez seguinte.
As facadas no coração, por regra, não matam instantaneamente. Mesmo que a arma penetre numa cavidade, o coração continua a bater durante algum tempo até a vítima se esvair em sangue.
Enquanto a carrinha avançava ruidosamente pela estrada, a cavidade torácica de Beatrice Pymm encheu-se rapidamente de sangue.
A sua mente ficou num estado próximo do coma. Teve a sensação de estar prestes a morrer.
Recordou-se dos avisos que a mãe lhe fazia por andar sozinha à noite. Sentiu a viscosidade húmida do seu próprio sangue a escoar-se do corpo para a blusa. Interrogou-se se o seu quadro teria sido danificado.
Depois ouviu o canto. Um belo canto. Levou algum tempo, mas percebeu por fim que o condutor não estava a cantar em inglês. A canção era alemã e a voz a de uma mulher.
Foi então que Beatrice Pymm morreu.
Primeira paragem, dez minutos depois, na margem do rio Orwell, o mesmo lugar onde Beatrice Pymm tinha estado a pintar naquele dia. A assassina deixou o motor da carrinha ligado e saiu. Dirigiu-se ao lugar do passageiro, abriu a porta e tirou o cavalete, a tela e a mochila.
O cavalete foi montado muito próximo da água, que corria lentamente, e a tela colocada nele. A assassina abriu a mochila, retirou de lá as tintas e a palete e pousou-as no solo molhado. Lançou um olhar ao quadro inacabado e achou que era bastante bom. Fora uma pena que não tivesse podido matar alguém com menos talento.
De seguida, retirou a garrafa meio cheia de vinho tinto, derramou o que restava no rio e atirou-a para junto das pernas do cavalete. Pobre Beatrice. Demasiado vinho, um passo descuidado, um mergulho na água gelada, uma lenta viagem até ao mar alto.
Causa da morte: presumivelmente afogada, presumivelmente acidental.
Caso encerrado.
Seis horas mais tarde, a carrinha atravessou a aldeia de Whitchurch, nas West Midlands, e virou para um caminho de terra batida que contornava um campo de cevada. A vala tinha sido cavada na noite anterior - suficientemente profunda para esconder um cadáver, mas não tão profunda que ele não pudesse vir a ser descoberto.
Ela arrastou o corpo de Beatrice Pymm para fora da carrinha e despiu-lhe a roupa ensanguentada. Agarrou o cadáver nu pelos pés e arrastou-o até junto da vala. A seguir, a assassina voltou à carrinha e tirou de lá três artigos - um malho em ferro, um tijolo vermelho e uma pequena pá.
Esta era a parte que ela mais temia; por algum motivo, pior do que o assassínio em si. Largou os três artigos junto ao cadáver e acalmou-se. Lutando contra outra onda de náusea, segurou o malho na mão enluvada, ergueu-o e esmagou o nariz de Beatrice Pymm.
Quando terminou, mal conseguia olhar para o que restava do rosto de Beatrice Pymm. Utilizando primeiro o malho e depois o tijolo, tinha-o esmagado numa massa de sangue, tecido, ossos quebrados e dentes esmigalhados.
Conseguira o efeito pretendido - as feições tinham sido apagadas, o rosto tornara-se irreconhecível.
Fizera tudo o que lhe tinham mandado fazer. Era para ser diferente. Tinha sido treinada num campo especial durante muitos meses, muito mais tempo do que os outros agentes. Iria ser infiltrada mais fundo. Fora por isso que tivera de matar Beatrice Pymm. Não iria desperdiçar o seu tempo a fazer o que outros, agentes menos dotados, poderiam fazer - contar tropas, monitorizar caminhos de ferro, avaliar danos causados por bombas. Isso era fácil. Seria reservada para maiores e melhores coisas. Seria como uma bomba-relógio em contagem decrescente no interior de Inglaterra, à espera de ser ativada, à espera de explodir.
Encostou a bota às costelas e empurrou. O cadáver caiu na vala. Cobriu o corpo com terra. Recolheu as roupas manchadas de sangue e atirou-as para as traseiras da carrinha. Do banco da frente, retirou uma pequena bolsa contendo um passaporte holandês e uma carteira. A carteira tinha documentos de identificação, uma carta de condução de Amesterdão e fotografias de uma família holandesa, gorda e sorridente.
Tudo isto tinha sido forjado pela Abwehr em Berlim.
Atirou a bolsa para as árvores na orla do campo de cevada, a alguns metros da vala. Se tudo corresse conforme planeado, o corpo, já em avançado estado de decomposição e mutilado, seria encontrado daí a alguns meses, juntamente com a bolsa. A polícia iria julgar que a mulher morta era Christa Kunst, uma turista holandesa que entrara no país em outubro de 1938 e cujas férias tinham terminado de modo lamentável e violento.
Antes de partir, deu uma última olhadela à vala. Sentiu uma ponta de tristeza por Beatrice Pymm. Na morte, tinham-lhe sido roubados
o rosto e o nome.
Outra coisa: a assassina tinha agora perdido a sua própria identidade. Durante seis meses, tinha vivido na Holanda, visto que o holandês era uma das suas línguas. Tinha construído cuidadosamente um passado, votado numa eleição local em Amesterdão, permitindo-se mesmo arranjar um jovem amante, um rapaz de dezanove anos com um imenso apetite e disposição para aprender coisas novas. Agora, Christa Kunst jazia numa vala rasa, na orla de um campo de cevada inglês.
A assassina assumiria uma nova identidade pela manhã.
Mas naquela noite não era ninguém.
Voltou a encher o depósito da carrinha e conduziu durante vinte minutos. A povoação de Alderton, assim como Beatrice Pymm, tinha sido cuidadosamente escolhida -
um local onde uma carrinha a arder na berma da estrada, a meio da noite, não seria imediatamente notada.
Tirou a mota da carrinha, apoiando-a numa pesada prancha de madeira, uma tarefa difícil até para um homem forte. Debateu-se com a mota e desistiu quando esta se
encontrava a um metro da estrada. A mota caiu no chão com grande estrondo, o único erro que cometeu durante toda a noite.
Pegou na mota e fê-la deslizar, em ponto morto, até ficar a cerca de cinquenta metros da carrinha. Depois regressou à carrinha. Um dos recipientes ainda continha
alguma gasolina. Espalhou-a no interior da carrinha, despejando a maioria do combustível na roupa de Beatrice Pymm, manchada de sangue.

Quando a carrinha se transformou numa bola de fogo, já ela tinha ligado a mota. Observou a carrinha a arder durante alguns segundos, com a luz alaranjada a dançar
no campo árido e a linha das árvores um pouco mais longe.
A seguir, virou a mota para sul e dirigiu-se para Londres.
DOIS
OYSTER BAY, NOVA IORQUE: AGOSTO DE 1939
Dorothy Lauterbach considerava a sua imponente mansão de pedra a mais bela da North Shore. A maioria dos seus amigos concordava, porque ela era mais rica e eles
queriam convites para as duas festas que os Lauterbach davam todos os verões - um encontro turbulento e ébrio, em junho, e uma ocasião mais meditativa, no final
de agosto, quando a temporada de verão findava num desenlace melancólico.
As traseiras da casa tinham vista para o estuário do Sound. Havia uma agradável praia de areia branca trazida de camião do Massachusetts. Da praia, partia um relvado
bem fertilizado que corria em direção às traseiras da casa, interrompido aqui e ali para orlar os requintados jardins, o campo de ténis em terra vermelha, a piscina
em azul-real.
Os empregados tinham-se levantado cedo para prepararem o bem merecido dia de inatividade da família, montando o equipamento do croquet e a rede de badminton em que
ninguém tocaria, retirando a lona protetora do barco a motor com casco de madeira, que nunca seria desamarrado da doca. Um dia, um empregado apontara corajosamente
à senhora Lauterbach a insensatez desse ritual quotidiano. A senhora Lauterbach tinha-lhe dado uma áspera reprimenda e esse hábito nunca mais fora questionado. Os
brinquedos eram colocados nos seus lugares em cada manhã, ficando abandonados com a mesma tristeza das decorações de Natal em maio, até serem cerimoniosamente retirados
ao pôr do Sol e passarem a noite outra vez guardados.
O piso térreo da casa estendia-se ao longo da água desde o jardim de inverno até à sala de estar, à sala de jantar e, finalmente, à sala Florida embora nenhum dos
outros Lauterbach compreendesse por que razão Dorothy insistia em chamá-la sala Florida quando o sol de verão na North Shore também podia ser tão quente.
A casa tinha sido comprada trinta anos antes, quando os jovens Lauterbach supunham que iriam produzir um pequeno exército como prole. Em vez disso, tiveram apenas
duas filhas que não gostavam muito da companhia uma da outra - Margaret, uma frequentadora dojef-sef bela e muito popular, e Jane. Por isso, a casa tornou-se um
lugar pacífico, de sol quente e cores suaves, onde a maioria do ruído era produzida pelo roçagar de cortinas brancas ao sabor de ligeiras brisas e a incansável busca
da perfeição em todas as coisas de Dorothy Lauterbach.
Naquela manhã - a manhã após a última festa dos Lauterbach -, as cortinas pendiam imóveis nas janelas abertas, à espera de uma brisa que nunca viria. O sol resplandecia
e uma neblina difusa pairava sobre a baía. O ar estava tenso e compacto.
No andar de cima, no seu quarto, Margaret Lauterbach-Jordan tirou a camisa de dormir e sentou-se em frente do toucador. Penteou
o cabelo rapidamente. Era de um louro quase cinza, aclarado pelo sol e curto, fora de moda. Mas era confortável e fácil de cuidar. Além disso, gostava do modo como lhe enquadrava o rosto e realçava a longa e graciosa linha do pescoço.
Olhou para o seu corpo no espelho. Tinha finalmente perdido os últimos e renitentes quilos que tinha ganho quando ficara grávida do seu primeiro filho. As estrias tinham desaparecido e o ventre ostentava um bronzeado intenso. A barriga à mostra estava na moda naquele verão e ela gostava do modo como toda a gente na North Shore tinha ficado surpreendida com a sua forma física. Apenas os seios estavam diferentes - estavam maiores, o que não a apoquentava, porque Margaret sempre se sentira pouco à vontade em relação ao tamanho deles. Os novos sutiãs daquele verão eram mais pequenos e mais rígidos, concebidos para elevar os seios. Margaret gostava deles porque Peter gostava do aspeto que lhe davam.
Vestiu um par de calças de algodão, uma blusa sem mangas, atada com um nó abaixo dos seios, e umas sandálias rasas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho
uma última vez. Era linda - sabia disso -, mas não de um modo ousado, que fizesse virar cabeças nas ruas de Manhattan. A beleza de Margaret era intemporal e subtil, perfeita para a camada social em que tinha nascido.
Pensou: E não tarda nada vais ficar outra vez uma vaca gorda!
Afastou-se do espelho e abriu as cortinas. A luz erma do sol derramou-se pelo quarto. O relvado estava um caos. A tenda era desmontada, os fornecedores embalavam as mesas e as cadeiras, a pista de dança era levantada peça por peça e retirada. A relva, anteriormente verde e exuberante, tinha ficado toda pisada. Abriu as janelas
e aspirou o aroma adocicado a champanhe derramado. Algo nisso a deixou deprimida. Hitlerpode estar a preparar-se para conquistar a Polónia, mas foi reservado um
momento esplendoroso a todos os que assistiram este sábado à noite à gala anual de agosto dada por Bratton e Dorothy Lauterbach. Margaret já quase podia escrever
ela própria as colunas sociais.
Ligou o rádio na mesinha de cabeceira e sintonizou a WNYC. "Til Never Smile Again" tocava com suavidade. Peter agitou-se, ainda a dormir. À luz brilhante do sol,
mal se conseguia distinguir a sua pele de porcelana dos lençóis brancos de cetim. Outrora, ela pensava que os engenheiros eram homens com o cabelo cortado rente,
óculos pretos com lentes grossas e um monte de lápis nos bolsos das camisas. Peter não era assim - maçãs do rosto pronunciadas, uma fina linha do maxilar, suaves
olhos verdes, cabelo quase preto. Nesse momento, deitado na cama, com a parte superior do corpo exposta, tinha o aspeto, pensava Margaret, de um Miguel Angelo tombado.
Destacava-se na North Shore, destacava-se dos rapazes de cabelos claros que tinham nascido no meio de fortunas extraordinárias e planeavam viver a vida em espreguiçadeiras.
Peter era perspicaz, ambicioso e vivo. Mostrava-se muito superior a todos os outros. Margaret gostava disso.
Lançou um olhar ao céu nublado e franziu a testa. Peter detestava dias assim em agosto. Ficaria irritável e rabugento durante todo o dia. Haveria provavelmente uma
tempestade para arruinar a viagem de regresso à cidade.
Pensou: Talvez eu devesse esperar para lhe contar as novidades.
- Levanta-te, Peter, ou vamos ouvir das boas - disse Margaret, empurrando-o com o dedo grande do pé.
- Só mais cinco minutos.
- Não temos cinco minutos, querido. Peter não se mexeu.
- Café - suplicou.
As empregadas tinham deixado café à porta do quarto. Era um hábito que Dorothy Lauterbach detestava; achava que isso fazia o corredor do andar de cima parecer o
Plaza Hotel. Mas permitia-o, se isso significasse que as crianças cumpririam a única regra dos fins de semana - que desceriam para tomar o pequeno-almoço às nove horas em ponto.
Margaret encheu uma chávena de café e entregou-a a Peter. Este deslizou sobre o cotovelo e bebeu um pouco. De seguida, sentou-se na cama e observou Margaret.
- Como é que consegues ficar tão linda dois minutos depois de saíres da cama?
Margaret sentiu-se aliviada.
- Não há dúvida de que estás de bom humor. Temi que estivesses de ressaca e fosses andar perfeitamente insuportável o dia inteiro.
- E estou mesmo de ressaca. Benny Goodman está a tocar na minha cabeça e a minha língua parece que precisa de ser barbeada. Mas não tenho nenhuma intenção de me comportar de maneira...
Fez uma pausa.
- Qual foi a palavra que utilizaste?
- Insuportável.
Ela sentou-se na borda da cama.
- Há uma coisa de que temos de falar e esta parece ser uma altura tão boa como qualquer outra.
- Hum. Parece-me sério, Margaret.
- Depende - respondeu ela, olhando-o com o seu ar brincalhão e depois fingindo-se irritada. - Mas levanta-te e veste-te. Ou não és capaz de te vestir e ouvir ao mesmo tempo?
- Sou um engenheiro altamente preparado e altamente conceituado - retorquiu Peter, obrigando-se a sair da cama, gemendo com o esforço. - Talvez consiga.
- É sobre o telefonema de ontem à tarde.
- Aquele de que não quiseste falar?
- Sim, esse. Era o doutor Shipman. Peter parou de se vestir.
- Estou grávida outra vez. Vamos ter outro filho. - Margaret baixou os olhos e pôs-se a mexer no nó da blusa. - Não planeei nada disto. Limitou-se a acontecer. O meu corpo finalmente recuperou de ter tido o Billy e, bem, a natureza tomou o seu caminho - explicou ela, voltando a olhar para ele. - Suspeitava há algum tempo, mas tinha medo de to dizer.
- E por que raio é que haverias de ter medo de mo dizer?
Mas Peter sabia a resposta à sua própria pergunta. Tinha dito a Margaret que não queria ter mais filhos até ter realizado o sonho da sua vida: abrir a sua própria empresa de engenharia. com apenas trinta e três anos, tinha granjeado a reputação de ser um dos melhores engenheiros do país. Depois de se formar em primeiro lugar no seu ano, no prestigiado Rensselaer Polytechnic Institute, foi trabalhar para a Northeast Bridge Company, a maior empresa de construção da Costa Leste. Cinco anos mais tarde, foi nomeado engenheiro-chefe, tornou-se sócio e foi-lhe atribuída uma equipa de cem pessoas. A American Society of Civil Engineering nomeou-o engenheiro do ano, em
1938, pelo seu trabalho inovador numa ponte sobre o rio Hudson, no norte do estado de Nova Iorque. A Sdentific American publicou um perfil de Peter descrevendo-o como a mente da engenharia mais promissora da sua geração. Mas ele queria mais - queria a sua própria empresa. Bratton Lauterbach tinha prometido financiar a empresa de Peter quando chegasse a altura ideal, possivelmente no ano seguinte. Mas a ameaça de guerra tinha posto um travão a tudo isso. Se os Estados Unidos fossem arrastados para a guerra, deixaria de haver dinheiro, da noite para o dia, para obras públicas de grande envergadura. A nova empresa de Peter afundar-se-ia antes de ter uma hipótese de levantar voo.
- De quanto tempo estás? - perguntou ele.
- Quase dois meses.
O rosto de Peter abriu-se num sorriso.
- Não estás aborrecido comigo? - perguntou Margaret.
- Claro que não!
- E a tua empresa e tudo aquilo que disseste sobre termos de esperar para ter mais filhos?
Beijou-a.
- Isso não importa. Nada disso importa.
- A ambição é uma coisa maravilhosa, mas não demasiada ambição. Às vezes, tens de relaxar e divertir-te, Peter. A vida não é um ensaio geral.
Peter pôs-se de pé e acabou de se vestir.
- E quando é que tencionas dizer à tua mãe?
- No momento certo. Lembras-te da reação dela quando eu fiquei grávida do Billy. Pôs-me maluca. Tenho muito tempo para lhe dizer.
Peter sentou-se junto dela, na cama.
- Vamos fazer amor antes do pequeno-almoço.
- Não podemos, Peter. A mãe vai matar-nos se não descermos. Ele beijou-lhe o pescoço.
- O que foi que disseste sobre a vida não ser um ensaio geral? Ela fechou os olhos e a sua cabeça deslizou para trás.
- Isso não é justo. Estás a deturpar as minhas palavras.
- Não, não estou, estou a beijar-te.
- Sim...
- Margaret!
A voz de Dorothy Lauterbach ecoou pelas escadas acima.
- Estamos a ir, mãe.
- Quem me dera - murmurou Peter, seguindo-a depois para o andar de baixo a fim de tomar o pequeno-almoço.
Walker Hardegen juntou-se-lhes para o almoço junto à piscina. Sentaram-se debaixo do guarda-sol: Bratton e Dorothy, Margaret e Peter, Jane e Hardegen. Uma brisa
húmida e inconstante soprava do Sound. Hardegen era o braço direito de Bratton Lauterbach no banco. Era alto e largo de peito e ombros, e a maioria das mulheres
achava que ele se parecia com Tyrone Power. Era um homem de Harvard e durante o seu último ano tinha marcado um touchdown no jogo com Yale. Os seus tempos de futebol americano tinham-no deixado
com um joelho arruinado e ligeiramente coxo, o que de certo modo o tornava ainda mais atraente. Tinha o sotaque indolente de New England e sorria facilmente.
Pouco tempo depois de Hardegen ter chegado ao banco, convidou Margaret para sair e tiveram vários encontros. Hardegen queria que a relação continuasse, mas Margaret não quis. Terminou tudo discretamente, mas ainda via Walker com regularidade em festas e continuaram amigos. Seis meses mais tarde, conheceu Peter e apaixonou-se. Hardegen ficou fora de si. Uma noite no Copacabana, um pouco bêbado e com muitos ciúmes, acercou-se de Margaret e implorou-lhe que voltasse a andar com ele. Quando ela recusou, agarrou-a bruscamente pelo ombro e abanou-a. Pela expressão gelada no seu rosto, Margaret tornou claro que lhe destruiria a carreira se ele não acabasse com o seu comportamento infantil.
O incidente ficou entre eles. Nem mesmo Peter sabia. Hardegen rapidamente ascendeu nas fileiras do banco e tornou-se o executivo de elevada posição em quem Bratton depositava mais confiança. Margaret notava que existia uma tensão silenciosa entre Hardegen e Peter, uma competitividade natural. Ambos eram jovens, bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. A situação tinha piorado um pouco antes do verão, quando Peter descobriu que Hardegen se opunha ao empréstimo para a sua empresa de engenharia.
- Eu não sou grande adepto de Wagner, especialmente no clima atual - disse Hardegen, fazendo uma pausa para dar um gole no vinho branco gelado, enquanto toda a gente ria do seu comentário. Mas tem mesmo de ir ao Metropolitan ver o Herbert Janssen no Tannhàuser. É maravilhoso.
- Tenho ouvido falar muitíssimo bem dessa ópera - respondeu Dorothy.
Ela adorava falar de ópera, teatro, livros e filmes novos. Hardegen, que conseguia ver e ler tudo apesar de uma imensa carga de trabalho no banco, fazia-lhe a vontade. As artes eram um tema seguro, ao contrário de assuntos familiares e de mexericos, que Dorothy deplorava.
- Vimos a Ethel Merman no novo musical do Cole Porter disse Dorothy, enquanto o primeiro prato, uma salada fria de camarão, era servido. - Não me lembro agora do título.
- Dubany Was a Laãy - interveio Hardegen. - Adorei. Hardegen continuou a falar. Na véspera, tinha ido a Forest Hills
à tarde e visto Bobby Riggs ganhar o jogo que estava a disputar. Achava que Riggs seria garantidamente o vencedor do Open desse ano. Margaret observou a mãe, que observava Hardegen. Dorothy adorava Hardegen, tratando-o praticamente como um membro da família. Tinha tornado claro que preferia Hardegen a Peter. Hardegen era oriundo de uma família rica e conservadora do Maine, não tão rica quanto os Lauterbach, mas que andava lá perto, o que era reconfortante. Peter viera de uma família irlandesa da classe média baixa e crescera na zona ocidental de Manhattan. Podia ser um engenheiro brilhante, mas nunca seria um dos nossos. A disputa ameaçou destruir a relação de Margaret com a mãe. Foi terminada por Bratton, que não iria tolerar objeções ao marido que a filha tinha escolhido. Margaret tinha casado com Peter, numa cerimónia de conto de fadas na St. James' Episcopal Church, em junho de 1935. Hardegen foi um dos seiscentos convidados. Dançara com Margaret durante a receção e comportara-se como um cavalheiro. Até ficou para se despedir do casal antes da lua de mel de dois meses pela Europa. Foi como se o incidente no Copa nunca tivesse acontecido.
Os empregados trouxeram o almoço - um prato frio de salmão estufado - e a conversa mudou inevitavelmente para a guerra iminente na Europa.
Bratton perguntou:
- Há alguma maneira de conseguir parar Hitler neste momento ou a Polónia vai tornar-se a província mais a leste do Terceiro Reich?
Hardegen, advogado e um sagaz investidor, tinha tomado a responsabilidade de desembaraçar o banco dos seus investimentos arriscados na Alemanha e na Europa. Dentro do banco, era tratado carinhosamente por "o nosso nazi" devido ao nome, ao seu alemão perfeito e às viagens frequentes a Berlim. Mantinha igualmente uma rede de excelentes contactos em Washington e funcionava como o principal agente dos serviços de informação do banco.
- Falei com um amigo esta manhã. Ele faz parte da equipa do Henry Stimson, no Ministério da Guerra -- disse Hardegen. - Quando Roosevelt regressou a Washington depois do cruzeiro a bordo do
Tuscaloosa, Stimson encontrou-se com ele na Union Station e foram juntos para a Casa Branca. Quando Roosevelt o questionou acerca da situação na Europa, Stimson respondeu que os dias de paz podiam agora ser contados pelos dedos das mãos.
- Roosevelt regressou a Washington há uma semana - disse Margaret.
- É verdade. Faz as contas. E penso que Stimson estava a ser otimista. Acho que a guerra deve estar por horas.
- Mas então e a comunicação a que o Times se refere na edição de hoje? - perguntou Peter.
Hitler tinha enviado uma mensagem ao Reino Unido na noite anterior e o Times sugeria que isso poderia abrir caminho a uma solução negociada para a crise polaca.
- Ele está a protelar - respondeu Hardegen. - Os alemães têm dezasseis divisões ao longo da fronteira polaca à espera da ordem para avançar.
- Então de que é que Hitler está à espera? - estranhou Margaret.
- De uma desculpa.
- com certeza que os polacos não lhe vão dar uma desculpa para invadir.
- Não, claro que não. Mas isso não vai parar Hitler.
- O que é que está a sugerir, Walker? - indagou Bratton.
- Hitler vai inventar um motivo para atacar, uma provocação que lhe permita invadir sem uma declaração de guerra.
- E os britânicos e os franceses? - perguntou Peter. - Vão fazer jus aos seus compromissos e declarar guerra à Alemanha se a Polónia for atacada?
- Creio que sim.
- Não conseguiram deter Hitler na Renânia, na Áustria ou na Checoslováquia - afirmou Peter.
- Sim, mas com a Polónia é diferente. Agora, o Reino Unido e a França compreendem que é preciso tomar medidas em relação a Hitler.
- E quanto a nós? - interveio Margaret. - Podemos ficar de fora?
- Roosevelt continua a afirmar que se quer manter à margem
- respondeu Bratton -, mas não acredito nele. Se a Europa inteira
for arrastada para a guerra, duvido que sejamos capazes de ficar de fora por muito tempo.
- E o banco? - continuou Margaret.
- Estamos a cessar todos os nossos negócios com parceiros alemães - respondeu Hardegen. - Se houver uma guerra, haverá muitas outras oportunidades de investimento. Esta guerra pode ser exatamente do que nós precisamos para arrancar o país da Depressão de uma vez por todas.
- Ah, não há nada melhor do que retirar lucro da morte e da destruição - disse Jane.
Margaret olhou com severidade para a irmã mais nova e pensou: típico da Jane. Gostava de se apresentar como uma iconoclasta; uma intelectual sombria e taciturna, crítica da sua classe e de tudo o que ela representava. Ao mesmo tempo, frequentava festas sem parar e gastava o dinheiro do pai como se o poço estivesse a ponto de secar. com trinta anos, não tinha meios de subsistência e nenhumas perspetivas de casamento.
- Oh, Jane, andaste a ler Marx outra vez? - perguntou Margaret em tom de brincadeira.
- Margaret, por favor - disse Dorothy.
- Jane passou algum tempo em Inglaterra, há uns anos - continuou Margaret, como se não tivesse ouvido o apelo da mãe para que houvesse paz. - Tornou-se uma grande comunista nessa altura, não foi, Jane?
- Tenho direito a ter uma opinião, Margaret - disparou Jane. Hitler não manda nesta casa.
- Acho que também gostaria de me tornar comunista - disse Margaret. - O verão tem sido bastante aborrecido, com toda esta conversa acerca da guerra. Converter-me ao comunismo seria uma maneira agradável de mudar de rotina. Os Hutton vão dar um baile de máscaras no próximo fim de semana. Podíamos ir disfarçadas de Lenine e Estaline. Depois da festa, podemos ir para North Fork coletivizar todas as quintas. Vai ser muito divertido.
Bratton, Peter e Hardegen desataram a rir às gargalhadas.
- Obrigado, Margaret - disse Dorothy com severidade. - Entretiveste-nos a todos o suficiente para o resto do dia.
A conversa acerca da guerra tinha ido longe demais. Dorothy esticou a mão e tocou no braço de Hardegen.
- Walker, tenho tanta pena que não tenha podido vir à nossa festa ontem à noite. Foi maravilhosa. Deixe-me contar-lhe tudo.
O luxuoso apartamento na Quinta Avenida com vista para o Central Park tinha sido uma prenda de casamento de Bratton Lauterbach. Às sete da noite, Peter Jordan estava à janela. Uma tempestade tinha-se estendido por toda a cidade. No parque, brilhavam relâmpagos sobre as copas das árvores de um verde-profundo. O vento impelia a chuva contra o vidro. Peter tinha regressado sozinho à cidade porque Dorothy insistira para que Margaret comparecesse a uma festa em casa de Edith Blakemore. Margaret estava naquele momento a voltar para a cidade, trazida por Wiggins, o motorista dos Lauterbach. E agora iriam ser apanhados pelo mau tempo.
Peter esticou o braço e lançou uma olhadela ao relógio pela quinta vez em cinco minutos. Tinha ficado de se encontrar com o chefe da comissão responsável pelas estradas e pontes da Pennsylvania, no Stork Club, para um jantar às sete e meia. A Pennsylvania estava a receber propostas e projetos para uma nova ponte sobre o rio Allegheny. O patrão de Peter queria que ele fechasse o negócio nessa noite. Era muitas vezes convocado para receber clientes. Era jovem e esperto, e a sua bela mulher era filha de um dos mais poderosos banqueiros do país. Formavam um par esplêndido.
Pensou: Onde é que ela estará, raios?
Ligou para a casa de Oyster Bay e falou com Dorothy.
- Não sei o que lhe dizer, Peter. Ela já saiu há muito tempo. Porventura, o Wiggins está a demorar mais por causa do mau tempo. Sabe como é o Wiggins... basta um sinal de chuva e quase que para.
- Dou-lhe mais quinze minutos. Depois, tenho de sair.
Peter sabia que Dorothy não faria conversa de circunstância, por isso desligou antes de se instalar um silêncio incómodo. Preparou um gim tónico e bebeu-o rapidamente enquanto esperava. Às 19h15, desceu no elevador e aguardou no vestíbulo enquanto o porteiro saía para enfrentar a chuva e chamava um táxi.
Quando a minha mulher chegar, peça-lhe para ir diretamente
para o Stork Club.
- Sim, senhor Jordan.
O jantar correu bem, apesar de Peter se ter levantado três vezes para telefonar para o apartamento e para a casa de Oyster Bay. Às
20h30, já não estava aborrecido, estava preocupadíssimo.
Às 20h45, Paul Delano, o chefe de mesa, dirigiu-se a Peter.
- O senhor tem uma chamada no bar.
- Obrigado, Paul.
Peter pediu licença. No bar, teve de levantar a voz acima do tinir dos copos e do ruído das conversas.
- Peter, é a Jane.
Peter ouviu a voz dela tremer.
- O que se passa?
- Temo que tenha havido um acidente.
- Onde estás?
- Estou na esquadra de polícia do condado de Nassau.
- O que aconteceu?
- Um carro meteu-se à frente deles, na autoestrada. Wiggins não conseguiu vê-lo com a chuva. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde.
- Oh, meu Deus!
- Wiggins está em muito mau estado. Os médicos não têm muita esperança que ele sobreviva.
- E a Margaret, raios?
Os Lauterbach não choravam em funerais; o luto era feito em privado. A cerimónia foi realizada na St. James' Episcopal Church, a mesma igreja em que Peter e Margaret se tinham casado quatro anos antes. O presidente Roosevelt enviou uma nota de condolências e expressou o seu pesar por não poder estar presente. Mas a maioria da alta sociedade de Nova Iorque compareceu. Bem como a maioria do mundo das finanças, ainda que os mercados estivessem em tumulto. A Alemanha tinha invadido a Polónia e o mundo estava à espera da eclosão da guerra na Europa.
Billy permaneceu junto de Peter durante as exéquias. Vestia calças curtas, um pequeno blaer e gravata. Quando a família começou a sair da igreja em fila, estendeu a mão e puxou a bainha do vestido preto da tia Jane.
- A mamã vai voltar algum dia a casa?
- Não, Billy, não vai voltar. Ela deixou-nos.
Edith Blakemore ouviu por acaso a pergunta da criança e começou a chorar.
- Que tragédia - lamentou ela. - Que tragédia sem sentido!
Margaret foi enterrada sob um céu brilhante na campa de família, em Long Island. Durante as últimas palavras do reverendo Pugh, um murmúrio atravessou os enlutados em redor da campa e depois dissipou-se.
Quando terminou, Peter regressou à limusina com o seu melhor amigo, Shepherd Ramsey. Shepherd tinha apresentado Peter a Margaret. Mesmo com o seu fato escuro sombrio, tinha o aspeto de ter acabado de sair do convés do seu veleiro.
- De que estava toda a gente a falar? - perguntou Peter. Foi bastante grosseiro.
- Houve pessoas que chegaram atrasadas e que tinham estado a ouvir as notícias no rádio do carro - disse Shepherd. - O Reino Unido e a França acabaram de declarar guerra à Alemanha.
TRÊS
LONDRES: MAIO DE 1940
O professor Alfred Vicary desapareceu sem explicação do University College London, na terceira sexta-feira de maio de 1940. Uma secretária chamada Lillian Walford
foi o último membro do staffa. ver Vicary antes do seu abrupto desaparecimento. Numa rara indiscrição, revelou aos outros professores que a última chamada telefónica
que Vicary recebera tinha sido do novo primeiro-ministro. Na verdade, ela até tinha falado pessoalmente com o senhor Churchill.
- Aconteceu a mesma coisa com Masterman e Cheney em Oxford - disse tom Perrington, um egiptólogo, enquanto dava uma vista de olhos à entrada no livro de registos
telefónicos. - Chamadas misteriosas, homens de fatos escuros. Suspeito que o nosso caro amigo Alfred tenha passado para trás do véu.
Depois acrescentou sotto você:
- Para o interior da Acrópole secreta.
O sorriso lânguido de Perrington não conseguia esconder a sua desilusão, comentaria posteriormente Miss Walford. Era uma pena que o Reino Unido não estivesse em guerra com os antigos egípcios
- talvez Perrington também tivesse sido escolhido.
Vicary passou as suas últimas horas no seu gabinete abarrotado e desorganizado, com vista para Gordon Square, dando os últimos retoques num artigo para o Sundoy Times. A atual crise poderia ter
sido evitada, sugeria o texto, se o Reino Unido e a França tivessem atacado a Alemanha em 1939, quando Hitler ainda estava absorto com a Polónia. Sabia que seria severamente criticado devido ao atual clima; o último artigo que escrevera tinha sido condenado como chunhilliano e belicista por uma publicação da extrema-direita
pró-nazi. Vicary esperava no seu íntimo que o novo artigo fosse recebido de um modo semelhante.
Era um glorioso dia de fim de primavera - sol brilhante, mas tempo dececionantemente fresco. Vicary, um jogador de xadrez talentoso, ainda que relutante, apreciava
o logro. Levantou-se, vestiu um casaco de malha e depois retomou o trabalho.
O clima agradável dava uma imagem falsa da realidade. O Reino Unido era uma nação sitiada - sem defesas, assustada, titubeando em total confusão. Foram elaborados planos para evacuar a família real para o Canadá. O governo pediu que o outro tesouro nacional do Reino Unido, as suas crianças, fosse enviado para o campo, onde estariam a salvo dos bombardeiros da Luftwaffe.
Através da utilização de hábil propaganda, o governo tinha tornado a população extremamente consciente da ameaça colocada por espiões e quinta-colunistas. Estava agora a sofrer as consequências. Os regimentos de polícia estavam a ser soterrados por relatórios sobre estranhos, indivíduos de ar esquisito ou cavalheiros com aspeto de alemães. Os cidadãos escutavam conversas empabs, ouvindo o que queriam e comunicando depois à polícia. Relatavam sinais de fumo, luzes a piscarem na costa e espiões paraquedistas. Um rumor atravessou o país, segundo o qual agentes alemães se tinham feito passar por freiras durante a invasão dos Países Baixos; de repente, as freiras tornaram-se suspeitas. A maioria só saía do santuário murado dos seus conventos quando era absolutamente necessário.
Um milhão de homens demasiado novos, demasiado velhos ou demasiado débeis para ingressar nas forças armadas apressou-se a alistar-se na Guarda Territorial. Não havia espingardas para a guarda, por isso armavam-se com o que podiam - caçadeiras, espadas, cabos de vassoura, clavas medievais, facas nepalesas, até tacos de golfe. Aqueles que por algum motivo não conseguiam encontrar a arma adequada recebiam ordens para andar com pimenta para lançar aos olhos dos soldados alemães saqueadores.
Vicary, um reputado historiador, observou a agitação dos preparativos da sua nação para a guerra com um misto de enorme orgulho e silencioso desânimo. Ao longo dos anos trinta, os seus artigos de jornal e conferências tinham avisado que Hitler representava uma séria ameaça à Inglaterra e ao resto do mundo. Mas o Reino Unido, esgotado pela última guerra com os alemães, não tinha estado com disposição para ouvir falar de outra. Mas, naquele preciso momento, o exército alemão avançava pela França com a tranquilidade de um passeio automobilístico de fim de semana. Em breve, Adolf Hitler estaria no topo de um império que se estenderia do Círculo Polar Ártico até ao Mediterrâneo. E o Reino Unido, insuficientemente armado e mal preparado, encontrava-se sozinho contra ele.
Vicary terminou o artigo, pousou o lápis e leu-o desde o início. Lá fora, o Sol estava a pôr-se num mar alaranjado sobre Londres. O cheiro de flores primaveris que floresciam nos jardins da Gordon Square entrava pela janela. A tarde tinha arrefecido; era provável que as flores dessem início a uma crise de espirros. Mas a brisa sabia-lhe maravilhosamente no rosto e, por alguma razão, fazia o chá saber melhor. Deixou a janela aberta e desfrutou.
A guerra estava a fazê-lo pensar e agir de um modo diferente. Estava a fazê-lo olhar mais afetuosamente para os seus compatriotas, que normalmente observava com uma atitude próxima do desespero. Espantava-se com o facto de serem capazes de dizer piadas enquanto entravam em fila indiana no abrigo da estação de metro e com o modo como cantavam nos pubs para esconderem o medo. Levou algum tempo até que Vicary reconhecesse os seus sentimentos pelo que eles eram - patriotismo. Ao longo de uma vida de estudo, tinha concluído que aquela era a força mais destrutiva do planeta. Mas, naquele momento, sentia a agitação do patriotismo no seu próprio peito e não estava envergonhado. Nós somos bons e eles são maus. O nosso nacionalismo é justificado.
Vicary tinha decidido que queria contribuir. Queria fazer algo em vez de observar o mundo através da sua janela bem protegida.
Às seis da tarde, Lillian Walford entrou sem bater. Era alta, com pernas de lançador de pesos e óculos redondos que ampliavam um olhar inabalável. Começou a pôr papéis em ordem e a fechar livros com a tranquila eficiência de uma enfermeira noturna.
Nominalmente, Miss Walford trabalhava para todos os professores do departamento. Mas ela acreditava que Deus, na sua infinita sabedoria, confiava a cada pessoa uma alma para dela cuidar. E se havia uma pobre alma a precisar de que cuidassem dela, era o professor Vicary. Durante dez anos, tinha orientado os pormenores da vida simples de Vicary com uma precisão militar. Certificava-se de que havia comida na casa dele em Draycott Place, em Chelsea. Assegurava-se de que as camisas lhe eram entregues e continham a quantidade exata de goma - não em demasia, pois isso irritar-lhe-ia a pele suave do pescoço. Tratava-lhe das contas e censurava-o regularmente sobre o estado da sua conta bancária mal gerida. Contratava novas empregadas com uma regularidade sazonal porque os ataques de mau feitio dele afugentavam as anteriores. Apesar da proximidade das suas relações profissionais, nunca se tratavam pelos nomes de batismo. Ela era Miss Walford e ele, o professor Vicary. Ela preferia ser vista como uma assistente pessoal e, de maneira pouco característica, Vicary fazia-lhe a vontade.
Miss Walford tocou de raspão em Vicary, ao passar, e fechou a janela, lançando-lhe um olhar de censura.
- Se não se importa, professor Vicary, vou-me embora para casa.
- Claro, Miss Walford.
Ele olhou para ela. Era um homem pequeno, inquieto e com ar de estudioso, careca no cimo da cabeça, à exceção de alguns fios de cabelo grisalho despenteados. Os seus maltratados óculos em meia-lua repousavam-lhe na ponta do nariz. Estavam manchados com dedadas por causa do hábito de os retirar e voltar a pôr sempre que se sentia nervoso. Usava um casaco de tweed fustigado pelas intempéries e uma gravata manchada de chá, escolhida com desleixo. O seu modo de andar era objeto de piadas na universidade e, sem que tivesse conhecimento, alguns dos seus alunos tinham aprendido a imitá-lo na perfeição. Um joelho destruído durante a guerra anterior tinha-o deixado com um coxear mecanizado e as articulações presas - um soldado de brincar que já não funcionava em condições, pensava Miss Walford. A cabeça tinha tendência a inclinar-se para baixo a fim de lhe permitir ver por cima dos óculos e ele parecia estar sempre a correr para algum lugar onde preferiria não estar.
O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas
de cordeiro em sua casa - disse Miss Walford, franzindo o sobrolho a uma confusa pilha de papéis como se se tratasse de uma criança desobediente. - Disse que poderia ser o último cordeiro que se conseguiria arranjar nos próximos tempos.
- Creio bem que sim - respondeu Vicary. - Há várias semanas que já não aparece carne na ementa do Connaught.
- Isto está a tornar-se um pouco absurdo, não acha, professor Vicary? Hoje, o governo decretou que os tejadilhos dos autocarros londrinos fossem pintados do cinzento dos couraçados - revelou Miss Walford. -- Acham que será mais difícil para a Luftwaffe bombardeá-los.
- Os alemães são implacáveis, Miss Walford, mas mesmo assim não vão perder tempo a bombardear autocarros de passageiros.
- E também decretaram que não devíamos abater pombos-correios. Fazia o favor de me explicar como é que eu sou capaz de distinguir um pombo-comw de um pombo normal?
- Nem lhe consigo dizer quantas vezes me sinto tentado a abater pombos - atirou Vicary.
- Já agora, também tomei a liberdade de lhe encomendar molho de hortelã - anunciou Miss Walford. - Sei que comer uma costeleta de cordeiro sem molho de hortelã lhe pode dar cabo da semana.
- Obrigado, Miss Walford.
- O seu editor ligou para dizer que as provas do novo livro estão prontas para revisão.
- E com apenas quatro semanas de atraso. Um recorde para Cagley. Lembre-me de procurar um novo editor, Miss Walford.
- Sim, professor Vicary. Miss Simpson ligou para dizer que não estará disponível para jantar consigo esta noite. A mãe adoeceu. Pediu-me para lhe dizer que não é nada de grave.
- Raios - murmurou Vicary.
Andava ansioso por se encontrar com Alice Simpson. Era a relação mais séria que tinha com uma mulher em muito tempo.
- É tudo?
- Não, o primeiro-ministro telefonou.
- O quê? Por que raio não me avisou?
- O senhor deixou instruções rigorosas para não ser incomodado. Quando lhe expliquei isso, o senhor Churchill foi bastante compreensivo. Diz que nada o transtorna mais do que ser interrompido quando está a escrever.
Vicary franziu o sobrolho.
- A partir deste momento, Miss Walford, tem a minha explícita permissão para me interromper quando o senhor Churchill telefonar.
- Sim, professor Vicary - respondeu ela, ainda com a plena convicção de que tinha agido corretamente.
- O que disse o primeiro-ministro?
- Que conta consigo para o almoço de amanhã em Chartwell.
Vicary variava de percurso quando regressava a casa, de acordo com a sua disposição. Por vezes, preferia abrir caminho por uma rua comercial movimentada ou passar
pelo meio do rebuliço da multidão no Soho. Noutras noites, deixava as vias principais e percorria as tranquilas ruas residenciais, ora detendo-se a contemplar um
exemplar de arquitetura georgiana esplendidamente iluminado, ora retardando o passo para ouvir os sons de música, risos e tinir dos copos provenientes de uma festa
divertida.
Naquela noite, ia andando indolentemente por uma rua sossegada durante os últimos resquícios do crepúsculo.
Antes da guerra, passara a maioria das noites a fazer investigação na biblioteca, percorrendo os corredores entre as estantes como um fantasma até altas horas da
noite. Numa ou noutra noite, adormecia. Miss Walford deu instruções aos porteiros noturnos - quando o encontrassem deveriam acordá-lo, enfiar-lhe o impermeável e enviá-lo para casa.
O blackout tinha modificado essa situação. Todas as noites, a cidade mergulhava numa profunda escuridão. Os londrinos de gema perdiam-se nas ruas em que andavam
há anos. Para Vicary, que sofria de cegueira noturna, o blackout tornava a navegação próxima do impossível. Imaginava que as coisas deveriam ter sido assim dois milénios antes, quando Londres era um aglomerado de cabanas em madeira ao longo das margens pantanosas do rio Tamisa. O tempo tinha-se
dissipado, os séculos, recuado, e o progresso inegável da humanidade fora interrompido pela ameaça dos bombardeiros de Góring. Todas as tardes, Vicary fugia da universidade
e apressava-se em direção a casa antes que ficasse encalhado nas ruas secundárias de Chelsea. Uma vez seguro dentro de casa, bebia os dois copos de Borgonha da praxe e devorava o prato de costeletas e ervilhas que a empregada lhe deixava num fogão quente. Se não lhe preparassem as refeições, passaria fome, já que ainda se debatia com as complexidades da moderna cozinha inglesa.
Depois do jantar, um pouco de música, uma peça de teatro na telefonia, ou mesmo um romance policial, uma obsessão privada que não revelava a ninguém. Vicary gostava de mistérios; gostava de enigmas. Gostava de utilizar as suas capacidades de raciocínio e dedução para resolver os casos muito antes de o autor fazer isso por ele. Também gostava dos estudos de personagem nos mistérios e muitas vezes encontrava paralelos no seu próprio trabalho - a razão pela qual, por vezes, pessoas boas faziam coisas más.
Adormecer era um processo gradual. Começava na sua cadeira preferida, com o candeeiro de leitura ainda aceso. Depois, mudava-se para o sofá. De seguida, normalmente nas últimas horas antes do amanhecer, subia para o quarto, no andar de cima. Por vezes, a concentração necessária para despir a roupa deixava-o demasiado desperto para voltar a adormecer e, por isso, ficava acordado a pensar, à espera do amanhecer cinzento e do riso malicioso da velha pega que chapinhava todas as manhãs na fonte do jardim, lá fora.
Tinha dúvidas se iria conseguir dormir grande coisa nessa noite
- ainda por cima, depois da convocatória de Churchill.
Não era invulgar Churchill ligar-lhe para o gabinete, era mais o timing. Vicary e Churchill eram amigos desde o outono de 1935, quando Vicary assistira a uma conferência dada por Churchill em Londres. Churchill, confinado à desolação dos lugares de trás do parlamento britânico, era uma das poucas vozes no Reino Unido a alertar para a ameaça colocada pelos nazis. Nessa noite, afirmara que a Alemanha se estava a rearmar a um ritmo frenético, que Hitler pretendia combater assim que fosse capaz. A Inglaterra tinha de se rearmar imediatamente, defendeu ele, ou enfrentar ser escravizada pelos nazis.
O público pensou que Churchill tinha perdido a cabeça e apupou-o sem misericórdia. Churchill interrompera abruptamente as suas observações e regressara a Chartwell, mortificado.
Naquela noite, Vicary tinha-se deixado ficar ao fundo do auditório a assistir ao espetáculo. Também ele andava a observar a Alemanha cuidadosamente desde que Hitler ascendera ao poder. Tinha previsto discretamente perante os colegas que a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra dentro de pouco tempo, talvez ainda antes do final da década. Ninguém prestara atenção. Havia muita gente que pensava que Hitler era um bom contrapeso à União Soviética e que devia ser apoiado. Vicary achava que isso era um absurdo total. À semelhança do resto do país, considerava Churchill um pouco aventureiro, um tanto belicoso. Mas em se tratando dos nazis, Vicary achava que Churchill tinha toda a razão.
Quando regressou a casa, Vicary sentou-se à secretária e escreveu-lhe rapidamente um bilhete, com uma única frase: Assisti à sua conferência em Londres e concordo com cada palavra que proferiu. Cinco dias mais tarde, chegou um bilhete de Churchill a casa de Vicary: Meu Deus, afinal não estou sozinho. O grande Vicary está ao meu lado! Por favor, conceda-me a honra de vir almoçar a Chartwell este domingo.
O primeiro encontro entre ambos foi um sucesso. Vicary foi imediatamente incorporado no círculo de académicos, jornalistas, funcionários públicos e oficiais que iria aconselhar e fornecer informações a Churchill acerca da Alemanha durante o resto da década. Winston forçava Vicary a ouvi-lo enquanto percorria o antigo piso de madeira da sua biblioteca e explicava as suas teorias acerca das intenções alemãs. Por vezes, Vicary discordava, forçando Churchill a clarificar os seus pontos de vista. Por vezes, Churchill perdia a calma e recusava voltar atrás. Vicary mantinha-se firme. A amizade entre ambos foi cimentada desse modo.
Naquele preciso momento, caminhando através da escuridão crescente, Vicary pensou na convocatória de Churchill para ir até Chartwell. Não era certamente apenas para uma conversa amistosa.
Vicary virou para uma rua de casas brancas geminadas, de estilo georgiano, pintadas de rosa pelos últimos minutos do crepúsculo primaveril. Caminhou lentamente, como se estivesse perdido, com uma
mão a agarrar a mala, pesada como chumbo, e a outra enfiada no bolso do impermeável. Uma mulher atraente, aproximadamente da sua idade, emergiu da soleira de uma
porta. Um homem elegante e de ar aborrecido seguia-a. Mesmo ao longe - mesmo com a sua terrível visão -, conseguiu perceber que era Helen. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar - a postura ereta, o pescoço alto, o caminhar desdenhoso, como se estivesse sempre prestes a pisar qualquer coisa desagradável. Vicary viu-os entrar para o
banco de trás de um carro conduzido por um motorista. O carro arrancou, afastando-se do passeio, e avançou na sua direção. Dá meia-volta, meu grande parvo! Não olhes
para ela! Mas foi incapaz de seguir o seu próprio conselho. Quando o carro passou por ele, virou a cabeça e olhou para o banco de trás. Ela viu-o - por um instante,
apenas -, mas foi o suficiente. Embaraçada, baixou imediatamente os olhos. Vicary, através do vidro traseiro do carro, observou-a a virar-se e a sussurrar alguma
coisa ao marido que o fez soltar uma gargalhada, atirando a cabeça para trás.
Idiota! Idiota dum raio!
Vicary recomeçou a andar. Olhou em frente e observou o carro a desaparecer ao virar da esquina. Interrogou-se para onde iriam a outra festa, talvez ao teatro. Porque
não a esqueço simplesmente? já passaram vinte e cinco anos, por amor de Deus! E depois pensou:
- E porque é que o teu coração está a bater como se fosse a primeira
vez que a visses?
Continuou a andar o mais rapidamente que pôde até ficar cansado e sem fôlego. Pensou em qualquer coisa que lhe viesse à mente - tudo menos ela. Chegou a um parque infantil e ficou parado junto ao portão de ferro, a olhar fixamente para as crianças através das grades. Tinham roupa a mais para maio e andavam aos encontrões umas
às outras, como minúsculos pinguins roliços. Um qualquer espião alemão que estivesse à espreita iria certamente aperceber-se de que muitos londrinos tinham ignorado
o aviso do governo e mantido os filhos junto de si, na cidade. Vicary, normalmente indiferente a crianças, manteve-se ao portão, a ouvir, hipnotizado, pensando que
não havia nada tão reconfortante como o som dos pequeninos a brincar.
O carro de Churchill esperava-o na estação. Acelerou, com a capota descida, através dos campos verdes e ondulados do sudeste de Inglaterra. Estava fresco, corria uma brisa e parecia que tudo estava em flor. Vicary ia sentado no banco de trás, com uma mão a manter o casaco fechado e a outra a segurar o chapéu na cabeça. O
vento soprava por cima do descapotável como o temporal sobre a proa de um navio. Pensou se haveria de pedir ao condutor para parar o carro e subir a capota. Foi
então que começou o inevitável ataque de espirros, primeiro como se fossem disparos esporádicos de um atirador furtivo, depois progredindo para uma autêntica barragem de artilharia. Vicary não conseguia decidir que mão libertar para cobrir a boca. Virava a cabeça repetidamente ao espirrar, fazendo com que as pequenas rajadas de humidade e germes fossem levadas pelo vento.
O condutor viu os constantes movimentos de Vicary pelo retrovisor e ficou alarmado.
- Quer que pare o carro, professor Vicary? - perguntou, levantando o pé do acelerador.
O ataque de espirros acalmou e por fim Vicary foi capaz de apreciar a viagem. Em regra, não se interessava pelo campo. Era um londrino. Gostava das multidões, do ruído e do trânsito e tendia a ficar desorientado em espaços abertos. Também detestava a tranquilidade das noites. A sua mente vagueava e ele ficava convencido de que havia assaltantes deambulando na escuridão. Mas, naquele momento, recostou-se no banco do carro, maravilhado com a beleza natural de Inglaterra.
O carro virou para o caminho de entrada de Chartwell. A pulsação de Vicary aumentou quando saiu do carro. Ao aproximar-se da porta, esta abriu-se e lá estava o homem de Churchill, Inches, para o cumprimentar.
- bom dia, professor Vicary. O senhor primeiro-ministro tem estado a aguardar a sua chegada com muitíssima ansiedade.
Vicary entregou o casaco e o chapéu e entrou. Cerca de uma dúzia de homens e um par de raparigas estavam a trabalhar na sala de estar, alguns de uniforme, outros,
como Vicary, à civil. Falavam num tom abafado e confessional, como se todas as notícias fossem mas.
Um telefone tocou, depois outro. Todos eram atendidos ao primeiro toque.
- Espero que tenha tido uma viagem agradável - estava a dizer Inches.
- Maravilhosa - respondeu Vicary, mentindo educadamente.
- Como é hábito, o senhor Churchill está atrasado esta manhã
- disse Inches. De seguida, acrescentou em tom de confidência: Ele estabelece uma agenda impossível de cumprir e todos nós passamos o resto do dia a tentar respeitá-la.
- Compreendo, Inches. Onde quer que eu espere?
- Na verdade, o senhor primeiro-ministro está muito ansioso por vê-lo esta manhã. Pediu para o levar ao andar de cima assim que o senhor chegasse.
- Ao andar de cima?
Inches bateu suavemente e abriu a porta da casa de banho. Churchill estava estendido na banheira, com um charuto na mão e o segundo copo de uísque do dia pousado numa pequena mesa de fácil acesso. Inches anunciou Vicary e retirou-se.
- Vicary, meu caro amigo - disse ele, colocando de seguida a boca ao nível da água e fazendo bolhas. - Que bom ter vindo.
Vicary achou opressiva a temperatura quente da casa de banho. E também achou difícil não se rir perante o enorme homem rosado a chapinhar na banheira como uma criança.
Despiu o casaco de tweed e, com relutância, sentou-se na sanita.
- Queria trocar umas palavras consigo em privado... foi por isso que o convidei a vir aqui à minha toca. - Churchill franziu os lábios.
- Vicary, devo admitir desde já que estou aborrecido consigo.
Vicary endireitou-se.
Churchill abriu a boca para continuar, mas deteve-se. Um olhar perplexo e derrotado despontou-lhe no rosto.
- Inches! - berrou Churchill.
Inches entrou.
- Sim, senhor Churchill?
- Inches, creio que a água da minha banheira baixou dos 40 graus. É capaz de verificar o termómetro?
Arregaçando a manga, Inches retirou o termómetro da água. Estudou-o como um arqueólogo a examinar um fragmento de osso antigo.
- Ah, tem razão, senhor. A temperatura da água caiu para os 39 graus. Devo aquecê-la?
- Claro.
Inches abriu a torneira da água quente e deixou-a correr por instantes. Churchill sorriu quando a água da banheira atingiu a temperatura adequada.
- Muito melhor, Inches.
Churchill virou-se de lado. A água caiu em cascata por cima do bordo da banheira, molhando a perna das calças de Vicary.
- O senhor primeiro-ministro estava a dizer?
- Ah, sim, estava a dizer, Vicary, que estou aborrecido consigo. Nunca me tinha dito que quando era novo era bastante bom a jogar xadrez. Batia todos os jovens promissores em Cambridge, segundo me disseram.
Vicary, absolutamente confuso, respondeu:
- Peço desculpa, senhor primeiro-ministro, mas o xadrez nunca foi tema que surgisse em nenhuma das nossas conversas.
- Brilhante, implacável, arriscado: foi como as pessoas me descreveram o seu jogo. - Churchill calou-se por uns instantes e, a seguir, disse: - E também fez parte do Corpo dos Serviços Secretos durante a Primeira Guerra Mundial.
- Estive apenas na Unidade de Motocicletas. Fazia de correio, nada mais.
Churchill desviou o olhar de Vicary para o teto, fitando-o.
- Em 1250 a.C., o Senhor disse a Moisés que enviasse agentes para espiar a terra de Canaã. O Senhor teve a amabilidade de dar alguns conselhos a Moisés sobre como recrutar os espiões. Apenas os melhores e mais brilhantes homens eram capazes de uma tarefa tão importante, disse o Senhor, e Moisés cumpriu as instruções à risca.
- Isso é verdade, senhor primeiro-ministro - disse Vicary. Mas também é verdade que a informação recolhida pelos espiões de Moisés foi mal utilizada. Em resultado disso, os israelitas passaram mais quarenta anos a percorrer o deserto.
Churchill sorriu.
- Já devia ter aprendido há muito a nunca discutir consigo. O Alfred tem uma mente ágil. Sempre admirei isso.
- O que quer o senhor que eu faça?
- Quero que aceite um lugar nos serviços secretos militares.
- Mas, senhor primeiro-ministro, eu não estou qualificado para esse tipo de...
- Não há ninguém que saiba o que anda a fazer por aquelas bandas - disse Churchill, interrompendo Vicary. - Especialmente os agentes profissionais.
- Mas e os meus alunos? A minha investigação?
- Os seus alunos entrarão em breve no serviço militar, para lutar pela vida. E quanto à sua investigação, ela pode esperar. - Churchill fez uma pausa. - Conhece John Masterman e Christopher Cheney, de Oxford?
- Não me diga que eles foram convocados?
- com efeito, e não espere encontrar nenhum matemático digno desse nome em qualquer universidade - retorquiu Churchill. Foram todos abocanhados e empacotados para Bletchley Park.
- E que raio andam eles a fazer por lá?
- A tentar descobrir os códigos alemães.
Por breves instantes, Vicary fez questão de mostrar que estava a ponderar o assunto.
- Julgo que aceito.
- Otimo! - exclamou Churchill, batendo com o punho no rebordo da banheira. - Na segunda-feira, deve apresentar-se logo pela manhãzinha a Sir Basil Boothby. Ele é o chefe da divisão para a qual vai ser destacado. E também é o perfeito imbecil inglês. Opor-se-ia a mim, se pudesse, mas é demasiado estúpido para isso. Um idiota
de primeira apanha.
- Parece encantador.
- Ele sabe que eu e o Alfred somos amigos e por isso vai fazer-lhe frente. Não deixe que ele o intimide. Entendido?
- Sim, senhor primeiro-ministro.
- Preciso de alguém em quem possa confiar dentro daquele departamento. Está na altura de voltar a colocar a inteligência nos
serviços secretos militares1. Além do mais, isto será bom para si, Alfred. Está na altura de sair da sua biblioteca empoeirada e regressar ao mundo dos vivos.
Vicary foi apanhado desprevenido pela repentina intimidade de Churchill. Pensou na noite anterior, no passeio até casa, no olhar lançado ao carro de Helen.
- Sim, senhor primeiro-ministro, creio que está na altura. E o que irei fazer exatamente pelos serviços secretos militares?
Mas Churchill tinha mergulhado debaixo da linha da água e desaparecido.
1 No original, Military Intelligence; trocadilho com a palavra intettigence, que pode significar, entre outras coisas, inteligência e serviços secretos. (N. do T.)
QUATRO
RASTENBURG, ALEMANHA: JANEIRO DE 1944
O contra-almirante Wilhelm Franz Canaris era um homem pequeno e nervoso que falava com um ligeiro ceceio e possuía um humor sarcástico nas raras ocasiões em que
decidia exibi-lo. De cabelo branco e olhos azuis penetrantes, estava sentado no banco de trás de um Mercedes oficial, que se deslocava ruidosamente do aeródromo
de Rastenburg até ao búnquer secreto de Hitler, a cerca de 15 quilómetros de distância. Normalmente, Canaris evitava uniformes e aparatos militares de todo o género,
preferindo um fato escuro de homem de negócios. Mas visto que se ia encontrar com Adolf Hitler e com os mais importantes oficiais da Alemanha, envergava o seu uniforme
da Kriegsmarine por baixo do sobretudo formal.
Conhecido como a Velha Raposa tanto pelos amigos como pelos seus detratores, a personalidade distante e reservada de Canaris adequava-se na perfeição ao mundo impiedoso da espionagem. Preocupava-se mais com os seus dois dachshunds, que dormiam nesse momento aos seus pés, do que com qualquer outra pessoa, exceto a mulher, Erika, e as filhas. Quando o trabalho obrigava a viagens noturnas, reservava um segundo quarto, com camas duplas, de modo que os cães pudessem dormir confortavelmente. Quando era necessário deixá-los em Berlim, Canaris contactava constantemente os seus assessores para se certificar de que os animais tinham comido e defecado apropriadamente. Os membros da Abwehr que ousassem falar mal dos cães enfrentavam a ameaça bem real de ficarem com as carreiras destruídas
se uma palavra da sua maledicência alcançasse os ouvidos de Canaris. Educado numa villa murada em Aplerbeck, nos subúrbios de Dortmund, Wilhelm Canaris fazia parte da elite tão detestada por Adolf Hitler - filho de um barão das chaminés e descendente de italianos
emigrados para a Alemanha no século xvi. Falava as línguas dos amigos da Alemanha, bem como as dos seus inimigos - italiano, espanhol, inglês, francês e russo -, e presidia regularmente a recitais de música de câmara no salão da sua imponente casa de Berlim. Em
1933, tinha o posto de comandante de um entreposto naval no mar Báltico, em Swinemúnde, quando Hitler o escolheu inesperadamente para dirigir a Abwehr, os serviços de informação e contraespionagem do estado-maior alemão. Hitler deu instruções ao seu novo mestre espião para criar uns serviços secretos que seguissem o modelo britânico - uma ordem, afazer o seu trabalho com paixão - e Canaris assumiu formalmente o comando da agência de espionagem no dia de Ano Novo de 1934, a data do seu quadragésimo sétimo aniversário.
Esta decisão iria revelar-se uma das piores de Hitler. Desde que assumira o comando da Abwehr, Wilhelm Canaris andava embrenhado numa ação altamente arriscada - garantir ao estado-maior as informações de que necessitava para conquistar grande parte da Europa, ao mesmo tempo que utilizava os serviços como uma ferramenta para livrar a Alemanha de Hitler. Era o líder do movimento de resistência apelidado de Orquestra Negra - Schwarçe Kapelle - pela Gestapo. Um grupo muito unido de oficiais alemães, membros do governo e líderes civis, a Orquestra Negra tinha tentado, sem sucesso, derrubar o Fúhrer e negociar um acordo de paz com os Aliados. Canaris também tinha estado envolvido noutras atividades de traição. Em 1939, depois de saber dos planos de Hitler para invadir a Polónia, avisou os britânicos numa vã tentativa de os induzir à ação. Fez o mesmo em 1940, quando Hitler anunciou os seus planos para a invasão dos Países Baixos e da França.
Canaris virou-se e olhou pela janela, observando a floresta de Gõrlitz a passar diante de si - negra, silenciosa, densamente arborizada, como um cenário de conto de fadas dos irmãos Grimm. Canaris, perdido na tranquilidade das árvores cobertas de neve, pensava no
recente atentado à vida do Fúhrer. Dois meses antes, em novembro, um jovem capitão de nome Axel von dem Bussche tinha-se voluntariado para assassinar Hitler durante a inspeção de um novo sobretudo para a Wehrmacht. Bussche planeou esconder algumas granadas debaixo do casaco e, a seguir, detoná-las durante a demonstração, matando-se
e ao Fúhrer. Mas, um dia antes da tentativa de assassínio, os bombardeiros aliados destruíram o edifício onde os casacos estavam armazenados. A demonstração foi
cancelada e nunca chegou a ser reagendada.
Canaris sabia que haveria mais tentativas - mais alemães corajosos prontos a sacrificar a própria vida a fim de derrubar Hitler -, mas também sabia que o tempo fugia.
A invasão anglo-americana da Europa era uma certeza. Roosevelt tinha tornado claro que não aceitaria nada menos do que uma rendição incondicional. A Alemanha seria
destruída, tal como Canaris temera em 1933, quando as ambições messiânicas de Hitler se tinham tornado claras para ele. Também se apercebeu de que o seu ténue controlo sobre a Abwehr enfraquecia de dia para dia. Vários membros da equipa executiva de Canaris, no quartel-general da Abwehr, em Berlim, tinham sido presos pela Gestapo e acusados de traição. Os seus inimigos andavam a conspirar para se apoderarem do comando da agência de espionagem e colocar-lhe o pescoço num nó de corda de piano. Percebeu que tinha os dias contados - que a sua longa, perigosa e arriscada ação estava a chegar ao fim.
O carro oficial passou pela miríade de portões e postos de controlo, depois virou para o complexo no Wolfschanze1 de Hitler a Toca do Lobo. Os dachshunds acordaram,
ganindo nervosamente, e saltaram para o colo de Canaris. A conferência iria ter lugar na sala de mapas glacial e abafada, no búnquer subterrâneo. Canaris saiu do
carro e atravessou, com ar sombrio, o complexo. Ao fundo das escadas, encontrava-se um guarda-costas corpulento das SS, pronto para aliviar Canaris de quaisquer
armas que pudesse levar. Canaris, que evitava armas e detestava violência, abanou a cabeça e passou por ele.
1 Quartel-general de Hitler na Prússia Oriental. (N. do T.)
- Em novembro, emiti a Diretiva Número Cinquenta e Um do Fúhrer - começou a dizer Hitler sem preâmbulos, caminhando furiosamente pela sala com as mãos cruzadas atrás
das costas.
Envergava uma túnica cinzento-clara, calças pretas e botas de cano alto resplandecentes. No bolso do peito do lado esquerdo usava a Cruz de Ferro que tinha conquistado
em Ypres enquanto soldado de infantaria no Regimento List, durante a Primeira Guerra Mundial.
- A Diretiva Número Cinquenta e Um exprimia a minha convicção de que os anglo-saxões tentarão invadir o noroeste da França o mais tardar na primavera, talvez antes.
Durante os dois últimos meses, não vi nada que me fizesse mudar de opinião.
Sentado à mesa da conferência, Canaris observou o Fúhrer a pavonear-se ao redor da sala. A inclinação pronunciada de Hitler, causada pela cifose da coluna, parecia
ter piorado. Canaris interrogou-se se ele estaria finalmente a sentir a pressão. Tinha razões para isso. O que tinha dito Frederico, o Grande?Quem defende tudo, não defende nada. Hitler deveria ter prestado atenção ao conselho do seu guia espiritual, já que a Alemanha estava na mesma posição em que se encontrara durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha conseguido conquistar mais território do que o que podia defender.
A culpa era exclusivamente de Hitler - o raio do louco Canaris lançou uma olhadela ao mapa. A leste, as tropas alemãs combatiam ao longo de uma frente de 2000 quilómetros.
Qualquer esperança de uma vitória militar contra os russos tinha sido esmagada em julho, em Kursk, onde o Exército Vermelho tinha dizimado uma ofensiva da Wehrmacht e infligido baixas vertiginosas. Naquele preciso momento, o exército alemão tentava manter uma linha que se estendia desde Leninegrado até ao mar Negro. Ao longo do Mediterrâneo, a Alemanha defendia 3000 quilómetros de costa. E a ocidente Meu Deus!, pensou Canaris -, 6000 quilómetros de território que se estendia desde a Holanda até à extremidade sul da baía de Biscaia. A Festung Europa de Hitler - a Fortaleza Europa - estava dispersa e vulnerável por todos os lados.
Canaris olhou em redor para os homens sentados ao seu lado. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, comandante supremo de todas as forças alemãs a ocidente; o marechal de campo Erwin Rommel, comandante do Grupo B do Exército, no noroeste da França; o Reichsfúhrer Heinrich Himmler, líder das SS e chefe da polícia alemã. Meia dúzia dos homens mais cruéis e leais a Himmler estava de vigia, apenas no caso de algum dos membros da cúpula do Terceiro Reich decidir fazer um atentado contra a vida do Fúhrer.
Hitler parou e disse:
- A Diretiva Cinquenta e Um também mencionava a minha convicção de que já não podemos justificar a redução do nosso número de tropas a ocidente de modo a apoiar as forças que combatem os bolcheviques. No leste, a vastidão da área vai permitir-nos, como último recurso, abdicar de grandes áreas de território antes de o inimigo ameaçar a pátria alemã. Não é assim a ocidente. Se a invasão anglo-saxónica tiver êxito, as consequências serão desastrosas. Portanto, é aqui, no noroeste da França, que a batalha mais decisiva da guerra terá lugar.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- A invasão enfrentará todo o nosso poderio e será destruída no mar alto. Se tal não for possível, e se os anglo-saxões conseguirem assegurar temporariamente uma cabeça de praia, devemos estar preparados para reposicionar rapidamente as nossas forças, organizar um contra-ataque gigantesco e obrigar os invasores a retroceder para o mar - afirmou Hitler, cruzando os braços. - Mas para alcançar esse objetivo, temos de conhecer a ordem de batalha do inimigo. Temos de saber quando é que pretende atacar. E, o mais importante, onde. Herr Generalfeldmarshal?
O marechal de campo Gerd von Rundstedt levantou-se e deslocou-se num andar cansado até ao mapa, segurando com a mão direita o bastão incrustado de jóias de marechal de campo com que andava sempre. Conhecido como o último dos cavaleiros alemães, Rundstedt tinha sido demitido e chamado de novo ao serviço por Adolf Hitler mais vezes do que Canaris, ou mesmo o seu próprio staff, se conseguia lembrar. Detestava o mundo fanático dos nazis e tinha sido
Rundstedt quem apelidara escarninhamente Hitler de caboinho da boémia. A tensão de cinco longos anos de guerra começava a notar-se nas finas feições aristocráticas
do seu rosto. Os rígidos e precisos maneirismos que caracterizavam os oficiais do Estado-Maior do tempo do Império tinham desaparecido. Canaris sabia que Rundstedt
bebia mais champanhe do que devia e precisava de grandes quantidades de uísque para dormir à noite. Levantava-se com regularidade às dez da manhã, uma hora muito
pouco militar; o staffào seu quartel-general, em St. Germain-en-Laye, raramente agendava reuniões para antes do meio-dia.
Apesar da idade avançada e do declínio moral, Rundstedt continuava a ser o melhor soldado da Alemanha - um estratega e planeador brilhante, como tinha demonstrado aos polacos, em 1939, e aos franceses e britânicos, em 1940. Canaris não invejava a situação de Rundstedt. No papel, dirigia a força mais poderosa do Ocidente um milhão e meio de homens, incluindo 350 000 tropas de choque Waffen-SS, dez divisões Panzer e duas divisões de paraquedistas de elite Fallschirmjager. Se fossem posicionadas rápida e corretamente, as tropas de Rundstedt ainda seriam capazes de impor aos Aliados uma derrota devastadora. Mas se o velho cavaleiro teutónico tivesse um palpite errado - se mobilizasse as suas forças incorretamente ou cometesse erros táticos uma vez começada a batalha - os Aliados estabeleceriam a sua preciosa base de operações no continente e a guerra no Ocidente estaria perdida.
- Na minha opinião, a equação é simples - começou a dizer Rundstedt. - A leste do Sena, no Pas-de-Calais, ou a oeste do Sena, na Normandia. Cada um tem as suas vantagens e desvantagens.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal. Rundstedt prosseguiu num tom monótono:
- Calais é o fulcro da costa no canal da Mancha. Se o inimigo assegurar uma cabeça de praia em Calais, pode virar-se para leste e ficar a poucos dias de marcha do Ruhrgebiet, o nosso coração industrial. Os americanos querem que a guerra termine por altura do Natal. Se conseguirem desembarcar em Calais, talvez sejam capazes de concretizar esse desejo.
Rundstedt fez uma pausa para permitir que o seu aviso fosse assimilado e, a seguir, retomou o relatório.
- Há outra razão por que Calais faz sentido militarmente: é o ponto onde o canal da Mancha é mais estreito. O inimigo será capaz de despejar homens e equipamento em Calais quatro vezes mais depressa do que na Normandia ou na Bretanha. Não se esqueçam, o relógio começa a contar para o inimigo no momento em que a invasão se iniciar. Tem de acumular tropas, armas e material a um ritmo extremamente rápido. Há três portos de águas profundas na região do Pas-de-Calais - explicou Rundstedt, indicando cada um com a ponta do bastão, subindo pela costa. - Bolonha, Calais e Dunquerque.
O inimigo precisa de portos. É minha convicção que o primeiro objetivo dos invasores será capturar e reabrir um porto importante e reabri-lo o mais rapidamente possível, porque sem um porto importante o inimigo não pode abastecer as
tropas. Se não conseguir abastecer as tropas, está acabado.
- Impressionante, Herr Generalfeldmarshal - disse Hitler. Mas porque não a Normandia?
- A Normandia apresenta muitos problemas ao inimigo. A distância pelo canal da Mancha é muito maior. Em alguns pontos, encontram-se falésias elevadas entre as praias e o continente. O porto mais próximo é Cherburgo, na ponta de uma península altamente defendida. O inimigo poderia levar vários dias para nos conseguir tirar Cherburgo. E mesmo que o conseguisse, sabe que preferiríamos inutilizá-lo a abdicar dele. Mas o argumento mais lógico contra o ataque na Normandia, na minha opinião, é a sua localização geográfica. Fica demasiado a ocidente. Mesmo que o inimigo consiga desembarcar na Normandia, corre o risco de ficar preso e estrategicamente isolado. Tem de nos combater em toda a extensão da França antes de atingir sequer solo alemão.
- Qual é a sua opinião, Herr Generalfeldmarshal? - disparou Hitler.
- Talvez os Aliados tentem alguma trapaça - respondeu Rundstedt cautelosamente, com os dedos a agitarem-se sobre o bastão. - Talvez um desembarque a servir de manobra de diversão, como o senhor mesmo sugeriu, meu Fúhrer. Mas o verdadeiro ataque vai dar-se aqui - afirmou, batendo no mapa. - Em Calais.
- Almirante Canaris? - exclamou Hitler. - De que informações dispõe para apoiar esta teoria?
Pouco propenso a exibições formais diante do mapa, Canaris continuou sentado. Enfiou a mão no bolso direito interior do casaco, onde tinha um pacote de cigarros. Os homens das SS estremeceram nervosamente. Abanando a cabeça, Canaris tirou lentamente os cigarros
e mostrou-os. Acendeu um com toda a calma e lançou uma baforada
de fumo na direção de Himmler, sabendo muito bem da especial irritação que o Reichsfúhrer nutria pelo tabaco. Himmler olhou fixamente para ele, através da cortina
de fumo azul em espiral, não revelando qualquer emoção no olhar e com a face a contrair-se nervosamente.
Canaris explicou que a Abwehr estava a recolher e a analisar três tipos de informação relacionada com os preparativos para a invasão - fotografias aéreas das tropas
inimigas, no sul de Inglaterra, comunicações do inimigo via rádio, monitorizadas pela Funkabwehr, o serviço de escutas da agência, e relatórios de agentes a atuarem
no interior do Reino Unido.
- E o que lhe dizem essas informações, Herr Admirai? - vociferou Hitler.
- A nossa recolha inicial de informações tende a apoiar a avaliação do marechal de campo: que os Aliados pretendem atacar em Calais. De acordo com os nossos agentes,
tem havido um aumento da atividade do inimigo no sudeste de Inglaterra, do outro lado do canal da Mancha, em frente ao Pas-de-Calais. Nós monitorizámos as transmissões telegráficas referentes a uma nova força denominada First United States Army Group. Também temos vindo a analisar a atividade aérea do inimigo no noroeste da França. Está a passar muito mais tempo a sobrevoar Calais, com o propósito de bombardeamento e de reconhecimento, do que a Normandia ou a Bretanha. E tenho ainda mais uma nova informação a relatar, meu Fúhrer. Um dos nossos agentes em Inglaterra tem uma fonte dentro do alto comando aliado. Na noite passada, o agente transmitiu um relatório. O general Eisenhower chegou a Londres. Os americanos e os britânicos pretendem manter a sua presença em segredo por enquanto.
Hitler pareceu impressionado com o relatório do agente. Canaris pensou: se ao menos Hitler soubesse a verdade - que, neste momento, apenas a poucos meses da batalha mais importante da guerra,
as redes de informação da Abwehr em Inglaterra estão muito provavelmente em frangalhos. Canaris culpava Hitler. Durante os preparativos para a operação Seelõwe -
a invasão abortada do Reino Unido -, Canaris e a sua equipa enviaram temerariamente uma torrente de espiões para Inglaterra. Toda a cautela foi mandada às malvas,
por causa da necessidade urgente de informações sobre as defesas costeiras e o posicionamento das tropas britânicas. Os agentes foram recrutados à pressa, mal treinados
e equipados de forma ainda pior. Canaris suspeitava que a maioria tivesse ido parar diretamente às mãos do MI5, infligindo danos permanentes em redes que tinham
sido construídos ao longo de vários anos de trabalho meticuloso. Naquele momento, não o podia admitir; fazê-lo seria assinar a sua própria sentença de morte.
Adolf Hitler começou de novo a dar voltas pela sala. Canaris sabia que Hitler não temia a futura invasão. Muito pelo contrário, acolhia-a com pra2er. Tinha dez milhões de alemães mobilizados e uma indústria de armamento que, apesar do bombardeamento implacável dos Aliados e da escassez de mão de obra e matéria-prima, continuava a produzir quantidades colossais de armas e material. Mantinha-se confiante na sua capacidade de repelir a invasão e infligir aos Aliados uma derrota cataclísmica. À semelhança de Rundstedt, acreditava que um desembarque no Pas-de-Calais fazia sentido estratégico e era aí que a sua Atlantikwall mais se parecia com a visão de uma fortaleza inexpugnável. com efeito, tinha tentado forçar os Aliados a invadir em Calais, ordenando que as plataformas de lançamento das bombas V-1 e V-2 fossem aí colocadas. No entanto, Hitler também estava ciente de que os britânicos e os americanos tinham recorrido ao logro durante a guerra e de que o voltariam a fazer antes de invadirem a França.
- Vamos inverter os papéis - disse Hitler por fim. - Se eu fosse invadir a França a partir de Inglaterra, o que faria? Viria pelo caminho mais óbvio? O caminho que o meu inimigo espera que eu siga? Organizaria um ataque frontal à parte da costa mais protegida? Ou seguiria outro caminho e tentaria surpreender o inimigo? Transmitiria mensagens falsas via rádio e enviaria relatórios falsos através dos espiões? Faria declarações enganadoras à imprensa? A resposta
a todas estas questões é sim. Temos de contar que os britânicos recorram ao logro e até a um grande desembarque como manobra de diversão. Por mais que eu gostasse que eles tentassem desembarcar em Calais, devemos estar preparados para a possibilidade de uma invasão na Normandia ou na Bretanha. Para isso, os nossos Panzers devem manter-se bem afastados da costa até que as intenções do inimigo fiquem claras. De seguida, concentraremos a nossa base militar no ponto principal da invasão e obrigá-los-emos a retroceder para
o mar.
- Há outra coisa a ter em conta e que pode fundamentar a sua argumentação - disse o marechal de campo Erwin Rommel.
Hitler rodou nos calcanhares e encarou-o.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal.
Rommel apontou para o enorme mapa, que se estendia do chão até ao teto, atrás de Hitler.
- Se me der licença que faça uma demonstração, meu Fúhrer.
- Claro.
Rommel enfiou a mão na pasta, tirou um compasso de calibre e, a seguir, levantou-se e dirigiu-se para o mapa. Em dezembro, Hitler tinha-lhe atribuído o comando do
Grupo B do exército ao longo da costa do canal da Mancha. O Grupo B do exército incluía o 7.º Exército na região da Normandia, o 15.º Exército entre o estuário do
Sena e o golfo Zuiderzee, e o Exército da Holanda. Física e psicologicamente recuperado das desastrosas derrotas no Norte de África, a famosa Raposa do Deserto tinha-se
atirado à sua nova missão com uma incrível demonstração de energia, lançando-se a toda a hora pela costa francesa no seu Mercedes 230 cabriolei, inspecionando as defesas costeiras e o posicionamento das tropas e bases militares. Tinha prometido transformar o litoral francês num jardim do Diabo - um cenário de artilharia, campos de minas, fortificações em cimento e arame farpado do qual o inimigo nunca conseguiria sair. No entanto, em privado, Rommel defendia que qualquer fortificação concebida pelo ser humano podia também ser destruída por ele.
De pé, junto ao mapa, abriu o compasso e disse:
- Isto representa o raio de ação dos caças Spitfm e Mustang do inimigo. E estas são as posições das principais bases dos caças no sul de Inglaterra.
Rommel colocou as pontas do compasso em cada um dos locais e desenhou uma série de arcos no mapa.
- Como pode ver, meu Fúhrer, tanto a Normandia como Calais se encontram bem dentro do raio de ação dos caças do inimigo. Por esse motivo, devemos considerar ambas as áreas como possíveis locais para a invasão.
Hitler assentiu com a cabeça, impressionado com a demonstração de Rommel.
- Agora, coloque-se na posição do inimigo por um momento, Herr Generalfeldmarshal. Se estivesse a tentar invadir a França a partir de Inglaterra, onde é que atacaria?
Por breves instantes, Rommel fez questão de mostrar que estava a ponderar bem a questão e, a seguir, respondeu:
- Devo admitir, meu Fúhrer, que todos os indícios apontam para uma invasão no Pas-de-Calais. Mas não consigo livrar-me da convicção de que o inimigo nunca iria tentar um ataque frontal à nossa maior concentração de forças. E também me sinto influenciado pela experiência em África, meu Fúhrer. Os britânicos recorreram ao logro antes da Batalha de Alamein e vão voltar a fazê-lo antes de invadirem a França.
- E a Westwall, Herr Generalfeldmarshal? Como é que têm avançado os trabalhos?
- Ainda há muito a fazer, meu Fúhrer. Mas estamos a avançar bem.
- E vai estar tudo terminado antes da primavera?
- Creio que sim. Mas as fortificações costeiras não chegam para deter o inimigo. Temos de ter as nossas bases militares devidamente dispostas. E para isso receio bem que tenhamos de saber onde é que eles planeiam atacar. Só isso nos servirá de alguma coisa. Se o inimigo for bem-sucedido, a guerra pode estar perdida.
- Isso é um absurdo - lançou Heinrich Himmler. - Sob o comando do Fúhrer, a vitória final da Alemanha é ponto assente. As praias da França vão ser um cemitério para os britânicos e os americanos.
- Não - interveio Hitler, gesticulando. - O marechal de campo Rommel tem razão. Se o inimigo conseguir assegurar uma cabeça
de praia, então a guerra estará perdida. Mas, se aniquilarmos a invasão antes de ter sequer começado - prosseguiu Hitler, com a cabeça inclinada para trás e os olhos a chamejarem -, seriam necessários vários meses para organizar outra tentativa. O inimigo nunca voltaria a tentar! Roosevelt nunca seria reeleito. Até poderia acabar preso num sítio qualquer! O moral dos britânicos iria desabar da noite para o dia. Churchill, aquele velho gordo e doente, seria destruído! com os americanos e os britânicos paralisados, a lamberem as feridas, podemos deslocar homens e matériel do Ocidente e despejá-los no Leste. Estaline vai ficar à nossa mercê. Vai tentar negociar um acordo de paz. Tenho a certeza disso.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- Mas, se queremos deter o inimigo, temos de saber o local da invasão - afirmou. - Os meus generais pensam que será em Calais. Eu estou cético - confessou, rodando nos calcanhares e olhando fixamente para Canaris. - Herr Admirai, quero que resolva o impasse.
- Isso pode não ser possível - disse Canaris cautelosamente.
- A missão da Abwehr não é fornecer informações militares?
- E claro que sim, meu Fúhrer.
- Dispõe de espiões a atuarem dentro do Reino Unido, este relatório acerca da chegada do general Eisenhower a Londres é prova disso.
- Obviamente, meu Fúhrer.
- Então, sugiro que comece a trabalhar, Herr Admirai. Quero provas das intenções dos inimigos. Quero que me traga o segredo da invasão. E rapidamente, Herr Admirai. Deixe-me assegurar-lhe: não dispõe de muito tempo.
Hitler empalideceu visivelmente e pareceu subitamente exausto.
- Agora, a menos que os senhores tenham mais alguma má notícia para me dar, vou retirar-me para dormir umas horas. Foi uma noite muito longa.
Levantaram-se todos enquanto Hitler subia as escadas.
CINCO
NORTE DE ESPANHA: AGOSTO DE 1936
Ele encontra-se diante das portas abertas para a noite cálida, segurando uma garrafa de vinho branco gelado. Serve-se de outro copo sem se oferecer para encher novamente o dela. Ela está deitada na cama, a fumar e a ouvir a vo dele. Escutando o vento quente que agita as árvores lá fora, junto à varanda. Relâmpagos tremelum silenciosamente sobre o vale. O seu vale, como ele está sempre a dier. A porra do meu vale. E se os filhos da puta dos lealistas alguma ve mo tentarem tirar, corto-lhes a merda dos tomates e atiro-os aos cães.
-Quem te ensinou a disparar assim?-pergunta ele.
Tinham ido à caça de manhã e ela tinha capturado quatro faisÕes contra um dele.
- O meu pai.
- Disparas melhor do que eu. -Já reparei.
Uma vez mais, os relâmpagos surgem silenciosamente na sala e ela consegue ver Emílio com clareza durante alguns segundos. É trinta anos mais velho e, no entanto,
ela acha-o lindo. Tem cabelo louro-grisalho e o sol pôs-lhe a cara da cor do couro polido de uma sela. O nariz é longo e afilado, como a lâmina de um machado. Queria
ser beijada pelos lábios dele, mas desde a primeira vez ele queria-a muito depressa e de modo rude e o Emilio consegue sempre toda a merda que quer, querida.
- Falas inglês muito bem - informa-a ele, como se ela estivesse a ouvir isso pela primeira
vez - O teu sotaque é perfeito. Nunca consegui perder o meu, por mais
que tentasse.
- A minha mãe era inglesa.
- Onde está ela agora?
- Morreu há muito tempo.
- Também falas francês?
- Sim - responde ela.
- Italiano.
- Sim, falo italiano.
- O teu espanhol é que não é assim tão bom.
- Chega para o que é preciso - di ela.
Ele está a tocar no pénis enquanto fala. Adora-o tal como adora o seu dinheiro e a sua terra. Fala dele como se fosse um dos seus melhores cavalos. Na cama, é como
uma terceira pessoa.
- Deitas-te com a Maria ao pé da ribeira, mas depois à noite deixas que eu entre na tua cama efoda contigo - diz ele.
- É uma maneira de pôr as coisas - responde ela. -Queres que eu pare com a Maria?
- Tu fazes a maria feliz - responde ele, como se a felicidade justificasse alguma coisa.
- Ela faze-me feliz.
- Nunca conheci uma mulher como tu - disse ele, pondo um cigarro no canto da boca e acendendo-o, com as mãos em concha para o proteger da brisa noturna. - Fodes comigo
e com a minha filha no mesmo dia, sem pestanejar.
- Não acredito nisso de criar afetos. Ele ri-se, no seu riso calmo e controlado.
- Isso é maravilhoso - responde ele, sorrindo outra vez calmamente. Não acreditas nisso de criar afetos. Isso é magnífico. Tenho pena do pobre canalha que cometa
o erro de se apaixonar por ti.
- Também eu.
- E tens alguns sentimentos?
- Não, nem por isso.
- Amas alguém ou alguma coisa?
- Amo o meu pai - responde ela. - E amo estar deitada ao pé da ribeira com a Maria.
Maria é a única mulher que conheceu até hoje cuja beleza a ameaça.
Neutralaria essa ameaça pilhando a beleza de Maria para si mesma. A sua juba de
cabelos castanhos encaracolados. A imaculada pele cor de azeitona. Os seios perfeitos que são como pêras no verão na sua boca. Os lábios que são a coisa mais suave em que já tocou. "Vem passar o verão a Espanha comigo, na estancia da minha família",
diz Maria numa tarde chuvosa em Paris, onde ambas se encontram a estudar, na
Sorbonne. O pai vai ficar desiludido, mas a ideia de passar um verão na Alemanha a observar a merda dos nais a desfilar pelas ruas não significa nada para ela. Mas
não sabia que a alternativa seria enfiar-se bem no meio de uma guerra civil.
Mas a guerra não perturba o insolente enclave paradisíaco de Emílio, no sopé dos Pirenéus. É o verão mais maravilhoso da vida dela. De manhã, os três caçam ou passeiam
os cães e, à tarde, ela e Maria vão até à ribeira, nadam nos lagos profundos e gélidos e
bronzeiam-se nas rochas cálidas. Maria gosta mais quando estão lá fora. Gosta
da sensação do sol nos seios e de Anna entre as pernas. "O meu pai também te quer, sabes?", anuncia Maria uma tarde em que estão deitadas à sombra de um eucalipto.
"Podes tê-lo. Só não te apaixones por ele. Toda a gente está apaixonada por ele."
Emílio está outra vez a falar:
-Quando voltares para Paris, no próximo mês, quero que te encontres com uma pessoa.
Faz isso por mim?
- Depende.
- De quê?
- De quem for.
- Ele vai entrar em contacto contigo. Quando lhe falar de ti, vai ficar muito interessado.
- Não vou dormir com ele.
- Ele não vai estar interessado em dormir contigo. É um homem de família. Tal como eu - acrescenta, rindo-se com o seu riso mais uma vez.
- E qual é o nome dele?
- Os nomes não são importantes para ele.
- Dime o nome dele.
- Não tenho a certeza do nome que ele usa atualmente.
- E o que é que o teu amigo faz?
- Trabalha com informação.
Ele regressa à cama. A. conversa excitou-o. Tem o pénis novamente duro e deseja-a outra
vez de imediato. Está a afastar-lhe as pernas e a tentar penetrá-la. Ela
pega-lhe nas mãos para o ajudar e a seguir crava as unhas nele.
- Ahhhh! Meu Deus, Anna! com tanta força, não!
- Diz-me o nome dele.
- É contra as regras... não posso.
- Diz-me - insiste ela, cravando-lhe as unhas com mais força.
- Vogel- murmura ele. - O nome dele é Kurt Vogel. Jesus!
BERLIM: JANEIRO DE 1944
A Abwehr tinha dois tipos básicos de espiões em ação contra o Reino Unido. A Corrente-S consistia em agentes que entravam no país, se instalavam com identidades
falsas e desenvolviam atividades de espionagem. Os agentes da Corrente-R eram maioritariamente cidadãos de outros países que entravam periodicamente no Reino Unido,
de forma legal, recolhiam informações e enviavam relatórios aos seus superiores em Berlim. Havia uma terceira rede de espiões mais pequena e altamente secreta referida
como a Corrente-V- um punhado de agentes adormecidos, excecionalmente treinados, que se infiltravam de forma profunda na sociedade inglesa e esperavam, por vezes
durante anos, até serem ativados. Foi assim chamada devido ao seu criador e único agente que a comandava, Kurt Vogel.
O modesto império de Vogel consistia em duas salas no quarto piso do quartel-general da Abwehr, localizado num par de austeros prédios geminados, em pedra cinzenta,
nos números 74 e 76 da Tirpitz Ufer. As janelas davam para o Tiergarten, o parque com 255 hectares no coração de Berlim. Em tempos, tinha tido uma vista espetacular. Mas meses de bombardeamentos por parte dos Aliados tinham deixado crateras do tamanho de Panzers nos caminhos equestres e reduzido a maioria dos castanheiros e das tílias a tocos carbonizados. Grande parte do gabinete de Vogel estava ocupada por uma fila de armários de aço trancados e um pesado cofre. Vogel suspeitava que os empregados do registo central da Abwehr tinham passado a trabalhar para a Gestapo e recusava-se a guardar lá os dossiês. O seu único assistente - um tenente condecorado da Wehrmacht chamado
Werner Ulbricht, que tinha ficado estropiado a lutar contra os russos . trabalhava na antessala. Guardava um par de pistolas Luger na gaveta de cima da secretária
e Vogel tinha-lhe ordenado que disparasse contra qualquer pessoa que entrasse sem autorização. Ulbricht sofria de pesadelos em que matava Wilhelm Canaris por engano.
Oficialmente, Vogel detinha o posto de capitão na Kriegsmarine, mas era apenas uma formalidade concebida para lhe permitir o acesso necessário para atuar junto de
determinados grupos. Tal como o seu mentor, Canaris, raramente envergava o uniforme. O seu guarda-roupa variava pouco - um fato cinzento-escuro a lembrar o de um
cangalheiro, uma camisa branca, uma gravata negra. Tinha cabelo grisalho-escuro, que parecia ter sido ele a cortar, e o olhar intenso de um revolucionário de café.
A voz era como uma dobradiça enferrujada e, depois de quase uma década de conversas clandestinas em cafés, salas de hotel e escritórios sob escuta, raramente se
elevava acima de um murmúrio de capela. Ulbricht, surdo de um ouvido, esforçava-se constantemente por o ouvir.
A paixão de Vogel pelo anonimato raiava o absurdo. No gabinete havia apenas um objeto pessoal, um retrato da mulher, Gertrude, e das filhas gémeas. Enviara-as para
a casa da mãe de Gertrude, na Baviera, quando os bombardeamentos começaram e via-as com pouca frequência. Sempre que saía do gabinete, mesmo por curtos momentos,
retirava o retrato de cima da secretária e fechava-o na gaveta. Até mesmo o seu distintivo de identificação era um enigma. Não tinha fotografia - Vogel recusava
ser fotografado há anos - e o nome era falso. Possuía um pequeno apartamento perto do gabinete, a que se chegava depois de um agradável passeio ao longo das frondosas
margens do Landwehr Kanal, para aquelas raras noites em que se permitia escapar. A senhoria achava que ele era um professor universitário com uma série de namoradas.
Mesmo dentro da Abwehr, pouco mais se sabia dele.
Kurt Vogel tinha nascido em Dusseldorf. O pai era o diretor de um Gymnasium local, a mãe uma professora de música em part-time que tinha abandonado uma carreira
promissora como pianista para casar e criar uma família. Vogel tinha feito um doutoramento em Direito, na Universidade de Leipzig, onde estudara Direito Civil e
Político com duas das maiores mentes jurídicas da Alemanha, Herman
Heller e Leo Rosenberg. Era um aluno brilhante, o melhor da sua turma, e os professores previram discretamente que Vogel se sentaria um dia no Reichsgericht, o Supremo
Tribunal da Alemanha.
Hitler alterou tudo isso. Hitler acreditava no poder dos homens, não no poder do Direito. Poucos meses após ter tomado o poder, já tinha virado do avesso todo o sistema judicial da Alemanha. O Fíihrergewalt - o poder do Fúhrer - tornou-se a única lei do país e todos os caprichos de Hitler eram imediatamente traduzidos em códigos e regulamentos. Vogel lembrava-se de algumas máximas ridículas cunhadas pelos arquitetos da revisão legal da Alemanha imposta por Hitler. A lei é o que é útil ao povo alemão! A lei deve ser interpretada através de saudáveis emoções populares! Quando o poder judiciário ordinário se interpôs, os nazis estabeleceram os seus próprios tribunais, os Volksgerichtshof, os Tribunais do Povo. Na opinião de Vogel, o dia mais negro na história da jurisprudência alemã ocorreu em outubro de 1933, quando dez mil advogados, nos degraus do Reichsgericht, em Leipzig, ergueram os braços na saudação nazi e juraram seguir o rumo do Ftihrer até ao fim dos nossos dias. Vogel tinha sido um deles. Naquela noite, regressou ao pequeno apartamento que partilhava com Gertrude, queimou os livros de Direito no fogão e bebeu até não poder mais.
Vários meses mais tarde, no inverno de 1934, foi abordado por um homem pequeno e austero, com um par de dachshunds - Wilhelm Canaris, o novo chefe dos serviços secretos militares alemães. Canaris perguntou a Vogel se estaria disposto a trabalhar para a Abwehr. Vogel aceitou, com uma condição - que não fosse obrigado a filiar-se no partido nazi e, na semana seguinte, desapareceu no mundo dos serviços secretos militares alemães. Oficialmente, estava ao serviço como conselheiro legal interno de Canaris. Extraoficialmente, foi-lhe atribuída a tarefa de preparar a guerra contra os britânicos que Canaris considerava inevitável.
Naquele preciso momento, Vogel estava sentado à secretária debruçado sobre um memorando, com os nós dos dedos a pressionar as têmporas. Esforçava-se por se concentrar no meio do ruído o chocalhar do velho elevador à medida que se arrastava para cima e para baixo no poço mesmo por trás da parede, o respingar da chuva gelada nas janelas, a cacofonia das buzinas dos automóveis que
acompanhava a hora de ponta no entardecer de Berlim. Tirou as mãos das têmporas e tapou os ouvidos, apertando até fazer silêncio. O memorando tinha-lhe sido dado por Canaris naquele dia, algumas horas depois de a Velha Raposa ter regressado de uma reunião com Hitler, em Rastenburg. Canaris achava que parecia promissor e Vogel não podia deixar de concordar.
- Hitler quer resultados, Kurt - tinha dito Canaris, sentando-se atrás da antiga secretária desgastada, como um velho fidalgo impenetrável, com os olhos a percorrerem as prateleiras transbordantes de livros como se estivesse à procura de um volume precioso há muito perdido. - Ele quer provas de que é em Calais ou na Normandia. Talvez seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Vogel tinha lido o memorando uma vez, rapidamente. Naquele instante, estava a lê-lo uma segunda vez, mais cuidadosamente. Na verdade, era mais do que prometedor - era perfeito, a oportunidade de que estava à espera. Quando terminou, ergueu o olhar e sussurrou o nome de Ulbricht várias vezes, como se estivesse a falar diretamente ao ouvido dele. Por fim, não recebendo resposta, levantou-se e dirigiu-se à antessala. Ulbricht estava a limpar as Lugers.
- Werner, estou a chamá-lo há cinco minutos - disse Vogel, com uma voz quase inaudível.
- Peço desculpa, capitão. Não o ouvi.
- Quero ver o Míiller logo pela manhãzinha. Marque-me uma reunião para amanhã.
- Sim, senhor.
- E, Werner, faça qualquer coisa ao raio dos ouvidos. Tive de gritar a plenos pulmões ali dentro.
Os bombardeiros chegaram à meia-noite quando Vogel dormia uma sesta intermitente no gabinete numa dura cama de campanha. Pôs os pés no chão, levantou-se e dirigiu-se para a janela enquanto os aviões zumbiam lá em cima. Berlim estremecia à medida que os primeiros fogos deflagravam nos bairros de Pankow e Weissensee. Vogel
interrogou-se quanto mais poderia a cidade aguentar. Vastas secções da capital do Reich de mil anos já tinham sido reduzidas a destroços. Muitos dos mais famosos bairros da cidade pareciam desfiladeiros de tijolo pulverizado e aço retorcido. As tílias do Unter den Linden tinham sido queimadas, tal como grande parte dos bancos e lojas, outrora resplandecentes, que se estendiam pela ampla avenida. O famoso relógio da Igreja Memorial Kaiser Wilhelm tinha-se imobilizado nas 7h30 desde novembro, quando os bombardeiros aliados tinham devastado quatrocentos hectares de Berlim numa única noite.
O memorando girava na sua cabeça enquanto ele observava o ataque noturno.
ABWEHR/BERLIM XFU0465848261
PARA: CANARIS
DE: MULLER
DATA: 2 NOV43
A 21 DE OUTUBRO, O CAPITÃO DIETRICH DA BASE DE ASUNCION INTERROGOU O
OPERACIONAL AMERICANO SCORPIO NA CIDADE DO PANAMÁ. COMO SABE, SCORPIO É UM DOS NOSSOS AGENTES MAIS IMPORTANTES NA AMÉRICA. OCUPA UMA POSIÇÃO IMPORTANTE NOS CÍRCULOS FINANCEIROS DE NOVA IORQUE E TEM BOAS RELAÇÕES EM WASHINGTON. É AMIGO PESSOAL DE MUITOS QUADROS SUPERIORES DO MINISTÉRIO DA
GUERRA E DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS . ENCONTROU-SE PESSOAL-
MENTE com ROOSEVELT. AO LONGO DA GUERRA, AS SUAS INFORMAÇÕES TÊM SIDO ATEMPADAS E ALTAMENTE PRECISAS. RECORDO-LHE A INFORMAÇÃO QUE NOS FORNECEU
ACERCA DAS REMESSAS DE ARMAS AMERICANAS PARA OS BRITÂNICOS .
DE ACORDO com SCORPIO, UM REPUTADO ENGENHEIRO AMERICANO CHAMADO PETER
JORDAN FOI RECRUTADO PELA MARINHA AMERICANA NO MÊS PASSADO E ENVIADO PARA
LONDRES PARA TRABALHAR NUM PROJETO DE CONSTRUÇÃO ALTAMENTE SECRETO. JORDAN NÃO POSSUI NENHUMA EXPERIÊNCIA MILITAR ANTERIOR. SCORPIO CONHECE
JORDAN PESSOALMENTE E FALOU com ELE ANTES DA SUA PARTIDA PARA LONDRES.
SCORPIO AFIRMA QUE O PROJETO ESTÁ SEM DÚVIDA RELACIONADO com O PLANO DO
INIMIGO PARA INVADIR A FRANÇA.
JORDAN É RESPEITADO PELO TRABALHO DESENVOLVIDO EM VÁRIOS PROJETOS IMPORTANTES
DE PONTES AMERICANOS. JORDAN É VIÚVO. A MULHER, FILHA DO BANQUEIRO
AMERICANO BRATTON LAUTERBACH, MORREU NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM AGOSTO DE 1939 . SCORPIO ACHA QUE JORDAN É BASTANTE VULNERÁVEL A UMA ABORDAGEM
DE UM ELEMENTO FEMININO.
JORDAN VIVE ATUALMENTE SOZINHO, NA ZONA DE LONDRES CONHECIDA COMO KENSINGTON
. SCORPIO FORNECEU A MORADA DA CASA, BEM COMO A COMBINAÇÃO DO COFRE QUE SE ENCONTRA NO ESTÚDIO .
SUGIRA AÇÃO.
Vogel reparou num feixe de luz na soleira da porta e ouviu o arrastar da perna de pau de Ulbricht contra o chão. Os bombardeamentos perturbavam Ulbricht de um modo que ele não conseguia pôr em palavras e que Vogel nunca seria capaz de compreender. Retirou o porta-chaves da gaveta da secretária e dirigiu-se a um dos armários de aço. O ficheiro encontrava-se dentro de uma pasta negra sem identificação. Vogel voltou para a secretária, serviu-se de um grande copo de conhaque e abriu o dossiê. Estava lá tudo, as fotografias, o material relativo aos antecedentes, os relatórios de execução. Mas não precisava de o ler. Tinha sido ele a escrevê-lo e, tal como a pessoa em questão, era amaldiçoado com uma memória perfeita.
Virou mais algumas páginas e encontrou as notas que tinha redigido depois do primeiro encontro entre ambos, em Paris. Por baixo delas, estava uma cópia do telegrama que lhe fora enviado pelo homem que a tinha descoberto, Emilio Romero, um rico proprietário rural espanhol, um fascista, um caçador de talentos para a Abwehr.
Ela é tudo aquilo de que andas à procura. Gostava de ficar com ela para mim, mas, como sou amigo, vou dar-ta. A um preço razoável, é claro.
Na sala, fez-se de repente um frio de gelar os ossos. Vogel deitou-se na cama de campanha e tapou-se com um cobertor.
Hitler quer resultados, Kurt. Talve seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Por vezes, imaginava-se a deixá-la infiltrada até tudo ter terminado e, a seguir, a encontrar algum modo de a tirar de lá. Mas ela era perfeita para aquilo, claro. Era linda, era inteligente e o seu inglês e o conhecimento que tinha da sociedade britânica eram irrepreensíveis. Virou-se e viu a fotografia de Gertrude e das filhas. Pensar que tinha fantasiado abandoná-las por ela. Tinha sido tão tolo. Desligou as luzes. O ataque aéreo tinha terminado. A noite era uma sinfonia de sirenes. Tentou dormir, mas era escusado. Não a conseguia tirar da cabeça.
Pobre Vogel, pus-te o coração de pernas para o ar, não foi?
Os olhos da fotografia perfuravam-no. Era obsceno olhar para eles, recordá-la. Levantou-se, dirigiu-se para a secretária e guardou a foto na gaveta.
- Por amor de Deus, Kurt! - exclamou Múller quando Vogel entrou no seu gabinete, na manhã seguinte. - Quem é que te tem cortado o cabelo, meu amigo? Deixa-me dar-te o nome da mulher que tem cortado o meu, talvez ela te possa ajudar.
Vogel, exausto depois de uma noite de pouco sono, sentou-se e contemplou em silêncio a figura diante dele. Paul Múller era responsável pela rede dos serviços de informações da Abwehr nos Estados Unidos. Era baixo, atarracado e estava impecavelmente vestido com um fato francês lustroso. Tinha o cabelo liso com brilhantina penteado para trás, deixando a descoberto o rosto de querubim. A boca pequena era generosa e vermelha, como a de uma criança que acabou de comer doce de cereja.
- Vejam só, o grande Kurt Vogel aqui, no meu gabinete - exclamou Múller, com um sorriso afetado. - A que devo o privilégio?
Vogel retirou a cópia do memorando de Múller do bolso do casaco e abanou-a diante dele.
- Fala-me de Scorpio - disse.
- Então, o Velho lá fez circular finalmente o meu memorando. Olha para a data dessa maldita coisa. Dei-lhe isso há um mês e meio. Tem estado a apanhar pó na secretária dele. Essa informação é ouro. Mas vai para a Toca do Lobo e não volta mais - queixou-se Múller, fazendo depois uma pausa, acendendo um cigarro e lançando o fumo para o teto. - Sabes, Kurt, às vezes, pergunto-rne de que lado estará Canaris.
A observação não era invulgar naqueles tempos. Desde a prisão de vários membros do comando da Abwehr sob a acusação de traição, o moral em Tirpitz Ufer tinha caído para níveis até aí inauditos. Vogel pressentiu que a agência de serviços secretos militares da Alemanha se encontrava perigosamente à deriva. Tinha ouvido rumores de que Canaris deixara de agradar a Hitler. Havia até rumores entre
o staffde que Himmler estava a conspirar para fazer cair Canaris e colocar a Abwehr sob o controlo das SS.
- Fala-me de Scorpio - repetiu Vogel.
- Jantei com ele em casa de um diplomata americano - revelou Miiller, atirando a cabeça redonda para trás e contemplando o teto. - Antes da guerra, em 1937, creio
eu. vou verificar no dossiê dele para ter a certeza. O alemão do tipo era melhor do que o meu. Achava que os nazis eram um maravilhoso bando de companheiros a fazer
grandes coisas pela Alemanha. A única coisa que ele odiava mais do que os judeus eram os bolcheviques. Foi como uma audição. Recrutei-o eu mesmo no dia seguinte.
A presa mais fácil da minha carreira.
- Quais são os antecedentes dele? Múller sorriu:
- Investimento bancário. Ivy League, bons contactos com a indústria, amizades com meia Washington. As informações dele sobre a produção de armamento têm sido excelentes.
Vogel estava a dobrar o memorando e a guardá-lo outra vez no bolso.
- E o nome dele?
- Vá lá, Kurt. É um dos meus melhores agentes.
- Quero o nome dele.
- Este sítio é como uma peneira, sabes disso. Se eu te disser, toda a gente fica a saber.
- Quero uma cópia do dossiê dele na minha secretária daqui a uma hora - ordenou Vogel, com a voz baixa pouco mais do que um sussurro. - E quero tudo o que tenhas sobre o engenheiro.
- Posso dar-te as informações relacionadas com o Jordan.
- Quero tudo, e, se tiver de ir falar com o Canaris, faço isso.
- Oh, por amor de Deus, Kurt, não vais a correr ter com o tio Willy, pois não?
Vogel levantou-se e abotoou o casaco.
- Quero o nome dele e quero o dossiê dele. Vogel virou-se e saiu do gabinete.
- Kurt, volta aqui - gritou Múller. - Vamos resolver isto, por amor de Deus.
- Se quiseres falar, estou no gabinete do Velho - atirou Vogel afastando-se pelo corredor estreito.
- Muito bem, ganhaste - lançou Múller, com as mãos bem tratadas a vasculharem num arquivo. - Aqui está a merda do dossiê. Não tens de ir a correr ter com o tio Willy outra vez. Meu Deus, às vezes, és pior do que os cabrões dos nazis.
Vogel passou o resto da manhã a ler o dossiê sobre Peter Jordan. Quando terminou, retirou um par de ficheiros de um dos arquivos, voltou para a secretária e leu-os cuidadosamente.
O primeiro ficheiro continha informações sobre um irlandês que tinha trabalhado como espião durante um curto período de tempo, mas que deixara de o fazer porque as informações que recolhia eram consideradas fracas. Vogel ficara com o dossiê dele e colocara-o na folha de salários da Corrente-V. Vogel não estava preocupado com a péssima avaliação que o espião tinha recebido no passado - não andava à procura de um espião. Havia outras qualidades no agente que Vogel considerava interessantes. Era dono de uma pequena quinta, numa região isolada na costa de Norfolk, no Reino Unido. Era uma casa segura perfeita - suficientemente perto de Londres para se fazer a viagem de comboio em três horas, suficientemente longe para não estar cheia de agentes do MI5 à sua volta.
O segundo ficheiro continha o dossiê de um antigo paraquedista da Wehrmacht que fora impedido de continuar a saltar por causa de um ferimento na cabeça. O homem possuía todas as qualidades de que Vogel gostava - um inglês perfeito, bom olho para o pormenor, inteligência fria. Ulbricht tinha-o encontrado num posto de escuta de comunicações da Abwehr, no norte da França. Vogel colocou-o na folha de salários da Corrente-V e guardou-o para missões adequadas.
Vogel afastou os ficheiros e redigiu duas mensagens. Acrescentou os códigos a serem utilizados, as frequências em que as mensagens seriam enviadas e o horário de transmissão. De seguida, olhou para cima e chamou Ulbricht.
- Sim, Herr Kapitàn - disse Ulbricht ao entrar no escritório, coxeando pesadamente com a perna de pau.
Vogel olhou para Ulbricht durante um instante antes de falar, interrogando-se se o homem estaria à altura das exigências de uma operação como a que queria empreender. Ulbricht tinha vinte e sete anos, mas parecia ter, no mínimo, quarenta. Tinha o cabelo preto, cortado rente, salpicado de cinzento. Rugas de dor corriam como afluentes desde o canto do olho bom. Perdera o outro olho na explosão; a órbita vazia estava escondida por uma elegante pala negra. Uma Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro balançava-lhe ao pescoço. O botão de cima da túnica de Ulbricht estava desapertado porque o esforço que significava o mais simples movimento o punha a transpirar. Durante todo o tempo em que tinham trabalhado juntos, Vogel nunca ouvira Ulbricht queixar-se uma única vez.
- Quero que vá a Hamburgo amanhã à noite - informou Vogel, entregando a Ulbricht as transcrições das mensagens. - Mantenha-se ao pé do operador de rádio enquanto ele as estiver a enviar. Assegure-se de que não há nenhum engano. Certifique-se de que as confirmações dos agentes estão corretas. Se houver alguma coisa de invulgar,
quero ser informado. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Antes de ir, quero que me localize Horst Neumann. - Está em Berlim, creio eu.
- E onde é que está hospedado?
- Não tenho a certeza - disse Ulbricht. - Mas acho que há uma mulher envolvida.
- Normalmente há - disse Vogel, indo até à janela e olhando para baixo. - Contacte o staffàa quinta Dahlem. Diga-lhes que contem connosco hoje à noite. Quero que
vá lá ter amanhã, quando regressar de Hamburgo. Diga-lhes que vamos ficar uma semana. Temos muita coisa a estudar. E diga-lhes para preparar a plataforma de salto
no celeiro. Neumann já não salta de um avião há muito tempo. Vai precisar de treinar.
- Sim, senhor.
Ulbricht saiu, deixando Vogel sozinho no gabinete. Este ficou à janela durante bastante tempo, a pensar naquilo mais uma vez. Era o segredo mais bem guardado da guerra e planeava roubá-lo com uma mulher, um aleijado, um paraquedista que não podia saltar e um
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traidor britânico. Que grande equipa que tu reuniste, Kurt, meu velho. Se a sua pele não estivesse em jogo, teria achado tudo aquilo engraçado. Em vez disso, limitou-se a ficar ali, como uma estátua, observando a neve a acumular-se silenciosamente sobre o Tiergarten, roendo-se de preocupação.
SEIS LONDRES
Os Serviços Secretos e de Segurança do Império Britânico mais conhecidos pela sua designação enquanto serviços secretos militares, MI5 - tinham a sua sede num pequeno
e exíguo prédio de escritórios, no número 58 da St. James's Street. A ocupação do MI5 era a contraespionagem. No léxico da espionagem, contraespionagem significa
proteger segredos; e, quando necessário, capturar espiões. Durante grande parte dos seus quarenta anos de existência, os Serviços de Segurança labutaram à sombra do seu primo mais charmoso, os Serviços Secretos, ou MI6. Essas rivalidades internas não preocupavam muito o professor Vicary. Foi no MÍ5 que Vicary ingressou, .em maio de 1940, e era aí que, numa noite sombria e chuvosa cinco dias depois da conferência secreta de Hitler em Rastenburg, continuava a poder ser encontrado.
O último andar era a reserva particular dos quadros superiores o gabinete do diretor-geral, o seu secretariado, os diretores-adjuntos e os chefes de divisão. Era lá que ficava o gabinete do brigadeiro Sir Basil Boothby, escondido por trás de um par de intimidantes portas de carvalho. Um par de luzes brilhava por cima das portas: uma vermelha, que significava que a sala estava demasiado exposta para se permitir o acesso, e outra verde, cujo significado era: entre por sua própria conta e risco. Vicary, como sempre, hesitou antes de carregar na campainha.
Vicary tinha sido convocado às nove horas, enquanto estava a fechar as suas coisas à chave no armário cinzento-escuro e a arrumar
a cabana, o nome que dava ao seu pequeno gabinete. Quando o MI5 explodiu em tamanho, no início da guerra, o espaço tornou-se um bem precioso. Vicary foi relegado para um cubículo sem janelas, do tamanho de um armário de vassouras, com uma burocrática e desgastada carpete verde e uma pequena e robusta secretária de diretor de escola. O parceiro de Vicary, um antigo agente da Polícia Metropolitana chamado Harry Dalton, sentava-se com os outros membros menos importantes numa área comum,
no centro do piso. Em torno desse sítio, havia uma azáfama própria de uma sala de redação, e Vicary apenas se aventurava até lá quando era absolutamente necessário.
Oficialmente, Vicary ocupava o posto de major no Corpo dos Serviços Secretos, embora os postos militares não significassem quase nada dentro do departamento. A maioria do staff referia-se habitualmente a ele como Professor, e Vicary apenas tinha vestido o uniforme duas vezes. No entanto, a maneira de vestir de Vicary mudara. Abandonara os fatos de tweed da universidade, vestindo em vez disso fatos de um cinzento-escuro que tinha comprado antes de a roupa, tal como tudo o resto, ter sido racionada. Por vezes, deparava com um conhecido ou com um velho colega do University College. Apesar dos incessantes avisos do governo sobre os perigos de conversas imprudentes, perguntavam inevitavelmente a Vicary o que estava a fazer ao certo. Normalmente, ele sorria com ar cansado, encolhia os ombros e dava a resposta prescrita: estava a trabalhar num departamento muito aborrecido do Ministério da Guerra.
Por vezes, era aborrecido, mas não acontecia frequentemente. Churchill tinha razão - era tempo de regressar ao mundo dos vivos. A chegada ao MI5, em maio de 1940, tinha sido um renascimento. Desabrochou na atmosfera dos serviços secretos em tempo de guerra: as longas horas, as crises, até mesmo o chá horrível da cantina. Até tinha voltado a fumar cigarros, a que tinha renunciado no último ano em Cambridge. Adorava ser ator no teatro da realidade. Duvidava seriamente se conseguiria voltar a sentir-se satisfeito no santuário do mundo académico.
Era evidente que as horas e a tensão estavam a produzir os seus efeitos, mas nunca se sentira tão bem. Conseguia trabalhar mais tempo e precisava de dormir menos. Quando acabava por ir para a cama,
adormecia imediatamente. À semelhança dos outros agentes, passava muitas noites na sede do MI5, dormindo na pequena cama de campanha que conservava fechada junto à secretária.
Apenas os maus-tratos infligidos aos óculos em meia-lua sobreviveram à catarse de Vicary - continuavam manchados e ameigados e eram uma espécie de piada dentro do departamento. Em momentos de aflição, ainda os procurava batendo nos bolsos distraidamente e punha-os para se reconfortar.
Era o que fazia naquele momento, quando a luz por cima da porta do gabinete de Boothby ficou de repente verde. Vicary carregou na campainha, com o ar pensativo de um homem prestes a assistir ao funeral de um amigo de infância. A campainha tocou suavemente, a porta abriu-se e Vicary entrou.
O gabinete de Boothby era grande e largo, com belas pinturas, uma lareira a gás, valiosos tapetes persas e uma vista magnífica fornecida pelas janelas altas. Sir Basil deixou Vicary à espera os dez minutos da praxe e entrou por fim na sala, por uma segunda porta, que ligava o gabinete ao secretariado do diretor-geral.
O brigadeiro Sir Basil Boothby tinha o tamanho e a escala típicos de um inglês - alto, magro, exibindo ainda sinais da agilidade física que tinha feito dele um atleta
famoso nos tempos de estudante. Via-se isso no modo fácil como o braço forte segurava a bebida, nos ombros quadrados e no pescoço grosso, nos quadris estreitos onde calças, colete e casaco convergiam numa perfeição graciosa. Tinha a beleza vigorosa que um certo tipo de mulheres mais novas acha atraente. O cabelo e as sobrancelhas de um louro-acinzentado eram tão exuberantes que os espirituosos do departamento se referiam a ele como o escovilhão do quinto andar.
Oficialmente, pouco se sabia acerca da carreira de Boothby apenas que tinha feito parte das organizações de serviços secretos e contraterrorismo britânicas ao longo de toda a sua vida profissional. Vicary achava que a má-língua e os rumores que envolviam um homem diziam mais sobre ele do que o seu currículum vitae. As especulações acerca de Boothby tinham dado origem a uma atividade verdadeiramente próspera dentro do departamento. Segundo o que se
dizia, Boothby tinha dirigido uma rede de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial, que se infiltrara no estado-maior alemão. Em Deli, executou ele próprio um indiano acusado do assassínio de um cidadão britânico. Na Irlanda, espancou um homem até à morte com a coronha da pistola por se recusar a divulgar a localização de um esconderijo de armas. Era especializado em artes marciais e utilizava o tempo livre para manter a sua perícia. Era ambidestro e conseguia escrever, fumar, beber o gim e a cerveja amarga ou partir um pescoço com qualquer uma das mãos. Jogava ténis tão bem que poderia ter ganho o torneio de Wimbledon. Enganadora era a palavra utilizada mais frequentemente para descrever a forma como jogava e a capacidade para mudar de mão a meio de um jogo continuava a desconcertar os adversários. A sua vida sexual era muito discutida e debatida
- um mulherengo implacável que tinha levado para a cama metade das datilógrafas e das raparigas da divisão dos Registos e, simultaneamente, homossexual.
Na opinião de Vicary, Sir Basil Boothby simbolizava tudo o que havia de errado nos serviços secretos britânicos entre as duas guerras mundiais - o inglês de boas famílias, educado em Eton e Oxford, que achava que o exercício secreto do poder era um direito adquirido por nascimento, tal como a fortuna da família e a mansão secular em Hampshire. Inflexível, indolente, ortodoxo, um polícia de sapatos feitos à mão e fato da Savile Row. Boothby tinha sido eclipsado intelectualmente pelos novos recrutas atraídos para o MI5 desde o início da guerra - os melhores cérebros das universidades, os melhores advogados dos escritórios mais prestigiados de Londres. Naquele momento, encontrava-se numa posição nada invejável - a supervisionar homens que eram mais espertos do que ele, ao mesmo tempo que tentava ficar com os louros burocráticos pelas façanhas deles.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Alfred. Tive uma reunião nas Salas de Guerra Subterrâneas com Churchill, o diretor-geral, Menzies e Ismay. Receio bem que tenhamos uma grave crise nas nossas mãos. vou beber brandy com soda. O que vai tomar?
- Uísque - respondeu Vicary, observando Boothby.
Apesar de ser um dos agentes mais importantes do MI5, Boothby ainda tinha um orgulho infantil em pronunciar os nomes das pessoas poderosas com quem se encontrava regularmente. O grupo de
homens que se tinha acabado de reunir na fortaleza subterrânea do primeiro-ministro era a elite da comunidade dos serviços secretos britânica durante o período da guerra - o diretor-geral do MI5, Sir David Petrie; o diretor-geral do MI6, Sir Stewart Menzies; e o chefe da equipa pessoal de Churchill, o general Sir Hastings Ismay. Boothby carregou num botão na mesa e pediu à secretária para trazer a bebida de Vicary. Foi até à janela, levantou a cortina opaca e olhou lá para fora.
- Peço a Deus que não venham outra vez hoje à noite, a maldita Luftwaffe. Era diferente em 1940. Era tudo novo e excitante, de um modo estranho. Transportar o próprio capacete de aço debaixo do braço para ir jantar. Correr para os abrigos. Assistir ao fogo nos telhados. Mas não acho que Londres consiga suportar outro inverno com uma Blitz em plena força. As pessoas estão todas tão cansadas. Cansadas, esfomeadas, esfarrapadas e fartas das humilhações mesquinhas que acompanham uma guerra. Não sei bem quanto mais é que este país consegue aguentar.
A secretária de Boothby trouxe a bebida de Vicary. Vinha no centro de uma bandeja de prata, em cima de um guardanapo de papel branco. Boothby tinha uma obsessão com as manchas de água na mobília do escritório. Sentou-se numa cadeira ao lado de Vicary e cruzou as pernas compridas, com a biqueira do sapato engraxado a apontar para a rótula de Vicary como uma arma carregada.
- Temos uma nova missão para si, Alfred. E de modo que possa compreender verdadeiramente a sua importância, decidimos que é necessário levantar um pouco o véu e mostrar-lhe um bocadinho mais do que lhe foi permitido ver até agora. Compreende o que lhe estou a dizer?
- Creio que sim, Sir Basil.
- O Alfred é que é o historiador. Sabe muito acerca de Sun-Tzu?
- A China do século iv a.C. não é propriamente a minha área, Sir Basil. Mas já o li.
- E sabe o que é que Sun-Tzu escreveu sobre o logro militar, Alfred?
- Sun-Tzu escreveu que toda a guerra tem por base o logro. Pregava que todas as batalhas eram ganhas ou perdidas antes de sequer serem travadas. O conselho era simples...
ataca o inimigo quando ele está desprevenido e surge onde não és esperado. Disse que era vital minar o inimigo, subvertê-lo e corrompê-lo, semear a discórdia interna entre os seus líderes e destruí-lo sem o combater.
- Muito bem, Alfred - exclamou Boothby, visivelmente impressionado. - Infelizmente, nunca seremos capazes de destruir Hitler sem o combatermos. E para termos alguma hipótese de o derrotar num combate, temos de o enganar primeiro. Temos de prestar atenção a essas palavras sábias de Sun-Tzu. Temos de surgir onde não somos esperados.
Boothby levantou-se, dirigiu-se à secretária e trouxe uma pasta segura. Era de metal - da cor da prata polida - e tinha algemas presas à pega.
- Está prestes a ser Bigoted- disse Boothby, abrindo a pasta.
- Peço desculpa?
- Bigoted- é uma classificação ultrassecreta desenvolvida especialmente para ocultar a invasão. O nome vem de um selo que colocámos em documentos transportados por agentes britânicos para Gibraltar para a invasão do Norte de África. To Gib - para Gibraltar. Apenas pusemos as letras ao contrário. To Gib tornou-se BIGOT.
- Estou a perceber - disse Vicary.
Quatro anos depois de ter chegado ao MI5, Vicary ainda considerava ridículos muitos dos nomes de código e classificações de segurança.
- BIGOT refere-se agora a quem conheça o segredo mais importante da Operação Overlord... o momento e o local da invasão da França. Se souber o segredo, é um BIGOT. Todos os documentos relacionados com a invasão levam um selo BIGOT.
Boothby abriu a pasta, meteu a mão lá dentro e tirou um dossiê bege. Pousou-o cuidadosamente na mesa de café. Vicary olhou para a capa e de seguida para Boothby. Estava identificada com a espada e o escudo do SHAEF - o Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas - e carimbada com um selo BIGOT. Por baixo, estavam as palavras Plano Bodyguard [Escolta], seguidas pelo nome de Boothby e um número de distribuição.
- É uma irmandade muito pequena aquela em que está prestes a entrar... apenas algumas centenas de agentes - retomou Boothby. E há quem ache que isso já é demasiado. E também o devo informar de que os seus antecedentes pessoais e profissionais foram amplamente investigados. Nenhuma pedra ficou por virar, como se costuma dizer. Fico feliz por lhe transmitir que não é membro conhecido de nenhuma organização fascista ou comunista, que não bebe em excesso, pelo menos em público, que não anda com mulheres dissolutas e que não é homossexual nem qualquer outro tipo de depravado sexual.
- É bom saber.
- E também o devo informar de que pode ser alvo de verificações de segurança e vigilância adicionais em qualquer altura. Nenhum de nós foi isentado disso. Nem mesmo o general Eisenhower.
- Compreendo, Sir Basil.
- Muito bem. Primeiro, gostava de lhe fazer uma pergunta ou duas. O seu trabalho tem-se debruçado sobre a invasão. O número de casos que tratou tem-lhe dado uma ideia sobre alguns dos preparativos. Onde acha que planeamos atacar?
- Baseado no pouco que sei, diria que os vamos atacar na Normandia.
- E como é que avalia as possibilidades de sucesso de um desembarque na Normandia?
- As invasões anfíbias são, por natureza, a mais complexa de todas as operações militares - respondeu Vicary. - Especialmente quando envolvem o canal da Mancha. Júlio César e Guilherme, o Conquistador, conseguiram fazê-lo. Napoleão e os espanhóis falharam. Hitler acabou por desistir em 1940. Eu diria que as probabilidades de uma invasão bem-sucedida não ultrapassam os cinquenta por cento.
Boothby resmungou:
- Se tanto, Alfred, se tanto.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete.
- Até agora, conseguimos levar a bom porto três operações anfíbias... Norte de África, Sicília e Salerno. Mas nenhum desses desembarques envolveu uma costa fortificada.
Boothby parou de caminhar e olhou para Vicary.
- Tem razão, já agora. É na Normandia. E está agendado para o final da primavera. E para termos sequer essas suas probabilidades de sucesso de cinquenta por cento,
Hitler e os generais deles têm de pensar que vamos atacar noutro lugar - revelou Boothby, sentando-se e pegando no dossiê. -
É por isso que desenvolvemos isto: chama-se
Plano Bodyguard. Sendo historiador, acho que terá uma estima especial pelo Plano Bodyguard. É uma ruse deguerre de uma amplitude e ambição nunca antes tentadas.
O nome de código não significava nada para Vicary. Boothby prosseguiu com a sua palestra de doutrinação:
-Já agora, o Plano Bodyguard chamava-se Plano Jael. Recebeu o seu novo nome por respeito a uma observação bastante eloquente que o primeiro-ministro fez a Estaline,
em Teerão. Churchill disse: Em tempo de guerra, a verdade é Ião preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras. O Velho tem um certo jeito
para as palavras, reconheço-lhe. O Plano Bodyguard não é apenas uma operação.
É o nome de código para todas as operações estratégicas de cobertura e logro que serão
levadas a cabo numa escala global, com o intuito de enganar Hitler e o seu cstado-maior em relação às nossas intenções no Dia D.
Boothby pegou no dossiê e folheou-o furiosamente.
- A componente mais importante do Plano Bodyguard é a Operação Fortitude [Fortaleza]. O objetivo da Fortitude é atrasar ao máximo a reação da Wehrmacht à invasão,
levando-os a acreditar que outras partes do noroeste da Europa também estão sob ameaça direta de ataque, especificamente a Noruega e o Pas-de-Calais.
"O nome de código do logro norueguês é Fortitude Norte. O objetivo é forçar Hitler a deixar vinte e sete divisões na Escandinávia, convencendo-o de que planeamos atacar a Noruega, antes ou mesmo depois do Dia D. A Fortitude Su] é a mais crucial e, atrevo-me a dizer, a mais perigosa das duas operações.
Boothby passou para outra página do dossiê e suspirou profundamente.
- O objetivo da Fortitude Sul é convencer lentamente Hitler, os generais e os agentes secretos dele de que pretendemos organizar não
uma invasão da França, mas duas. O primeiro ataque, de acordo com a Fortitude Sul, deverá ser uma manobra de diversão na baía do Sena, na Normandia. O segundo ataque,
o golpe principal, terá lugar três dias mais tarde, do outro lado do estreito de Dover, em Calais. A partir de Calais, os nossos exércitos invasores podem seguir
diretamente para leste e entrar na Alemanha em poucas semanas - explicou Boothby, fazendo uma pausa para dar um gole no brandy com soda e permitir que as suas palavras
fossem assimiladas. - Segundo a Operação Fortitude, o objetivo do primeiro assalto é forçar Rommel e Von Rundstedt a lançarem as unidades Panzer de elite do Décimo
Quinto Exército Alemão na Normandia, deixando assim Calais desprotegida quando a verdadeira invasão ocorrer. Obviamente, nós queremos que aconteça o contrário. Queremos que os Panzers do Décimo Quinto Exército se mantenham em Calais, à espera da verdadeira invasão, paralisados pela indecisão, enquanto desembarcamos na Normandia.
- De uma simplicidade brilhante.
- Absolutamente - retorquiu Boothby. - Mas com uma fraqueza flagrante. Não dispomos de homens suficientes para a levar a cabo. No final da primavera, haverá apenas trinta e sete divisões no Reino Unido, americanas, britânicas e canadianas, o que mal chega para organizar um ataque contra a França, muito menos dois. Para que a Operação Fortitude tenha alguma possibilidade de sucesso, temos de convencer Hitler e os seus generais de que temos as divisões necessárias para organizar duas invasões.
- E como raio vamos fazer isso?
- Ora, vamos criar simplesmente um exército de um milhão de homens. Vamos fazê-lo aparecer como que por encanto, a partir, receio bem, do nada.
Vicary deu um gole na bebida e olhou fixamente para Boothby, de rosto incrédulo.
- Não podem estar a falar a sério.
- Podemos, sim, Alfred, estamos a falar muito a sério. Para que a invasão tenha a tal hipótese em duas de ser bem-sucedida, temos de convencer Hitler, Rommel e Von Rundstedt de que dispomos de uma força gigantesca e poderosa dissimulada nas falésias de Dover,
à espera para atacar em força o outro lado do canal da Mancha, em Calais. Não a teremos, como é óbvio. Mas, quando terminarmos, os alemães vão acreditar que se encontram face a uma força viva e verdadeira, com umas trinta divisões. Se não acreditarem que essa força existe, se falharmos e perceberem o nosso logro, há uma grande probabilidade de o regresso à Europa, como Churchill lhe chama, acabar num fracasso sangrento e cataclísmico.
- E esse exército fantasma tem nome? - perguntou Vicary.
- Naturalmente: o First United States Army Group. FUSAG, para abreviar. Até tem um comandante, o próprio Patton. À sua disposição, Patton terá à volta de um milhão de homens. Correspondendo maioritariamente a nove divisões do Terceiro Exército dos Estados Unidos e a duas divisões do Primeiro Exército Canadiano. O FUSAG até tem um quartel-general em Londres, em Bryanston Square.
Vicary pestanejou rapidamente, tentando digerir as informações extraordinárias que estava a receber. Imagine-se, criar um exército de um milhão de homens a partir do nada. Boothby tinha razão: era uma rase de guerre de proporções inimagináveis. Fazia o cavalo de Tróia de Ulisses parecer uma brincadeira de crianças.
- Hitler não é nenhum tolo, nem os generais dele. Aprenderam bem as lições de Clausewitz e Clausewitz deu alguns conselhos muito valiosos sobre a espionagem em tempo de guerra: Grande parte das informações obtidas na guerra é contraditória, uma parte ainda considerável é falsa
e, de longe, a maior parte é duvidosa. Os alemães não vão acreditar que existe um exército de um milhão de homens acampado na zona rural de Kent só porque nós lhes dizemos que assim é.
Boothby sorriu, voltou a meter a mão na pasta e tirou outro dossiê.
- É verdade, Vicary. E foi por isso que inventámos isto: a Operação Mercury. O objetivo da Operação Mercury é dar carne e ossos ao nosso pequeno exército de fantasmas. Nas próximas semanas, à medida que as forças fantasma do FUSAG começarem a chegar ao Reino Unido, vamos inundar as ondas rádio de tráfego, com algumas comunicações enviadas em códigos que sabemos que os alemães já quebraram e outras en clair. Tudo tem de ser perfeito, exatamente como aconteceria se fôssemos colocar um verdadeiro exército de um milhão de homens em Kent. Quartéis-mestres a queixarem-se da falta
de tendas. Messes insurgindo-se contra a escassez de comida e de talheres. Conversas via rádio durante os exercícios. A partir deste momento e até à invasão, vamos bombardear os postos de escuta deles no norte da França com perto de um milhão de mensagens. E algumas dessas mensagens darão aos alemães uma pequena pista, ínfimas informações sobre a localização das forças ou o seu posicionamento. Obviamente, queremos que os alemães descubram essas pistas e se agarrem a elas.
- Um milhão de mensagens via rádio? Como é isso possível?
- com o US 3103 Signals Service Battalion. Vão trazer uma equipa formidável - atores da Broadway, estrelas da rádio, especialistas em vozes. Homens que conseguem imitar o sotaque de um judeu de Brooklyn num minuto e o horrível tom arrastado de um trabalhador agrícola do Texas no outro. Vão gravar as mensagens falsas num estúdio, em discos de dezasseis polegadas, e depois emiti-las em camiões a circular pela zona rural de Kent.
- Inacreditável - exclamou Vicary baixinho.
- Sim, completamente. E isso é só uma parte. A Operação Mercury é responsável pelo que os alemães vão ouvir através do ar. Mas também temos de ter em conta o que eles vão ver a partir ao ar. Temos de fazer com que pareça que um gigantesco exército se está a reunir lenta e metodicamente no canto sudeste do país. Tendas que cheguem para albergar um milhão de homens, uma gigantesca armada de aviões, tanques e barcos de desembarque. Até vamos construir o raio de um depósito de gasolina em Dover.
Vicary disse:
- Mas, Sir Basil, de certeza que não dispomos de aviões, tanques e lanchas de desembarque suficientes para desperdiçar num logro.
- Claro que não. Vamos ser nós próprios a construí-los, com contraplacado e lona. Vistos do solo, vão parecer exatamente o que são: falsificações toscas e preparadas à pressa. Mas vistos do ar, pelas objetivas das câmaras de vigilância da Luftwaffe, vão parecer verdadeiros.
- E como podemos ter a certeza de que os aviões de vigilância vão conseguir penetrar nas nossas defesas?
Boothby fez um grande sorriso, terminou a bebida e acendeu um cigarro calmamente.
- Agora está a compreender, Alfred. Nós temos a certeza de que eles vão conseguir penetrar nas nossas defesas porque vamos deixar. Nem todos, claro. Eram capazes de perceber que havia marosca se fizéssemos isso. A RAF e os aviões americanos vão patrulhar constantemente os céus sobre o nosso FUSAG. E vão perseguir alguns dos invasores. Mas a alguns deles, apenas àqueles que estiverem a voar acima dos trinta mil pés, devo acrescentar, será permitido penetrar. Se tudo correr de acordo com o guião, os analistas de vigilância aérea de Hitler vão dizer-lhe a mesma coisa que os agentes responsáveis pelas escutas no norte da França lhe estão a dizer, que existe uma gigantesca força aliada a postos no Pas-de-Calais.
Vicary estava a abanar a cabeça.
- Comunicações via rádio e fotografias aéreas, duas das formas que os alemães têm para recolher informações acerca das nossas intenções. A terceira forma é, claro, através de espiões.
Mas sobravam realmente alguns espiões? Em setembro de 1939, no dia em que a guerra rebentou, o MI5 e a Scotland Yard empreenderam uma gigantesca rusga, reunindo todos aqueles de que desconfiavam. Foram todos presos, transformados em agentes duplos ou enforcados. Em maio de 1940, quando Vicary chegou, o MI5 estava prestes a capturar os novos espiões que Canaris enviava para Inglaterra para recolherem informações sobre a futura invasão. Esses novos espiões sofreram o mesmo destino que a vaga anterior.
Caçador de espiões não era a expressão apropriada para descrever o que Vicary fazia no MI5. Era tecnicamente um agente da Operação Double Cross [Dupla Traição]. Tinha a missão de garantir que a Abwehr continuava a acreditar que os seus espiões ainda se encontravam infiltrados, a recolher informações e a enviá-las para os agentes que os controlavam a partir de Berlim. Manter os agentes vivos, para a Abwehr, trazia vantagens óbvias. O MI5 tinha sido capaz de manipular os alemães desde o início da guerra, controlando o fluxo de informações saído das Ilhas Britânicas. Isso também fez com que a Abwehr não enviasse novos agentes para Reino Unido, já que Canaris e os agentes de controlo julgavam que a maioria dos espiões ainda se encontrava ativa.
- Exato, Alfred. A terceira fonte de informações de Hitler sobre a invasão são os espiões dele. Os espiões de Canaris, melhor dizendo.
E nós sabemos como eles são eficazes. Os agentes alemães sob o nosso controlo vão dar um contributo vital ao Plano Bodyguard, confirmando a Hitler muito do que ele consegue ver a partir dos céus e ouvir através das ondas rádio. De facto, um dos nossos agentes duplos, Tate, já foi posto em jogo.
Tate ficou com esse nome de código por causa de uma extraordinária parecença com o popular comediante de music hall Harry Tate. O seu nome verdadeiro era Wulf Schmidt, um agente da Abwehr que saltou de paraquedas de um Heinkel 111 para a zona rural de Cambridgeshire, na noite de 19 de setembro de 1940. Vicary, embora não lhe tivessem atribuído o caso Tate, sabia o essencial. Tendo passado a noite ao relento, enterrou o paraquedas e o rádio e, a seguir, dirigiu-se à povoação mais próxima. O primeiro sítio em que parou foi a barbearia de Wilfred Searle, onde comprou um relógio de bolso para substituir o relógio de pulso que tinha esmagado ao saltar do Heinkel. Depois, comprou um exemplar do Times à senhora Field, a vendedora de jornais, lavou o tornozelo inchado na bomba da povoação e tomou o pequeno-almoço num pequeno café. Por fim, às dez da manhã, foi preso pelo soldado tom Cousins, da reserva territorial da zona. No dia seguinte, levaram-no de carro para as instalações de interrogatório do MI5, em Ham Common, no condado de Surrey, e foi aí que, após treze dias de interrogatório, Tate concordou em trabalhar como agente duplo e enviar mensagens da Operação Double Cross para Hamburgo através do rádio.
- A propósito, Eisenhower está em Londres. Do nosso lado, só um número muito restrito é que sabe disso. No entanto, Canaris sabe disso. E agora Hitler também o sabe. Na verdade, os alemães sabiam que Eisenhower estava cá antes de ele se instalar para passar a primeira noite em Hayes Lodge. E sabiam que ele estava cá porque Tate lhes disse que ele estava cá. Foi perfeito, claro, uma informação aparentemente importante, mas no entanto completamente inofensiva. Agora, a Abwehr acha que Tate tem uma fonte importante e credível dentro do SHAEF. Essa fonte será crucial à medida que a invasão se aproximar. Vão dar uma mentira importante a Tate para ele transmitir. E, com alguma sorte, a Abwehr também vai acreditar nela.
"Nas próximas semanas, os espiões de Canaris vão começar a ver sinais de um grande aumento de homens e material no sudeste de Inglaterra. Vão ver tropas canadianas e americanas. Vão ver acampamentos e áreas de reagrupamento. Vão ouvir histórias do povo britânico acerca dos terríveis inconvenientes de ter tantos soldados amontoados num lugar tão pequeno. Vão ver o general Patton a andar pelas povoações da East Anglia com as suas botas engraxadas e o seu revólver com a coronha de marfim. Os que forem bons até vão ficar a saber os nomes dos comandantes de topo deste exército e enviar esses nomes para Berlim. A sua própria rede da Operação Double Cross vai desempenhar um papel decisivo, Alfred.
Boothby parou por uns instantes, esmagou o cigarro e acendeu outro logo de imediato.
- Mas o Alfred está a abanar a cabeça. Suspeito que tenha descoberto o calcanhar de Aquiles de todo este plano de logro.
Os lábios de Vicary curvaram-se num sorriso cuidadoso. Porventura, Boothby, sabendo do amor de Vicary pela história e tradições gregas, percebera que ele iria pensar automaticamente na Guerra de Tróia ao ser informado dos pormenores da Operação Fortitude.
- Posso? - perguntou Vicary, apontando para o maço de cigarros Player's. - Acho que deixei os meus lá em baixo.
- Claro - respondeu Boothby, passando o maço a Vicary e oferecendo-lhe a chama do seu isqueiro.
- Aquiles morreu depois de ser atingido por uma seta no seu único ponto vulnerável, o calcanhar - disse Vicary. - O calcanhar de Aquiles da Operação Fortitude é o facto de poder ir por água abaixo com um relatório genuíno de uma fonte em que Hitler confie. Será necessário manipular por completo todas as fontes de informação que Hitler e os seus agentes secretos possuam. Têm todas de ser envenenadas para que a Operação Fortitude funcione. Hitler tem de ser apanhado numa rede completa de mentiras. Se uma nesga de verdade conseguir passar, todo o estratagema poderá ir por água abaixo.
Parando para fumar o seu Player's, Vicary não pôde resistir a estabelecer um paralelo histórico.
- Quando acabaram com Aquiles, a armadura dele foi dada a Ulisses. A nossa armadura, receio bem, vai ser dada a Hitler.
Boothby pegou no copo vazio e girou-o conscientemente na sua larga palma da mão.
- Esse é o perigo inerente a todos os logros militares, não é, Alfred? Indicam quase sempre o caminho para a verdade. O general Morgan, o autor do plano da invasão,
disse-o melhor. Bastaria um espião decente alemão percorrer a costa sul de Inglaterra, da Cornualha a Kent. Se isso acontecesse, tudo isto desabaria. E, ao mesmo tempo, as esperanças da Europa. E foi por isso que estivemos a noite toda enfiados numa sala com o primeiro-ministro e é por isso que o Alfred está aqui agora.
Boothby levantou-se e recomeçou a andar lentamente de um lado para o outro do gabinete.
- A partir deste momento, estamos a agir partindo do pressuposto de que envenenámos de facto todas as fontes de informação de Hitler. E também estamos a agir partindo do pressuposto de que temos todos os espiões de Canaris no Reino Unido contabilizados e de que nenhum está a atuar fora do nosso controlo. Não nos estaríamos a lançar num estratagema como a Operação Fortitude se não fosse esse o caso.
Boothby afastou-se da fraca luz do candeeiro e desapareceu num canto escuro do gabinete.
- Na semana passada, Hitler organizou uma conferência em Rastenburg. Estiveram lá os pesos pesados todos, Rommel, Von Rundstedt, Canaris e Himmler. O assunto foi a invasão. Especificamente, o momento e o local da invasão. Hitler encostou uma arma à cabeça de Canaris - figurativamente, não literalmente - e ordenou-lhe que descobrisse a verdade ou teria de enfrentar consequências bastante penosas. Canaris, por sua vez, atribuiu essa tarefa a um homem da sua equipa chamado Vogel, Kurt Vogel. Até agora, sempre acreditámos que Kurt Vogel era o conselheiro legal de Canaris. Como é óbvio, estávamos enganados. A sua missão, Alfred, é garantir que Kurt Vogel não descobre a verdade. Não tive oportunidade de ler o dossiê dele. Suspeito que a divisão dos Registos possa ter alguma coisa sobre ele.
- Certo - exclamou Vicary.
Boothby estava outra vez iluminado pela ténue luz. Franziu o sobrolho ligeiramente, como se tivesse ouvido por acaso alguma coisa
desagradável na sala ao lado, e depois mergulhou num longo silêncio especulativo.
- Alfred, quero que uma coisa fique completamente clara desde o início deste caso. O
primeiro-ministro insistiu para que a missão lhe fosse atribuída a si, perante
as enérgicas objeções do diretor-geral e as minhas.
Vicary fitou Boothby olhos nos olhos por um momento e, a seguir, sentindo-se embaraçado com o comentário, desviou o olhar. Deixou que os olhos divagassem pelas paredes.
Pelas dezenas de fotografias de Sir Basil com pessoas famosas. Pelo painel de carvalho muito bem polido. Pelo velho remo pendurado na parede, estranhamente desenquadrado naquele cenário formal. Talvez fosse uma recordação de tempos mais felizes e menos complicados, pensou Vicary. De um rio gelado ao nascer do Sol. De Oxford contra Cambridge. De viagens de comboio para casa em tardes frescas de outono.
- Permita-me que lhe explique o comentário. O Alfred tem feito um ótimo trabalho. A sua rede Becker tem-se revelado um sucesso assombroso. Mas tanto o diretor-geral
como eu achamos que um homem mais experiente se poderia adequar melhor a um caso como este.
- Compreendo - retorquiu Vicary.
Um homem mais experiente significava um oficial de carreira e não um desses novos recrutas de que Boothby desconfiava tanto.
- Mas, obviamente - retomou Boothby -, não fomos capazes de convencer o primeiro-ministro de que o Alfred não era o melhor homem para este caso. Por isso, é seu. Vá-me atualizando regularmente sobre os desenvolvimentos. E boa sorte, Alfred. Suspeito que vá precisar.
SETE LONDRES
Em janeiro de 1944, o clima tinha reocupado o seu lugar enquanto obsessão principal do povo britânico. O verão e outono tinham sido invulgarmente secos e quentes;
o inverno, quando chegou, invulgarmente frio. Nevoeiros gelados subiam do rio, assolavam Westminster e Belgravia, pairavam como o fumo de um revólver sobre as ruínas de Battersea e Southwark. A Blitz era pouco mais do que uma recordação longínqua. As crianças tinham regressado. Enchiam as lojas de brinquedos e os grandes armazéns, com as mães a reboque, trocando prendas de Natal que não queriam por artigos mais convenientes. Na noite de Ano Novo, grandes multidões atolaram Piccadilly Circus. Tudo poderia até ter parecido normal, não fosse a celebração ter tido lugar na escuridão do blackout. Mas, passados alguns dias, a Luftwaffe, depois de uma longa e agradável ausência, regressou aos céus de Londres.
Às oito horas dessa noite, Catherine Blake correu pela ponte de Westminster. Havia incêndios ao longo do East End e das docas, projéteis luminosos e holofotes cruzavam o céu noturno. Catherine conseguia ouvir o baque surdo do fogo proveniente das baterias antiaéreas em Hyde Park e ao longo do Embankment e sentir o sabor acre do fumo vindo dos céus. Sabia que a aguardava uma noite longa e atarefada.
Virou para a Lambeth Palace Road e ocorreu-lhe um pensamento absurdo - estava absolutamente esfomeada. Nunca houvera tão
pouca comida disponível. O outono seco e o frio implacável do inverno tinham-se aliado para eliminar quase todas as verduras do país. As batatas e as couves-de-bruxelas eram iguarias. Os nabos e as rutabagas eram os únicos alimentos abundantes. Pensou: Se eu tiver de comer mais um nabo, dou um tiro na cabeça. Ainda assim, suspeitava que as coisas estariam muito piores em Berlim.
Um polícia - um homem baixo e gordo que parecia demasiado velho para entrar no exército - vigiava a entrada da Lambeth Palace Road. Levantou a mão e, gritando acima dos uivos das sirenes de ataque aéreo, pediu-lhe a identificação.
Como sempre, o coração de Catherine pareceu parar.
Mostrou-lhe um distintivo que a identificava como membro do Serviço de Voluntariado Feminino. O polícia deu uma olhadela ao distintivo e depois à cara dela. Catherine tocou no ombro do polícia e inclinou-se para ele de modo que quando falasse ele sentisse a respiração dela no ouvido. Era uma técnica que utilizava há vários anos para neutralizar os homens.
Catherine disse:
- Sou enfermeira voluntária no Hospital St. Thomas.
O polícia levantou os olhos. Pela expressão que tinha no rosto, Catherine percebeu que ele já não era uma ameaça. Estava a sorrir estupidamente, contemplando-a como se tivesse acabado de se apaixonar. A reação não era nenhuma novidade para Catherine. Ela era extraordinariamente bonita e tinha utilizado essa beleza como uma arma durante toda a vida.
O polícia devolveu-lhe a sua identificação.
- As coisas estão muito más?
- Bastante: tenha cuidado e mantenha a cabeça baixa.
A necessidade de ambulâncias em Londres excedia de longe a oferta. As autoridades deitavam a mão a tudo o que pudesse servir, carrinhas de entrega, camiões do leite, qualquer coisa com quatro rodas, um motor e espaço na parte de trás para um ferido e um médico. Catherine reparou numa cruz vermelha pintada sobre o nome desbotado de uma popular padaria local, numa das ambulâncias que seguiam em catadupa para a entrada das urgências do hospital.
Catherine começou a andar mais depressa, seguindo a ambulância, e entrou no hospital. A confusão era total. As urgências estavam
cheias de feridos. Pareciam estar por todo o lado: no chão, nos corredores, até mesmo no posto das enfermeiras. Alguns gritavam. Outros estavam sentados a olhar espantados, demasiado aturdidos para compreenderem o que lhes tinha acontecido. Dezenas de doentes ainda não tinham sido vistos por um médico ou uma enfermeira. E a cada minuto chegavam mais.
Catherine sentiu uma mão no ombro.
- Não há tempo para ficar aí especada, Miss Blake. Catherine virou-se e viu o rosto severo de Enid Pritt. Antes da
guerra, Enid era uma mulher simpática, por vezes confusa, acostumada a lidar com casos de gripe e, de vez em quando, com quem fosse derrotado numa luta de navalhas à porta de um pub, num sábado à noite. Tudo isso tinha mudado com a guerra. Andava direita como uma estaca e falava numa voz clara de parada militar, nunca utilizando mais do que as palavras necessárias para se referir a um assunto. Dirigia uma das enfermarias mais movimentadas de toda a cidade de Londres sem qualquer dificuldade. Um ano antes, o marido, de vinte e oito anos, morrera na Blitz. Enid Pritt não tinha feito luto. Isso podia esperar até que os alemães fossem derrotados.
- Não os deixe perceberem aquilo em que está a pensar, Miss Blake - disse Enid Pritt rispidamente. - Assusta-os ainda mais. Tire o casaco e mãos à obra. Há pelo menos cento e cinquenta feridos só neste hospital e as morgues estão a encher-se rapidamente. Disseram-me para esperar ainda mais gente.
- Já não via isto assim desde setembro de 1940.
- É por isso que eles precisam de si. Agora, mãos à obra, minha menina, o mais depressa que puder.
Enid Pritt atravessou as urgências como um comandante num campo de batalha. Catherine observou-a a repreender outra jovem enfermeira por causa de um curativo desajeitado. Enid Pritt não tinha favoritas, era dura com todas as enfermeiras e voluntárias. Catherine pendurou o casaco e avançou por um corredor cheio de feridos. Começou por uma rapariguinha que estava a apertar um urso de peluche esfarrapado e chamuscado.
- Onde te dói, pequenina?
- No braço.
Catherine enrolou a manga da camisola da rapariga, deixando ver um braço que se encontrava obviamente partido. A criança estava em choque e não tinha consciência da dor. Catherine manteve-a a falar, tentando com que não pensasse na ferida.
- Como te chamas, querida? -;
- Ellen.
- E onde moras?
- Em Stepney, mas a nossa casa já não está lá. A voz dela estava calma e não revelava emoção.
- E onde estão os teus pais? Estão aqui contigo?
- O bombeiro disse-me que agora estão com Deus. Catherine não disse nada, apenas segurou a mão da menina.
- O médico já vem ver-te. Fica só quietinha e não tentes mexer o braço. Está bem, Ellen?
- Sim - respondeu ela. - És muito bonita. Catherine sorriu.
- Obrigada. Queres saber uma coisa?
- O quê?
- Tu também.
Catherine avançou novamente pelo corredor. Um homem de idade, com uma contusão no cimo da careca, olhou para ela enquanto Catherine examinava a ferida.
- Estou ótimo, menina. Há muita gente pior do que eu. Olhe por eles primeiro.
Ela alisou-lhe o parco e desgrenhado cabelo grisalho e fez o que ele pediu. Era uma qualidade que ela tinha visto nos ingleses uma e outra vez. Era um disparate
Berlim retomar a Blitz. Quem lhe dera que lhe fosse permitido dizer-lhes isso.
Catherine continuou a avançar pelo corredor, cuidando dos feridos, ouvindo as histórias deles enquanto trabalhava.
- Eu estava na cozinha a servir-me da porra de uma chávena de chá quando BOOM! Uma bomba de quatrocentos e cinquenta quilos rebenta-me mesmo à porra da porta de
casa. Quando dei por mim, estou estatelado de costas no meio do que dantes era o meu jardim, a olhar para uma pilha de destroços que dantes era a porra da minha
casa.
- Tem cuidado com a língua, George. Estás a ser mal-educado. Além disso, há crianças aqui.
Isso não foi assim tão mau, companheiro. A casa em frente
à minha, do outro lado da rua, apanhou com uma bomba mesmo em cima. Uma família de quatro pessoas, gente boa, exterminada.
Uma bomba caiu ali perto; o hospital estremeceu.
Uma freira, gravemente ferida, abençoou-se e começou a dizer um pai-nosso para que as outras pessoas a acompanhassem.
- Vai ser preciso mais do que uma oração para expulsar a Luftwaffe dos céus hoje à noite, irmã.
- ... venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade...
- Perdi a minha mulher na Blitz de 1940. Acho que também devo ter perdido a minha única filha esta noite.
- ... assim na Terra como no Céu...
- Que guerra, irmã, que porra de guerra.
- ... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
- Sabes, Mervin, tenho a impressão de que Hitler não gosta muito de nós.
- Também reparei nisso.
Nas urgências irromperam gargalhadas.
Dez minutos mais tarde, quando a freira decidiu que a oração tinha chegado ao fim, começou a inevitável cantoria.
- ... Atira capara fora o barril... Catherine abanou a cabeça.
- ... Vamos ter um barril de alegria...
Mas, passado um momento, deu por si a cantar com o resto das pessoas.
Na manhã seguinte, eram oito horas quando entrou no seu apartamento. O correio da manhã tinha chegado. A senhoria, a senhora Hodges, enfiava-lho sempre por baixo da porta. Catherine curvou-se, apanhou o correio e lançou de imediato três dos envelopes no caixote do lixo da cozinha. Não precisava de os ler porque ela mesma os tinha escrito e enviado de diferentes locais de Londres. Em circunstâncias normais, Catherine não receberia cartas pessoais, já que não
tinha amigos nem família no Reino Unido. Mas seria estranho que uma rapariga atraente e educada nunca se correspondesse com ninguém - e a senhora Hodges era um pouco bisbilhoteira - e, por isso, Catherine lançou-se num intricado estratagema para garantir que recebia um fluxo constante de postais e cartas pessoais.
Foi à casa de banho e abriu as torneiras por cima da banheira. A pressão era baixa, a água gotejava da torneira num fio, mas pelo menos estava quente. Havia pouca água por causa do verão e outono secos e o governo ameaçava racioná-la também. Encher a banheira demoraria alguns minutos.
Quando foi recrutada, Catherine Blake não estava em posição de fazer exigências, mas tinha feito uma - dinheiro que lhe permitisse viver confortavelmente. Tinha
sido educada em grandes casas geminadas e em vastas propriedades rurais - os pais eram da classe alta, e passar a guerra numa pensão qualquer parecida com um casebre, partilhando uma casa de banho com seis outras pessoas, estava fora de questão. Segundo o seu disfarce, era uma viúva de guerra, de uma família da classe média de respeitáveis recursos, e o apartamento assentava na perfeição - um conjunto de divisões, modesto mas confortável, numa casa vitoriana em Earl's Court.
A sala de estar era acolhedora, parcamente mobilada, embora um estranho pudesse ficar impressionado com a completa ausência de artigos pessoais. Não havia fotografias nem lembranças. Tinha um quarto com uma cama de casal confortável, uma cozinha com todos os eletrodomésticos modernos e a sua própria casa de banho, com uma grande banheira.
O apartamento tinha outras características que uma inglesa comum a viver sozinha poderia não exigir. Ficava no último piso, onde a mala rádio AFU podia receber transmissões de Hamburgo com pouca interferência, e a janela de sacada vitoriana, na sala de estar, tinha uma vista desimpedida da rua lá em baixo.
Dirigiu-se para a cozinha e colocou uma chaleira de água ao lume. O trabalho de voluntariado consumia-lhe tempo e deixava-a exausta, mas era essencial para o disfarce. Toda a gente estava a fazer alguma coisa para ajudar. Não iria parecer bem uma rapariga saudável
e sem família não fazer nada em prol do esforço de guerra. Ir trabalhar para uma fábrica de munições era arriscado - o disfarce poderia não resistir a uma verificação de antecedentes minuciosa - e alistar-se no ramo feminino da Marinha Real Britânica estava fora de questão. O Serviço de Voluntariado Feminino era a solução de compromisso perfeita. Precisavam desesperadamente de pessoas. Quando Catherine se candidatou, em setembro de 1940, foi colocada ao serviço nessa mesma noite. Tratava de feridos no Hospital St. Thomas e distribuía livros e biscoitos no metropolitano durante os ataques aéreos noturnos. A julgar pelas aparências, era a rapariga inglesa modelo a cumprir o seu dever.
Por vezes, não podia deixar de se rir.
A chaleira apitou. Voltou para a cozinha e fez chá. Como todos os londrinos, tinha ficado viciada em chá e cigarros; parecia que o país inteiro vivia de tanino e tabaco e Catherine não era exceção. Tinha esgotado a ração de leite em pó e de açúcar e, por isso, bebeu o chá sem mais nada. Em momentos como aquele, sentia saudades do café forte e amargo de casa e de um pedaço de bolo de Berlim.
Terminou a primeira chávena de chá e encheu a segunda. Queria tomar banho, enfiar-se na cama e dormir sem parar, mas tinha trabalho a fazer e precisava de se manter acordada. Teria chegado a casa uma hora mais cedo se se deslocasse por Londres como uma mulher comum. Teria atravessado Londres de metro até EarPs Court. Mas Catherine não se deslocava por Londres como uma mulher comum. Tinha apanhado um comboio, depois um autocarro, a seguir um táxi e depois outro autocarro. Tinha saído do autocarro antes da paragem indicada e feito os últimos quatrocentos metros até ao apartamento a pé, verificando constantemente se não estava a ser seguida. Quando chegou por fim a casa, estava ensopada da chuva, mas tinha a certeza de que estava só. Passados mais de cinco anos, alguns agentes poderiam ficar tentados a tornarem-se complacentes. Era uma das razões que explicavam que ela tivesse sobrevivido quando outros tinham sido presos e enforcados.
Entrou na casa de banho e despiu-se à frente do espelho. Era alta e estava em forma; vários anos de duras cavalgadas e caçadas tinham-na tornado muito mais forte do que a maioria das mulheres e muitos
homens. Era larga de ombros e tinha braços macios e firmes como uma estátua. Os seios eram redondos e pesados, muitíssimo bem feitos, e a barriga firme e lisa. Como quase toda a gente, estava mais magra do que era antes da guerra. Retirou o gancho que lhe prendia o cabelo num discreto carrapito de enfermeira, deixando-o cair para o pescoço e ombros, enquadrando-lhe o rosto. Os olhos eram de um azul muito claro - da cor de um lago prussiano, dizia-lhe o pai sempre - e as maçãs do rosto largas e proeminentes, mais alemãs do que inglesas. O nariz era comprido e delicado, a boca generosa e com lábios sensuais.
Pensou: Bem vistas as coisas, ainda és uma mulher muito atraente, Catherine Blake.
Entrou na banheira, sentindo-se de repente muito só. Vogel tinha-a advertido em relação à solidão. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão intensa. Por vezes, conseguia ser até pior do que o medo. Achava que seria preferível estar completamente só - isolada numa ilha deserta ou no cimo de uma montanha - em vez de rodeada de pessoas em que não podia tocar.
Não tinha permitido a si própria ter um amante desde o rapaz na Holanda. Sentia falta dos homens e sentia falta do sexo, mas conseguia viver sem ambos. O desejo, tal como todas as suas emoções, era algo que conseguia ligar e desligar como um interruptor. Além disso, ter um homem era difícil com o seu tipo de trabalho. Os homens tinham tendência a ficar obcecados com ela. A última coisa de que precisava era de um homem perdido de amores a investigar o seu passado.
Catherine acabou de tomar banho e saiu da banheira. Penteou o cabelo molhado rapidamente e vestiu o roupão. Foi à cozinha e abriu a porta da despensa. As prateleiras estavam vazias. A mala rádio estava na prateleira de cima. Tirou-a de lá e levou-a para a sala de estar, junto à janela, onde a receção era melhor. Abriu a tampa e ligou o rádio.
Havia outra razão que explicava que nunca tivesse sido apanhada
- Catherine não fazia transmissões. Todas as semanas, ligava o rádio por um período de dez minutos. Se Berlim tivesse ordens para ela, enviar-lhas-ia.
Durante cinco anos, não tinha havido nada, apenas o assobiar da atmosfera.
Tinha comunicado com Berlim apenas uma vez, na noite a seguir a ter assassinado a mulher em Suffolk e assumido a identidade dela. Eeatríce Pymm... Nesse momento, pensou na mulher sem sentir remorsos. Catherine era um soldado e durante a guerra os soldados eram obrigados a matar. Além disso, o crime não tinha sido gratuito - era absolutamente necessário.
Havia duas maneiras de um agente se introduzir no Reino Unido: clandestinamente, de paraquedas ou num pequeno barco, ou abertamente, como passageiro de um barco ou avião. Cada um dos métodos tinha os seus inconvenientes. Tentar introduzir-se no país sem ser detetado a partir do ar ou de um pequeno barco era arriscado. O agente poderia ser localizado ou ferir-se na queda; aprender simplesmente a saltar de paraquedas teria acrescentado meses ao treino já interminável de Catherine. O segundo método, entrar por meios legais, também acarretava os seus perigos. O agente teria de passar pela zona de controlo de passaportes. A data e o porto de entrada ficariam registados. Quando a guerra rebentasse, o MI5 iria certamente contar com esses registos para localizar os espiões. Se um estrangeiro entrasse no país e nunca mais saísse, o MI5 poderia assumir com segurança que essa pessoa era um agente alemão. Vogel engendrou uma solução - entrar no Reino Unido de barco, em segurança, e a seguir eliminar o registo da entrada eliminando a pessoa em causa. Simples, tirando uma coisa - era necessário um cadáver. Beatrice Pymm, ao morrer, tornou-se Christa Kunst. O MI5 nunca descobrira Catherine porque nunca a tinha procurado. A entrada e a saída dela do país estavam ambas justificadas. Não faziam ideia de que ela existisse sequer.
Catherine encheu outra chávena de chá, colocou rapidamente os auscultadores e aguardou.
Quase entornou o chá em cima de si quando, cinco minutos mais tarde, o rádio começou a fazer barulho.
O operador em Hamburgo premiu ritmadamente uma sucessão de sinais em código.
Os operadores de rádio alemães tinham a reputação de serem os mais precisos do mundo. E também os mais rápidos. Catherine esforçou-se por acompanhá-lo. Quando o operador em Hamburgo terminou, ela pediu-lhe que repetisse a mensagem.
Ele fê-lo, mais lentamente. ;
Catherine agradeceu e desligou.
Levou alguns minutos a encontrar o livro de códigos e mais outros tantos para descodificar a mensagem. Quando terminou, olhou pasmada para ela, incrédula.
Executar rendezvous alfa...
Kurt Vogel queria finalmente que ela se encontrasse com outro agente.
OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
A chuva varria a costa de Norfolk enquanto Sean Dogherty, entorpecido por cinco canecas de cerveja aguada, tentava montar a bicicleta à porta do Hampton Arms. Conseguiu,
à terceira tentativa, e dirigiu-se para casa. Dogherty, pedalando com firmeza, mal reparou na aldeia. Era de facto um lugar desolador, um aglomerado de chalés ao longo de uma única rua, a loja da aldeia, o pub Hampton Arms. A tabuleta já não era pintada desde 1938; a tinta, como quase tudo o resto, tinha sido racionada. A St. John's Church elevava-se na extremidade leste. O cemitério ficava à saída da aldeia. Dogherty benzeu-se inconscientemente ao passar pelo portão e, a seguir, atravessou a ponte de madeira que se estendia sobre a enseada. Passado um momento, a aldeia já tinha desaparecido atrás dele.
Caía a noite; Dogherty esforçou-se por manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos. Era um homem baixo, com cinquenta anos, olhos verdes muito enterrados na cara e uma barba grisalha desmazelada. O nariz, arrebitado e torto, tinha sido partido mais vezes do que se queria lembrar durante uma breve carreira como pugilista de peso meio-médio, em Dublin, e mais umas quantas em lutas de rua, bêbado. Usava um oleado e um gorro de lã. O ar frio cortava-Ihe a pele exposta do rosto: o ar do mar do Norte, parecido com uma lâmina, com o perfume dos campos de gelo do Ártico e dos fiordes noruegueses por onde tinha passado antes de assolar a costa de Norfolk.
A cortina de chuva afastou-se e o terreno tornou-se visível: extensos campos cor de esmeralda, planícies de lama cinzenta sem fim, pântanos de água salgada cheios de juncos e vegetação. À esquerda, uma praia vasta, aparentemente infinita, estendia-se até ao mar. À direita, não muito longe, colinas verdes erguiam-se suavemente até atingirem uma nuvem baixa. Dois gansos-de-brent, vindos da Sibéria para passarem o inverno, levantaram voo dos pântanos e depois pousaram sobre a água, com as asas a baterem delicadamente. Um habitat perfeito para muitas espécies de pássaros, a costa de Norfolk tinha sido em tempos um destino turístico popular. Mas a guerra tinha tornado a observação de aves praticamente impossível. Grande parte de Norfolk estava transformada numa zona militar restrita e o racionamento de gasolina tinha deixado poucos cidadãos com meios para viajarem para um canto tão isolado do país. E quando os tinham, era difícil encontrar o caminho para lá. Na primavera de 1940, com a febre provocada pelo receio de uma invasão a aumentar, o governo tinha retirado todos os sinais de trânsito.
Mais do que outros residentes da costa de Norfolk, Sean Dogherty reparava nessas coisas com especial atenção. Em 1940, tinha sido recrutado para espiar ao serviço da Abwehr e tinha-lhe sido atribuído o nome de código de Esmeralda.
O chalé surgiu ao longe, com o fumo a elevar-se suavemente da chaminé para logo depois ser cortado pelo vento e estender-se pelo prado extenso. Era uma pequena propriedade num terreno arrendado, mas proporcionava uma subsistência modesta - um pequeno rebanho de ovelhas que lhes dava lã e carne, galinhas, uma pequena colheita de tubérculos que, por esses dias, obtinha bons preços no mercado. Dogherty possuía inclusivamente uma velha carrinha em mau estado e transportava géneros das quintas vizinhas para o mercado de King's Lynn. Em resultado disso, foi-lhe atribuída uma ração de gasolina para a agricultura, mais do que a ração civil normal.
Virou para o caminho de entrada do chalé, saiu da bicicleta e empurrou-a pelo trilho cheio de buracos, em direção ao celeiro. Por cima da cabeça, ouvia o rumor dos bombardeiros Lancaster a levantarem voo das bases em Norfolk. Recordava-se de uma época em que
os aviões vinham da direção contrária - os pesados Heinkels da Luftwaffe, espalhando-se sobre o mar do Norte, em direção aos centros industriais de Birmingham e Manchester. Mas os Aliados tinham estabelecido o seu domínio dos céus e os Heinkels raramente se aventuravam sobre Norfolk. Claramente, Dogherty tinha apostado no cavalo errado.
Ergueu o olhar e viu as cortinas da janela da cozinha abrirem-se ligeiramente, viu a imagem desfocada do rosto de Mary através do vidro salpicado de chuva. Hoje
à noite, não, Mary, pensou, desviando conscientemente os olhos. Por favor, outra vez hoje à noite, não.
Não tinha sido difícil à Abwehr convencer Sean Dogherty a trair a Inglaterra e passar a trabalhar para a Alemanha nazi. Em 1921, o irmão mais velho, Daniel, foi preso e enforcado pelos britânicos por liderar uma unidade terrestre do Exército Republicano Irlandês.
Dentro do celeiro, Dogherty abriu um armário de ferramentas e tirou o transmissor-recetor fornecido pela Abwehr, o bloco de códigos, um bloco de notas e um lápis. Ligou o rádio e fumou um cigarro enquanto aguardava. As instruções eram simples - ligar o rádio uma vez por semana e aguardar instruções de Hamburgo. Já tinham passado mais de três anos desde que a Abwehr lhe tinha pedido para fazer alguma coisa. Apesar disso, ligava o rádio zelosamente, à hora indicada, e aguardava dez minutos.
Quando faltavam ainda dois minutos, Dogherty guardou novamente o bloco de códigos e o bloco de notas no armário. Já no último minuto, esticou a mão na direção do cabo de alimentação. Estava prestes a desligar o rádio quando este deu subitamente sinais de vida. Agarrou-se ao bloco de notas e pôs-se a escrever furiosamente até que o rádio se calou. Rapidamente, confirmou a receção da mensagem e terminou a comunicação.
Dogherty demorou vários minutos até descodificar a mensagem.
Quando acabou, não acreditou no que estava a ver.
Executar procedimento de receção número um...
Os alemães queriam que ele acolhesse um agente.
Tinham passado quinze minutos desde que Mary Dogherty, à janela da cozinha, vira o marido entrar no celeiro. Perguntou-se por que razão estaria a demorar tanto
tempo. O jantar de Sean ia arrefecer se ele não viesse para dentro depressa. Limpou as mãos ao avental e levou uma caneca de chá a escaldar para a janela da frente.
A chuva caía com mais violência e o vento chicoteava a costa, vindo do mar do Norte.
Pensou: Que noite horrível para andar lá fora, Sean Dogherty.
Pôs as mãos à volta da caneca de esmalte lascada e deixou que o vapor que de lá saía lhe aquecesse o rosto. Sabia o que Sean estava a fazer no celeiro - estava a
comunicar com os alemães pelo rádio.
Mary tinha de admitir que espiar para os nazis tinha rejuvenescido Sean. Na primavera de 1940, ele fez o reconhecimento de vastas partes da zona rural de Norfolk. Mary assistiu com espanto, à medida que ele foi parecendo despertar para a vida com a atribuição dessa tarefa, pedalando vários quilómetros por dia, à procura de sinais de atividade militar, tirando fotografias às defesas costeiras. As informações eram passadas a um contacto da Abwehr em Londres, que por sua vez a passava a Berlim. Sean achava que era tudo muito perigoso e adorava cada momento.
Mas Mary detestava. Temia que Sean fosse apanhado. Toda a gente estava atenta, à procura de espiões; era uma obsessão nacional. Um deslize, um erro, e Sean seria preso. O Treachery Act de
1940 decretava apenas uma pena por espionagem: a execução. Mary tinha lido sobre execuções de espiões nos jornais, os enforcamentos em Wandsworth e Pentonville, e isso provocava-lhe sempre calafrios. Um dia, temia ela, iria ler que Sean tinha sido executado.
A chuva continuava a cair com mais violência ainda e o vento fustigava com tanta fúria o robusto chalezinho que Mary receava que a casa pudesse vir abaixo. Pensou em si a viver sozinha na velha e degradada quinta; seria terrível. Estremecendo, afastou-se da janela e aproximou-se da lareira.
Se calhar, teria sido diferente se ela tivesse sido capaz de lhe dar filhos. Afastou esse pensamento da cabeça; tinha-se punido por demasiado tempo, desnecessariamente. Era inútil desenterrar coisas em
relação às quais não podia fazer nada. Sean era quem era e já não havia nada que ela pudesse fazer para o mudar.
Mary pensou: Sean, em que é que tu te transformaste?
As pancadas na porta assustaram Mary, fazendo-a derramar o chá no avental. Sean não costumava ficar lá fora sem forma de entrar. Pousou a caneca no peitoril da janela e foi a correr para a porta. Estava preparada para lhe dar um berro por ter saído sem levar as chaves de casa. Em vez disso, quando abriu a porta, viu a figura de Jenny Colville, uma rapariga que vivia do outro lado da aldeia. Estava ali à chuva, com um oleado brilhante pendurado nos ombros magros. Não trazia chapéu e tinha o cabelo que usava até aos ombros colado à cabeça, enquadrando um rosto estranho que um dia poderia vir a ser muito bonito.
Mary percebeu que ela estivera a chorar.
- O que aconteceu, Jenny? O teu pai bateu-te outra vez? Anda a beber?
Jenny assentiu com a cabeça e desatou a chorar.
- Entra, sai dessa chuva - disse Mary. - Vais morrer de frio aí fora, numa noite destas.
Quando Jenny entrou, Mary procurou com os olhos a bicicleta dela no jardim da frente. Não estava lá; ela tinha vindo a pé desde o chalé dos Colville, a mais de um quilómetro e meio dali.
Mary fechou a porta.
- Tira essas roupas. Estão encharcadas. vou buscar-te um roupão para vestires até secarem.
Mary desapareceu dentro do quarto. Jenny fez o que lhe mandaram. Exausta, despiu o oleado, deixando-o deslizar dos ombros para o chão. A seguir, tirou a pesada camisola de lã grossa e largou-a no chão junto ao oleado.
Mary voltou com o roupão.
- Tira o resto da roupa, minha menina - atirou ela numa voz suave, fingindo-se zangada.
- Mas então e o Sean?
Mary mentiu:
- Está lá fora a remendar um buraco numa das suas queridas cercas.
- com este tempo? - cantarolou Jenny com o seu forte sotaque de Norfolk, recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. Mary ficava espantada com a resistência dela. - Ele está maluco, Mary?
- Sempre soube que eras uma criança perspicaz. Agora, vamos lá a tirar o resto dessa roupa molhada.
Jenny despiu as calças e a camisola interior. Costumava vestir-se como um rapaz, ainda mais do que as outras raparigas do campo. A pele era de um branco leitoso e estava toda arrepiada. Teria muita sorte se não apanhasse uma bela constipação. Mary ajudou Jenny a vestir o roupão e envolveu-a nele, apertando-o bem.
- Então, não estás melhor?
- Sim, obrigada, Mary - respondeu Jenny, recomeçando a chorar. - Não sei o que faria sem ti.
Mary puxou Jenny para junto de si.
- Nunca vais ficar sem mim, Jenny. Prometo.
Jenny sentou-se numa cadeira antiga junto da lareira e cobriu-se com uma manta bafienta. Colocou os pés por baixo de si e, passado um momento, parou de tremer e sentiu-se quente e em segurança. Mary estava ao fogão, cantarolando suavemente para si mesma.
Passados poucos momentos, o ensopado já estava a borbulhar, enchendo a casa de um cheiro maravilhoso. Jenny fechou os olhos, com a cabeça cansada a saltar de uma sensação agradável para outra
- o cheiro quente do ensopado de borrego, o calor da lareira, a comovente suavidade da voz de Mary. O vento e a chuva fustigavam a janela junto da cabeça de Jenny. A tempestade fê-la sentir como era maravilhoso estar segura dentro de uma casa tranquila. Desejava que a sua vida fosse sempre assim.
Passados poucos momentos, Mary trouxe um tabuleiro com uma tigela de ensopado, um pão duro e uma caneca de chá a escaldar.
- Endireita-te, Jenny - disse ela, mas não obteve resposta.
Mary pousou o tabuleiro, tapou a rapariga com outra manta e deixou-a dormir.
Mary estava a ler junto da lareira quando Dogherty entrou em casa. Olhou para o marido em silêncio quando ele entrou na sala. Sean apontou para a cadeira onde Jenny estava a dormir e perguntou:
- Porque é que ela está aqui? O pai bateu-lhe outra vez?
- Chiu! - sibilou Mary. - Vais acordá-la.
Mary levantou-se e levou-o para a cozinha. Preparou-lhe um lugar na mesa. Dogherty encheu uma caneca de chá e sentou-se.
- Sabes, o que Martin Colville precisa é de alguém que lhe dê a provar do mesmo remédio. E eu sou o homem indicado para lho dar.
- Por favor, Sean, ele tem metade da tua idade e duas vezes o teu tamanho.
- E o que é que isso quer dizer, Mary?
- Quer dizer que te podias magoar. É a última coisa de que precisamos é que atraias a atenção da polícia com uma luta estúpida. Agora, acaba de jantar e cala-te.
Vais acordar a miúda.
Dogherty fez o que lhe ordenaram e recomeçou a comer. Enfiou uma colherada do ensopado na boca e fez uma careta.
- Jesus, esta comida está mesmo gelada.
- Se tivesses chegado a casa a horas decentes, não estava. Onde é que andaste, Sean?
Sem levantar a cabeça do prato, Dogherty lançou um olhar gelado a Mary.
- Estive no celeiro - disse ele friamente.
- Estiveste com o rádio ligado, à espera de instruções de Berlim? - perguntou Mary num sussurro sarcástico.
- Mais tarde, mulher - resmungou Sean.
- Não percebes que estás a desperdiçar o teu tempo lá, Sean? E a arriscar também os nossos pescoços?
- Eu disse mais tarde, mulher!
- Seu bode velho e estúpido!
- Já chega, Mary!
- Talvez os rapazes de Berlim te dêem um dia uma tarefa de verdade, Sean. Depois vais poder libertar todo o ódio que tens dentro de ti e vamos poder continuar com o que resta das nossas vidas
- desabafou ela, levantando-se, olhando para ele e abanando a cabeça. - Estou cansada, Sean. vou para a cama. Põe mais um bocado de lenha na lareira para a Jenny ficar quente. E não faças nada que a acorde. Ela passou um mau bocado hoje à noite.
Maty subiu as escadas para o quarto e sem fazer barulho fechou a porta depois de entrar. Dogherty foi ao guarda-louça buscar uma garrafa de Bushmills. O uísque valia ouro por esses dias, mas era uma noite especial, por isso serviu-se de uma quantidade generosa.
- Talvez os rapazes de Berlim façam isso mesmo, Mary Dogherty
- disse ele, erguendo o copo num brinde silencioso. - De facto, talvez até já tenham feito.
NOVE LONDRES
Para conseguir entrar para os serviços secretos militares durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred Vicary tinha, na verdade, recorrido ao logro. com vinte e um anos, estava à beira de terminar os estudos em Cambridge e convencido de que a Inglaterra se estava a afundar e, como tal, precisava de todos os homens capazes de
que pudesse dispor. Não queria ter nada que ver com a infantaria. Sabia história suficiente para ter noção de que não havia aí qualquer espécie de glória, mas apenas
tédio, sofrimento e, muito provavelmente, a morte ou um ferimento grave.
O seu melhor amigo, um brilhante estudante de filosofia chamado Brendan Evans, encontrou a solução perfeita. Brendan tinha ouvido dizer que o exército estava a formar algo chamado Corpo dos Serviços Secretos. As únicas qualificações requeridas eram fluência no alemão e no francês, considerável experiência de viagens pela Europa, capacidade de guiar e reparar uma mota e visão perfeita. Brendan contactou o Ministério da Guerra e marcou entrevistas para ambos na manhã seguinte.
Vicary ficou desanimado; não reunia as qualificações necessárias. Falava alemão, ainda que de forma pouco inspirada, um francês aceitável e viajara consideravelmente
pela Europa, incluindo dentro da Alemanha. Mas não sabia guiar uma mota - aliás, era uma geringonça que o assustava de morte - e via horrivelmente mal.
Brendan Evans era o oposto de Vicary: alto, loiro, incrivelmente bonito, possuidor de um juvenil desejo de aventura e sem mãos a medir no
que tocava a mulheres. Mas tinham uma característica em comum: uma memória perfeita.
Vicary concebeu o seu plano.
Ao final dessa tarde, na penumbra fresca de agosto, Brendan ensinou-o a andar de mota num trecho deserto de estrada, na região das Fens. Vicary quase os matou aos
dois por diversas vezes, mas, quando a noite chegou, já avançava em grande velocidade pelos trilhos, desfrutando de uma mistura de excitação e imprudência que nunca
tinha sentido. Na manhã seguinte, durante a viagem de comboio de Cambridge para Londres, Brendan instruiu-o sem parar acerca da anatomia das motas.
Quando chegaram a Londres, Brendan entrou no Ministério da Guerra e Vicary ficou à espera à entrada, sob a luz quente do sol. Brendan reapareceu ao fim de uma hora,
com um sorriso largo. Fui admitido, disse Brendan. Agora é a tua vez. Ouve com atenção. Foi então que lhe disse de memória o gráfico inteiro utilizado no teste
de visão, até as letras irremediavelmente pequenas da última linha.
Vicary tirou os óculos, entregou-os a Brendan e entrou como um cego no edifício escuro e ameaçador. Passou facilmente no exame cometeu apenas um erro, confundindo
um B com um D, mas isso por culpa de Brendan. Vicary entrou de imediato ao serviço, como segundo tenente na unidade de motocicletas do Corpo dos Serviços Secretos,
passaram-lhe uma guia para levantar o uniforme e o equipamento e ordenaram-lhe que cortasse o cabelo, que tinha ficado comprido e encaracolado durante o verão. No dia seguinte, mandaram-no ir à estação de Euston recolher a mota, uma Rudge novinha em folha, embalada num caixote de madeira. Uma semana mais tarde, Brendan e Vicary embarcaram num navio de transporte de tropas rumo a França, acompanhados das motas.
Era tudo tão simples nesse tempo. Os agentes penetravam nas linhas inimigas, contavam o número de tropas, vigiavam as linhas de caminho de ferro. Até utilizavam pombos-correio para entregarem mensagens secretas. Agora, as coisas eram bem mais complexas, um duelo de inteligência através das ondas rádio, que requeria imensa
concentração e atenção aos pormenores.
A Operação Double Cross.
Karl Becker era um exemplo paradigmático. Tinha sido enviado para Inglaterra por Canaris durante os tempos tumultuosos de 1940, quando a invasão parecia uma certeza.
Fazendo passar-se por um homem de negócios suíço, Becker estabeleceu-se, com estilo correspondente, em Kensington e começou a amealhar todos os segredos suspeitos
a que conseguia deitar mão. O que levou Vicary até Becker foi a sua utilização de libras falsas e, no espaço de poucas semanas, o alemão estava já enredado na teia
do MI5. Vicary, com a ajuda dos vigias, ia onde quer que Becker fosse: às festas onde trocava mexericos e emborcava champanhe do mercado negro, aos encontros com
outros agentes de carne e osso, às entregas clandestinas em sítios predeterminados e ao quarto dele, para onde Becker levava mulheres, homens, crianças e sabe Deus
que mais. Ao fim de um mês, Vicary desferiu o golpe. Prendeu Becker - arrancando-o dos braços de uma jovem que mantinha trancada e embriagada com champanhe - e acabou
com uma rede inteira de agentes alemães.
A seguir, veio a parte complicada. Em vez de enforcar Becker, fê-lo mudar de lado e convenceu-o a trabalhar para o MI5 como agente duplo. Na noite seguinte, Becker,
na cela da prisão, ligou o rádio e transmitiu um sinal de identificação codificado ao operador em Hamburgo. O operador pediu que Becker se mantivesse no ar para
receber as instruções do agente da Abwehr que o controlava a partir de Berlim. Foi pedido a Becker que averiguasse a localização e o tamanho exatos de uma base de
caças da RAF em Kent. Becker confirmou a mensagem e terminou a comunicação.
Foi Vicary quem se dirigiu ao aeródromo no dia seguinte. Podia ter telefonado à RAF, obtido as coordenadas da base e enviado a informação para a Abwehr. Mas não seria assim tão fácil para um espião. Para que a mensagem parecesse autêntica, Vicary foi fazer o reconhecimento da base, exatamente como um espião faria. Apanhou o comboio em Londres e, devido aos atrasos, não chegou antes do anoitecer. Um polícia militar abordou-o numa colina junto à base e pediu-lhe que se identificasse. Vicary conseguia ver a base lá em baixo, na planície, com a mesma perspetiva de um espião. Viu um conjunto de hangares semicilíndricos e alguns aviões espalhados pela pista coberta de vegetação. Na viagem de regresso a Londres, Vicary
redigiu um relatório curto acerca do que tinha visto. Salientou que a luz já não era muita, por o comboio se ter atrasado, e que um polícia militar o tinha impedido de se aproximar mais. Nessa noite, Vicary obrigou Becker a enviar ele mesmo o relatório, já que cada espião tinha o seu estilo próprio de digitar, o chamado punho, que os operadores de rádio alemães eram capazes de reconhecer. Hamburgo deu-lhe os parabéns e terminou a comunicação.
Vicary contactou a RAF e explicou a situação. Os verdadeiros caças Spitfire foram transferidos para outro aeródromo, o pessoal foi evacuado e vários caças extremamente
danificados foram abastecidos e colocados na pista. A Luftwaffe veio nessa noite. Os aviões falsos explodiram numa bola de chamas; a tripulação dos bombardeiros
Heinkel pensou sem dúvida que tinha desferido um golpe preciso. No dia seguinte, a Abwehr pediu a Becker que regressasse a Kent e avaliasse os danos. Uma vez mais,
foi Vicary quem lá foi, escrevendo um relatório acerca do que tinha conseguido ver e obrigando Becker a enviá-lo.
A Abwehr ficou em êxtase. Becker tornou-se uma estrela, um superespião, e tudo isso tinha apenas custado à RAF um dia a reparar a pista e a remover os esqueletos
carbonizados dos Spitfires.
Os agentes que controlavam Becker estavam de tal forma impressionados que lhe pediram para recrutar mais agentes, coisa que ele fez - que, na realidade, Vicary fez. No final de 1940, Karl Becker já tinha um círculo de uma dúzia de agentes a trabalhar para si, sendo que alguns o informavam do que descobriam e outros informavam diretamente Hamburgo. Eram todos fictícios, produto da imaginação de Vicary. Este tinha em atenção todos os aspetos da vida deles; apaixonavam-se, tinham casos amorosos,
queixavam-se da falta de dinheiro, perdiam casas e amigos na Blitz.
Vicary deu-se até ao luxo de prender um ou outro; nenhuma rede a atuar em solo inimigo era infalível
e a Abwehr nunca acreditaria na possibilidade de não perder nenhum agente. Era um trabalho extenuante e fastidioso, que exigia atenção ao mais ínfimo pormenor; Vicary
achava-o estimulante e adorava cada minuto.
O elevador estava outra vez avariado e, por isso, Vicary teve de descer as escadas do covil de Boothby para a divisão dos Registos.
Ao abrir a porta, foi invadido pelo cheiro daquele lugar: papel a deteriorar-se, pó, um bafio penetrante devido à humidade que se infiltrava pelas paredes da cave. Lembrava-lhe a biblioteca da universidade. Havia dossiês em prateleiras abertas, dossiês em arquivos, dossiês amontoados no chão de pedra gelado, pilhas de documentos à espera de se transformarem em dossiês. Um trio de raparigas bonitas o pessoal da noite, que dormia em camas improvisadas - andava discretamente de um lado para o outro, falando uma linguagem de inventário que Vicary não conseguia perceber. As raparigas - conhecidas como rainhas da divisão dos Registos, no léxico daquele sítio - pareciam estranhamente deslocadas ali, no meio dos papéis e da escuridão. De certa forma, Vicary esperava virar uma esquina e deparar com um par de monges a ler um manuscrito à luz da vela.
Arrepiou-se. Céus, aquele sítio era frio como uma cripta. Arrependeu-se de não ter trazido uma camisola ou qualquer coisa quente para beber. Estava ali tudo - toda a história secreta do serviço. Enquanto vagueava entre as pilhas de documentos, ocorreu-lhe que, muito tempo depois de abandonar o MI5, também ali estaria um registo eterno de todas as suas ações. Se isso era reconfortante ou repugnante, não tinha a certeza.
Vicary pensou nas observações depreciativas que Boothby tecera sobre ele e a raiva que sentiu causou-lhe um calafrio. Vicary era um extraordinário agente da Operação Double Cross e nem mesmo Boothby o podia negar. Estava plenamente convencido de que era a sua formação como historiador que o tornava tão capaz para o trabalho. Um historiador tem muitas vezes de se ocupar de conjeturas
- pegando numa série de pequenas pistas inconclusivas e, a partir delas, chegar a uma conclusão razoável. A Operação Double Cross era muito semelhante a essa elaboração de conjeturas, só que ao contrário. O trabalho de um agente desse tipo consistia em fornecer aos alemães pequenas pistas inconclusivas para que pudessem chegar às conclusões desejadas. O agente precisava de ser cuidadoso e meticuloso nas pistas que revelava. Tinham de corresponder a uma cuidadosa mistura de realidade e ficção, de verdade e de mentiras meticulosamente disfarçadas. Os espiões falsos de Vicary tinham de trabalhar arduamente para conseguirem as suas informações. E estas tinham de ser ministradas aos alemães em doses pequenas e por vezes insignificantes.
Precisavam de ser consistentes com o disfarce do espião. Por exemplo, não se poderia esperar que um motorista de camiões de Bristol estivesse na posse de documentos roubados em Londres. E as informações nunca deveriam parecer boas demais para serem verdade, pois as informações obtidas com demasiada facilidade são facilmente descartadas.
Os dossiês sobre o pessoal da Abwehr estavam armazenados em prateleiras abertas que se estendiam do chão ao teto, numa pequena divisão no extremo desse piso. Os Vs começavam numa das prateleiras de baixo e depois saltavam para uma no topo. Vicary teve de se pôr de gatas e inclinar a cabeça de lado como se estivesse à procura de um objeto valioso debaixo de uma mobília. Raios! O dossiê estava na prateleira de cima, claro. com esforço, levantou-se e, esticando o pescoço, espreitou para os ficheiros por cima dos óculos em meia-lua. Não valia a pena. Os dossiês estavam quase a dois metros de distância, demasiado longe para conseguir ler os nomes - era a vingança de Boothby contra todos os que não atingiam a altura estipulada para o departamento.
Uma das rainhas da divisão dos Registos deparou com ele a olhar fixamente para cima e disse que lhe ia trazer uma escada de biblioteca.
- A semana passada, Claymore tentou usar uma cadeira e quase partiu o pescoço - trauteou ela.
Regressou pouco depois a arrastar a escada. Deu uma nova olhadela a Vicary, sorriu-lhe como se este fosse um tio maluco e ofereceu-se para lhe ir buscar o dossiê. Vicary assegurou-lhe que conseguia tratar do assunto.
Subiu à escada e, usando o indicador como se fosse uma sonda, percorreu os dossiês. Descobriu uma pasta de arquivo de manilha com um separador vermelho: VOGEL, KURT - ABWHER BERLIM. Tirou-a da prateleira, abriu-a e olhou.
O dossiê de Vogel estava vazio.
Um mês depois de chegar ao MI5, Vicary ficou surpreendido por encontrar Nicholas Jago a trabalhar lá. Jago tinha sido arquivista principal no University College
e fora recrutado pelo MI5 na mesma
semana em que Vicary. Tinha sido colocado na divisão dos Registos e fora-lhe ordenado que impusesse um pouco de disciplina na memória, por vezes volúvel, do departamento.
Jago, tal como a própria divisão dos Registos, era empoeirado, irascível e de trato difícil. Mas, uma vez ultrapassada essa couraça exterior, era capaz de ser gentil
e generoso, transbordando de informações valiosas. Jago tinha ainda outro talento precioso: sabia perder e encontrar dossiês.
Apesar da hora tardia, Vicary encontrou Jago a trabalhar, sentado à secretária do seu exíguo gabinete envidraçado. Ao contrário das salas dos arquivos, era um santuário de limpeza e ordem. Quando Vicary bateu à porta envidraçada, Jago levantou os olhos, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Vicary apercebeu-se de que os olhos de Jago não acompanhavam o sorriso dele. Parecia exausto; Jago vivia naquele sítio. Mas havia outra coisa: em 1940, a sua mulher tinha sido morta durante a Blitz. A morte dela deixara-o destroçado. Tinha jurado a si mesmo derrotar os nazis - não com armas, mas com organização e precisão.
Vicary sentou-se e recusou a esbaforida oferta de chá por parte de Jago - material genuíno que acumulei antes da guerra. Nada parecido com o tabaco atroz, próprio da guerra, com que estava a encher o fornilho do cachimbo antes de o acender com um fósforo. O fumo repugnante cheirava a folhas a arder e ficou a pairar entre eles, numa cortina, enquanto trocavam banalidades acerca do regresso à universidade quando o trabalho ali estivesse terminado.
Aclarando a garganta delicadamente, Vicary indicou que queria passar ao assunto que o trouxera ali.
- Estou à procura de um dossiê acerca de um agente algo obscuro da Abwehr - revelou Vicary. - Fiquei surpreendido quando vi que tinha desaparecido. A capa está na prateleira, mas o que devia estar lá dentro desapareceu.
- E qual é o nome? - perguntou Jago.
- Kurt Vogel.
O rosto de Jago ensombrou-se.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos. Espera aqui, Alfred. É só um momento.
- Eu vou contigo - disse Vicary. - Talvez possa ajudar.
- Não, não - insistiu Jago. - Nem quero ouvir falar disso. Eu não te ajudo a encontrar espiões e tu não me ajudas a encontrar dossiês - atirou, rindo-se da sua própria
piada. - Fica aqui e põe-te à vontade. É só um momento.
É a segunda vez que dizes isso, pensou Vicary. É só um momento... Vicary sabia que Jago era obcecado com os seus dossiês, mas a falta de um dossiê sobre um agente
da Abwehr não era caso para uma emergência no departamento. Constantemente, colocavam-se dossiês no sítio errado ou deitavam-se fora por engano. Uma vez, Boothby
fez soar o alerta vermelho depois de ter perdido uma pasta cheia de documentos importantes. Segundo rezava a lenda do departamento, tinha sido encontrada uma semana mais tarde no apartamento da amante dele.
Passado um momento, Jago regressou apressadamente ao gabinete, com uma nuvem do fumo repugnante do cachimbo a flutuar atrás dele como o vapor de uma locomotiva. Entregou o dossiê a Vicary e sentou-se à secretária.
- Tal como eu suspeitava - anunciou Jago, absurdamente orgulhoso de si mesmo. - Estava ali mesmo na prateleira. Uma das raparigas deve tê-lo guardado na pasta errada. Está sempre a acontecer.
Vicary ouviu a desculpa duvidosa e franziu o sobrolho.
- Interessante... nunca me aconteceu tal coisa.
- Bem, talvez tenhas tido sorte. Nós aqui lidamos com milhares de dossiês por semana. Dava-nos jeito mais pessoal. Já discuti o assunto com o diretor-geral, mas ele disse-me que já atingimos a nossa quota e que não podemos ter mais pessoal.
O cachimbo de Jago tinha-se apagado e ele estava a reacendê-lo com toda a pompa e circunstância. Os olhos de Vicary lacrimejaram à medida que o pequeno gabinete se enchia novamente de fumo. Nicholas Jago era um homem perfeitamente bom e honesto, mas Vicary não acreditava numa só palavra da história que tinha contado. Estava convicto de que alguém tinha retirado o dossiê não há muito tempo e que este não tinha voltado para a prateleira. E esse alguém devia ser alguém bem importante, a julgar pela cara que Jago fez quando Vicary lho pediu.
Vicary serviu-se do dossiê para abrir uma clareira no meio da nuvem de fumo.
- Quem foi a última pessoa a mexer no dossiê de Vogel?
- Alfred, vá lá, sabes que não te posso dizer isso.
Era verdade. Comuns mortais como Vicary tinham de assinar um registo cada vez que retiravam um dossiê. Havia registos que indicavam quem retirava que dossiês e quando. Apenas o pessoal da divisão dos Registos e os chefes do departamento tinham acesso a esses registos. Só um grupo restrito de pessoas com cargos de grande relevo podia aceder aos dossiês sem ter de lavrar registo. Vicary suspeitava que o dossiê de Vogel tinha sido retirado por uma dessas pessoas.
- Tudo o que tenho de fazer é pedir a Boothby uma autorização para ver a lista de acessos e ele dá-ma - disse Vicary. - Porque não me poupas tempo e me deixas ver isso já?
- Pode dar-ta ou não.
- O que queres dizer com isso, Nicholas?
- Ouve, meu velho, a última coisa que eu quero é intrometer-me outra vez entre ti e Boothby.
Jago estava novamente às voltas com o cachimbo, enchendo o fornilho e tirando um fósforo da caixa. Segurava o cachimbo entre os dentes, fazendo com que o fornilho baloiçasse enquanto falava.
- Fala com o Boothby. Se ele disser que podes ver a lista de acessos, é toda tua.
Vicary deixou-o sentado no gabinete fumarento, a tentar acender o seu tabaco barato, com o fósforo a flamejar a cada puxadela do cachimbo. Ao afastar-se com o dossiê de Vogel, Vicary deitou uma última olhadela a Jago e achou que ele parecia um farol num local brumoso.
Ao voltar para o gabinete, Vicary parou na cantina. Não se conseguia lembrar da última vez que tinha comido. A sensação de fome não passava de uma moinha. Já não suspirava por comida boa. Comer tinha-se tornado uma tarefa prática, algo que tinha de se fazer por necessidade, não por prazer. Era como andar em Londres à noite: rapidamente e tentando não sair ferido. Lembrou-se da tarde de maio de 1940 em que o tinham contactado. O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas de cordeiro em sua casa. Que tamanha perda de tempo precioso.
Já era tarde e a seleção era pior do que o habitual: um naco de pão escuro, um pedaço de queijo suspeito, um caldeirão borbulhante
de líquido castanho. Alguém tinha riscado da ementa as palavras caldo de carne e escrito em seu lugar sopa de pedra. Vicary dispensou o queijo e cheirou o caldo.
Parecia suficientemente inócuo. Cuidadosamente, serviu-se de uma concha. O pão era duro como a tábua da cozinha. Vicary cortou um pedaço com a faca romba. Utilizando o dossiê de Vogel como tabuleiro, avançou com cautela por entre as mesas e cadeiras. Numa mesa, estava John Masterman, debruçado sobre um livro de latim. Dois advogados famosos estavam sentados numa mesa a um canto, reeditando um antigo duelo no tribunal. Um popular escritor de livros policiais escrevinhava num caderno desgastado. Vicary abanou a cabeça. O MI5 tinha recrutado um conjunto formidável de talentos.
Subiu as escadas cuidadosamente, com a tigela de sopa a balançar precariamente em cima do dossiê. O que mais lhe faltava era sujar o dossiê. Jago tinha escrito inúmeros memorandos enfurecidos, implorando aos agentes que tivessem mais cuidado com os dossiês.
- E qual é o nome?
- Kurt Vogel.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos.
Vicary tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali que não batia certo. Mas era melhor não forçar as coisas. Era preferível não pensar nisso e deixar o subconsciente juntar as peças.
Pousou o dossiê e a tigela de sopa na secretária e ligou a luz. Leu o dossiê de uma ponta a outra enquanto ia comendo a sopa em pequenos tragos. Sabia a bota de couro cozida. O sal era dos poucos condimentos que os cozinheiros possuíam em abundância e tinham-no usado generosamente. Quando acabou de ler o dossiê pela segunda vez, estava com uma sede digna do deserto e tinha os dedos a começarem a inchar.
Vicary ergueu os olhos e disse:
- Harry, acho que temos aqui um problema.
Harry Dalton, que se deixara adormecer à secretária, na área comum à porta do gabinete de Vicary, levantou-se e entrou. Formavam uma parceria insólita, conhecida humoristicamente no departamento como Músculos & Cérebro, Lda. Harry era alto e atlético, elegante, de cabelo negro densamente coberto de brilhantina, olhos azuis vivos
e um sorriso sempre pronto. Antes da guerra, era o inspetor Harry Dalton, do principal departamento de homicídios da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha nascido e crescido em Battersea e ostentava ainda na voz suave e agradável traços da pronúncia da classe operária do sul de Londres.
- Ele é inteligente, isso é certo - disse Vicary. - Olhe para isto: doutoramento em Direito na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Heller e de Rosenberg.
Não me parece o nazi típico. Os nazis perverteram as leis da Alemanha. Uma pessoa com uma educação destas não poderia estar muito entusiasmado com eles. E depois,
em 1935, decide abandonar de repente o direito e passar a trabalhar para o Canaris, como advogado dele, uma espécie de conselheiro interno da Abwehr? Não acredito
nisso. Acho que ele é um espião e esta história de ser o conselheiro legal de Canaris é só mais uma camada do disfarce.
Vicary estava a folhear o ficheiro outra vez.
- Tem alguma teoria? - perguntou Harry.
- Três teorias, na verdade.
- Então, vamos ouvi-las.
- Teoria número um, Canaris perdeu a confiança nas redes britânicas e encarregou Vogel de levar a cabo uma investigação. Um homem com a experiência e formação de Vogel é o oficial perfeito para examinar minuciosamente os dossiês e todos os relatórios de agentes em busca de inconsistências. Temos sido extremamente cuidadosos, Harry, mas manter a Operação Double Cross é uma tarefa muito complexa. Aposto que lá pelo meio já cometemos um erro ou outro. E se a pessoa certa andasse à procura deles - um homem inteligente como Kurt Vogel, por exemplo -, talvez fosse capaz de os descobrir.
- Teoria número dois?
- Teoria número dois, Canaris encarregou Vogel da criação de uma nova rede. Nesta altura do campeonato, já é um pouco tarde para isso. Era preciso descobrir, recrutar e treinar agentes, além de os infiltrar no país. Isso, por norma, leva meses a ser feito em condições. Duvido que seja isso que andam a fazer, mas não podemos descartar essa ideia.
- Teoria número três?
- A teoria número três é que Kurt Vogel é responsável por uma rede de que ainda não temos conhecimento.
- Uma rede completa de agentes que ainda não desmascarámos? E isso é possível?
- Temos de presumir que sim.
- Então todos os nossos agentes duplos estariam em risco.
- É um castelo de cartas, Harry. Basta só um bom agente para se desmoronar tudo.
Vicary acendeu um cigarro. O tabaco tirou-lhe da boca o sabor do caldo.
- Canaris deve estar debaixo de enorme pressão para apresentar resultados. com certeza que iria querer que fosse o melhor homem dele a dirigir a operação.
- Então isso quer dizer que é como se Kurt Vogel fosse uma panela de pressão.
- Certo.
- E isso pode torná-lo perigoso.
- Mas também pode torná-lo descuidado. Tem de arriscar. Tem de usar o rádio ou enviar um agente para Inglaterra. E, quando o fizer, vamos estar em cima dele.
Ficaram sentados em silêncio durante um momento. Vicary estava a fumar e Harry ia folheando o dossiê de Vogel. Foi então que Vicary lhe contou o que tinha acontecido na divisão dos Registos.
- Estão sempre a desaparecer imensos dossiês, Alfred.
- Sim, mas porquê este dossiê? E, mais importante, porquê agora?
- Boas perguntas, mas desconfio que as respostas sejam muito simples. Quando estamos no meio de uma investigação, o melhor é mantermo-nos concentrados e não nos
desviarmos do assunto.
- Eu sei, Harry - respondeu Vicary, franzindo o sobrolho. Mas isto está a pôr-me louco.
Harry disse:
- Eu conheço uma ou duas rainhas da divisão dos Registos. Vicary olhou para ele.
- Tenho a certeza que sim.
- vou meter o nariz por lá e fazer umas perguntas.
- Faça isso discretamente.
- Não há outra forma de o fazer, Alfred.
- Jago está a mentir, está a esconder qualquer coisa.
- E porque havia ele de mentir?
- Não sei - respondeu Vicary, esmagando o cigarro -, mas sou pago para ter pensamentos desagradáveis.

DEZ
BLETCHLEY PARK, INGLATERRA
Oficialmente, chamava-se Escola Governamental de Códigos e Criptografia. No entanto, não era escola nenhuma. Podia parecer ser uma escola qualquer - uma grande e
feia mansão vitoriana, rodeada por uma cerca alta -, mas a maior parte das pessoas daquela terra de ruas estreitas que crescera ao longo da linha de caminho de ferro
percebia que algo mais importante se passava ali. Os grandes relvados estavam cheios de dezenas de cabanas temporárias. O espaço remanescente inha sido pisado, transformando-se
em carreiros de lama congelada. Os jardins estavam em mau estado e por aparar, assemelhando-se a pequenas selvas. O staff era uma mistura excêntrica, os matemáticos
mais brilhantes do país, campeões de xadrez, magos das palavras cruzadas, todos reunidos para o mesmo objetivo: decifrar os códigos alemães.
Mesmo no mundo notoriamente extravagante de Bletchley Park, Denholm Saunders era considerado um excêntrico. Antes da guerra, era um matemático de topo em Cambridge.
Naquele momento, estava entre os melhores criptólogos do mundo. Vivia numa aldeola nos arredores de Bletchley com a mãe e os gatos siameses, Platão e S. Tomás de Aquino.
Era o final da tarde. Saunders estava na mansão, sentado à secretária, ocupado com duas mensagens enviadas pela Abwehr, de Hamburgo, para agentes alemães no Reino Unido. As mensagens tinham sido intercetadas pelo Radio Security Service, assinaladas como suspeitas e encaminhadas para Bletchley Park para descodificação.
Saunders estava a assobiar fora de tom enquanto raspava com o lápis no bloco de notas, um hábito que irritava solenemente os colegas. Trabalhava na secção de descodificação manual de mensagens cifradas. Era uma área de trabalho exígua e estava a abarrotar, mas era relativamente quente. Era melhor estar ali do que lá fora, numa das cabanas onde os criptólogos se esforçavam arduamente por descodificar as mensagens cifradas do exército e da marinha alemães, como esquimós num iglu.
Ao fim de duas horas, Saunders parou de raspar e de assobiar. A única coisa que se ouvia era o som da neve a derreter, gorgolejando nas goteiras da velha casa. O trabalho dessa tarde tinha sido pouco estimulante: as mensagens tinham sido transmitidas numa variante de um código que o próprio Saunders tinha decifrado em 1940.
- Meu Deus, eles estão a tornar-se um pouco aborrecidos, não estão? - comentou Saunders para ninguém em particular.
O seu superior era um escocês chamado Richardson. Saunders bateu à porta, entrou e pousou as duas mensagens descodificadas em cima da secretária. Richardson leu-as
e franziu o sobrolho. Ainda na véspera, um agente do MI5 chamado Alfred Vicary os tinha posto de sobreaviso para esse tipo de coisas.
Richardson mandou chamar um estafeta motorizado.
- Só há um problema - disse Saunders.
- Qual é?
- Na primeira mensagem, o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Na realidade, até pediu a quem estava a digitar a mensagem que a enviasse uma
segunda vez. Eles irritam-se com esse tipo de coisas. Pode não ser nada. Pode ter havido uma interferência qualquer. Mas talvez seja boa ideia contar isto à rapaziada do MI5.
Richardson pensou: Boa ideia, de facto.
Assim que Saunders saiu, Richardson datilografou uma breve nota descrevendo como o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Cinco minutos mais
tarde, as mensagens descodificadas e a nota de Richardson já estavam numa pasta de couro, prontas para a viagem de sessenta e sete quilómetros até Londres.


CONTINUA

"Em tempo de guerra", escreveu Winston Churchill, "a verdade é tão preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras." No caso das operações de contraespionagem britânicas, isto implicava encontrar um agente o mais improvável possível: um professor de História chamado Alfred Vicary, escolhido pessoalmente por Churchill para expor um traidor extremamente perigoso, mas desconhecido. Contudo, os nazis também escolheram um agente improvável: Catherine Blake, a bela viúva de um herói de guerra, voluntária num hospital e espia naxi sob as ordens diretas de Hitler, incumbida de desvendar os planos dos Aliados para o Dia D...

 

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PRIMEIRA PARTE

UM
SUFFOLK, INGLATERRA: NOVEMBRO DE 1938
Beatrice Pymm morreu porque perdeu o último autocarro para Ipswich.
Vinte minutos antes de morrer, encontrava-se na sombria paragem de autocarros e consultava o horário à luz mortiça do único candeeiro de rua da povoação. Daí a poucos
meses, o candeeiro seria desligado, de acordo com o regulamento do blackout. Beatrice Pymm nunca viria a saber do blackout.
Por agora, o candeeiro brilhava apenas o suficiente para que Beatrice conseguisse ler o horário mergulhado nas sombras. Para o ver melhor, pôs-se em bicos de pés
e seguiu os números com a ponta do indicador, manchado de tinta. A sua mãe, já falecida, queixava-se sempre da tinta com amargura. Considerava impróprio de uma senhora
ter as mãos sempre manchadas. Tinha desejado que Beatrice se tivesse dedicado a um passatempo mais asseado - música, voluntariado, até mesmo a escrita, embora a
mãe de Beatrice não tivesse os escritores em grande conta.
- Raios! - resmungou Beatrice, com a ponta do dedo ainda colada ao horário.
Normalmente, era extremamente pontual. Numa vida sem responsabilidades financeiras, sem amigos, sem família, tinha delineado um plano pessoal rigoroso. Naquele dia, tinha-se desviado dele pintara demasiado tempo e regressara demasiado tarde.
Retirou a mão do horário e levou-a ao rosto, fazendo um esgar de preocupação. A cara do teu pai, dizia a mãe com uma ponta
desespero - uma testa larga e plana, um grande nariz nobre, um queixo recuado. com apenas trinta anos, tinha o cabelo prematuramente raiado de grisalho.
Perguntou-se o que fazer. A sua casa em Ipswich ficava a pelo menos oito quilómetros, demasiado para ir a pé. Ao início da noite, haveria ainda a luz do trânsito na estrada. Talvez alguém lhe desse boleia.
Deixou escapar um longo suspiro de frustração. A sua respiração gelou, pairou diante do seu rosto e depois afastou-se ao sabor do vento frio vindo do pântano. As nuvens dispersaram-se e uma Lua luminosa brilhou através delas. Beattice olhou para cima e viu um halo de gelo em redor dela. Arrepiou-se, sentindo o frio pela primeira vez.
Pegou nas suas coisas: uma mochila de couro, uma tela, um cavalete gasto. Tinha passado o dia a pintar ao longo do estuário do Orwell. A pintura era o seu único
amor e a paisagem da East Anglia o seu único tema. Isso levava-a de facto a uma certa repetição no trabalho. A mãe gostava de ver pessoas nos quadros - cenas de
rua, cafés cheios. Uma vez, até sugeriu a Beatrice que passasse algum tempo em França, de modo a prosseguir a carreira. Beatrice recusou. Adorava os pântanos e os
diques, os estuários e as lagoas, os terrenos pantanosos a norte de Cambridge, as pastagens ondulantes de Suffolk.
com relutância, começou a dirigir-se para casa, caminhando a bom ritmo ao longo da beira da estrada, apesar do peso que transportava. Vestia uma camisa de homem
de algodão, manchada de tinta tal como os seus dedos, uma pesada camisola de lã grossa que a fazia sentir-se como um urso de peluche, um casacão demasiado comprido
nas mangas e calças enfiadas dentro das botas de borracha. Afastou-se do alcance da esfera amarela do candeeiro; a escuridão engoliu-a. Não sentiu qualquer apreensão
por caminhar na escuridão do campo. A mãe, assustada com as suas longas caminhadas solitárias, avisava-a constantemente para ter cuidado com os violadores. Beatrice
descartava sempre a ameaça, considerando-a improvável.
Arrepiou-se com o frio. Pensou na sua casa, um grande chalé nos arredores de Ipswich, que lhe fora deixado pela mãe. Por trás da casa,
no extremo da alameda do jardim, tinha construído um estúdio banhado de luz, onde passava a maior parte do tempo. Para ela, não era invulgar passar dias sem falar
com outro ser humano.
Tudo isto, e ainda mais, era do conhecimento do seu assassino.
Após cinco minutos de caminhada, ouviu o barulho de um motor atrás de si. Um veículo comercial, pensou. Antigo, a julgar pelo ruído irregular do motor. Beatrice
observou o brilho dos faróis espalhar-se como o nascer do Sol através da erva, de ambos os lados da estrada. Ouviu o motor perder potência e o carro começar a avançar
em ponto morto. Sentiu uma rajada de vento quando o veículo a ultrapassou. Sufocou com o fedor do escape.
De seguida, viu-o encostar à berma da estrada e parar.
A mão, visível sob o intenso luar, impressionou Beatrice pela sua estranheza. Saiu pela janela do condutor segundos depois de a carrinha ter parado e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Uma grossa luva de pele, reparou Beatrice, do género das utilizadas pelos trabalhadores que transportam coisas pesadas. Um fato-macaco azul-escuro, talvez.
A mão acenou-lhe uma vez mais. Lá estava outra vez - havia qualquer coisa no modo como se movia que não batia certo. Ela era artista e os artistas conhecem o movimento e o fluir. E havia mais qualquer coisa. Quando a mão se movia, expunha a pele entre a ponta da manga e a base da luva. Mesmo sob a luz fraca, Beatrice conseguia ver que a pele era clara e sem pelos - não parecia o pulso de nenhum trabalhador que já tivesse visto, invulgarmente delgado.
Contudo, não se sentiu alarmada. Acelerou o ritmo e alcançou a porta do passageiro com alguns passos. Abriu-a e colocou as coisas no espaço em frente ao banco. De seguida, ergueu os olhos pela primeira vez para o interior da carrinha e apercebeu-se de que o condutor tinha desaparecido.
Nos últimos segundos conscientes da sua vida, Beatrice Pymm interrogou-se por que razão utilizaria alguém uma carrinha para
transportar uma moto. Ali estava ela, deitada de lado na parte de trás, com dois recipientes de gasolina junto dela.
Ainda de pé junto da carrinha, fechou a porta e chamou. Não houve resposta.
Segundos mais tarde, ouviu o som de uma bota de couro no cascalho.
Ouviu de novo o som, mais perto.
Virou a cabeça e viu o condutor ali parado. Olhou para a cara dele e viu apenas uma máscara de lã preta. Dois poços de um azul-pálido fixavam-na friamente por detrás dos buracos para os olhos. Lábios de aspeto feminino, ligeiramente entreabertos, brilhavam por detrás da abertura para a boca.
Beatrice abriu a boca para gritar. Só conseguiu soltar um breve suspiro antes de o condutor lhe enfiar a mão enluvada na boca. Os dedos penetraram-lhe na carne macia da garganta. A luva sabia horrivelmente a poeira, gasolina e óleo de motor. Beatrice começou a vomitar os restos do almoço do seu piquenique - frango assado, queijo Stilton e vinho tinto.
Depois sentiu a outra mão a tatear-lhe o seio esquerdo. Por um instante, Beatrice pensou que os receios da mãe em relação a violações tinham sido finalmente comprovados. Mas a mão que lhe tocava no peito não era a mão de um molestador ou de um violador. A mão era hábil, como a de um médico, e curiosamente delicada. Moveu-se do peito para as costelas, pressionando com força. Beatrice estremeceu, arquejou e mordeu com força. O condutor pareceu não sentir nada através da luva grossa.
A mão alcançou o fundo das costelas e sondou a carne macia ao cimo do abdómen. Não foi mais além. Um dedo continuou a apertar essa zona. Beatrice ouviu um estalido
agudo.
Um instante de dor insuportável, uma explosão de luz branca e brilhante.
A seguir, uma escuridão benévola.
O assassino tinha treinado vezes sem conta para aquela noite, mas era a primeira vez. O assassino retirou a mão enluvada da boca
da vítima, virou-se e vomitou violentamente. Não havia tempo para sentimentalismos. O assassino era um soldado - major dos serviços secretos - e Beatrice Pymm em
breve seria a inimiga. A sua morte, embora lamentável, era necessária.
O assassino limpou o vómito dos bordos da máscara e meteu mãos à obra. O assassino agarrou na faca de ponta e mola e puxou-a. A ferida reteve-a com força, mas o
assassino puxou com mais força e a lâmina deslizou para fora.
Um assassínio excelente, limpo, com muito pouco sangue.
Vogelficaria orgulhoso.
O assassino limpou o sangue da navalha, voltando a fechar a lâmina, e guardou-a no bolso do fato-macaco. Depois, o assassino agarrou o corpo por baixo dos braços,
arrastou-o para a parte de trás da carrinha e deixou-o cair na berma de alcatrão esboroada.
O assassino abriu as portas traseiras. O corpo entrou em convulsões.
Foi uma luta levantar o corpo e colocá-lo na parte de trás da carrinha, mas um momento depois estava feito. O motor hesitou, depois pegou. A seguir, a carrinha estava de novo a caminho, com os faróis a brilharem através da povoação às escuras, virando para a estrada deserta.
O assassino, tranquilo apesar da presença do corpo, cantou calmamente uma canção da infância para ajudar a passar o tempo. Era uma viagem longa, quatro horas pelo menos. Durante os preparativos, o assassino tinha percorrido a estrada de moto, a mesma que agora se encontrava ao lado de Beatrice Pymm. A viagem levaria muito mais tempo na carrinha. O motor tinha pouca potência, os travões eram maus e fugia bastante para a direita.
O assassino prometeu a si mesmo roubar uma melhor na vez seguinte.
As facadas no coração, por regra, não matam instantaneamente. Mesmo que a arma penetre numa cavidade, o coração continua a bater durante algum tempo até a vítima se esvair em sangue.
Enquanto a carrinha avançava ruidosamente pela estrada, a cavidade torácica de Beatrice Pymm encheu-se rapidamente de sangue.
A sua mente ficou num estado próximo do coma. Teve a sensação de estar prestes a morrer.
Recordou-se dos avisos que a mãe lhe fazia por andar sozinha à noite. Sentiu a viscosidade húmida do seu próprio sangue a escoar-se do corpo para a blusa. Interrogou-se se o seu quadro teria sido danificado.
Depois ouviu o canto. Um belo canto. Levou algum tempo, mas percebeu por fim que o condutor não estava a cantar em inglês. A canção era alemã e a voz a de uma mulher.
Foi então que Beatrice Pymm morreu.
Primeira paragem, dez minutos depois, na margem do rio Orwell, o mesmo lugar onde Beatrice Pymm tinha estado a pintar naquele dia. A assassina deixou o motor da carrinha ligado e saiu. Dirigiu-se ao lugar do passageiro, abriu a porta e tirou o cavalete, a tela e a mochila.
O cavalete foi montado muito próximo da água, que corria lentamente, e a tela colocada nele. A assassina abriu a mochila, retirou de lá as tintas e a palete e pousou-as no solo molhado. Lançou um olhar ao quadro inacabado e achou que era bastante bom. Fora uma pena que não tivesse podido matar alguém com menos talento.
De seguida, retirou a garrafa meio cheia de vinho tinto, derramou o que restava no rio e atirou-a para junto das pernas do cavalete. Pobre Beatrice. Demasiado vinho, um passo descuidado, um mergulho na água gelada, uma lenta viagem até ao mar alto.
Causa da morte: presumivelmente afogada, presumivelmente acidental.
Caso encerrado.
Seis horas mais tarde, a carrinha atravessou a aldeia de Whitchurch, nas West Midlands, e virou para um caminho de terra batida que contornava um campo de cevada. A vala tinha sido cavada na noite anterior - suficientemente profunda para esconder um cadáver, mas não tão profunda que ele não pudesse vir a ser descoberto.
Ela arrastou o corpo de Beatrice Pymm para fora da carrinha e despiu-lhe a roupa ensanguentada. Agarrou o cadáver nu pelos pés e arrastou-o até junto da vala. A seguir, a assassina voltou à carrinha e tirou de lá três artigos - um malho em ferro, um tijolo vermelho e uma pequena pá.
Esta era a parte que ela mais temia; por algum motivo, pior do que o assassínio em si. Largou os três artigos junto ao cadáver e acalmou-se. Lutando contra outra onda de náusea, segurou o malho na mão enluvada, ergueu-o e esmagou o nariz de Beatrice Pymm.
Quando terminou, mal conseguia olhar para o que restava do rosto de Beatrice Pymm. Utilizando primeiro o malho e depois o tijolo, tinha-o esmagado numa massa de sangue, tecido, ossos quebrados e dentes esmigalhados.
Conseguira o efeito pretendido - as feições tinham sido apagadas, o rosto tornara-se irreconhecível.
Fizera tudo o que lhe tinham mandado fazer. Era para ser diferente. Tinha sido treinada num campo especial durante muitos meses, muito mais tempo do que os outros agentes. Iria ser infiltrada mais fundo. Fora por isso que tivera de matar Beatrice Pymm. Não iria desperdiçar o seu tempo a fazer o que outros, agentes menos dotados, poderiam fazer - contar tropas, monitorizar caminhos de ferro, avaliar danos causados por bombas. Isso era fácil. Seria reservada para maiores e melhores coisas. Seria como uma bomba-relógio em contagem decrescente no interior de Inglaterra, à espera de ser ativada, à espera de explodir.
Encostou a bota às costelas e empurrou. O cadáver caiu na vala. Cobriu o corpo com terra. Recolheu as roupas manchadas de sangue e atirou-as para as traseiras da carrinha. Do banco da frente, retirou uma pequena bolsa contendo um passaporte holandês e uma carteira. A carteira tinha documentos de identificação, uma carta de condução de Amesterdão e fotografias de uma família holandesa, gorda e sorridente.
Tudo isto tinha sido forjado pela Abwehr em Berlim.
Atirou a bolsa para as árvores na orla do campo de cevada, a alguns metros da vala. Se tudo corresse conforme planeado, o corpo, já em avançado estado de decomposição e mutilado, seria encontrado daí a alguns meses, juntamente com a bolsa. A polícia iria julgar que a mulher morta era Christa Kunst, uma turista holandesa que entrara no país em outubro de 1938 e cujas férias tinham terminado de modo lamentável e violento.
Antes de partir, deu uma última olhadela à vala. Sentiu uma ponta de tristeza por Beatrice Pymm. Na morte, tinham-lhe sido roubados
o rosto e o nome.
Outra coisa: a assassina tinha agora perdido a sua própria identidade. Durante seis meses, tinha vivido na Holanda, visto que o holandês era uma das suas línguas. Tinha construído cuidadosamente um passado, votado numa eleição local em Amesterdão, permitindo-se mesmo arranjar um jovem amante, um rapaz de dezanove anos com um imenso apetite e disposição para aprender coisas novas. Agora, Christa Kunst jazia numa vala rasa, na orla de um campo de cevada inglês.
A assassina assumiria uma nova identidade pela manhã.
Mas naquela noite não era ninguém.
Voltou a encher o depósito da carrinha e conduziu durante vinte minutos. A povoação de Alderton, assim como Beatrice Pymm, tinha sido cuidadosamente escolhida -
um local onde uma carrinha a arder na berma da estrada, a meio da noite, não seria imediatamente notada.
Tirou a mota da carrinha, apoiando-a numa pesada prancha de madeira, uma tarefa difícil até para um homem forte. Debateu-se com a mota e desistiu quando esta se
encontrava a um metro da estrada. A mota caiu no chão com grande estrondo, o único erro que cometeu durante toda a noite.
Pegou na mota e fê-la deslizar, em ponto morto, até ficar a cerca de cinquenta metros da carrinha. Depois regressou à carrinha. Um dos recipientes ainda continha
alguma gasolina. Espalhou-a no interior da carrinha, despejando a maioria do combustível na roupa de Beatrice Pymm, manchada de sangue.

Quando a carrinha se transformou numa bola de fogo, já ela tinha ligado a mota. Observou a carrinha a arder durante alguns segundos, com a luz alaranjada a dançar
no campo árido e a linha das árvores um pouco mais longe.
A seguir, virou a mota para sul e dirigiu-se para Londres.
DOIS
OYSTER BAY, NOVA IORQUE: AGOSTO DE 1939
Dorothy Lauterbach considerava a sua imponente mansão de pedra a mais bela da North Shore. A maioria dos seus amigos concordava, porque ela era mais rica e eles
queriam convites para as duas festas que os Lauterbach davam todos os verões - um encontro turbulento e ébrio, em junho, e uma ocasião mais meditativa, no final
de agosto, quando a temporada de verão findava num desenlace melancólico.
As traseiras da casa tinham vista para o estuário do Sound. Havia uma agradável praia de areia branca trazida de camião do Massachusetts. Da praia, partia um relvado
bem fertilizado que corria em direção às traseiras da casa, interrompido aqui e ali para orlar os requintados jardins, o campo de ténis em terra vermelha, a piscina
em azul-real.
Os empregados tinham-se levantado cedo para prepararem o bem merecido dia de inatividade da família, montando o equipamento do croquet e a rede de badminton em que
ninguém tocaria, retirando a lona protetora do barco a motor com casco de madeira, que nunca seria desamarrado da doca. Um dia, um empregado apontara corajosamente
à senhora Lauterbach a insensatez desse ritual quotidiano. A senhora Lauterbach tinha-lhe dado uma áspera reprimenda e esse hábito nunca mais fora questionado. Os
brinquedos eram colocados nos seus lugares em cada manhã, ficando abandonados com a mesma tristeza das decorações de Natal em maio, até serem cerimoniosamente retirados
ao pôr do Sol e passarem a noite outra vez guardados.
O piso térreo da casa estendia-se ao longo da água desde o jardim de inverno até à sala de estar, à sala de jantar e, finalmente, à sala Florida embora nenhum dos
outros Lauterbach compreendesse por que razão Dorothy insistia em chamá-la sala Florida quando o sol de verão na North Shore também podia ser tão quente.
A casa tinha sido comprada trinta anos antes, quando os jovens Lauterbach supunham que iriam produzir um pequeno exército como prole. Em vez disso, tiveram apenas
duas filhas que não gostavam muito da companhia uma da outra - Margaret, uma frequentadora dojef-sef bela e muito popular, e Jane. Por isso, a casa tornou-se um
lugar pacífico, de sol quente e cores suaves, onde a maioria do ruído era produzida pelo roçagar de cortinas brancas ao sabor de ligeiras brisas e a incansável busca
da perfeição em todas as coisas de Dorothy Lauterbach.
Naquela manhã - a manhã após a última festa dos Lauterbach -, as cortinas pendiam imóveis nas janelas abertas, à espera de uma brisa que nunca viria. O sol resplandecia
e uma neblina difusa pairava sobre a baía. O ar estava tenso e compacto.
No andar de cima, no seu quarto, Margaret Lauterbach-Jordan tirou a camisa de dormir e sentou-se em frente do toucador. Penteou
o cabelo rapidamente. Era de um louro quase cinza, aclarado pelo sol e curto, fora de moda. Mas era confortável e fácil de cuidar. Além disso, gostava do modo como lhe enquadrava o rosto e realçava a longa e graciosa linha do pescoço.
Olhou para o seu corpo no espelho. Tinha finalmente perdido os últimos e renitentes quilos que tinha ganho quando ficara grávida do seu primeiro filho. As estrias tinham desaparecido e o ventre ostentava um bronzeado intenso. A barriga à mostra estava na moda naquele verão e ela gostava do modo como toda a gente na North Shore tinha ficado surpreendida com a sua forma física. Apenas os seios estavam diferentes - estavam maiores, o que não a apoquentava, porque Margaret sempre se sentira pouco à vontade em relação ao tamanho deles. Os novos sutiãs daquele verão eram mais pequenos e mais rígidos, concebidos para elevar os seios. Margaret gostava deles porque Peter gostava do aspeto que lhe davam.
Vestiu um par de calças de algodão, uma blusa sem mangas, atada com um nó abaixo dos seios, e umas sandálias rasas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho
uma última vez. Era linda - sabia disso -, mas não de um modo ousado, que fizesse virar cabeças nas ruas de Manhattan. A beleza de Margaret era intemporal e subtil, perfeita para a camada social em que tinha nascido.
Pensou: E não tarda nada vais ficar outra vez uma vaca gorda!
Afastou-se do espelho e abriu as cortinas. A luz erma do sol derramou-se pelo quarto. O relvado estava um caos. A tenda era desmontada, os fornecedores embalavam as mesas e as cadeiras, a pista de dança era levantada peça por peça e retirada. A relva, anteriormente verde e exuberante, tinha ficado toda pisada. Abriu as janelas
e aspirou o aroma adocicado a champanhe derramado. Algo nisso a deixou deprimida. Hitlerpode estar a preparar-se para conquistar a Polónia, mas foi reservado um
momento esplendoroso a todos os que assistiram este sábado à noite à gala anual de agosto dada por Bratton e Dorothy Lauterbach. Margaret já quase podia escrever
ela própria as colunas sociais.
Ligou o rádio na mesinha de cabeceira e sintonizou a WNYC. "Til Never Smile Again" tocava com suavidade. Peter agitou-se, ainda a dormir. À luz brilhante do sol,
mal se conseguia distinguir a sua pele de porcelana dos lençóis brancos de cetim. Outrora, ela pensava que os engenheiros eram homens com o cabelo cortado rente,
óculos pretos com lentes grossas e um monte de lápis nos bolsos das camisas. Peter não era assim - maçãs do rosto pronunciadas, uma fina linha do maxilar, suaves
olhos verdes, cabelo quase preto. Nesse momento, deitado na cama, com a parte superior do corpo exposta, tinha o aspeto, pensava Margaret, de um Miguel Angelo tombado.
Destacava-se na North Shore, destacava-se dos rapazes de cabelos claros que tinham nascido no meio de fortunas extraordinárias e planeavam viver a vida em espreguiçadeiras.
Peter era perspicaz, ambicioso e vivo. Mostrava-se muito superior a todos os outros. Margaret gostava disso.
Lançou um olhar ao céu nublado e franziu a testa. Peter detestava dias assim em agosto. Ficaria irritável e rabugento durante todo o dia. Haveria provavelmente uma
tempestade para arruinar a viagem de regresso à cidade.
Pensou: Talvez eu devesse esperar para lhe contar as novidades.
- Levanta-te, Peter, ou vamos ouvir das boas - disse Margaret, empurrando-o com o dedo grande do pé.
- Só mais cinco minutos.
- Não temos cinco minutos, querido. Peter não se mexeu.
- Café - suplicou.
As empregadas tinham deixado café à porta do quarto. Era um hábito que Dorothy Lauterbach detestava; achava que isso fazia o corredor do andar de cima parecer o
Plaza Hotel. Mas permitia-o, se isso significasse que as crianças cumpririam a única regra dos fins de semana - que desceriam para tomar o pequeno-almoço às nove horas em ponto.
Margaret encheu uma chávena de café e entregou-a a Peter. Este deslizou sobre o cotovelo e bebeu um pouco. De seguida, sentou-se na cama e observou Margaret.
- Como é que consegues ficar tão linda dois minutos depois de saíres da cama?
Margaret sentiu-se aliviada.
- Não há dúvida de que estás de bom humor. Temi que estivesses de ressaca e fosses andar perfeitamente insuportável o dia inteiro.
- E estou mesmo de ressaca. Benny Goodman está a tocar na minha cabeça e a minha língua parece que precisa de ser barbeada. Mas não tenho nenhuma intenção de me comportar de maneira...
Fez uma pausa.
- Qual foi a palavra que utilizaste?
- Insuportável.
Ela sentou-se na borda da cama.
- Há uma coisa de que temos de falar e esta parece ser uma altura tão boa como qualquer outra.
- Hum. Parece-me sério, Margaret.
- Depende - respondeu ela, olhando-o com o seu ar brincalhão e depois fingindo-se irritada. - Mas levanta-te e veste-te. Ou não és capaz de te vestir e ouvir ao mesmo tempo?
- Sou um engenheiro altamente preparado e altamente conceituado - retorquiu Peter, obrigando-se a sair da cama, gemendo com o esforço. - Talvez consiga.
- É sobre o telefonema de ontem à tarde.
- Aquele de que não quiseste falar?
- Sim, esse. Era o doutor Shipman. Peter parou de se vestir.
- Estou grávida outra vez. Vamos ter outro filho. - Margaret baixou os olhos e pôs-se a mexer no nó da blusa. - Não planeei nada disto. Limitou-se a acontecer. O meu corpo finalmente recuperou de ter tido o Billy e, bem, a natureza tomou o seu caminho - explicou ela, voltando a olhar para ele. - Suspeitava há algum tempo, mas tinha medo de to dizer.
- E por que raio é que haverias de ter medo de mo dizer?
Mas Peter sabia a resposta à sua própria pergunta. Tinha dito a Margaret que não queria ter mais filhos até ter realizado o sonho da sua vida: abrir a sua própria empresa de engenharia. com apenas trinta e três anos, tinha granjeado a reputação de ser um dos melhores engenheiros do país. Depois de se formar em primeiro lugar no seu ano, no prestigiado Rensselaer Polytechnic Institute, foi trabalhar para a Northeast Bridge Company, a maior empresa de construção da Costa Leste. Cinco anos mais tarde, foi nomeado engenheiro-chefe, tornou-se sócio e foi-lhe atribuída uma equipa de cem pessoas. A American Society of Civil Engineering nomeou-o engenheiro do ano, em
1938, pelo seu trabalho inovador numa ponte sobre o rio Hudson, no norte do estado de Nova Iorque. A Sdentific American publicou um perfil de Peter descrevendo-o como a mente da engenharia mais promissora da sua geração. Mas ele queria mais - queria a sua própria empresa. Bratton Lauterbach tinha prometido financiar a empresa de Peter quando chegasse a altura ideal, possivelmente no ano seguinte. Mas a ameaça de guerra tinha posto um travão a tudo isso. Se os Estados Unidos fossem arrastados para a guerra, deixaria de haver dinheiro, da noite para o dia, para obras públicas de grande envergadura. A nova empresa de Peter afundar-se-ia antes de ter uma hipótese de levantar voo.
- De quanto tempo estás? - perguntou ele.
- Quase dois meses.
O rosto de Peter abriu-se num sorriso.
- Não estás aborrecido comigo? - perguntou Margaret.
- Claro que não!
- E a tua empresa e tudo aquilo que disseste sobre termos de esperar para ter mais filhos?
Beijou-a.
- Isso não importa. Nada disso importa.
- A ambição é uma coisa maravilhosa, mas não demasiada ambição. Às vezes, tens de relaxar e divertir-te, Peter. A vida não é um ensaio geral.
Peter pôs-se de pé e acabou de se vestir.
- E quando é que tencionas dizer à tua mãe?
- No momento certo. Lembras-te da reação dela quando eu fiquei grávida do Billy. Pôs-me maluca. Tenho muito tempo para lhe dizer.
Peter sentou-se junto dela, na cama.
- Vamos fazer amor antes do pequeno-almoço.
- Não podemos, Peter. A mãe vai matar-nos se não descermos. Ele beijou-lhe o pescoço.
- O que foi que disseste sobre a vida não ser um ensaio geral? Ela fechou os olhos e a sua cabeça deslizou para trás.
- Isso não é justo. Estás a deturpar as minhas palavras.
- Não, não estou, estou a beijar-te.
- Sim...
- Margaret!
A voz de Dorothy Lauterbach ecoou pelas escadas acima.
- Estamos a ir, mãe.
- Quem me dera - murmurou Peter, seguindo-a depois para o andar de baixo a fim de tomar o pequeno-almoço.
Walker Hardegen juntou-se-lhes para o almoço junto à piscina. Sentaram-se debaixo do guarda-sol: Bratton e Dorothy, Margaret e Peter, Jane e Hardegen. Uma brisa
húmida e inconstante soprava do Sound. Hardegen era o braço direito de Bratton Lauterbach no banco. Era alto e largo de peito e ombros, e a maioria das mulheres
achava que ele se parecia com Tyrone Power. Era um homem de Harvard e durante o seu último ano tinha marcado um touchdown no jogo com Yale. Os seus tempos de futebol americano tinham-no deixado
com um joelho arruinado e ligeiramente coxo, o que de certo modo o tornava ainda mais atraente. Tinha o sotaque indolente de New England e sorria facilmente.
Pouco tempo depois de Hardegen ter chegado ao banco, convidou Margaret para sair e tiveram vários encontros. Hardegen queria que a relação continuasse, mas Margaret não quis. Terminou tudo discretamente, mas ainda via Walker com regularidade em festas e continuaram amigos. Seis meses mais tarde, conheceu Peter e apaixonou-se. Hardegen ficou fora de si. Uma noite no Copacabana, um pouco bêbado e com muitos ciúmes, acercou-se de Margaret e implorou-lhe que voltasse a andar com ele. Quando ela recusou, agarrou-a bruscamente pelo ombro e abanou-a. Pela expressão gelada no seu rosto, Margaret tornou claro que lhe destruiria a carreira se ele não acabasse com o seu comportamento infantil.
O incidente ficou entre eles. Nem mesmo Peter sabia. Hardegen rapidamente ascendeu nas fileiras do banco e tornou-se o executivo de elevada posição em quem Bratton depositava mais confiança. Margaret notava que existia uma tensão silenciosa entre Hardegen e Peter, uma competitividade natural. Ambos eram jovens, bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. A situação tinha piorado um pouco antes do verão, quando Peter descobriu que Hardegen se opunha ao empréstimo para a sua empresa de engenharia.
- Eu não sou grande adepto de Wagner, especialmente no clima atual - disse Hardegen, fazendo uma pausa para dar um gole no vinho branco gelado, enquanto toda a gente ria do seu comentário. Mas tem mesmo de ir ao Metropolitan ver o Herbert Janssen no Tannhàuser. É maravilhoso.
- Tenho ouvido falar muitíssimo bem dessa ópera - respondeu Dorothy.
Ela adorava falar de ópera, teatro, livros e filmes novos. Hardegen, que conseguia ver e ler tudo apesar de uma imensa carga de trabalho no banco, fazia-lhe a vontade. As artes eram um tema seguro, ao contrário de assuntos familiares e de mexericos, que Dorothy deplorava.
- Vimos a Ethel Merman no novo musical do Cole Porter disse Dorothy, enquanto o primeiro prato, uma salada fria de camarão, era servido. - Não me lembro agora do título.
- Dubany Was a Laãy - interveio Hardegen. - Adorei. Hardegen continuou a falar. Na véspera, tinha ido a Forest Hills
à tarde e visto Bobby Riggs ganhar o jogo que estava a disputar. Achava que Riggs seria garantidamente o vencedor do Open desse ano. Margaret observou a mãe, que observava Hardegen. Dorothy adorava Hardegen, tratando-o praticamente como um membro da família. Tinha tornado claro que preferia Hardegen a Peter. Hardegen era oriundo de uma família rica e conservadora do Maine, não tão rica quanto os Lauterbach, mas que andava lá perto, o que era reconfortante. Peter viera de uma família irlandesa da classe média baixa e crescera na zona ocidental de Manhattan. Podia ser um engenheiro brilhante, mas nunca seria um dos nossos. A disputa ameaçou destruir a relação de Margaret com a mãe. Foi terminada por Bratton, que não iria tolerar objeções ao marido que a filha tinha escolhido. Margaret tinha casado com Peter, numa cerimónia de conto de fadas na St. James' Episcopal Church, em junho de 1935. Hardegen foi um dos seiscentos convidados. Dançara com Margaret durante a receção e comportara-se como um cavalheiro. Até ficou para se despedir do casal antes da lua de mel de dois meses pela Europa. Foi como se o incidente no Copa nunca tivesse acontecido.
Os empregados trouxeram o almoço - um prato frio de salmão estufado - e a conversa mudou inevitavelmente para a guerra iminente na Europa.
Bratton perguntou:
- Há alguma maneira de conseguir parar Hitler neste momento ou a Polónia vai tornar-se a província mais a leste do Terceiro Reich?
Hardegen, advogado e um sagaz investidor, tinha tomado a responsabilidade de desembaraçar o banco dos seus investimentos arriscados na Alemanha e na Europa. Dentro do banco, era tratado carinhosamente por "o nosso nazi" devido ao nome, ao seu alemão perfeito e às viagens frequentes a Berlim. Mantinha igualmente uma rede de excelentes contactos em Washington e funcionava como o principal agente dos serviços de informação do banco.
- Falei com um amigo esta manhã. Ele faz parte da equipa do Henry Stimson, no Ministério da Guerra -- disse Hardegen. - Quando Roosevelt regressou a Washington depois do cruzeiro a bordo do
Tuscaloosa, Stimson encontrou-se com ele na Union Station e foram juntos para a Casa Branca. Quando Roosevelt o questionou acerca da situação na Europa, Stimson respondeu que os dias de paz podiam agora ser contados pelos dedos das mãos.
- Roosevelt regressou a Washington há uma semana - disse Margaret.
- É verdade. Faz as contas. E penso que Stimson estava a ser otimista. Acho que a guerra deve estar por horas.
- Mas então e a comunicação a que o Times se refere na edição de hoje? - perguntou Peter.
Hitler tinha enviado uma mensagem ao Reino Unido na noite anterior e o Times sugeria que isso poderia abrir caminho a uma solução negociada para a crise polaca.
- Ele está a protelar - respondeu Hardegen. - Os alemães têm dezasseis divisões ao longo da fronteira polaca à espera da ordem para avançar.
- Então de que é que Hitler está à espera? - estranhou Margaret.
- De uma desculpa.
- com certeza que os polacos não lhe vão dar uma desculpa para invadir.
- Não, claro que não. Mas isso não vai parar Hitler.
- O que é que está a sugerir, Walker? - indagou Bratton.
- Hitler vai inventar um motivo para atacar, uma provocação que lhe permita invadir sem uma declaração de guerra.
- E os britânicos e os franceses? - perguntou Peter. - Vão fazer jus aos seus compromissos e declarar guerra à Alemanha se a Polónia for atacada?
- Creio que sim.
- Não conseguiram deter Hitler na Renânia, na Áustria ou na Checoslováquia - afirmou Peter.
- Sim, mas com a Polónia é diferente. Agora, o Reino Unido e a França compreendem que é preciso tomar medidas em relação a Hitler.
- E quanto a nós? - interveio Margaret. - Podemos ficar de fora?
- Roosevelt continua a afirmar que se quer manter à margem
- respondeu Bratton -, mas não acredito nele. Se a Europa inteira
for arrastada para a guerra, duvido que sejamos capazes de ficar de fora por muito tempo.
- E o banco? - continuou Margaret.
- Estamos a cessar todos os nossos negócios com parceiros alemães - respondeu Hardegen. - Se houver uma guerra, haverá muitas outras oportunidades de investimento. Esta guerra pode ser exatamente do que nós precisamos para arrancar o país da Depressão de uma vez por todas.
- Ah, não há nada melhor do que retirar lucro da morte e da destruição - disse Jane.
Margaret olhou com severidade para a irmã mais nova e pensou: típico da Jane. Gostava de se apresentar como uma iconoclasta; uma intelectual sombria e taciturna, crítica da sua classe e de tudo o que ela representava. Ao mesmo tempo, frequentava festas sem parar e gastava o dinheiro do pai como se o poço estivesse a ponto de secar. com trinta anos, não tinha meios de subsistência e nenhumas perspetivas de casamento.
- Oh, Jane, andaste a ler Marx outra vez? - perguntou Margaret em tom de brincadeira.
- Margaret, por favor - disse Dorothy.
- Jane passou algum tempo em Inglaterra, há uns anos - continuou Margaret, como se não tivesse ouvido o apelo da mãe para que houvesse paz. - Tornou-se uma grande comunista nessa altura, não foi, Jane?
- Tenho direito a ter uma opinião, Margaret - disparou Jane. Hitler não manda nesta casa.
- Acho que também gostaria de me tornar comunista - disse Margaret. - O verão tem sido bastante aborrecido, com toda esta conversa acerca da guerra. Converter-me ao comunismo seria uma maneira agradável de mudar de rotina. Os Hutton vão dar um baile de máscaras no próximo fim de semana. Podíamos ir disfarçadas de Lenine e Estaline. Depois da festa, podemos ir para North Fork coletivizar todas as quintas. Vai ser muito divertido.
Bratton, Peter e Hardegen desataram a rir às gargalhadas.
- Obrigado, Margaret - disse Dorothy com severidade. - Entretiveste-nos a todos o suficiente para o resto do dia.
A conversa acerca da guerra tinha ido longe demais. Dorothy esticou a mão e tocou no braço de Hardegen.
- Walker, tenho tanta pena que não tenha podido vir à nossa festa ontem à noite. Foi maravilhosa. Deixe-me contar-lhe tudo.
O luxuoso apartamento na Quinta Avenida com vista para o Central Park tinha sido uma prenda de casamento de Bratton Lauterbach. Às sete da noite, Peter Jordan estava à janela. Uma tempestade tinha-se estendido por toda a cidade. No parque, brilhavam relâmpagos sobre as copas das árvores de um verde-profundo. O vento impelia a chuva contra o vidro. Peter tinha regressado sozinho à cidade porque Dorothy insistira para que Margaret comparecesse a uma festa em casa de Edith Blakemore. Margaret estava naquele momento a voltar para a cidade, trazida por Wiggins, o motorista dos Lauterbach. E agora iriam ser apanhados pelo mau tempo.
Peter esticou o braço e lançou uma olhadela ao relógio pela quinta vez em cinco minutos. Tinha ficado de se encontrar com o chefe da comissão responsável pelas estradas e pontes da Pennsylvania, no Stork Club, para um jantar às sete e meia. A Pennsylvania estava a receber propostas e projetos para uma nova ponte sobre o rio Allegheny. O patrão de Peter queria que ele fechasse o negócio nessa noite. Era muitas vezes convocado para receber clientes. Era jovem e esperto, e a sua bela mulher era filha de um dos mais poderosos banqueiros do país. Formavam um par esplêndido.
Pensou: Onde é que ela estará, raios?
Ligou para a casa de Oyster Bay e falou com Dorothy.
- Não sei o que lhe dizer, Peter. Ela já saiu há muito tempo. Porventura, o Wiggins está a demorar mais por causa do mau tempo. Sabe como é o Wiggins... basta um sinal de chuva e quase que para.
- Dou-lhe mais quinze minutos. Depois, tenho de sair.
Peter sabia que Dorothy não faria conversa de circunstância, por isso desligou antes de se instalar um silêncio incómodo. Preparou um gim tónico e bebeu-o rapidamente enquanto esperava. Às 19h15, desceu no elevador e aguardou no vestíbulo enquanto o porteiro saía para enfrentar a chuva e chamava um táxi.
Quando a minha mulher chegar, peça-lhe para ir diretamente
para o Stork Club.
- Sim, senhor Jordan.
O jantar correu bem, apesar de Peter se ter levantado três vezes para telefonar para o apartamento e para a casa de Oyster Bay. Às
20h30, já não estava aborrecido, estava preocupadíssimo.
Às 20h45, Paul Delano, o chefe de mesa, dirigiu-se a Peter.
- O senhor tem uma chamada no bar.
- Obrigado, Paul.
Peter pediu licença. No bar, teve de levantar a voz acima do tinir dos copos e do ruído das conversas.
- Peter, é a Jane.
Peter ouviu a voz dela tremer.
- O que se passa?
- Temo que tenha havido um acidente.
- Onde estás?
- Estou na esquadra de polícia do condado de Nassau.
- O que aconteceu?
- Um carro meteu-se à frente deles, na autoestrada. Wiggins não conseguiu vê-lo com a chuva. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde.
- Oh, meu Deus!
- Wiggins está em muito mau estado. Os médicos não têm muita esperança que ele sobreviva.
- E a Margaret, raios?
Os Lauterbach não choravam em funerais; o luto era feito em privado. A cerimónia foi realizada na St. James' Episcopal Church, a mesma igreja em que Peter e Margaret se tinham casado quatro anos antes. O presidente Roosevelt enviou uma nota de condolências e expressou o seu pesar por não poder estar presente. Mas a maioria da alta sociedade de Nova Iorque compareceu. Bem como a maioria do mundo das finanças, ainda que os mercados estivessem em tumulto. A Alemanha tinha invadido a Polónia e o mundo estava à espera da eclosão da guerra na Europa.
Billy permaneceu junto de Peter durante as exéquias. Vestia calças curtas, um pequeno blaer e gravata. Quando a família começou a sair da igreja em fila, estendeu a mão e puxou a bainha do vestido preto da tia Jane.
- A mamã vai voltar algum dia a casa?
- Não, Billy, não vai voltar. Ela deixou-nos.
Edith Blakemore ouviu por acaso a pergunta da criança e começou a chorar.
- Que tragédia - lamentou ela. - Que tragédia sem sentido!
Margaret foi enterrada sob um céu brilhante na campa de família, em Long Island. Durante as últimas palavras do reverendo Pugh, um murmúrio atravessou os enlutados em redor da campa e depois dissipou-se.
Quando terminou, Peter regressou à limusina com o seu melhor amigo, Shepherd Ramsey. Shepherd tinha apresentado Peter a Margaret. Mesmo com o seu fato escuro sombrio, tinha o aspeto de ter acabado de sair do convés do seu veleiro.
- De que estava toda a gente a falar? - perguntou Peter. Foi bastante grosseiro.
- Houve pessoas que chegaram atrasadas e que tinham estado a ouvir as notícias no rádio do carro - disse Shepherd. - O Reino Unido e a França acabaram de declarar guerra à Alemanha.
TRÊS
LONDRES: MAIO DE 1940
O professor Alfred Vicary desapareceu sem explicação do University College London, na terceira sexta-feira de maio de 1940. Uma secretária chamada Lillian Walford
foi o último membro do staffa. ver Vicary antes do seu abrupto desaparecimento. Numa rara indiscrição, revelou aos outros professores que a última chamada telefónica
que Vicary recebera tinha sido do novo primeiro-ministro. Na verdade, ela até tinha falado pessoalmente com o senhor Churchill.
- Aconteceu a mesma coisa com Masterman e Cheney em Oxford - disse tom Perrington, um egiptólogo, enquanto dava uma vista de olhos à entrada no livro de registos
telefónicos. - Chamadas misteriosas, homens de fatos escuros. Suspeito que o nosso caro amigo Alfred tenha passado para trás do véu.
Depois acrescentou sotto você:
- Para o interior da Acrópole secreta.
O sorriso lânguido de Perrington não conseguia esconder a sua desilusão, comentaria posteriormente Miss Walford. Era uma pena que o Reino Unido não estivesse em guerra com os antigos egípcios
- talvez Perrington também tivesse sido escolhido.
Vicary passou as suas últimas horas no seu gabinete abarrotado e desorganizado, com vista para Gordon Square, dando os últimos retoques num artigo para o Sundoy Times. A atual crise poderia ter
sido evitada, sugeria o texto, se o Reino Unido e a França tivessem atacado a Alemanha em 1939, quando Hitler ainda estava absorto com a Polónia. Sabia que seria severamente criticado devido ao atual clima; o último artigo que escrevera tinha sido condenado como chunhilliano e belicista por uma publicação da extrema-direita
pró-nazi. Vicary esperava no seu íntimo que o novo artigo fosse recebido de um modo semelhante.
Era um glorioso dia de fim de primavera - sol brilhante, mas tempo dececionantemente fresco. Vicary, um jogador de xadrez talentoso, ainda que relutante, apreciava
o logro. Levantou-se, vestiu um casaco de malha e depois retomou o trabalho.
O clima agradável dava uma imagem falsa da realidade. O Reino Unido era uma nação sitiada - sem defesas, assustada, titubeando em total confusão. Foram elaborados planos para evacuar a família real para o Canadá. O governo pediu que o outro tesouro nacional do Reino Unido, as suas crianças, fosse enviado para o campo, onde estariam a salvo dos bombardeiros da Luftwaffe.
Através da utilização de hábil propaganda, o governo tinha tornado a população extremamente consciente da ameaça colocada por espiões e quinta-colunistas. Estava agora a sofrer as consequências. Os regimentos de polícia estavam a ser soterrados por relatórios sobre estranhos, indivíduos de ar esquisito ou cavalheiros com aspeto de alemães. Os cidadãos escutavam conversas empabs, ouvindo o que queriam e comunicando depois à polícia. Relatavam sinais de fumo, luzes a piscarem na costa e espiões paraquedistas. Um rumor atravessou o país, segundo o qual agentes alemães se tinham feito passar por freiras durante a invasão dos Países Baixos; de repente, as freiras tornaram-se suspeitas. A maioria só saía do santuário murado dos seus conventos quando era absolutamente necessário.
Um milhão de homens demasiado novos, demasiado velhos ou demasiado débeis para ingressar nas forças armadas apressou-se a alistar-se na Guarda Territorial. Não havia espingardas para a guarda, por isso armavam-se com o que podiam - caçadeiras, espadas, cabos de vassoura, clavas medievais, facas nepalesas, até tacos de golfe. Aqueles que por algum motivo não conseguiam encontrar a arma adequada recebiam ordens para andar com pimenta para lançar aos olhos dos soldados alemães saqueadores.
Vicary, um reputado historiador, observou a agitação dos preparativos da sua nação para a guerra com um misto de enorme orgulho e silencioso desânimo. Ao longo dos anos trinta, os seus artigos de jornal e conferências tinham avisado que Hitler representava uma séria ameaça à Inglaterra e ao resto do mundo. Mas o Reino Unido, esgotado pela última guerra com os alemães, não tinha estado com disposição para ouvir falar de outra. Mas, naquele preciso momento, o exército alemão avançava pela França com a tranquilidade de um passeio automobilístico de fim de semana. Em breve, Adolf Hitler estaria no topo de um império que se estenderia do Círculo Polar Ártico até ao Mediterrâneo. E o Reino Unido, insuficientemente armado e mal preparado, encontrava-se sozinho contra ele.
Vicary terminou o artigo, pousou o lápis e leu-o desde o início. Lá fora, o Sol estava a pôr-se num mar alaranjado sobre Londres. O cheiro de flores primaveris que floresciam nos jardins da Gordon Square entrava pela janela. A tarde tinha arrefecido; era provável que as flores dessem início a uma crise de espirros. Mas a brisa sabia-lhe maravilhosamente no rosto e, por alguma razão, fazia o chá saber melhor. Deixou a janela aberta e desfrutou.
A guerra estava a fazê-lo pensar e agir de um modo diferente. Estava a fazê-lo olhar mais afetuosamente para os seus compatriotas, que normalmente observava com uma atitude próxima do desespero. Espantava-se com o facto de serem capazes de dizer piadas enquanto entravam em fila indiana no abrigo da estação de metro e com o modo como cantavam nos pubs para esconderem o medo. Levou algum tempo até que Vicary reconhecesse os seus sentimentos pelo que eles eram - patriotismo. Ao longo de uma vida de estudo, tinha concluído que aquela era a força mais destrutiva do planeta. Mas, naquele momento, sentia a agitação do patriotismo no seu próprio peito e não estava envergonhado. Nós somos bons e eles são maus. O nosso nacionalismo é justificado.
Vicary tinha decidido que queria contribuir. Queria fazer algo em vez de observar o mundo através da sua janela bem protegida.
Às seis da tarde, Lillian Walford entrou sem bater. Era alta, com pernas de lançador de pesos e óculos redondos que ampliavam um olhar inabalável. Começou a pôr papéis em ordem e a fechar livros com a tranquila eficiência de uma enfermeira noturna.
Nominalmente, Miss Walford trabalhava para todos os professores do departamento. Mas ela acreditava que Deus, na sua infinita sabedoria, confiava a cada pessoa uma alma para dela cuidar. E se havia uma pobre alma a precisar de que cuidassem dela, era o professor Vicary. Durante dez anos, tinha orientado os pormenores da vida simples de Vicary com uma precisão militar. Certificava-se de que havia comida na casa dele em Draycott Place, em Chelsea. Assegurava-se de que as camisas lhe eram entregues e continham a quantidade exata de goma - não em demasia, pois isso irritar-lhe-ia a pele suave do pescoço. Tratava-lhe das contas e censurava-o regularmente sobre o estado da sua conta bancária mal gerida. Contratava novas empregadas com uma regularidade sazonal porque os ataques de mau feitio dele afugentavam as anteriores. Apesar da proximidade das suas relações profissionais, nunca se tratavam pelos nomes de batismo. Ela era Miss Walford e ele, o professor Vicary. Ela preferia ser vista como uma assistente pessoal e, de maneira pouco característica, Vicary fazia-lhe a vontade.
Miss Walford tocou de raspão em Vicary, ao passar, e fechou a janela, lançando-lhe um olhar de censura.
- Se não se importa, professor Vicary, vou-me embora para casa.
- Claro, Miss Walford.
Ele olhou para ela. Era um homem pequeno, inquieto e com ar de estudioso, careca no cimo da cabeça, à exceção de alguns fios de cabelo grisalho despenteados. Os seus maltratados óculos em meia-lua repousavam-lhe na ponta do nariz. Estavam manchados com dedadas por causa do hábito de os retirar e voltar a pôr sempre que se sentia nervoso. Usava um casaco de tweed fustigado pelas intempéries e uma gravata manchada de chá, escolhida com desleixo. O seu modo de andar era objeto de piadas na universidade e, sem que tivesse conhecimento, alguns dos seus alunos tinham aprendido a imitá-lo na perfeição. Um joelho destruído durante a guerra anterior tinha-o deixado com um coxear mecanizado e as articulações presas - um soldado de brincar que já não funcionava em condições, pensava Miss Walford. A cabeça tinha tendência a inclinar-se para baixo a fim de lhe permitir ver por cima dos óculos e ele parecia estar sempre a correr para algum lugar onde preferiria não estar.
O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas
de cordeiro em sua casa - disse Miss Walford, franzindo o sobrolho a uma confusa pilha de papéis como se se tratasse de uma criança desobediente. - Disse que poderia ser o último cordeiro que se conseguiria arranjar nos próximos tempos.
- Creio bem que sim - respondeu Vicary. - Há várias semanas que já não aparece carne na ementa do Connaught.
- Isto está a tornar-se um pouco absurdo, não acha, professor Vicary? Hoje, o governo decretou que os tejadilhos dos autocarros londrinos fossem pintados do cinzento dos couraçados - revelou Miss Walford. -- Acham que será mais difícil para a Luftwaffe bombardeá-los.
- Os alemães são implacáveis, Miss Walford, mas mesmo assim não vão perder tempo a bombardear autocarros de passageiros.
- E também decretaram que não devíamos abater pombos-correios. Fazia o favor de me explicar como é que eu sou capaz de distinguir um pombo-comw de um pombo normal?
- Nem lhe consigo dizer quantas vezes me sinto tentado a abater pombos - atirou Vicary.
- Já agora, também tomei a liberdade de lhe encomendar molho de hortelã - anunciou Miss Walford. - Sei que comer uma costeleta de cordeiro sem molho de hortelã lhe pode dar cabo da semana.
- Obrigado, Miss Walford.
- O seu editor ligou para dizer que as provas do novo livro estão prontas para revisão.
- E com apenas quatro semanas de atraso. Um recorde para Cagley. Lembre-me de procurar um novo editor, Miss Walford.
- Sim, professor Vicary. Miss Simpson ligou para dizer que não estará disponível para jantar consigo esta noite. A mãe adoeceu. Pediu-me para lhe dizer que não é nada de grave.
- Raios - murmurou Vicary.
Andava ansioso por se encontrar com Alice Simpson. Era a relação mais séria que tinha com uma mulher em muito tempo.
- É tudo?
- Não, o primeiro-ministro telefonou.
- O quê? Por que raio não me avisou?
- O senhor deixou instruções rigorosas para não ser incomodado. Quando lhe expliquei isso, o senhor Churchill foi bastante compreensivo. Diz que nada o transtorna mais do que ser interrompido quando está a escrever.
Vicary franziu o sobrolho.
- A partir deste momento, Miss Walford, tem a minha explícita permissão para me interromper quando o senhor Churchill telefonar.
- Sim, professor Vicary - respondeu ela, ainda com a plena convicção de que tinha agido corretamente.
- O que disse o primeiro-ministro?
- Que conta consigo para o almoço de amanhã em Chartwell.
Vicary variava de percurso quando regressava a casa, de acordo com a sua disposição. Por vezes, preferia abrir caminho por uma rua comercial movimentada ou passar
pelo meio do rebuliço da multidão no Soho. Noutras noites, deixava as vias principais e percorria as tranquilas ruas residenciais, ora detendo-se a contemplar um
exemplar de arquitetura georgiana esplendidamente iluminado, ora retardando o passo para ouvir os sons de música, risos e tinir dos copos provenientes de uma festa
divertida.
Naquela noite, ia andando indolentemente por uma rua sossegada durante os últimos resquícios do crepúsculo.
Antes da guerra, passara a maioria das noites a fazer investigação na biblioteca, percorrendo os corredores entre as estantes como um fantasma até altas horas da
noite. Numa ou noutra noite, adormecia. Miss Walford deu instruções aos porteiros noturnos - quando o encontrassem deveriam acordá-lo, enfiar-lhe o impermeável e enviá-lo para casa.
O blackout tinha modificado essa situação. Todas as noites, a cidade mergulhava numa profunda escuridão. Os londrinos de gema perdiam-se nas ruas em que andavam
há anos. Para Vicary, que sofria de cegueira noturna, o blackout tornava a navegação próxima do impossível. Imaginava que as coisas deveriam ter sido assim dois milénios antes, quando Londres era um aglomerado de cabanas em madeira ao longo das margens pantanosas do rio Tamisa. O tempo tinha-se
dissipado, os séculos, recuado, e o progresso inegável da humanidade fora interrompido pela ameaça dos bombardeiros de Góring. Todas as tardes, Vicary fugia da universidade
e apressava-se em direção a casa antes que ficasse encalhado nas ruas secundárias de Chelsea. Uma vez seguro dentro de casa, bebia os dois copos de Borgonha da praxe e devorava o prato de costeletas e ervilhas que a empregada lhe deixava num fogão quente. Se não lhe preparassem as refeições, passaria fome, já que ainda se debatia com as complexidades da moderna cozinha inglesa.
Depois do jantar, um pouco de música, uma peça de teatro na telefonia, ou mesmo um romance policial, uma obsessão privada que não revelava a ninguém. Vicary gostava de mistérios; gostava de enigmas. Gostava de utilizar as suas capacidades de raciocínio e dedução para resolver os casos muito antes de o autor fazer isso por ele. Também gostava dos estudos de personagem nos mistérios e muitas vezes encontrava paralelos no seu próprio trabalho - a razão pela qual, por vezes, pessoas boas faziam coisas más.
Adormecer era um processo gradual. Começava na sua cadeira preferida, com o candeeiro de leitura ainda aceso. Depois, mudava-se para o sofá. De seguida, normalmente nas últimas horas antes do amanhecer, subia para o quarto, no andar de cima. Por vezes, a concentração necessária para despir a roupa deixava-o demasiado desperto para voltar a adormecer e, por isso, ficava acordado a pensar, à espera do amanhecer cinzento e do riso malicioso da velha pega que chapinhava todas as manhãs na fonte do jardim, lá fora.
Tinha dúvidas se iria conseguir dormir grande coisa nessa noite
- ainda por cima, depois da convocatória de Churchill.
Não era invulgar Churchill ligar-lhe para o gabinete, era mais o timing. Vicary e Churchill eram amigos desde o outono de 1935, quando Vicary assistira a uma conferência dada por Churchill em Londres. Churchill, confinado à desolação dos lugares de trás do parlamento britânico, era uma das poucas vozes no Reino Unido a alertar para a ameaça colocada pelos nazis. Nessa noite, afirmara que a Alemanha se estava a rearmar a um ritmo frenético, que Hitler pretendia combater assim que fosse capaz. A Inglaterra tinha de se rearmar imediatamente, defendeu ele, ou enfrentar ser escravizada pelos nazis.
O público pensou que Churchill tinha perdido a cabeça e apupou-o sem misericórdia. Churchill interrompera abruptamente as suas observações e regressara a Chartwell, mortificado.
Naquela noite, Vicary tinha-se deixado ficar ao fundo do auditório a assistir ao espetáculo. Também ele andava a observar a Alemanha cuidadosamente desde que Hitler ascendera ao poder. Tinha previsto discretamente perante os colegas que a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra dentro de pouco tempo, talvez ainda antes do final da década. Ninguém prestara atenção. Havia muita gente que pensava que Hitler era um bom contrapeso à União Soviética e que devia ser apoiado. Vicary achava que isso era um absurdo total. À semelhança do resto do país, considerava Churchill um pouco aventureiro, um tanto belicoso. Mas em se tratando dos nazis, Vicary achava que Churchill tinha toda a razão.
Quando regressou a casa, Vicary sentou-se à secretária e escreveu-lhe rapidamente um bilhete, com uma única frase: Assisti à sua conferência em Londres e concordo com cada palavra que proferiu. Cinco dias mais tarde, chegou um bilhete de Churchill a casa de Vicary: Meu Deus, afinal não estou sozinho. O grande Vicary está ao meu lado! Por favor, conceda-me a honra de vir almoçar a Chartwell este domingo.
O primeiro encontro entre ambos foi um sucesso. Vicary foi imediatamente incorporado no círculo de académicos, jornalistas, funcionários públicos e oficiais que iria aconselhar e fornecer informações a Churchill acerca da Alemanha durante o resto da década. Winston forçava Vicary a ouvi-lo enquanto percorria o antigo piso de madeira da sua biblioteca e explicava as suas teorias acerca das intenções alemãs. Por vezes, Vicary discordava, forçando Churchill a clarificar os seus pontos de vista. Por vezes, Churchill perdia a calma e recusava voltar atrás. Vicary mantinha-se firme. A amizade entre ambos foi cimentada desse modo.
Naquele preciso momento, caminhando através da escuridão crescente, Vicary pensou na convocatória de Churchill para ir até Chartwell. Não era certamente apenas para uma conversa amistosa.
Vicary virou para uma rua de casas brancas geminadas, de estilo georgiano, pintadas de rosa pelos últimos minutos do crepúsculo primaveril. Caminhou lentamente, como se estivesse perdido, com uma
mão a agarrar a mala, pesada como chumbo, e a outra enfiada no bolso do impermeável. Uma mulher atraente, aproximadamente da sua idade, emergiu da soleira de uma
porta. Um homem elegante e de ar aborrecido seguia-a. Mesmo ao longe - mesmo com a sua terrível visão -, conseguiu perceber que era Helen. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar - a postura ereta, o pescoço alto, o caminhar desdenhoso, como se estivesse sempre prestes a pisar qualquer coisa desagradável. Vicary viu-os entrar para o
banco de trás de um carro conduzido por um motorista. O carro arrancou, afastando-se do passeio, e avançou na sua direção. Dá meia-volta, meu grande parvo! Não olhes
para ela! Mas foi incapaz de seguir o seu próprio conselho. Quando o carro passou por ele, virou a cabeça e olhou para o banco de trás. Ela viu-o - por um instante,
apenas -, mas foi o suficiente. Embaraçada, baixou imediatamente os olhos. Vicary, através do vidro traseiro do carro, observou-a a virar-se e a sussurrar alguma
coisa ao marido que o fez soltar uma gargalhada, atirando a cabeça para trás.
Idiota! Idiota dum raio!
Vicary recomeçou a andar. Olhou em frente e observou o carro a desaparecer ao virar da esquina. Interrogou-se para onde iriam a outra festa, talvez ao teatro. Porque
não a esqueço simplesmente? já passaram vinte e cinco anos, por amor de Deus! E depois pensou:
- E porque é que o teu coração está a bater como se fosse a primeira
vez que a visses?
Continuou a andar o mais rapidamente que pôde até ficar cansado e sem fôlego. Pensou em qualquer coisa que lhe viesse à mente - tudo menos ela. Chegou a um parque infantil e ficou parado junto ao portão de ferro, a olhar fixamente para as crianças através das grades. Tinham roupa a mais para maio e andavam aos encontrões umas
às outras, como minúsculos pinguins roliços. Um qualquer espião alemão que estivesse à espreita iria certamente aperceber-se de que muitos londrinos tinham ignorado
o aviso do governo e mantido os filhos junto de si, na cidade. Vicary, normalmente indiferente a crianças, manteve-se ao portão, a ouvir, hipnotizado, pensando que
não havia nada tão reconfortante como o som dos pequeninos a brincar.
O carro de Churchill esperava-o na estação. Acelerou, com a capota descida, através dos campos verdes e ondulados do sudeste de Inglaterra. Estava fresco, corria uma brisa e parecia que tudo estava em flor. Vicary ia sentado no banco de trás, com uma mão a manter o casaco fechado e a outra a segurar o chapéu na cabeça. O
vento soprava por cima do descapotável como o temporal sobre a proa de um navio. Pensou se haveria de pedir ao condutor para parar o carro e subir a capota. Foi
então que começou o inevitável ataque de espirros, primeiro como se fossem disparos esporádicos de um atirador furtivo, depois progredindo para uma autêntica barragem de artilharia. Vicary não conseguia decidir que mão libertar para cobrir a boca. Virava a cabeça repetidamente ao espirrar, fazendo com que as pequenas rajadas de humidade e germes fossem levadas pelo vento.
O condutor viu os constantes movimentos de Vicary pelo retrovisor e ficou alarmado.
- Quer que pare o carro, professor Vicary? - perguntou, levantando o pé do acelerador.
O ataque de espirros acalmou e por fim Vicary foi capaz de apreciar a viagem. Em regra, não se interessava pelo campo. Era um londrino. Gostava das multidões, do ruído e do trânsito e tendia a ficar desorientado em espaços abertos. Também detestava a tranquilidade das noites. A sua mente vagueava e ele ficava convencido de que havia assaltantes deambulando na escuridão. Mas, naquele momento, recostou-se no banco do carro, maravilhado com a beleza natural de Inglaterra.
O carro virou para o caminho de entrada de Chartwell. A pulsação de Vicary aumentou quando saiu do carro. Ao aproximar-se da porta, esta abriu-se e lá estava o homem de Churchill, Inches, para o cumprimentar.
- bom dia, professor Vicary. O senhor primeiro-ministro tem estado a aguardar a sua chegada com muitíssima ansiedade.
Vicary entregou o casaco e o chapéu e entrou. Cerca de uma dúzia de homens e um par de raparigas estavam a trabalhar na sala de estar, alguns de uniforme, outros,
como Vicary, à civil. Falavam num tom abafado e confessional, como se todas as notícias fossem mas.
Um telefone tocou, depois outro. Todos eram atendidos ao primeiro toque.
- Espero que tenha tido uma viagem agradável - estava a dizer Inches.
- Maravilhosa - respondeu Vicary, mentindo educadamente.
- Como é hábito, o senhor Churchill está atrasado esta manhã
- disse Inches. De seguida, acrescentou em tom de confidência: Ele estabelece uma agenda impossível de cumprir e todos nós passamos o resto do dia a tentar respeitá-la.
- Compreendo, Inches. Onde quer que eu espere?
- Na verdade, o senhor primeiro-ministro está muito ansioso por vê-lo esta manhã. Pediu para o levar ao andar de cima assim que o senhor chegasse.
- Ao andar de cima?
Inches bateu suavemente e abriu a porta da casa de banho. Churchill estava estendido na banheira, com um charuto na mão e o segundo copo de uísque do dia pousado numa pequena mesa de fácil acesso. Inches anunciou Vicary e retirou-se.
- Vicary, meu caro amigo - disse ele, colocando de seguida a boca ao nível da água e fazendo bolhas. - Que bom ter vindo.
Vicary achou opressiva a temperatura quente da casa de banho. E também achou difícil não se rir perante o enorme homem rosado a chapinhar na banheira como uma criança.
Despiu o casaco de tweed e, com relutância, sentou-se na sanita.
- Queria trocar umas palavras consigo em privado... foi por isso que o convidei a vir aqui à minha toca. - Churchill franziu os lábios.
- Vicary, devo admitir desde já que estou aborrecido consigo.
Vicary endireitou-se.
Churchill abriu a boca para continuar, mas deteve-se. Um olhar perplexo e derrotado despontou-lhe no rosto.
- Inches! - berrou Churchill.
Inches entrou.
- Sim, senhor Churchill?
- Inches, creio que a água da minha banheira baixou dos 40 graus. É capaz de verificar o termómetro?
Arregaçando a manga, Inches retirou o termómetro da água. Estudou-o como um arqueólogo a examinar um fragmento de osso antigo.
- Ah, tem razão, senhor. A temperatura da água caiu para os 39 graus. Devo aquecê-la?
- Claro.
Inches abriu a torneira da água quente e deixou-a correr por instantes. Churchill sorriu quando a água da banheira atingiu a temperatura adequada.
- Muito melhor, Inches.
Churchill virou-se de lado. A água caiu em cascata por cima do bordo da banheira, molhando a perna das calças de Vicary.
- O senhor primeiro-ministro estava a dizer?
- Ah, sim, estava a dizer, Vicary, que estou aborrecido consigo. Nunca me tinha dito que quando era novo era bastante bom a jogar xadrez. Batia todos os jovens promissores em Cambridge, segundo me disseram.
Vicary, absolutamente confuso, respondeu:
- Peço desculpa, senhor primeiro-ministro, mas o xadrez nunca foi tema que surgisse em nenhuma das nossas conversas.
- Brilhante, implacável, arriscado: foi como as pessoas me descreveram o seu jogo. - Churchill calou-se por uns instantes e, a seguir, disse: - E também fez parte do Corpo dos Serviços Secretos durante a Primeira Guerra Mundial.
- Estive apenas na Unidade de Motocicletas. Fazia de correio, nada mais.
Churchill desviou o olhar de Vicary para o teto, fitando-o.
- Em 1250 a.C., o Senhor disse a Moisés que enviasse agentes para espiar a terra de Canaã. O Senhor teve a amabilidade de dar alguns conselhos a Moisés sobre como recrutar os espiões. Apenas os melhores e mais brilhantes homens eram capazes de uma tarefa tão importante, disse o Senhor, e Moisés cumpriu as instruções à risca.
- Isso é verdade, senhor primeiro-ministro - disse Vicary. Mas também é verdade que a informação recolhida pelos espiões de Moisés foi mal utilizada. Em resultado disso, os israelitas passaram mais quarenta anos a percorrer o deserto.
Churchill sorriu.
- Já devia ter aprendido há muito a nunca discutir consigo. O Alfred tem uma mente ágil. Sempre admirei isso.
- O que quer o senhor que eu faça?
- Quero que aceite um lugar nos serviços secretos militares.
- Mas, senhor primeiro-ministro, eu não estou qualificado para esse tipo de...
- Não há ninguém que saiba o que anda a fazer por aquelas bandas - disse Churchill, interrompendo Vicary. - Especialmente os agentes profissionais.
- Mas e os meus alunos? A minha investigação?
- Os seus alunos entrarão em breve no serviço militar, para lutar pela vida. E quanto à sua investigação, ela pode esperar. - Churchill fez uma pausa. - Conhece John Masterman e Christopher Cheney, de Oxford?
- Não me diga que eles foram convocados?
- com efeito, e não espere encontrar nenhum matemático digno desse nome em qualquer universidade - retorquiu Churchill. Foram todos abocanhados e empacotados para Bletchley Park.
- E que raio andam eles a fazer por lá?
- A tentar descobrir os códigos alemães.
Por breves instantes, Vicary fez questão de mostrar que estava a ponderar o assunto.
- Julgo que aceito.
- Otimo! - exclamou Churchill, batendo com o punho no rebordo da banheira. - Na segunda-feira, deve apresentar-se logo pela manhãzinha a Sir Basil Boothby. Ele é o chefe da divisão para a qual vai ser destacado. E também é o perfeito imbecil inglês. Opor-se-ia a mim, se pudesse, mas é demasiado estúpido para isso. Um idiota
de primeira apanha.
- Parece encantador.
- Ele sabe que eu e o Alfred somos amigos e por isso vai fazer-lhe frente. Não deixe que ele o intimide. Entendido?
- Sim, senhor primeiro-ministro.
- Preciso de alguém em quem possa confiar dentro daquele departamento. Está na altura de voltar a colocar a inteligência nos
serviços secretos militares1. Além do mais, isto será bom para si, Alfred. Está na altura de sair da sua biblioteca empoeirada e regressar ao mundo dos vivos.
Vicary foi apanhado desprevenido pela repentina intimidade de Churchill. Pensou na noite anterior, no passeio até casa, no olhar lançado ao carro de Helen.
- Sim, senhor primeiro-ministro, creio que está na altura. E o que irei fazer exatamente pelos serviços secretos militares?
Mas Churchill tinha mergulhado debaixo da linha da água e desaparecido.
1 No original, Military Intelligence; trocadilho com a palavra intettigence, que pode significar, entre outras coisas, inteligência e serviços secretos. (N. do T.)
QUATRO
RASTENBURG, ALEMANHA: JANEIRO DE 1944
O contra-almirante Wilhelm Franz Canaris era um homem pequeno e nervoso que falava com um ligeiro ceceio e possuía um humor sarcástico nas raras ocasiões em que
decidia exibi-lo. De cabelo branco e olhos azuis penetrantes, estava sentado no banco de trás de um Mercedes oficial, que se deslocava ruidosamente do aeródromo
de Rastenburg até ao búnquer secreto de Hitler, a cerca de 15 quilómetros de distância. Normalmente, Canaris evitava uniformes e aparatos militares de todo o género,
preferindo um fato escuro de homem de negócios. Mas visto que se ia encontrar com Adolf Hitler e com os mais importantes oficiais da Alemanha, envergava o seu uniforme
da Kriegsmarine por baixo do sobretudo formal.
Conhecido como a Velha Raposa tanto pelos amigos como pelos seus detratores, a personalidade distante e reservada de Canaris adequava-se na perfeição ao mundo impiedoso da espionagem. Preocupava-se mais com os seus dois dachshunds, que dormiam nesse momento aos seus pés, do que com qualquer outra pessoa, exceto a mulher, Erika, e as filhas. Quando o trabalho obrigava a viagens noturnas, reservava um segundo quarto, com camas duplas, de modo que os cães pudessem dormir confortavelmente. Quando era necessário deixá-los em Berlim, Canaris contactava constantemente os seus assessores para se certificar de que os animais tinham comido e defecado apropriadamente. Os membros da Abwehr que ousassem falar mal dos cães enfrentavam a ameaça bem real de ficarem com as carreiras destruídas
se uma palavra da sua maledicência alcançasse os ouvidos de Canaris. Educado numa villa murada em Aplerbeck, nos subúrbios de Dortmund, Wilhelm Canaris fazia parte da elite tão detestada por Adolf Hitler - filho de um barão das chaminés e descendente de italianos
emigrados para a Alemanha no século xvi. Falava as línguas dos amigos da Alemanha, bem como as dos seus inimigos - italiano, espanhol, inglês, francês e russo -, e presidia regularmente a recitais de música de câmara no salão da sua imponente casa de Berlim. Em
1933, tinha o posto de comandante de um entreposto naval no mar Báltico, em Swinemúnde, quando Hitler o escolheu inesperadamente para dirigir a Abwehr, os serviços de informação e contraespionagem do estado-maior alemão. Hitler deu instruções ao seu novo mestre espião para criar uns serviços secretos que seguissem o modelo britânico - uma ordem, afazer o seu trabalho com paixão - e Canaris assumiu formalmente o comando da agência de espionagem no dia de Ano Novo de 1934, a data do seu quadragésimo sétimo aniversário.
Esta decisão iria revelar-se uma das piores de Hitler. Desde que assumira o comando da Abwehr, Wilhelm Canaris andava embrenhado numa ação altamente arriscada - garantir ao estado-maior as informações de que necessitava para conquistar grande parte da Europa, ao mesmo tempo que utilizava os serviços como uma ferramenta para livrar a Alemanha de Hitler. Era o líder do movimento de resistência apelidado de Orquestra Negra - Schwarçe Kapelle - pela Gestapo. Um grupo muito unido de oficiais alemães, membros do governo e líderes civis, a Orquestra Negra tinha tentado, sem sucesso, derrubar o Fúhrer e negociar um acordo de paz com os Aliados. Canaris também tinha estado envolvido noutras atividades de traição. Em 1939, depois de saber dos planos de Hitler para invadir a Polónia, avisou os britânicos numa vã tentativa de os induzir à ação. Fez o mesmo em 1940, quando Hitler anunciou os seus planos para a invasão dos Países Baixos e da França.
Canaris virou-se e olhou pela janela, observando a floresta de Gõrlitz a passar diante de si - negra, silenciosa, densamente arborizada, como um cenário de conto de fadas dos irmãos Grimm. Canaris, perdido na tranquilidade das árvores cobertas de neve, pensava no
recente atentado à vida do Fúhrer. Dois meses antes, em novembro, um jovem capitão de nome Axel von dem Bussche tinha-se voluntariado para assassinar Hitler durante a inspeção de um novo sobretudo para a Wehrmacht. Bussche planeou esconder algumas granadas debaixo do casaco e, a seguir, detoná-las durante a demonstração, matando-se
e ao Fúhrer. Mas, um dia antes da tentativa de assassínio, os bombardeiros aliados destruíram o edifício onde os casacos estavam armazenados. A demonstração foi
cancelada e nunca chegou a ser reagendada.
Canaris sabia que haveria mais tentativas - mais alemães corajosos prontos a sacrificar a própria vida a fim de derrubar Hitler -, mas também sabia que o tempo fugia.
A invasão anglo-americana da Europa era uma certeza. Roosevelt tinha tornado claro que não aceitaria nada menos do que uma rendição incondicional. A Alemanha seria
destruída, tal como Canaris temera em 1933, quando as ambições messiânicas de Hitler se tinham tornado claras para ele. Também se apercebeu de que o seu ténue controlo sobre a Abwehr enfraquecia de dia para dia. Vários membros da equipa executiva de Canaris, no quartel-general da Abwehr, em Berlim, tinham sido presos pela Gestapo e acusados de traição. Os seus inimigos andavam a conspirar para se apoderarem do comando da agência de espionagem e colocar-lhe o pescoço num nó de corda de piano. Percebeu que tinha os dias contados - que a sua longa, perigosa e arriscada ação estava a chegar ao fim.
O carro oficial passou pela miríade de portões e postos de controlo, depois virou para o complexo no Wolfschanze1 de Hitler a Toca do Lobo. Os dachshunds acordaram,
ganindo nervosamente, e saltaram para o colo de Canaris. A conferência iria ter lugar na sala de mapas glacial e abafada, no búnquer subterrâneo. Canaris saiu do
carro e atravessou, com ar sombrio, o complexo. Ao fundo das escadas, encontrava-se um guarda-costas corpulento das SS, pronto para aliviar Canaris de quaisquer
armas que pudesse levar. Canaris, que evitava armas e detestava violência, abanou a cabeça e passou por ele.
1 Quartel-general de Hitler na Prússia Oriental. (N. do T.)
- Em novembro, emiti a Diretiva Número Cinquenta e Um do Fúhrer - começou a dizer Hitler sem preâmbulos, caminhando furiosamente pela sala com as mãos cruzadas atrás
das costas.
Envergava uma túnica cinzento-clara, calças pretas e botas de cano alto resplandecentes. No bolso do peito do lado esquerdo usava a Cruz de Ferro que tinha conquistado
em Ypres enquanto soldado de infantaria no Regimento List, durante a Primeira Guerra Mundial.
- A Diretiva Número Cinquenta e Um exprimia a minha convicção de que os anglo-saxões tentarão invadir o noroeste da França o mais tardar na primavera, talvez antes.
Durante os dois últimos meses, não vi nada que me fizesse mudar de opinião.
Sentado à mesa da conferência, Canaris observou o Fúhrer a pavonear-se ao redor da sala. A inclinação pronunciada de Hitler, causada pela cifose da coluna, parecia
ter piorado. Canaris interrogou-se se ele estaria finalmente a sentir a pressão. Tinha razões para isso. O que tinha dito Frederico, o Grande?Quem defende tudo, não defende nada. Hitler deveria ter prestado atenção ao conselho do seu guia espiritual, já que a Alemanha estava na mesma posição em que se encontrara durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha conseguido conquistar mais território do que o que podia defender.
A culpa era exclusivamente de Hitler - o raio do louco Canaris lançou uma olhadela ao mapa. A leste, as tropas alemãs combatiam ao longo de uma frente de 2000 quilómetros.
Qualquer esperança de uma vitória militar contra os russos tinha sido esmagada em julho, em Kursk, onde o Exército Vermelho tinha dizimado uma ofensiva da Wehrmacht e infligido baixas vertiginosas. Naquele preciso momento, o exército alemão tentava manter uma linha que se estendia desde Leninegrado até ao mar Negro. Ao longo do Mediterrâneo, a Alemanha defendia 3000 quilómetros de costa. E a ocidente Meu Deus!, pensou Canaris -, 6000 quilómetros de território que se estendia desde a Holanda até à extremidade sul da baía de Biscaia. A Festung Europa de Hitler - a Fortaleza Europa - estava dispersa e vulnerável por todos os lados.
Canaris olhou em redor para os homens sentados ao seu lado. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, comandante supremo de todas as forças alemãs a ocidente; o marechal de campo Erwin Rommel, comandante do Grupo B do Exército, no noroeste da França; o Reichsfúhrer Heinrich Himmler, líder das SS e chefe da polícia alemã. Meia dúzia dos homens mais cruéis e leais a Himmler estava de vigia, apenas no caso de algum dos membros da cúpula do Terceiro Reich decidir fazer um atentado contra a vida do Fúhrer.
Hitler parou e disse:
- A Diretiva Cinquenta e Um também mencionava a minha convicção de que já não podemos justificar a redução do nosso número de tropas a ocidente de modo a apoiar as forças que combatem os bolcheviques. No leste, a vastidão da área vai permitir-nos, como último recurso, abdicar de grandes áreas de território antes de o inimigo ameaçar a pátria alemã. Não é assim a ocidente. Se a invasão anglo-saxónica tiver êxito, as consequências serão desastrosas. Portanto, é aqui, no noroeste da França, que a batalha mais decisiva da guerra terá lugar.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- A invasão enfrentará todo o nosso poderio e será destruída no mar alto. Se tal não for possível, e se os anglo-saxões conseguirem assegurar temporariamente uma cabeça de praia, devemos estar preparados para reposicionar rapidamente as nossas forças, organizar um contra-ataque gigantesco e obrigar os invasores a retroceder para o mar - afirmou Hitler, cruzando os braços. - Mas para alcançar esse objetivo, temos de conhecer a ordem de batalha do inimigo. Temos de saber quando é que pretende atacar. E, o mais importante, onde. Herr Generalfeldmarshal?
O marechal de campo Gerd von Rundstedt levantou-se e deslocou-se num andar cansado até ao mapa, segurando com a mão direita o bastão incrustado de jóias de marechal de campo com que andava sempre. Conhecido como o último dos cavaleiros alemães, Rundstedt tinha sido demitido e chamado de novo ao serviço por Adolf Hitler mais vezes do que Canaris, ou mesmo o seu próprio staff, se conseguia lembrar. Detestava o mundo fanático dos nazis e tinha sido
Rundstedt quem apelidara escarninhamente Hitler de caboinho da boémia. A tensão de cinco longos anos de guerra começava a notar-se nas finas feições aristocráticas
do seu rosto. Os rígidos e precisos maneirismos que caracterizavam os oficiais do Estado-Maior do tempo do Império tinham desaparecido. Canaris sabia que Rundstedt
bebia mais champanhe do que devia e precisava de grandes quantidades de uísque para dormir à noite. Levantava-se com regularidade às dez da manhã, uma hora muito
pouco militar; o staffào seu quartel-general, em St. Germain-en-Laye, raramente agendava reuniões para antes do meio-dia.
Apesar da idade avançada e do declínio moral, Rundstedt continuava a ser o melhor soldado da Alemanha - um estratega e planeador brilhante, como tinha demonstrado aos polacos, em 1939, e aos franceses e britânicos, em 1940. Canaris não invejava a situação de Rundstedt. No papel, dirigia a força mais poderosa do Ocidente um milhão e meio de homens, incluindo 350 000 tropas de choque Waffen-SS, dez divisões Panzer e duas divisões de paraquedistas de elite Fallschirmjager. Se fossem posicionadas rápida e corretamente, as tropas de Rundstedt ainda seriam capazes de impor aos Aliados uma derrota devastadora. Mas se o velho cavaleiro teutónico tivesse um palpite errado - se mobilizasse as suas forças incorretamente ou cometesse erros táticos uma vez começada a batalha - os Aliados estabeleceriam a sua preciosa base de operações no continente e a guerra no Ocidente estaria perdida.
- Na minha opinião, a equação é simples - começou a dizer Rundstedt. - A leste do Sena, no Pas-de-Calais, ou a oeste do Sena, na Normandia. Cada um tem as suas vantagens e desvantagens.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal. Rundstedt prosseguiu num tom monótono:
- Calais é o fulcro da costa no canal da Mancha. Se o inimigo assegurar uma cabeça de praia em Calais, pode virar-se para leste e ficar a poucos dias de marcha do Ruhrgebiet, o nosso coração industrial. Os americanos querem que a guerra termine por altura do Natal. Se conseguirem desembarcar em Calais, talvez sejam capazes de concretizar esse desejo.
Rundstedt fez uma pausa para permitir que o seu aviso fosse assimilado e, a seguir, retomou o relatório.
- Há outra razão por que Calais faz sentido militarmente: é o ponto onde o canal da Mancha é mais estreito. O inimigo será capaz de despejar homens e equipamento em Calais quatro vezes mais depressa do que na Normandia ou na Bretanha. Não se esqueçam, o relógio começa a contar para o inimigo no momento em que a invasão se iniciar. Tem de acumular tropas, armas e material a um ritmo extremamente rápido. Há três portos de águas profundas na região do Pas-de-Calais - explicou Rundstedt, indicando cada um com a ponta do bastão, subindo pela costa. - Bolonha, Calais e Dunquerque.
O inimigo precisa de portos. É minha convicção que o primeiro objetivo dos invasores será capturar e reabrir um porto importante e reabri-lo o mais rapidamente possível, porque sem um porto importante o inimigo não pode abastecer as
tropas. Se não conseguir abastecer as tropas, está acabado.
- Impressionante, Herr Generalfeldmarshal - disse Hitler. Mas porque não a Normandia?
- A Normandia apresenta muitos problemas ao inimigo. A distância pelo canal da Mancha é muito maior. Em alguns pontos, encontram-se falésias elevadas entre as praias e o continente. O porto mais próximo é Cherburgo, na ponta de uma península altamente defendida. O inimigo poderia levar vários dias para nos conseguir tirar Cherburgo. E mesmo que o conseguisse, sabe que preferiríamos inutilizá-lo a abdicar dele. Mas o argumento mais lógico contra o ataque na Normandia, na minha opinião, é a sua localização geográfica. Fica demasiado a ocidente. Mesmo que o inimigo consiga desembarcar na Normandia, corre o risco de ficar preso e estrategicamente isolado. Tem de nos combater em toda a extensão da França antes de atingir sequer solo alemão.
- Qual é a sua opinião, Herr Generalfeldmarshal? - disparou Hitler.
- Talvez os Aliados tentem alguma trapaça - respondeu Rundstedt cautelosamente, com os dedos a agitarem-se sobre o bastão. - Talvez um desembarque a servir de manobra de diversão, como o senhor mesmo sugeriu, meu Fúhrer. Mas o verdadeiro ataque vai dar-se aqui - afirmou, batendo no mapa. - Em Calais.
- Almirante Canaris? - exclamou Hitler. - De que informações dispõe para apoiar esta teoria?
Pouco propenso a exibições formais diante do mapa, Canaris continuou sentado. Enfiou a mão no bolso direito interior do casaco, onde tinha um pacote de cigarros. Os homens das SS estremeceram nervosamente. Abanando a cabeça, Canaris tirou lentamente os cigarros
e mostrou-os. Acendeu um com toda a calma e lançou uma baforada
de fumo na direção de Himmler, sabendo muito bem da especial irritação que o Reichsfúhrer nutria pelo tabaco. Himmler olhou fixamente para ele, através da cortina
de fumo azul em espiral, não revelando qualquer emoção no olhar e com a face a contrair-se nervosamente.
Canaris explicou que a Abwehr estava a recolher e a analisar três tipos de informação relacionada com os preparativos para a invasão - fotografias aéreas das tropas
inimigas, no sul de Inglaterra, comunicações do inimigo via rádio, monitorizadas pela Funkabwehr, o serviço de escutas da agência, e relatórios de agentes a atuarem
no interior do Reino Unido.
- E o que lhe dizem essas informações, Herr Admirai? - vociferou Hitler.
- A nossa recolha inicial de informações tende a apoiar a avaliação do marechal de campo: que os Aliados pretendem atacar em Calais. De acordo com os nossos agentes,
tem havido um aumento da atividade do inimigo no sudeste de Inglaterra, do outro lado do canal da Mancha, em frente ao Pas-de-Calais. Nós monitorizámos as transmissões telegráficas referentes a uma nova força denominada First United States Army Group. Também temos vindo a analisar a atividade aérea do inimigo no noroeste da França. Está a passar muito mais tempo a sobrevoar Calais, com o propósito de bombardeamento e de reconhecimento, do que a Normandia ou a Bretanha. E tenho ainda mais uma nova informação a relatar, meu Fúhrer. Um dos nossos agentes em Inglaterra tem uma fonte dentro do alto comando aliado. Na noite passada, o agente transmitiu um relatório. O general Eisenhower chegou a Londres. Os americanos e os britânicos pretendem manter a sua presença em segredo por enquanto.
Hitler pareceu impressionado com o relatório do agente. Canaris pensou: se ao menos Hitler soubesse a verdade - que, neste momento, apenas a poucos meses da batalha mais importante da guerra,
as redes de informação da Abwehr em Inglaterra estão muito provavelmente em frangalhos. Canaris culpava Hitler. Durante os preparativos para a operação Seelõwe -
a invasão abortada do Reino Unido -, Canaris e a sua equipa enviaram temerariamente uma torrente de espiões para Inglaterra. Toda a cautela foi mandada às malvas,
por causa da necessidade urgente de informações sobre as defesas costeiras e o posicionamento das tropas britânicas. Os agentes foram recrutados à pressa, mal treinados
e equipados de forma ainda pior. Canaris suspeitava que a maioria tivesse ido parar diretamente às mãos do MI5, infligindo danos permanentes em redes que tinham
sido construídos ao longo de vários anos de trabalho meticuloso. Naquele momento, não o podia admitir; fazê-lo seria assinar a sua própria sentença de morte.
Adolf Hitler começou de novo a dar voltas pela sala. Canaris sabia que Hitler não temia a futura invasão. Muito pelo contrário, acolhia-a com pra2er. Tinha dez milhões de alemães mobilizados e uma indústria de armamento que, apesar do bombardeamento implacável dos Aliados e da escassez de mão de obra e matéria-prima, continuava a produzir quantidades colossais de armas e material. Mantinha-se confiante na sua capacidade de repelir a invasão e infligir aos Aliados uma derrota cataclísmica. À semelhança de Rundstedt, acreditava que um desembarque no Pas-de-Calais fazia sentido estratégico e era aí que a sua Atlantikwall mais se parecia com a visão de uma fortaleza inexpugnável. com efeito, tinha tentado forçar os Aliados a invadir em Calais, ordenando que as plataformas de lançamento das bombas V-1 e V-2 fossem aí colocadas. No entanto, Hitler também estava ciente de que os britânicos e os americanos tinham recorrido ao logro durante a guerra e de que o voltariam a fazer antes de invadirem a França.
- Vamos inverter os papéis - disse Hitler por fim. - Se eu fosse invadir a França a partir de Inglaterra, o que faria? Viria pelo caminho mais óbvio? O caminho que o meu inimigo espera que eu siga? Organizaria um ataque frontal à parte da costa mais protegida? Ou seguiria outro caminho e tentaria surpreender o inimigo? Transmitiria mensagens falsas via rádio e enviaria relatórios falsos através dos espiões? Faria declarações enganadoras à imprensa? A resposta
a todas estas questões é sim. Temos de contar que os britânicos recorram ao logro e até a um grande desembarque como manobra de diversão. Por mais que eu gostasse que eles tentassem desembarcar em Calais, devemos estar preparados para a possibilidade de uma invasão na Normandia ou na Bretanha. Para isso, os nossos Panzers devem manter-se bem afastados da costa até que as intenções do inimigo fiquem claras. De seguida, concentraremos a nossa base militar no ponto principal da invasão e obrigá-los-emos a retroceder para
o mar.
- Há outra coisa a ter em conta e que pode fundamentar a sua argumentação - disse o marechal de campo Erwin Rommel.
Hitler rodou nos calcanhares e encarou-o.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal.
Rommel apontou para o enorme mapa, que se estendia do chão até ao teto, atrás de Hitler.
- Se me der licença que faça uma demonstração, meu Fúhrer.
- Claro.
Rommel enfiou a mão na pasta, tirou um compasso de calibre e, a seguir, levantou-se e dirigiu-se para o mapa. Em dezembro, Hitler tinha-lhe atribuído o comando do
Grupo B do exército ao longo da costa do canal da Mancha. O Grupo B do exército incluía o 7.º Exército na região da Normandia, o 15.º Exército entre o estuário do
Sena e o golfo Zuiderzee, e o Exército da Holanda. Física e psicologicamente recuperado das desastrosas derrotas no Norte de África, a famosa Raposa do Deserto tinha-se
atirado à sua nova missão com uma incrível demonstração de energia, lançando-se a toda a hora pela costa francesa no seu Mercedes 230 cabriolei, inspecionando as defesas costeiras e o posicionamento das tropas e bases militares. Tinha prometido transformar o litoral francês num jardim do Diabo - um cenário de artilharia, campos de minas, fortificações em cimento e arame farpado do qual o inimigo nunca conseguiria sair. No entanto, em privado, Rommel defendia que qualquer fortificação concebida pelo ser humano podia também ser destruída por ele.
De pé, junto ao mapa, abriu o compasso e disse:
- Isto representa o raio de ação dos caças Spitfm e Mustang do inimigo. E estas são as posições das principais bases dos caças no sul de Inglaterra.
Rommel colocou as pontas do compasso em cada um dos locais e desenhou uma série de arcos no mapa.
- Como pode ver, meu Fúhrer, tanto a Normandia como Calais se encontram bem dentro do raio de ação dos caças do inimigo. Por esse motivo, devemos considerar ambas as áreas como possíveis locais para a invasão.
Hitler assentiu com a cabeça, impressionado com a demonstração de Rommel.
- Agora, coloque-se na posição do inimigo por um momento, Herr Generalfeldmarshal. Se estivesse a tentar invadir a França a partir de Inglaterra, onde é que atacaria?
Por breves instantes, Rommel fez questão de mostrar que estava a ponderar bem a questão e, a seguir, respondeu:
- Devo admitir, meu Fúhrer, que todos os indícios apontam para uma invasão no Pas-de-Calais. Mas não consigo livrar-me da convicção de que o inimigo nunca iria tentar um ataque frontal à nossa maior concentração de forças. E também me sinto influenciado pela experiência em África, meu Fúhrer. Os britânicos recorreram ao logro antes da Batalha de Alamein e vão voltar a fazê-lo antes de invadirem a França.
- E a Westwall, Herr Generalfeldmarshal? Como é que têm avançado os trabalhos?
- Ainda há muito a fazer, meu Fúhrer. Mas estamos a avançar bem.
- E vai estar tudo terminado antes da primavera?
- Creio que sim. Mas as fortificações costeiras não chegam para deter o inimigo. Temos de ter as nossas bases militares devidamente dispostas. E para isso receio bem que tenhamos de saber onde é que eles planeiam atacar. Só isso nos servirá de alguma coisa. Se o inimigo for bem-sucedido, a guerra pode estar perdida.
- Isso é um absurdo - lançou Heinrich Himmler. - Sob o comando do Fúhrer, a vitória final da Alemanha é ponto assente. As praias da França vão ser um cemitério para os britânicos e os americanos.
- Não - interveio Hitler, gesticulando. - O marechal de campo Rommel tem razão. Se o inimigo conseguir assegurar uma cabeça
de praia, então a guerra estará perdida. Mas, se aniquilarmos a invasão antes de ter sequer começado - prosseguiu Hitler, com a cabeça inclinada para trás e os olhos a chamejarem -, seriam necessários vários meses para organizar outra tentativa. O inimigo nunca voltaria a tentar! Roosevelt nunca seria reeleito. Até poderia acabar preso num sítio qualquer! O moral dos britânicos iria desabar da noite para o dia. Churchill, aquele velho gordo e doente, seria destruído! com os americanos e os britânicos paralisados, a lamberem as feridas, podemos deslocar homens e matériel do Ocidente e despejá-los no Leste. Estaline vai ficar à nossa mercê. Vai tentar negociar um acordo de paz. Tenho a certeza disso.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- Mas, se queremos deter o inimigo, temos de saber o local da invasão - afirmou. - Os meus generais pensam que será em Calais. Eu estou cético - confessou, rodando nos calcanhares e olhando fixamente para Canaris. - Herr Admirai, quero que resolva o impasse.
- Isso pode não ser possível - disse Canaris cautelosamente.
- A missão da Abwehr não é fornecer informações militares?
- E claro que sim, meu Fúhrer.
- Dispõe de espiões a atuarem dentro do Reino Unido, este relatório acerca da chegada do general Eisenhower a Londres é prova disso.
- Obviamente, meu Fúhrer.
- Então, sugiro que comece a trabalhar, Herr Admirai. Quero provas das intenções dos inimigos. Quero que me traga o segredo da invasão. E rapidamente, Herr Admirai. Deixe-me assegurar-lhe: não dispõe de muito tempo.
Hitler empalideceu visivelmente e pareceu subitamente exausto.
- Agora, a menos que os senhores tenham mais alguma má notícia para me dar, vou retirar-me para dormir umas horas. Foi uma noite muito longa.
Levantaram-se todos enquanto Hitler subia as escadas.
CINCO
NORTE DE ESPANHA: AGOSTO DE 1936
Ele encontra-se diante das portas abertas para a noite cálida, segurando uma garrafa de vinho branco gelado. Serve-se de outro copo sem se oferecer para encher novamente o dela. Ela está deitada na cama, a fumar e a ouvir a vo dele. Escutando o vento quente que agita as árvores lá fora, junto à varanda. Relâmpagos tremelum silenciosamente sobre o vale. O seu vale, como ele está sempre a dier. A porra do meu vale. E se os filhos da puta dos lealistas alguma ve mo tentarem tirar, corto-lhes a merda dos tomates e atiro-os aos cães.
-Quem te ensinou a disparar assim?-pergunta ele.
Tinham ido à caça de manhã e ela tinha capturado quatro faisÕes contra um dele.
- O meu pai.
- Disparas melhor do que eu. -Já reparei.
Uma vez mais, os relâmpagos surgem silenciosamente na sala e ela consegue ver Emílio com clareza durante alguns segundos. É trinta anos mais velho e, no entanto,
ela acha-o lindo. Tem cabelo louro-grisalho e o sol pôs-lhe a cara da cor do couro polido de uma sela. O nariz é longo e afilado, como a lâmina de um machado. Queria
ser beijada pelos lábios dele, mas desde a primeira vez ele queria-a muito depressa e de modo rude e o Emilio consegue sempre toda a merda que quer, querida.
- Falas inglês muito bem - informa-a ele, como se ela estivesse a ouvir isso pela primeira
vez - O teu sotaque é perfeito. Nunca consegui perder o meu, por mais
que tentasse.
- A minha mãe era inglesa.
- Onde está ela agora?
- Morreu há muito tempo.
- Também falas francês?
- Sim - responde ela.
- Italiano.
- Sim, falo italiano.
- O teu espanhol é que não é assim tão bom.
- Chega para o que é preciso - di ela.
Ele está a tocar no pénis enquanto fala. Adora-o tal como adora o seu dinheiro e a sua terra. Fala dele como se fosse um dos seus melhores cavalos. Na cama, é como
uma terceira pessoa.
- Deitas-te com a Maria ao pé da ribeira, mas depois à noite deixas que eu entre na tua cama efoda contigo - diz ele.
- É uma maneira de pôr as coisas - responde ela. -Queres que eu pare com a Maria?
- Tu fazes a maria feliz - responde ele, como se a felicidade justificasse alguma coisa.
- Ela faze-me feliz.
- Nunca conheci uma mulher como tu - disse ele, pondo um cigarro no canto da boca e acendendo-o, com as mãos em concha para o proteger da brisa noturna. - Fodes comigo
e com a minha filha no mesmo dia, sem pestanejar.
- Não acredito nisso de criar afetos. Ele ri-se, no seu riso calmo e controlado.
- Isso é maravilhoso - responde ele, sorrindo outra vez calmamente. Não acreditas nisso de criar afetos. Isso é magnífico. Tenho pena do pobre canalha que cometa
o erro de se apaixonar por ti.
- Também eu.
- E tens alguns sentimentos?
- Não, nem por isso.
- Amas alguém ou alguma coisa?
- Amo o meu pai - responde ela. - E amo estar deitada ao pé da ribeira com a Maria.
Maria é a única mulher que conheceu até hoje cuja beleza a ameaça.
Neutralaria essa ameaça pilhando a beleza de Maria para si mesma. A sua juba de
cabelos castanhos encaracolados. A imaculada pele cor de azeitona. Os seios perfeitos que são como pêras no verão na sua boca. Os lábios que são a coisa mais suave em que já tocou. "Vem passar o verão a Espanha comigo, na estancia da minha família",
diz Maria numa tarde chuvosa em Paris, onde ambas se encontram a estudar, na
Sorbonne. O pai vai ficar desiludido, mas a ideia de passar um verão na Alemanha a observar a merda dos nais a desfilar pelas ruas não significa nada para ela. Mas
não sabia que a alternativa seria enfiar-se bem no meio de uma guerra civil.
Mas a guerra não perturba o insolente enclave paradisíaco de Emílio, no sopé dos Pirenéus. É o verão mais maravilhoso da vida dela. De manhã, os três caçam ou passeiam
os cães e, à tarde, ela e Maria vão até à ribeira, nadam nos lagos profundos e gélidos e
bronzeiam-se nas rochas cálidas. Maria gosta mais quando estão lá fora. Gosta
da sensação do sol nos seios e de Anna entre as pernas. "O meu pai também te quer, sabes?", anuncia Maria uma tarde em que estão deitadas à sombra de um eucalipto.
"Podes tê-lo. Só não te apaixones por ele. Toda a gente está apaixonada por ele."
Emílio está outra vez a falar:
-Quando voltares para Paris, no próximo mês, quero que te encontres com uma pessoa.
Faz isso por mim?
- Depende.
- De quê?
- De quem for.
- Ele vai entrar em contacto contigo. Quando lhe falar de ti, vai ficar muito interessado.
- Não vou dormir com ele.
- Ele não vai estar interessado em dormir contigo. É um homem de família. Tal como eu - acrescenta, rindo-se com o seu riso mais uma vez.
- E qual é o nome dele?
- Os nomes não são importantes para ele.
- Dime o nome dele.
- Não tenho a certeza do nome que ele usa atualmente.
- E o que é que o teu amigo faz?
- Trabalha com informação.
Ele regressa à cama. A. conversa excitou-o. Tem o pénis novamente duro e deseja-a outra
vez de imediato. Está a afastar-lhe as pernas e a tentar penetrá-la. Ela
pega-lhe nas mãos para o ajudar e a seguir crava as unhas nele.
- Ahhhh! Meu Deus, Anna! com tanta força, não!
- Diz-me o nome dele.
- É contra as regras... não posso.
- Diz-me - insiste ela, cravando-lhe as unhas com mais força.
- Vogel- murmura ele. - O nome dele é Kurt Vogel. Jesus!
BERLIM: JANEIRO DE 1944
A Abwehr tinha dois tipos básicos de espiões em ação contra o Reino Unido. A Corrente-S consistia em agentes que entravam no país, se instalavam com identidades
falsas e desenvolviam atividades de espionagem. Os agentes da Corrente-R eram maioritariamente cidadãos de outros países que entravam periodicamente no Reino Unido,
de forma legal, recolhiam informações e enviavam relatórios aos seus superiores em Berlim. Havia uma terceira rede de espiões mais pequena e altamente secreta referida
como a Corrente-V- um punhado de agentes adormecidos, excecionalmente treinados, que se infiltravam de forma profunda na sociedade inglesa e esperavam, por vezes
durante anos, até serem ativados. Foi assim chamada devido ao seu criador e único agente que a comandava, Kurt Vogel.
O modesto império de Vogel consistia em duas salas no quarto piso do quartel-general da Abwehr, localizado num par de austeros prédios geminados, em pedra cinzenta,
nos números 74 e 76 da Tirpitz Ufer. As janelas davam para o Tiergarten, o parque com 255 hectares no coração de Berlim. Em tempos, tinha tido uma vista espetacular. Mas meses de bombardeamentos por parte dos Aliados tinham deixado crateras do tamanho de Panzers nos caminhos equestres e reduzido a maioria dos castanheiros e das tílias a tocos carbonizados. Grande parte do gabinete de Vogel estava ocupada por uma fila de armários de aço trancados e um pesado cofre. Vogel suspeitava que os empregados do registo central da Abwehr tinham passado a trabalhar para a Gestapo e recusava-se a guardar lá os dossiês. O seu único assistente - um tenente condecorado da Wehrmacht chamado
Werner Ulbricht, que tinha ficado estropiado a lutar contra os russos . trabalhava na antessala. Guardava um par de pistolas Luger na gaveta de cima da secretária
e Vogel tinha-lhe ordenado que disparasse contra qualquer pessoa que entrasse sem autorização. Ulbricht sofria de pesadelos em que matava Wilhelm Canaris por engano.
Oficialmente, Vogel detinha o posto de capitão na Kriegsmarine, mas era apenas uma formalidade concebida para lhe permitir o acesso necessário para atuar junto de
determinados grupos. Tal como o seu mentor, Canaris, raramente envergava o uniforme. O seu guarda-roupa variava pouco - um fato cinzento-escuro a lembrar o de um
cangalheiro, uma camisa branca, uma gravata negra. Tinha cabelo grisalho-escuro, que parecia ter sido ele a cortar, e o olhar intenso de um revolucionário de café.
A voz era como uma dobradiça enferrujada e, depois de quase uma década de conversas clandestinas em cafés, salas de hotel e escritórios sob escuta, raramente se
elevava acima de um murmúrio de capela. Ulbricht, surdo de um ouvido, esforçava-se constantemente por o ouvir.
A paixão de Vogel pelo anonimato raiava o absurdo. No gabinete havia apenas um objeto pessoal, um retrato da mulher, Gertrude, e das filhas gémeas. Enviara-as para
a casa da mãe de Gertrude, na Baviera, quando os bombardeamentos começaram e via-as com pouca frequência. Sempre que saía do gabinete, mesmo por curtos momentos,
retirava o retrato de cima da secretária e fechava-o na gaveta. Até mesmo o seu distintivo de identificação era um enigma. Não tinha fotografia - Vogel recusava
ser fotografado há anos - e o nome era falso. Possuía um pequeno apartamento perto do gabinete, a que se chegava depois de um agradável passeio ao longo das frondosas
margens do Landwehr Kanal, para aquelas raras noites em que se permitia escapar. A senhoria achava que ele era um professor universitário com uma série de namoradas.
Mesmo dentro da Abwehr, pouco mais se sabia dele.
Kurt Vogel tinha nascido em Dusseldorf. O pai era o diretor de um Gymnasium local, a mãe uma professora de música em part-time que tinha abandonado uma carreira
promissora como pianista para casar e criar uma família. Vogel tinha feito um doutoramento em Direito, na Universidade de Leipzig, onde estudara Direito Civil e
Político com duas das maiores mentes jurídicas da Alemanha, Herman
Heller e Leo Rosenberg. Era um aluno brilhante, o melhor da sua turma, e os professores previram discretamente que Vogel se sentaria um dia no Reichsgericht, o Supremo
Tribunal da Alemanha.
Hitler alterou tudo isso. Hitler acreditava no poder dos homens, não no poder do Direito. Poucos meses após ter tomado o poder, já tinha virado do avesso todo o sistema judicial da Alemanha. O Fíihrergewalt - o poder do Fúhrer - tornou-se a única lei do país e todos os caprichos de Hitler eram imediatamente traduzidos em códigos e regulamentos. Vogel lembrava-se de algumas máximas ridículas cunhadas pelos arquitetos da revisão legal da Alemanha imposta por Hitler. A lei é o que é útil ao povo alemão! A lei deve ser interpretada através de saudáveis emoções populares! Quando o poder judiciário ordinário se interpôs, os nazis estabeleceram os seus próprios tribunais, os Volksgerichtshof, os Tribunais do Povo. Na opinião de Vogel, o dia mais negro na história da jurisprudência alemã ocorreu em outubro de 1933, quando dez mil advogados, nos degraus do Reichsgericht, em Leipzig, ergueram os braços na saudação nazi e juraram seguir o rumo do Ftihrer até ao fim dos nossos dias. Vogel tinha sido um deles. Naquela noite, regressou ao pequeno apartamento que partilhava com Gertrude, queimou os livros de Direito no fogão e bebeu até não poder mais.
Vários meses mais tarde, no inverno de 1934, foi abordado por um homem pequeno e austero, com um par de dachshunds - Wilhelm Canaris, o novo chefe dos serviços secretos militares alemães. Canaris perguntou a Vogel se estaria disposto a trabalhar para a Abwehr. Vogel aceitou, com uma condição - que não fosse obrigado a filiar-se no partido nazi e, na semana seguinte, desapareceu no mundo dos serviços secretos militares alemães. Oficialmente, estava ao serviço como conselheiro legal interno de Canaris. Extraoficialmente, foi-lhe atribuída a tarefa de preparar a guerra contra os britânicos que Canaris considerava inevitável.
Naquele preciso momento, Vogel estava sentado à secretária debruçado sobre um memorando, com os nós dos dedos a pressionar as têmporas. Esforçava-se por se concentrar no meio do ruído o chocalhar do velho elevador à medida que se arrastava para cima e para baixo no poço mesmo por trás da parede, o respingar da chuva gelada nas janelas, a cacofonia das buzinas dos automóveis que
acompanhava a hora de ponta no entardecer de Berlim. Tirou as mãos das têmporas e tapou os ouvidos, apertando até fazer silêncio. O memorando tinha-lhe sido dado por Canaris naquele dia, algumas horas depois de a Velha Raposa ter regressado de uma reunião com Hitler, em Rastenburg. Canaris achava que parecia promissor e Vogel não podia deixar de concordar.
- Hitler quer resultados, Kurt - tinha dito Canaris, sentando-se atrás da antiga secretária desgastada, como um velho fidalgo impenetrável, com os olhos a percorrerem as prateleiras transbordantes de livros como se estivesse à procura de um volume precioso há muito perdido. - Ele quer provas de que é em Calais ou na Normandia. Talvez seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Vogel tinha lido o memorando uma vez, rapidamente. Naquele instante, estava a lê-lo uma segunda vez, mais cuidadosamente. Na verdade, era mais do que prometedor - era perfeito, a oportunidade de que estava à espera. Quando terminou, ergueu o olhar e sussurrou o nome de Ulbricht várias vezes, como se estivesse a falar diretamente ao ouvido dele. Por fim, não recebendo resposta, levantou-se e dirigiu-se à antessala. Ulbricht estava a limpar as Lugers.
- Werner, estou a chamá-lo há cinco minutos - disse Vogel, com uma voz quase inaudível.
- Peço desculpa, capitão. Não o ouvi.
- Quero ver o Míiller logo pela manhãzinha. Marque-me uma reunião para amanhã.
- Sim, senhor.
- E, Werner, faça qualquer coisa ao raio dos ouvidos. Tive de gritar a plenos pulmões ali dentro.
Os bombardeiros chegaram à meia-noite quando Vogel dormia uma sesta intermitente no gabinete numa dura cama de campanha. Pôs os pés no chão, levantou-se e dirigiu-se para a janela enquanto os aviões zumbiam lá em cima. Berlim estremecia à medida que os primeiros fogos deflagravam nos bairros de Pankow e Weissensee. Vogel
interrogou-se quanto mais poderia a cidade aguentar. Vastas secções da capital do Reich de mil anos já tinham sido reduzidas a destroços. Muitos dos mais famosos bairros da cidade pareciam desfiladeiros de tijolo pulverizado e aço retorcido. As tílias do Unter den Linden tinham sido queimadas, tal como grande parte dos bancos e lojas, outrora resplandecentes, que se estendiam pela ampla avenida. O famoso relógio da Igreja Memorial Kaiser Wilhelm tinha-se imobilizado nas 7h30 desde novembro, quando os bombardeiros aliados tinham devastado quatrocentos hectares de Berlim numa única noite.
O memorando girava na sua cabeça enquanto ele observava o ataque noturno.
ABWEHR/BERLIM XFU0465848261
PARA: CANARIS
DE: MULLER
DATA: 2 NOV43
A 21 DE OUTUBRO, O CAPITÃO DIETRICH DA BASE DE ASUNCION INTERROGOU O
OPERACIONAL AMERICANO SCORPIO NA CIDADE DO PANAMÁ. COMO SABE, SCORPIO É UM DOS NOSSOS AGENTES MAIS IMPORTANTES NA AMÉRICA. OCUPA UMA POSIÇÃO IMPORTANTE NOS CÍRCULOS FINANCEIROS DE NOVA IORQUE E TEM BOAS RELAÇÕES EM WASHINGTON. É AMIGO PESSOAL DE MUITOS QUADROS SUPERIORES DO MINISTÉRIO DA
GUERRA E DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS . ENCONTROU-SE PESSOAL-
MENTE com ROOSEVELT. AO LONGO DA GUERRA, AS SUAS INFORMAÇÕES TÊM SIDO ATEMPADAS E ALTAMENTE PRECISAS. RECORDO-LHE A INFORMAÇÃO QUE NOS FORNECEU
ACERCA DAS REMESSAS DE ARMAS AMERICANAS PARA OS BRITÂNICOS .
DE ACORDO com SCORPIO, UM REPUTADO ENGENHEIRO AMERICANO CHAMADO PETER
JORDAN FOI RECRUTADO PELA MARINHA AMERICANA NO MÊS PASSADO E ENVIADO PARA
LONDRES PARA TRABALHAR NUM PROJETO DE CONSTRUÇÃO ALTAMENTE SECRETO. JORDAN NÃO POSSUI NENHUMA EXPERIÊNCIA MILITAR ANTERIOR. SCORPIO CONHECE
JORDAN PESSOALMENTE E FALOU com ELE ANTES DA SUA PARTIDA PARA LONDRES.
SCORPIO AFIRMA QUE O PROJETO ESTÁ SEM DÚVIDA RELACIONADO com O PLANO DO
INIMIGO PARA INVADIR A FRANÇA.
JORDAN É RESPEITADO PELO TRABALHO DESENVOLVIDO EM VÁRIOS PROJETOS IMPORTANTES
DE PONTES AMERICANOS. JORDAN É VIÚVO. A MULHER, FILHA DO BANQUEIRO
AMERICANO BRATTON LAUTERBACH, MORREU NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM AGOSTO DE 1939 . SCORPIO ACHA QUE JORDAN É BASTANTE VULNERÁVEL A UMA ABORDAGEM
DE UM ELEMENTO FEMININO.
JORDAN VIVE ATUALMENTE SOZINHO, NA ZONA DE LONDRES CONHECIDA COMO KENSINGTON
. SCORPIO FORNECEU A MORADA DA CASA, BEM COMO A COMBINAÇÃO DO COFRE QUE SE ENCONTRA NO ESTÚDIO .
SUGIRA AÇÃO.
Vogel reparou num feixe de luz na soleira da porta e ouviu o arrastar da perna de pau de Ulbricht contra o chão. Os bombardeamentos perturbavam Ulbricht de um modo que ele não conseguia pôr em palavras e que Vogel nunca seria capaz de compreender. Retirou o porta-chaves da gaveta da secretária e dirigiu-se a um dos armários de aço. O ficheiro encontrava-se dentro de uma pasta negra sem identificação. Vogel voltou para a secretária, serviu-se de um grande copo de conhaque e abriu o dossiê. Estava lá tudo, as fotografias, o material relativo aos antecedentes, os relatórios de execução. Mas não precisava de o ler. Tinha sido ele a escrevê-lo e, tal como a pessoa em questão, era amaldiçoado com uma memória perfeita.
Virou mais algumas páginas e encontrou as notas que tinha redigido depois do primeiro encontro entre ambos, em Paris. Por baixo delas, estava uma cópia do telegrama que lhe fora enviado pelo homem que a tinha descoberto, Emilio Romero, um rico proprietário rural espanhol, um fascista, um caçador de talentos para a Abwehr.
Ela é tudo aquilo de que andas à procura. Gostava de ficar com ela para mim, mas, como sou amigo, vou dar-ta. A um preço razoável, é claro.
Na sala, fez-se de repente um frio de gelar os ossos. Vogel deitou-se na cama de campanha e tapou-se com um cobertor.
Hitler quer resultados, Kurt. Talve seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Por vezes, imaginava-se a deixá-la infiltrada até tudo ter terminado e, a seguir, a encontrar algum modo de a tirar de lá. Mas ela era perfeita para aquilo, claro. Era linda, era inteligente e o seu inglês e o conhecimento que tinha da sociedade britânica eram irrepreensíveis. Virou-se e viu a fotografia de Gertrude e das filhas. Pensar que tinha fantasiado abandoná-las por ela. Tinha sido tão tolo. Desligou as luzes. O ataque aéreo tinha terminado. A noite era uma sinfonia de sirenes. Tentou dormir, mas era escusado. Não a conseguia tirar da cabeça.
Pobre Vogel, pus-te o coração de pernas para o ar, não foi?
Os olhos da fotografia perfuravam-no. Era obsceno olhar para eles, recordá-la. Levantou-se, dirigiu-se para a secretária e guardou a foto na gaveta.
- Por amor de Deus, Kurt! - exclamou Múller quando Vogel entrou no seu gabinete, na manhã seguinte. - Quem é que te tem cortado o cabelo, meu amigo? Deixa-me dar-te o nome da mulher que tem cortado o meu, talvez ela te possa ajudar.
Vogel, exausto depois de uma noite de pouco sono, sentou-se e contemplou em silêncio a figura diante dele. Paul Múller era responsável pela rede dos serviços de informações da Abwehr nos Estados Unidos. Era baixo, atarracado e estava impecavelmente vestido com um fato francês lustroso. Tinha o cabelo liso com brilhantina penteado para trás, deixando a descoberto o rosto de querubim. A boca pequena era generosa e vermelha, como a de uma criança que acabou de comer doce de cereja.
- Vejam só, o grande Kurt Vogel aqui, no meu gabinete - exclamou Múller, com um sorriso afetado. - A que devo o privilégio?
Vogel retirou a cópia do memorando de Múller do bolso do casaco e abanou-a diante dele.
- Fala-me de Scorpio - disse.
- Então, o Velho lá fez circular finalmente o meu memorando. Olha para a data dessa maldita coisa. Dei-lhe isso há um mês e meio. Tem estado a apanhar pó na secretária dele. Essa informação é ouro. Mas vai para a Toca do Lobo e não volta mais - queixou-se Múller, fazendo depois uma pausa, acendendo um cigarro e lançando o fumo para o teto. - Sabes, Kurt, às vezes, pergunto-rne de que lado estará Canaris.
A observação não era invulgar naqueles tempos. Desde a prisão de vários membros do comando da Abwehr sob a acusação de traição, o moral em Tirpitz Ufer tinha caído para níveis até aí inauditos. Vogel pressentiu que a agência de serviços secretos militares da Alemanha se encontrava perigosamente à deriva. Tinha ouvido rumores de que Canaris deixara de agradar a Hitler. Havia até rumores entre
o staffde que Himmler estava a conspirar para fazer cair Canaris e colocar a Abwehr sob o controlo das SS.
- Fala-me de Scorpio - repetiu Vogel.
- Jantei com ele em casa de um diplomata americano - revelou Miiller, atirando a cabeça redonda para trás e contemplando o teto. - Antes da guerra, em 1937, creio
eu. vou verificar no dossiê dele para ter a certeza. O alemão do tipo era melhor do que o meu. Achava que os nazis eram um maravilhoso bando de companheiros a fazer
grandes coisas pela Alemanha. A única coisa que ele odiava mais do que os judeus eram os bolcheviques. Foi como uma audição. Recrutei-o eu mesmo no dia seguinte.
A presa mais fácil da minha carreira.
- Quais são os antecedentes dele? Múller sorriu:
- Investimento bancário. Ivy League, bons contactos com a indústria, amizades com meia Washington. As informações dele sobre a produção de armamento têm sido excelentes.
Vogel estava a dobrar o memorando e a guardá-lo outra vez no bolso.
- E o nome dele?
- Vá lá, Kurt. É um dos meus melhores agentes.
- Quero o nome dele.
- Este sítio é como uma peneira, sabes disso. Se eu te disser, toda a gente fica a saber.
- Quero uma cópia do dossiê dele na minha secretária daqui a uma hora - ordenou Vogel, com a voz baixa pouco mais do que um sussurro. - E quero tudo o que tenhas sobre o engenheiro.
- Posso dar-te as informações relacionadas com o Jordan.
- Quero tudo, e, se tiver de ir falar com o Canaris, faço isso.
- Oh, por amor de Deus, Kurt, não vais a correr ter com o tio Willy, pois não?
Vogel levantou-se e abotoou o casaco.
- Quero o nome dele e quero o dossiê dele. Vogel virou-se e saiu do gabinete.
- Kurt, volta aqui - gritou Múller. - Vamos resolver isto, por amor de Deus.
- Se quiseres falar, estou no gabinete do Velho - atirou Vogel afastando-se pelo corredor estreito.
- Muito bem, ganhaste - lançou Múller, com as mãos bem tratadas a vasculharem num arquivo. - Aqui está a merda do dossiê. Não tens de ir a correr ter com o tio Willy outra vez. Meu Deus, às vezes, és pior do que os cabrões dos nazis.
Vogel passou o resto da manhã a ler o dossiê sobre Peter Jordan. Quando terminou, retirou um par de ficheiros de um dos arquivos, voltou para a secretária e leu-os cuidadosamente.
O primeiro ficheiro continha informações sobre um irlandês que tinha trabalhado como espião durante um curto período de tempo, mas que deixara de o fazer porque as informações que recolhia eram consideradas fracas. Vogel ficara com o dossiê dele e colocara-o na folha de salários da Corrente-V. Vogel não estava preocupado com a péssima avaliação que o espião tinha recebido no passado - não andava à procura de um espião. Havia outras qualidades no agente que Vogel considerava interessantes. Era dono de uma pequena quinta, numa região isolada na costa de Norfolk, no Reino Unido. Era uma casa segura perfeita - suficientemente perto de Londres para se fazer a viagem de comboio em três horas, suficientemente longe para não estar cheia de agentes do MI5 à sua volta.
O segundo ficheiro continha o dossiê de um antigo paraquedista da Wehrmacht que fora impedido de continuar a saltar por causa de um ferimento na cabeça. O homem possuía todas as qualidades de que Vogel gostava - um inglês perfeito, bom olho para o pormenor, inteligência fria. Ulbricht tinha-o encontrado num posto de escuta de comunicações da Abwehr, no norte da França. Vogel colocou-o na folha de salários da Corrente-V e guardou-o para missões adequadas.
Vogel afastou os ficheiros e redigiu duas mensagens. Acrescentou os códigos a serem utilizados, as frequências em que as mensagens seriam enviadas e o horário de transmissão. De seguida, olhou para cima e chamou Ulbricht.
- Sim, Herr Kapitàn - disse Ulbricht ao entrar no escritório, coxeando pesadamente com a perna de pau.
Vogel olhou para Ulbricht durante um instante antes de falar, interrogando-se se o homem estaria à altura das exigências de uma operação como a que queria empreender. Ulbricht tinha vinte e sete anos, mas parecia ter, no mínimo, quarenta. Tinha o cabelo preto, cortado rente, salpicado de cinzento. Rugas de dor corriam como afluentes desde o canto do olho bom. Perdera o outro olho na explosão; a órbita vazia estava escondida por uma elegante pala negra. Uma Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro balançava-lhe ao pescoço. O botão de cima da túnica de Ulbricht estava desapertado porque o esforço que significava o mais simples movimento o punha a transpirar. Durante todo o tempo em que tinham trabalhado juntos, Vogel nunca ouvira Ulbricht queixar-se uma única vez.
- Quero que vá a Hamburgo amanhã à noite - informou Vogel, entregando a Ulbricht as transcrições das mensagens. - Mantenha-se ao pé do operador de rádio enquanto ele as estiver a enviar. Assegure-se de que não há nenhum engano. Certifique-se de que as confirmações dos agentes estão corretas. Se houver alguma coisa de invulgar,
quero ser informado. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Antes de ir, quero que me localize Horst Neumann. - Está em Berlim, creio eu.
- E onde é que está hospedado?
- Não tenho a certeza - disse Ulbricht. - Mas acho que há uma mulher envolvida.
- Normalmente há - disse Vogel, indo até à janela e olhando para baixo. - Contacte o staffàa quinta Dahlem. Diga-lhes que contem connosco hoje à noite. Quero que
vá lá ter amanhã, quando regressar de Hamburgo. Diga-lhes que vamos ficar uma semana. Temos muita coisa a estudar. E diga-lhes para preparar a plataforma de salto
no celeiro. Neumann já não salta de um avião há muito tempo. Vai precisar de treinar.
- Sim, senhor.
Ulbricht saiu, deixando Vogel sozinho no gabinete. Este ficou à janela durante bastante tempo, a pensar naquilo mais uma vez. Era o segredo mais bem guardado da guerra e planeava roubá-lo com uma mulher, um aleijado, um paraquedista que não podia saltar e um
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traidor britânico. Que grande equipa que tu reuniste, Kurt, meu velho. Se a sua pele não estivesse em jogo, teria achado tudo aquilo engraçado. Em vez disso, limitou-se a ficar ali, como uma estátua, observando a neve a acumular-se silenciosamente sobre o Tiergarten, roendo-se de preocupação.
SEIS LONDRES
Os Serviços Secretos e de Segurança do Império Britânico mais conhecidos pela sua designação enquanto serviços secretos militares, MI5 - tinham a sua sede num pequeno
e exíguo prédio de escritórios, no número 58 da St. James's Street. A ocupação do MI5 era a contraespionagem. No léxico da espionagem, contraespionagem significa
proteger segredos; e, quando necessário, capturar espiões. Durante grande parte dos seus quarenta anos de existência, os Serviços de Segurança labutaram à sombra do seu primo mais charmoso, os Serviços Secretos, ou MI6. Essas rivalidades internas não preocupavam muito o professor Vicary. Foi no MÍ5 que Vicary ingressou, .em maio de 1940, e era aí que, numa noite sombria e chuvosa cinco dias depois da conferência secreta de Hitler em Rastenburg, continuava a poder ser encontrado.
O último andar era a reserva particular dos quadros superiores o gabinete do diretor-geral, o seu secretariado, os diretores-adjuntos e os chefes de divisão. Era lá que ficava o gabinete do brigadeiro Sir Basil Boothby, escondido por trás de um par de intimidantes portas de carvalho. Um par de luzes brilhava por cima das portas: uma vermelha, que significava que a sala estava demasiado exposta para se permitir o acesso, e outra verde, cujo significado era: entre por sua própria conta e risco. Vicary, como sempre, hesitou antes de carregar na campainha.
Vicary tinha sido convocado às nove horas, enquanto estava a fechar as suas coisas à chave no armário cinzento-escuro e a arrumar
a cabana, o nome que dava ao seu pequeno gabinete. Quando o MI5 explodiu em tamanho, no início da guerra, o espaço tornou-se um bem precioso. Vicary foi relegado para um cubículo sem janelas, do tamanho de um armário de vassouras, com uma burocrática e desgastada carpete verde e uma pequena e robusta secretária de diretor de escola. O parceiro de Vicary, um antigo agente da Polícia Metropolitana chamado Harry Dalton, sentava-se com os outros membros menos importantes numa área comum,
no centro do piso. Em torno desse sítio, havia uma azáfama própria de uma sala de redação, e Vicary apenas se aventurava até lá quando era absolutamente necessário.
Oficialmente, Vicary ocupava o posto de major no Corpo dos Serviços Secretos, embora os postos militares não significassem quase nada dentro do departamento. A maioria do staff referia-se habitualmente a ele como Professor, e Vicary apenas tinha vestido o uniforme duas vezes. No entanto, a maneira de vestir de Vicary mudara. Abandonara os fatos de tweed da universidade, vestindo em vez disso fatos de um cinzento-escuro que tinha comprado antes de a roupa, tal como tudo o resto, ter sido racionada. Por vezes, deparava com um conhecido ou com um velho colega do University College. Apesar dos incessantes avisos do governo sobre os perigos de conversas imprudentes, perguntavam inevitavelmente a Vicary o que estava a fazer ao certo. Normalmente, ele sorria com ar cansado, encolhia os ombros e dava a resposta prescrita: estava a trabalhar num departamento muito aborrecido do Ministério da Guerra.
Por vezes, era aborrecido, mas não acontecia frequentemente. Churchill tinha razão - era tempo de regressar ao mundo dos vivos. A chegada ao MI5, em maio de 1940, tinha sido um renascimento. Desabrochou na atmosfera dos serviços secretos em tempo de guerra: as longas horas, as crises, até mesmo o chá horrível da cantina. Até tinha voltado a fumar cigarros, a que tinha renunciado no último ano em Cambridge. Adorava ser ator no teatro da realidade. Duvidava seriamente se conseguiria voltar a sentir-se satisfeito no santuário do mundo académico.
Era evidente que as horas e a tensão estavam a produzir os seus efeitos, mas nunca se sentira tão bem. Conseguia trabalhar mais tempo e precisava de dormir menos. Quando acabava por ir para a cama,
adormecia imediatamente. À semelhança dos outros agentes, passava muitas noites na sede do MI5, dormindo na pequena cama de campanha que conservava fechada junto à secretária.
Apenas os maus-tratos infligidos aos óculos em meia-lua sobreviveram à catarse de Vicary - continuavam manchados e ameigados e eram uma espécie de piada dentro do departamento. Em momentos de aflição, ainda os procurava batendo nos bolsos distraidamente e punha-os para se reconfortar.
Era o que fazia naquele momento, quando a luz por cima da porta do gabinete de Boothby ficou de repente verde. Vicary carregou na campainha, com o ar pensativo de um homem prestes a assistir ao funeral de um amigo de infância. A campainha tocou suavemente, a porta abriu-se e Vicary entrou.
O gabinete de Boothby era grande e largo, com belas pinturas, uma lareira a gás, valiosos tapetes persas e uma vista magnífica fornecida pelas janelas altas. Sir Basil deixou Vicary à espera os dez minutos da praxe e entrou por fim na sala, por uma segunda porta, que ligava o gabinete ao secretariado do diretor-geral.
O brigadeiro Sir Basil Boothby tinha o tamanho e a escala típicos de um inglês - alto, magro, exibindo ainda sinais da agilidade física que tinha feito dele um atleta
famoso nos tempos de estudante. Via-se isso no modo fácil como o braço forte segurava a bebida, nos ombros quadrados e no pescoço grosso, nos quadris estreitos onde calças, colete e casaco convergiam numa perfeição graciosa. Tinha a beleza vigorosa que um certo tipo de mulheres mais novas acha atraente. O cabelo e as sobrancelhas de um louro-acinzentado eram tão exuberantes que os espirituosos do departamento se referiam a ele como o escovilhão do quinto andar.
Oficialmente, pouco se sabia acerca da carreira de Boothby apenas que tinha feito parte das organizações de serviços secretos e contraterrorismo britânicas ao longo de toda a sua vida profissional. Vicary achava que a má-língua e os rumores que envolviam um homem diziam mais sobre ele do que o seu currículum vitae. As especulações acerca de Boothby tinham dado origem a uma atividade verdadeiramente próspera dentro do departamento. Segundo o que se
dizia, Boothby tinha dirigido uma rede de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial, que se infiltrara no estado-maior alemão. Em Deli, executou ele próprio um indiano acusado do assassínio de um cidadão britânico. Na Irlanda, espancou um homem até à morte com a coronha da pistola por se recusar a divulgar a localização de um esconderijo de armas. Era especializado em artes marciais e utilizava o tempo livre para manter a sua perícia. Era ambidestro e conseguia escrever, fumar, beber o gim e a cerveja amarga ou partir um pescoço com qualquer uma das mãos. Jogava ténis tão bem que poderia ter ganho o torneio de Wimbledon. Enganadora era a palavra utilizada mais frequentemente para descrever a forma como jogava e a capacidade para mudar de mão a meio de um jogo continuava a desconcertar os adversários. A sua vida sexual era muito discutida e debatida
- um mulherengo implacável que tinha levado para a cama metade das datilógrafas e das raparigas da divisão dos Registos e, simultaneamente, homossexual.
Na opinião de Vicary, Sir Basil Boothby simbolizava tudo o que havia de errado nos serviços secretos britânicos entre as duas guerras mundiais - o inglês de boas famílias, educado em Eton e Oxford, que achava que o exercício secreto do poder era um direito adquirido por nascimento, tal como a fortuna da família e a mansão secular em Hampshire. Inflexível, indolente, ortodoxo, um polícia de sapatos feitos à mão e fato da Savile Row. Boothby tinha sido eclipsado intelectualmente pelos novos recrutas atraídos para o MI5 desde o início da guerra - os melhores cérebros das universidades, os melhores advogados dos escritórios mais prestigiados de Londres. Naquele momento, encontrava-se numa posição nada invejável - a supervisionar homens que eram mais espertos do que ele, ao mesmo tempo que tentava ficar com os louros burocráticos pelas façanhas deles.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Alfred. Tive uma reunião nas Salas de Guerra Subterrâneas com Churchill, o diretor-geral, Menzies e Ismay. Receio bem que tenhamos uma grave crise nas nossas mãos. vou beber brandy com soda. O que vai tomar?
- Uísque - respondeu Vicary, observando Boothby.
Apesar de ser um dos agentes mais importantes do MI5, Boothby ainda tinha um orgulho infantil em pronunciar os nomes das pessoas poderosas com quem se encontrava regularmente. O grupo de
homens que se tinha acabado de reunir na fortaleza subterrânea do primeiro-ministro era a elite da comunidade dos serviços secretos britânica durante o período da guerra - o diretor-geral do MI5, Sir David Petrie; o diretor-geral do MI6, Sir Stewart Menzies; e o chefe da equipa pessoal de Churchill, o general Sir Hastings Ismay. Boothby carregou num botão na mesa e pediu à secretária para trazer a bebida de Vicary. Foi até à janela, levantou a cortina opaca e olhou lá para fora.
- Peço a Deus que não venham outra vez hoje à noite, a maldita Luftwaffe. Era diferente em 1940. Era tudo novo e excitante, de um modo estranho. Transportar o próprio capacete de aço debaixo do braço para ir jantar. Correr para os abrigos. Assistir ao fogo nos telhados. Mas não acho que Londres consiga suportar outro inverno com uma Blitz em plena força. As pessoas estão todas tão cansadas. Cansadas, esfomeadas, esfarrapadas e fartas das humilhações mesquinhas que acompanham uma guerra. Não sei bem quanto mais é que este país consegue aguentar.
A secretária de Boothby trouxe a bebida de Vicary. Vinha no centro de uma bandeja de prata, em cima de um guardanapo de papel branco. Boothby tinha uma obsessão com as manchas de água na mobília do escritório. Sentou-se numa cadeira ao lado de Vicary e cruzou as pernas compridas, com a biqueira do sapato engraxado a apontar para a rótula de Vicary como uma arma carregada.
- Temos uma nova missão para si, Alfred. E de modo que possa compreender verdadeiramente a sua importância, decidimos que é necessário levantar um pouco o véu e mostrar-lhe um bocadinho mais do que lhe foi permitido ver até agora. Compreende o que lhe estou a dizer?
- Creio que sim, Sir Basil.
- O Alfred é que é o historiador. Sabe muito acerca de Sun-Tzu?
- A China do século iv a.C. não é propriamente a minha área, Sir Basil. Mas já o li.
- E sabe o que é que Sun-Tzu escreveu sobre o logro militar, Alfred?
- Sun-Tzu escreveu que toda a guerra tem por base o logro. Pregava que todas as batalhas eram ganhas ou perdidas antes de sequer serem travadas. O conselho era simples...
ataca o inimigo quando ele está desprevenido e surge onde não és esperado. Disse que era vital minar o inimigo, subvertê-lo e corrompê-lo, semear a discórdia interna entre os seus líderes e destruí-lo sem o combater.
- Muito bem, Alfred - exclamou Boothby, visivelmente impressionado. - Infelizmente, nunca seremos capazes de destruir Hitler sem o combatermos. E para termos alguma hipótese de o derrotar num combate, temos de o enganar primeiro. Temos de prestar atenção a essas palavras sábias de Sun-Tzu. Temos de surgir onde não somos esperados.
Boothby levantou-se, dirigiu-se à secretária e trouxe uma pasta segura. Era de metal - da cor da prata polida - e tinha algemas presas à pega.
- Está prestes a ser Bigoted- disse Boothby, abrindo a pasta.
- Peço desculpa?
- Bigoted- é uma classificação ultrassecreta desenvolvida especialmente para ocultar a invasão. O nome vem de um selo que colocámos em documentos transportados por agentes britânicos para Gibraltar para a invasão do Norte de África. To Gib - para Gibraltar. Apenas pusemos as letras ao contrário. To Gib tornou-se BIGOT.
- Estou a perceber - disse Vicary.
Quatro anos depois de ter chegado ao MI5, Vicary ainda considerava ridículos muitos dos nomes de código e classificações de segurança.
- BIGOT refere-se agora a quem conheça o segredo mais importante da Operação Overlord... o momento e o local da invasão da França. Se souber o segredo, é um BIGOT. Todos os documentos relacionados com a invasão levam um selo BIGOT.
Boothby abriu a pasta, meteu a mão lá dentro e tirou um dossiê bege. Pousou-o cuidadosamente na mesa de café. Vicary olhou para a capa e de seguida para Boothby. Estava identificada com a espada e o escudo do SHAEF - o Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas - e carimbada com um selo BIGOT. Por baixo, estavam as palavras Plano Bodyguard [Escolta], seguidas pelo nome de Boothby e um número de distribuição.
- É uma irmandade muito pequena aquela em que está prestes a entrar... apenas algumas centenas de agentes - retomou Boothby. E há quem ache que isso já é demasiado. E também o devo informar de que os seus antecedentes pessoais e profissionais foram amplamente investigados. Nenhuma pedra ficou por virar, como se costuma dizer. Fico feliz por lhe transmitir que não é membro conhecido de nenhuma organização fascista ou comunista, que não bebe em excesso, pelo menos em público, que não anda com mulheres dissolutas e que não é homossexual nem qualquer outro tipo de depravado sexual.
- É bom saber.
- E também o devo informar de que pode ser alvo de verificações de segurança e vigilância adicionais em qualquer altura. Nenhum de nós foi isentado disso. Nem mesmo o general Eisenhower.
- Compreendo, Sir Basil.
- Muito bem. Primeiro, gostava de lhe fazer uma pergunta ou duas. O seu trabalho tem-se debruçado sobre a invasão. O número de casos que tratou tem-lhe dado uma ideia sobre alguns dos preparativos. Onde acha que planeamos atacar?
- Baseado no pouco que sei, diria que os vamos atacar na Normandia.
- E como é que avalia as possibilidades de sucesso de um desembarque na Normandia?
- As invasões anfíbias são, por natureza, a mais complexa de todas as operações militares - respondeu Vicary. - Especialmente quando envolvem o canal da Mancha. Júlio César e Guilherme, o Conquistador, conseguiram fazê-lo. Napoleão e os espanhóis falharam. Hitler acabou por desistir em 1940. Eu diria que as probabilidades de uma invasão bem-sucedida não ultrapassam os cinquenta por cento.
Boothby resmungou:
- Se tanto, Alfred, se tanto.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete.
- Até agora, conseguimos levar a bom porto três operações anfíbias... Norte de África, Sicília e Salerno. Mas nenhum desses desembarques envolveu uma costa fortificada.
Boothby parou de caminhar e olhou para Vicary.
- Tem razão, já agora. É na Normandia. E está agendado para o final da primavera. E para termos sequer essas suas probabilidades de sucesso de cinquenta por cento,
Hitler e os generais deles têm de pensar que vamos atacar noutro lugar - revelou Boothby, sentando-se e pegando no dossiê. -
É por isso que desenvolvemos isto: chama-se
Plano Bodyguard. Sendo historiador, acho que terá uma estima especial pelo Plano Bodyguard. É uma ruse deguerre de uma amplitude e ambição nunca antes tentadas.
O nome de código não significava nada para Vicary. Boothby prosseguiu com a sua palestra de doutrinação:
-Já agora, o Plano Bodyguard chamava-se Plano Jael. Recebeu o seu novo nome por respeito a uma observação bastante eloquente que o primeiro-ministro fez a Estaline,
em Teerão. Churchill disse: Em tempo de guerra, a verdade é Ião preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras. O Velho tem um certo jeito
para as palavras, reconheço-lhe. O Plano Bodyguard não é apenas uma operação.
É o nome de código para todas as operações estratégicas de cobertura e logro que serão
levadas a cabo numa escala global, com o intuito de enganar Hitler e o seu cstado-maior em relação às nossas intenções no Dia D.
Boothby pegou no dossiê e folheou-o furiosamente.
- A componente mais importante do Plano Bodyguard é a Operação Fortitude [Fortaleza]. O objetivo da Fortitude é atrasar ao máximo a reação da Wehrmacht à invasão,
levando-os a acreditar que outras partes do noroeste da Europa também estão sob ameaça direta de ataque, especificamente a Noruega e o Pas-de-Calais.
"O nome de código do logro norueguês é Fortitude Norte. O objetivo é forçar Hitler a deixar vinte e sete divisões na Escandinávia, convencendo-o de que planeamos atacar a Noruega, antes ou mesmo depois do Dia D. A Fortitude Su] é a mais crucial e, atrevo-me a dizer, a mais perigosa das duas operações.
Boothby passou para outra página do dossiê e suspirou profundamente.
- O objetivo da Fortitude Sul é convencer lentamente Hitler, os generais e os agentes secretos dele de que pretendemos organizar não
uma invasão da França, mas duas. O primeiro ataque, de acordo com a Fortitude Sul, deverá ser uma manobra de diversão na baía do Sena, na Normandia. O segundo ataque,
o golpe principal, terá lugar três dias mais tarde, do outro lado do estreito de Dover, em Calais. A partir de Calais, os nossos exércitos invasores podem seguir
diretamente para leste e entrar na Alemanha em poucas semanas - explicou Boothby, fazendo uma pausa para dar um gole no brandy com soda e permitir que as suas palavras
fossem assimiladas. - Segundo a Operação Fortitude, o objetivo do primeiro assalto é forçar Rommel e Von Rundstedt a lançarem as unidades Panzer de elite do Décimo
Quinto Exército Alemão na Normandia, deixando assim Calais desprotegida quando a verdadeira invasão ocorrer. Obviamente, nós queremos que aconteça o contrário. Queremos que os Panzers do Décimo Quinto Exército se mantenham em Calais, à espera da verdadeira invasão, paralisados pela indecisão, enquanto desembarcamos na Normandia.
- De uma simplicidade brilhante.
- Absolutamente - retorquiu Boothby. - Mas com uma fraqueza flagrante. Não dispomos de homens suficientes para a levar a cabo. No final da primavera, haverá apenas trinta e sete divisões no Reino Unido, americanas, britânicas e canadianas, o que mal chega para organizar um ataque contra a França, muito menos dois. Para que a Operação Fortitude tenha alguma possibilidade de sucesso, temos de convencer Hitler e os seus generais de que temos as divisões necessárias para organizar duas invasões.
- E como raio vamos fazer isso?
- Ora, vamos criar simplesmente um exército de um milhão de homens. Vamos fazê-lo aparecer como que por encanto, a partir, receio bem, do nada.
Vicary deu um gole na bebida e olhou fixamente para Boothby, de rosto incrédulo.
- Não podem estar a falar a sério.
- Podemos, sim, Alfred, estamos a falar muito a sério. Para que a invasão tenha a tal hipótese em duas de ser bem-sucedida, temos de convencer Hitler, Rommel e Von Rundstedt de que dispomos de uma força gigantesca e poderosa dissimulada nas falésias de Dover,
à espera para atacar em força o outro lado do canal da Mancha, em Calais. Não a teremos, como é óbvio. Mas, quando terminarmos, os alemães vão acreditar que se encontram face a uma força viva e verdadeira, com umas trinta divisões. Se não acreditarem que essa força existe, se falharmos e perceberem o nosso logro, há uma grande probabilidade de o regresso à Europa, como Churchill lhe chama, acabar num fracasso sangrento e cataclísmico.
- E esse exército fantasma tem nome? - perguntou Vicary.
- Naturalmente: o First United States Army Group. FUSAG, para abreviar. Até tem um comandante, o próprio Patton. À sua disposição, Patton terá à volta de um milhão de homens. Correspondendo maioritariamente a nove divisões do Terceiro Exército dos Estados Unidos e a duas divisões do Primeiro Exército Canadiano. O FUSAG até tem um quartel-general em Londres, em Bryanston Square.
Vicary pestanejou rapidamente, tentando digerir as informações extraordinárias que estava a receber. Imagine-se, criar um exército de um milhão de homens a partir do nada. Boothby tinha razão: era uma rase de guerre de proporções inimagináveis. Fazia o cavalo de Tróia de Ulisses parecer uma brincadeira de crianças.
- Hitler não é nenhum tolo, nem os generais dele. Aprenderam bem as lições de Clausewitz e Clausewitz deu alguns conselhos muito valiosos sobre a espionagem em tempo de guerra: Grande parte das informações obtidas na guerra é contraditória, uma parte ainda considerável é falsa
e, de longe, a maior parte é duvidosa. Os alemães não vão acreditar que existe um exército de um milhão de homens acampado na zona rural de Kent só porque nós lhes dizemos que assim é.
Boothby sorriu, voltou a meter a mão na pasta e tirou outro dossiê.
- É verdade, Vicary. E foi por isso que inventámos isto: a Operação Mercury. O objetivo da Operação Mercury é dar carne e ossos ao nosso pequeno exército de fantasmas. Nas próximas semanas, à medida que as forças fantasma do FUSAG começarem a chegar ao Reino Unido, vamos inundar as ondas rádio de tráfego, com algumas comunicações enviadas em códigos que sabemos que os alemães já quebraram e outras en clair. Tudo tem de ser perfeito, exatamente como aconteceria se fôssemos colocar um verdadeiro exército de um milhão de homens em Kent. Quartéis-mestres a queixarem-se da falta
de tendas. Messes insurgindo-se contra a escassez de comida e de talheres. Conversas via rádio durante os exercícios. A partir deste momento e até à invasão, vamos bombardear os postos de escuta deles no norte da França com perto de um milhão de mensagens. E algumas dessas mensagens darão aos alemães uma pequena pista, ínfimas informações sobre a localização das forças ou o seu posicionamento. Obviamente, queremos que os alemães descubram essas pistas e se agarrem a elas.
- Um milhão de mensagens via rádio? Como é isso possível?
- com o US 3103 Signals Service Battalion. Vão trazer uma equipa formidável - atores da Broadway, estrelas da rádio, especialistas em vozes. Homens que conseguem imitar o sotaque de um judeu de Brooklyn num minuto e o horrível tom arrastado de um trabalhador agrícola do Texas no outro. Vão gravar as mensagens falsas num estúdio, em discos de dezasseis polegadas, e depois emiti-las em camiões a circular pela zona rural de Kent.
- Inacreditável - exclamou Vicary baixinho.
- Sim, completamente. E isso é só uma parte. A Operação Mercury é responsável pelo que os alemães vão ouvir através do ar. Mas também temos de ter em conta o que eles vão ver a partir ao ar. Temos de fazer com que pareça que um gigantesco exército se está a reunir lenta e metodicamente no canto sudeste do país. Tendas que cheguem para albergar um milhão de homens, uma gigantesca armada de aviões, tanques e barcos de desembarque. Até vamos construir o raio de um depósito de gasolina em Dover.
Vicary disse:
- Mas, Sir Basil, de certeza que não dispomos de aviões, tanques e lanchas de desembarque suficientes para desperdiçar num logro.
- Claro que não. Vamos ser nós próprios a construí-los, com contraplacado e lona. Vistos do solo, vão parecer exatamente o que são: falsificações toscas e preparadas à pressa. Mas vistos do ar, pelas objetivas das câmaras de vigilância da Luftwaffe, vão parecer verdadeiros.
- E como podemos ter a certeza de que os aviões de vigilância vão conseguir penetrar nas nossas defesas?
Boothby fez um grande sorriso, terminou a bebida e acendeu um cigarro calmamente.
- Agora está a compreender, Alfred. Nós temos a certeza de que eles vão conseguir penetrar nas nossas defesas porque vamos deixar. Nem todos, claro. Eram capazes de perceber que havia marosca se fizéssemos isso. A RAF e os aviões americanos vão patrulhar constantemente os céus sobre o nosso FUSAG. E vão perseguir alguns dos invasores. Mas a alguns deles, apenas àqueles que estiverem a voar acima dos trinta mil pés, devo acrescentar, será permitido penetrar. Se tudo correr de acordo com o guião, os analistas de vigilância aérea de Hitler vão dizer-lhe a mesma coisa que os agentes responsáveis pelas escutas no norte da França lhe estão a dizer, que existe uma gigantesca força aliada a postos no Pas-de-Calais.
Vicary estava a abanar a cabeça.
- Comunicações via rádio e fotografias aéreas, duas das formas que os alemães têm para recolher informações acerca das nossas intenções. A terceira forma é, claro, através de espiões.
Mas sobravam realmente alguns espiões? Em setembro de 1939, no dia em que a guerra rebentou, o MI5 e a Scotland Yard empreenderam uma gigantesca rusga, reunindo todos aqueles de que desconfiavam. Foram todos presos, transformados em agentes duplos ou enforcados. Em maio de 1940, quando Vicary chegou, o MI5 estava prestes a capturar os novos espiões que Canaris enviava para Inglaterra para recolherem informações sobre a futura invasão. Esses novos espiões sofreram o mesmo destino que a vaga anterior.
Caçador de espiões não era a expressão apropriada para descrever o que Vicary fazia no MI5. Era tecnicamente um agente da Operação Double Cross [Dupla Traição]. Tinha a missão de garantir que a Abwehr continuava a acreditar que os seus espiões ainda se encontravam infiltrados, a recolher informações e a enviá-las para os agentes que os controlavam a partir de Berlim. Manter os agentes vivos, para a Abwehr, trazia vantagens óbvias. O MI5 tinha sido capaz de manipular os alemães desde o início da guerra, controlando o fluxo de informações saído das Ilhas Britânicas. Isso também fez com que a Abwehr não enviasse novos agentes para Reino Unido, já que Canaris e os agentes de controlo julgavam que a maioria dos espiões ainda se encontrava ativa.
- Exato, Alfred. A terceira fonte de informações de Hitler sobre a invasão são os espiões dele. Os espiões de Canaris, melhor dizendo.
E nós sabemos como eles são eficazes. Os agentes alemães sob o nosso controlo vão dar um contributo vital ao Plano Bodyguard, confirmando a Hitler muito do que ele consegue ver a partir dos céus e ouvir através das ondas rádio. De facto, um dos nossos agentes duplos, Tate, já foi posto em jogo.
Tate ficou com esse nome de código por causa de uma extraordinária parecença com o popular comediante de music hall Harry Tate. O seu nome verdadeiro era Wulf Schmidt, um agente da Abwehr que saltou de paraquedas de um Heinkel 111 para a zona rural de Cambridgeshire, na noite de 19 de setembro de 1940. Vicary, embora não lhe tivessem atribuído o caso Tate, sabia o essencial. Tendo passado a noite ao relento, enterrou o paraquedas e o rádio e, a seguir, dirigiu-se à povoação mais próxima. O primeiro sítio em que parou foi a barbearia de Wilfred Searle, onde comprou um relógio de bolso para substituir o relógio de pulso que tinha esmagado ao saltar do Heinkel. Depois, comprou um exemplar do Times à senhora Field, a vendedora de jornais, lavou o tornozelo inchado na bomba da povoação e tomou o pequeno-almoço num pequeno café. Por fim, às dez da manhã, foi preso pelo soldado tom Cousins, da reserva territorial da zona. No dia seguinte, levaram-no de carro para as instalações de interrogatório do MI5, em Ham Common, no condado de Surrey, e foi aí que, após treze dias de interrogatório, Tate concordou em trabalhar como agente duplo e enviar mensagens da Operação Double Cross para Hamburgo através do rádio.
- A propósito, Eisenhower está em Londres. Do nosso lado, só um número muito restrito é que sabe disso. No entanto, Canaris sabe disso. E agora Hitler também o sabe. Na verdade, os alemães sabiam que Eisenhower estava cá antes de ele se instalar para passar a primeira noite em Hayes Lodge. E sabiam que ele estava cá porque Tate lhes disse que ele estava cá. Foi perfeito, claro, uma informação aparentemente importante, mas no entanto completamente inofensiva. Agora, a Abwehr acha que Tate tem uma fonte importante e credível dentro do SHAEF. Essa fonte será crucial à medida que a invasão se aproximar. Vão dar uma mentira importante a Tate para ele transmitir. E, com alguma sorte, a Abwehr também vai acreditar nela.
"Nas próximas semanas, os espiões de Canaris vão começar a ver sinais de um grande aumento de homens e material no sudeste de Inglaterra. Vão ver tropas canadianas e americanas. Vão ver acampamentos e áreas de reagrupamento. Vão ouvir histórias do povo britânico acerca dos terríveis inconvenientes de ter tantos soldados amontoados num lugar tão pequeno. Vão ver o general Patton a andar pelas povoações da East Anglia com as suas botas engraxadas e o seu revólver com a coronha de marfim. Os que forem bons até vão ficar a saber os nomes dos comandantes de topo deste exército e enviar esses nomes para Berlim. A sua própria rede da Operação Double Cross vai desempenhar um papel decisivo, Alfred.
Boothby parou por uns instantes, esmagou o cigarro e acendeu outro logo de imediato.
- Mas o Alfred está a abanar a cabeça. Suspeito que tenha descoberto o calcanhar de Aquiles de todo este plano de logro.
Os lábios de Vicary curvaram-se num sorriso cuidadoso. Porventura, Boothby, sabendo do amor de Vicary pela história e tradições gregas, percebera que ele iria pensar automaticamente na Guerra de Tróia ao ser informado dos pormenores da Operação Fortitude.
- Posso? - perguntou Vicary, apontando para o maço de cigarros Player's. - Acho que deixei os meus lá em baixo.
- Claro - respondeu Boothby, passando o maço a Vicary e oferecendo-lhe a chama do seu isqueiro.
- Aquiles morreu depois de ser atingido por uma seta no seu único ponto vulnerável, o calcanhar - disse Vicary. - O calcanhar de Aquiles da Operação Fortitude é o facto de poder ir por água abaixo com um relatório genuíno de uma fonte em que Hitler confie. Será necessário manipular por completo todas as fontes de informação que Hitler e os seus agentes secretos possuam. Têm todas de ser envenenadas para que a Operação Fortitude funcione. Hitler tem de ser apanhado numa rede completa de mentiras. Se uma nesga de verdade conseguir passar, todo o estratagema poderá ir por água abaixo.
Parando para fumar o seu Player's, Vicary não pôde resistir a estabelecer um paralelo histórico.
- Quando acabaram com Aquiles, a armadura dele foi dada a Ulisses. A nossa armadura, receio bem, vai ser dada a Hitler.
Boothby pegou no copo vazio e girou-o conscientemente na sua larga palma da mão.
- Esse é o perigo inerente a todos os logros militares, não é, Alfred? Indicam quase sempre o caminho para a verdade. O general Morgan, o autor do plano da invasão,
disse-o melhor. Bastaria um espião decente alemão percorrer a costa sul de Inglaterra, da Cornualha a Kent. Se isso acontecesse, tudo isto desabaria. E, ao mesmo tempo, as esperanças da Europa. E foi por isso que estivemos a noite toda enfiados numa sala com o primeiro-ministro e é por isso que o Alfred está aqui agora.
Boothby levantou-se e recomeçou a andar lentamente de um lado para o outro do gabinete.
- A partir deste momento, estamos a agir partindo do pressuposto de que envenenámos de facto todas as fontes de informação de Hitler. E também estamos a agir partindo do pressuposto de que temos todos os espiões de Canaris no Reino Unido contabilizados e de que nenhum está a atuar fora do nosso controlo. Não nos estaríamos a lançar num estratagema como a Operação Fortitude se não fosse esse o caso.
Boothby afastou-se da fraca luz do candeeiro e desapareceu num canto escuro do gabinete.
- Na semana passada, Hitler organizou uma conferência em Rastenburg. Estiveram lá os pesos pesados todos, Rommel, Von Rundstedt, Canaris e Himmler. O assunto foi a invasão. Especificamente, o momento e o local da invasão. Hitler encostou uma arma à cabeça de Canaris - figurativamente, não literalmente - e ordenou-lhe que descobrisse a verdade ou teria de enfrentar consequências bastante penosas. Canaris, por sua vez, atribuiu essa tarefa a um homem da sua equipa chamado Vogel, Kurt Vogel. Até agora, sempre acreditámos que Kurt Vogel era o conselheiro legal de Canaris. Como é óbvio, estávamos enganados. A sua missão, Alfred, é garantir que Kurt Vogel não descobre a verdade. Não tive oportunidade de ler o dossiê dele. Suspeito que a divisão dos Registos possa ter alguma coisa sobre ele.
- Certo - exclamou Vicary.
Boothby estava outra vez iluminado pela ténue luz. Franziu o sobrolho ligeiramente, como se tivesse ouvido por acaso alguma coisa
desagradável na sala ao lado, e depois mergulhou num longo silêncio especulativo.
- Alfred, quero que uma coisa fique completamente clara desde o início deste caso. O
primeiro-ministro insistiu para que a missão lhe fosse atribuída a si, perante
as enérgicas objeções do diretor-geral e as minhas.
Vicary fitou Boothby olhos nos olhos por um momento e, a seguir, sentindo-se embaraçado com o comentário, desviou o olhar. Deixou que os olhos divagassem pelas paredes.
Pelas dezenas de fotografias de Sir Basil com pessoas famosas. Pelo painel de carvalho muito bem polido. Pelo velho remo pendurado na parede, estranhamente desenquadrado naquele cenário formal. Talvez fosse uma recordação de tempos mais felizes e menos complicados, pensou Vicary. De um rio gelado ao nascer do Sol. De Oxford contra Cambridge. De viagens de comboio para casa em tardes frescas de outono.
- Permita-me que lhe explique o comentário. O Alfred tem feito um ótimo trabalho. A sua rede Becker tem-se revelado um sucesso assombroso. Mas tanto o diretor-geral
como eu achamos que um homem mais experiente se poderia adequar melhor a um caso como este.
- Compreendo - retorquiu Vicary.
Um homem mais experiente significava um oficial de carreira e não um desses novos recrutas de que Boothby desconfiava tanto.
- Mas, obviamente - retomou Boothby -, não fomos capazes de convencer o primeiro-ministro de que o Alfred não era o melhor homem para este caso. Por isso, é seu. Vá-me atualizando regularmente sobre os desenvolvimentos. E boa sorte, Alfred. Suspeito que vá precisar.
SETE LONDRES
Em janeiro de 1944, o clima tinha reocupado o seu lugar enquanto obsessão principal do povo britânico. O verão e outono tinham sido invulgarmente secos e quentes;
o inverno, quando chegou, invulgarmente frio. Nevoeiros gelados subiam do rio, assolavam Westminster e Belgravia, pairavam como o fumo de um revólver sobre as ruínas de Battersea e Southwark. A Blitz era pouco mais do que uma recordação longínqua. As crianças tinham regressado. Enchiam as lojas de brinquedos e os grandes armazéns, com as mães a reboque, trocando prendas de Natal que não queriam por artigos mais convenientes. Na noite de Ano Novo, grandes multidões atolaram Piccadilly Circus. Tudo poderia até ter parecido normal, não fosse a celebração ter tido lugar na escuridão do blackout. Mas, passados alguns dias, a Luftwaffe, depois de uma longa e agradável ausência, regressou aos céus de Londres.
Às oito horas dessa noite, Catherine Blake correu pela ponte de Westminster. Havia incêndios ao longo do East End e das docas, projéteis luminosos e holofotes cruzavam o céu noturno. Catherine conseguia ouvir o baque surdo do fogo proveniente das baterias antiaéreas em Hyde Park e ao longo do Embankment e sentir o sabor acre do fumo vindo dos céus. Sabia que a aguardava uma noite longa e atarefada.
Virou para a Lambeth Palace Road e ocorreu-lhe um pensamento absurdo - estava absolutamente esfomeada. Nunca houvera tão
pouca comida disponível. O outono seco e o frio implacável do inverno tinham-se aliado para eliminar quase todas as verduras do país. As batatas e as couves-de-bruxelas eram iguarias. Os nabos e as rutabagas eram os únicos alimentos abundantes. Pensou: Se eu tiver de comer mais um nabo, dou um tiro na cabeça. Ainda assim, suspeitava que as coisas estariam muito piores em Berlim.
Um polícia - um homem baixo e gordo que parecia demasiado velho para entrar no exército - vigiava a entrada da Lambeth Palace Road. Levantou a mão e, gritando acima dos uivos das sirenes de ataque aéreo, pediu-lhe a identificação.
Como sempre, o coração de Catherine pareceu parar.
Mostrou-lhe um distintivo que a identificava como membro do Serviço de Voluntariado Feminino. O polícia deu uma olhadela ao distintivo e depois à cara dela. Catherine tocou no ombro do polícia e inclinou-se para ele de modo que quando falasse ele sentisse a respiração dela no ouvido. Era uma técnica que utilizava há vários anos para neutralizar os homens.
Catherine disse:
- Sou enfermeira voluntária no Hospital St. Thomas.
O polícia levantou os olhos. Pela expressão que tinha no rosto, Catherine percebeu que ele já não era uma ameaça. Estava a sorrir estupidamente, contemplando-a como se tivesse acabado de se apaixonar. A reação não era nenhuma novidade para Catherine. Ela era extraordinariamente bonita e tinha utilizado essa beleza como uma arma durante toda a vida.
O polícia devolveu-lhe a sua identificação.
- As coisas estão muito más?
- Bastante: tenha cuidado e mantenha a cabeça baixa.
A necessidade de ambulâncias em Londres excedia de longe a oferta. As autoridades deitavam a mão a tudo o que pudesse servir, carrinhas de entrega, camiões do leite, qualquer coisa com quatro rodas, um motor e espaço na parte de trás para um ferido e um médico. Catherine reparou numa cruz vermelha pintada sobre o nome desbotado de uma popular padaria local, numa das ambulâncias que seguiam em catadupa para a entrada das urgências do hospital.
Catherine começou a andar mais depressa, seguindo a ambulância, e entrou no hospital. A confusão era total. As urgências estavam
cheias de feridos. Pareciam estar por todo o lado: no chão, nos corredores, até mesmo no posto das enfermeiras. Alguns gritavam. Outros estavam sentados a olhar espantados, demasiado aturdidos para compreenderem o que lhes tinha acontecido. Dezenas de doentes ainda não tinham sido vistos por um médico ou uma enfermeira. E a cada minuto chegavam mais.
Catherine sentiu uma mão no ombro.
- Não há tempo para ficar aí especada, Miss Blake. Catherine virou-se e viu o rosto severo de Enid Pritt. Antes da
guerra, Enid era uma mulher simpática, por vezes confusa, acostumada a lidar com casos de gripe e, de vez em quando, com quem fosse derrotado numa luta de navalhas à porta de um pub, num sábado à noite. Tudo isso tinha mudado com a guerra. Andava direita como uma estaca e falava numa voz clara de parada militar, nunca utilizando mais do que as palavras necessárias para se referir a um assunto. Dirigia uma das enfermarias mais movimentadas de toda a cidade de Londres sem qualquer dificuldade. Um ano antes, o marido, de vinte e oito anos, morrera na Blitz. Enid Pritt não tinha feito luto. Isso podia esperar até que os alemães fossem derrotados.
- Não os deixe perceberem aquilo em que está a pensar, Miss Blake - disse Enid Pritt rispidamente. - Assusta-os ainda mais. Tire o casaco e mãos à obra. Há pelo menos cento e cinquenta feridos só neste hospital e as morgues estão a encher-se rapidamente. Disseram-me para esperar ainda mais gente.
- Já não via isto assim desde setembro de 1940.
- É por isso que eles precisam de si. Agora, mãos à obra, minha menina, o mais depressa que puder.
Enid Pritt atravessou as urgências como um comandante num campo de batalha. Catherine observou-a a repreender outra jovem enfermeira por causa de um curativo desajeitado. Enid Pritt não tinha favoritas, era dura com todas as enfermeiras e voluntárias. Catherine pendurou o casaco e avançou por um corredor cheio de feridos. Começou por uma rapariguinha que estava a apertar um urso de peluche esfarrapado e chamuscado.
- Onde te dói, pequenina?
- No braço.
Catherine enrolou a manga da camisola da rapariga, deixando ver um braço que se encontrava obviamente partido. A criança estava em choque e não tinha consciência da dor. Catherine manteve-a a falar, tentando com que não pensasse na ferida.
- Como te chamas, querida? -;
- Ellen.
- E onde moras?
- Em Stepney, mas a nossa casa já não está lá. A voz dela estava calma e não revelava emoção.
- E onde estão os teus pais? Estão aqui contigo?
- O bombeiro disse-me que agora estão com Deus. Catherine não disse nada, apenas segurou a mão da menina.
- O médico já vem ver-te. Fica só quietinha e não tentes mexer o braço. Está bem, Ellen?
- Sim - respondeu ela. - És muito bonita. Catherine sorriu.
- Obrigada. Queres saber uma coisa?
- O quê?
- Tu também.
Catherine avançou novamente pelo corredor. Um homem de idade, com uma contusão no cimo da careca, olhou para ela enquanto Catherine examinava a ferida.
- Estou ótimo, menina. Há muita gente pior do que eu. Olhe por eles primeiro.
Ela alisou-lhe o parco e desgrenhado cabelo grisalho e fez o que ele pediu. Era uma qualidade que ela tinha visto nos ingleses uma e outra vez. Era um disparate
Berlim retomar a Blitz. Quem lhe dera que lhe fosse permitido dizer-lhes isso.
Catherine continuou a avançar pelo corredor, cuidando dos feridos, ouvindo as histórias deles enquanto trabalhava.
- Eu estava na cozinha a servir-me da porra de uma chávena de chá quando BOOM! Uma bomba de quatrocentos e cinquenta quilos rebenta-me mesmo à porra da porta de
casa. Quando dei por mim, estou estatelado de costas no meio do que dantes era o meu jardim, a olhar para uma pilha de destroços que dantes era a porra da minha
casa.
- Tem cuidado com a língua, George. Estás a ser mal-educado. Além disso, há crianças aqui.
Isso não foi assim tão mau, companheiro. A casa em frente
à minha, do outro lado da rua, apanhou com uma bomba mesmo em cima. Uma família de quatro pessoas, gente boa, exterminada.
Uma bomba caiu ali perto; o hospital estremeceu.
Uma freira, gravemente ferida, abençoou-se e começou a dizer um pai-nosso para que as outras pessoas a acompanhassem.
- Vai ser preciso mais do que uma oração para expulsar a Luftwaffe dos céus hoje à noite, irmã.
- ... venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade...
- Perdi a minha mulher na Blitz de 1940. Acho que também devo ter perdido a minha única filha esta noite.
- ... assim na Terra como no Céu...
- Que guerra, irmã, que porra de guerra.
- ... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
- Sabes, Mervin, tenho a impressão de que Hitler não gosta muito de nós.
- Também reparei nisso.
Nas urgências irromperam gargalhadas.
Dez minutos mais tarde, quando a freira decidiu que a oração tinha chegado ao fim, começou a inevitável cantoria.
- ... Atira capara fora o barril... Catherine abanou a cabeça.
- ... Vamos ter um barril de alegria...
Mas, passado um momento, deu por si a cantar com o resto das pessoas.
Na manhã seguinte, eram oito horas quando entrou no seu apartamento. O correio da manhã tinha chegado. A senhoria, a senhora Hodges, enfiava-lho sempre por baixo da porta. Catherine curvou-se, apanhou o correio e lançou de imediato três dos envelopes no caixote do lixo da cozinha. Não precisava de os ler porque ela mesma os tinha escrito e enviado de diferentes locais de Londres. Em circunstâncias normais, Catherine não receberia cartas pessoais, já que não
tinha amigos nem família no Reino Unido. Mas seria estranho que uma rapariga atraente e educada nunca se correspondesse com ninguém - e a senhora Hodges era um pouco bisbilhoteira - e, por isso, Catherine lançou-se num intricado estratagema para garantir que recebia um fluxo constante de postais e cartas pessoais.
Foi à casa de banho e abriu as torneiras por cima da banheira. A pressão era baixa, a água gotejava da torneira num fio, mas pelo menos estava quente. Havia pouca água por causa do verão e outono secos e o governo ameaçava racioná-la também. Encher a banheira demoraria alguns minutos.
Quando foi recrutada, Catherine Blake não estava em posição de fazer exigências, mas tinha feito uma - dinheiro que lhe permitisse viver confortavelmente. Tinha
sido educada em grandes casas geminadas e em vastas propriedades rurais - os pais eram da classe alta, e passar a guerra numa pensão qualquer parecida com um casebre, partilhando uma casa de banho com seis outras pessoas, estava fora de questão. Segundo o seu disfarce, era uma viúva de guerra, de uma família da classe média de respeitáveis recursos, e o apartamento assentava na perfeição - um conjunto de divisões, modesto mas confortável, numa casa vitoriana em Earl's Court.
A sala de estar era acolhedora, parcamente mobilada, embora um estranho pudesse ficar impressionado com a completa ausência de artigos pessoais. Não havia fotografias nem lembranças. Tinha um quarto com uma cama de casal confortável, uma cozinha com todos os eletrodomésticos modernos e a sua própria casa de banho, com uma grande banheira.
O apartamento tinha outras características que uma inglesa comum a viver sozinha poderia não exigir. Ficava no último piso, onde a mala rádio AFU podia receber transmissões de Hamburgo com pouca interferência, e a janela de sacada vitoriana, na sala de estar, tinha uma vista desimpedida da rua lá em baixo.
Dirigiu-se para a cozinha e colocou uma chaleira de água ao lume. O trabalho de voluntariado consumia-lhe tempo e deixava-a exausta, mas era essencial para o disfarce. Toda a gente estava a fazer alguma coisa para ajudar. Não iria parecer bem uma rapariga saudável
e sem família não fazer nada em prol do esforço de guerra. Ir trabalhar para uma fábrica de munições era arriscado - o disfarce poderia não resistir a uma verificação de antecedentes minuciosa - e alistar-se no ramo feminino da Marinha Real Britânica estava fora de questão. O Serviço de Voluntariado Feminino era a solução de compromisso perfeita. Precisavam desesperadamente de pessoas. Quando Catherine se candidatou, em setembro de 1940, foi colocada ao serviço nessa mesma noite. Tratava de feridos no Hospital St. Thomas e distribuía livros e biscoitos no metropolitano durante os ataques aéreos noturnos. A julgar pelas aparências, era a rapariga inglesa modelo a cumprir o seu dever.
Por vezes, não podia deixar de se rir.
A chaleira apitou. Voltou para a cozinha e fez chá. Como todos os londrinos, tinha ficado viciada em chá e cigarros; parecia que o país inteiro vivia de tanino e tabaco e Catherine não era exceção. Tinha esgotado a ração de leite em pó e de açúcar e, por isso, bebeu o chá sem mais nada. Em momentos como aquele, sentia saudades do café forte e amargo de casa e de um pedaço de bolo de Berlim.
Terminou a primeira chávena de chá e encheu a segunda. Queria tomar banho, enfiar-se na cama e dormir sem parar, mas tinha trabalho a fazer e precisava de se manter acordada. Teria chegado a casa uma hora mais cedo se se deslocasse por Londres como uma mulher comum. Teria atravessado Londres de metro até EarPs Court. Mas Catherine não se deslocava por Londres como uma mulher comum. Tinha apanhado um comboio, depois um autocarro, a seguir um táxi e depois outro autocarro. Tinha saído do autocarro antes da paragem indicada e feito os últimos quatrocentos metros até ao apartamento a pé, verificando constantemente se não estava a ser seguida. Quando chegou por fim a casa, estava ensopada da chuva, mas tinha a certeza de que estava só. Passados mais de cinco anos, alguns agentes poderiam ficar tentados a tornarem-se complacentes. Era uma das razões que explicavam que ela tivesse sobrevivido quando outros tinham sido presos e enforcados.
Entrou na casa de banho e despiu-se à frente do espelho. Era alta e estava em forma; vários anos de duras cavalgadas e caçadas tinham-na tornado muito mais forte do que a maioria das mulheres e muitos
homens. Era larga de ombros e tinha braços macios e firmes como uma estátua. Os seios eram redondos e pesados, muitíssimo bem feitos, e a barriga firme e lisa. Como quase toda a gente, estava mais magra do que era antes da guerra. Retirou o gancho que lhe prendia o cabelo num discreto carrapito de enfermeira, deixando-o cair para o pescoço e ombros, enquadrando-lhe o rosto. Os olhos eram de um azul muito claro - da cor de um lago prussiano, dizia-lhe o pai sempre - e as maçãs do rosto largas e proeminentes, mais alemãs do que inglesas. O nariz era comprido e delicado, a boca generosa e com lábios sensuais.
Pensou: Bem vistas as coisas, ainda és uma mulher muito atraente, Catherine Blake.
Entrou na banheira, sentindo-se de repente muito só. Vogel tinha-a advertido em relação à solidão. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão intensa. Por vezes, conseguia ser até pior do que o medo. Achava que seria preferível estar completamente só - isolada numa ilha deserta ou no cimo de uma montanha - em vez de rodeada de pessoas em que não podia tocar.
Não tinha permitido a si própria ter um amante desde o rapaz na Holanda. Sentia falta dos homens e sentia falta do sexo, mas conseguia viver sem ambos. O desejo, tal como todas as suas emoções, era algo que conseguia ligar e desligar como um interruptor. Além disso, ter um homem era difícil com o seu tipo de trabalho. Os homens tinham tendência a ficar obcecados com ela. A última coisa de que precisava era de um homem perdido de amores a investigar o seu passado.
Catherine acabou de tomar banho e saiu da banheira. Penteou o cabelo molhado rapidamente e vestiu o roupão. Foi à cozinha e abriu a porta da despensa. As prateleiras estavam vazias. A mala rádio estava na prateleira de cima. Tirou-a de lá e levou-a para a sala de estar, junto à janela, onde a receção era melhor. Abriu a tampa e ligou o rádio.
Havia outra razão que explicava que nunca tivesse sido apanhada
- Catherine não fazia transmissões. Todas as semanas, ligava o rádio por um período de dez minutos. Se Berlim tivesse ordens para ela, enviar-lhas-ia.
Durante cinco anos, não tinha havido nada, apenas o assobiar da atmosfera.
Tinha comunicado com Berlim apenas uma vez, na noite a seguir a ter assassinado a mulher em Suffolk e assumido a identidade dela. Eeatríce Pymm... Nesse momento, pensou na mulher sem sentir remorsos. Catherine era um soldado e durante a guerra os soldados eram obrigados a matar. Além disso, o crime não tinha sido gratuito - era absolutamente necessário.
Havia duas maneiras de um agente se introduzir no Reino Unido: clandestinamente, de paraquedas ou num pequeno barco, ou abertamente, como passageiro de um barco ou avião. Cada um dos métodos tinha os seus inconvenientes. Tentar introduzir-se no país sem ser detetado a partir do ar ou de um pequeno barco era arriscado. O agente poderia ser localizado ou ferir-se na queda; aprender simplesmente a saltar de paraquedas teria acrescentado meses ao treino já interminável de Catherine. O segundo método, entrar por meios legais, também acarretava os seus perigos. O agente teria de passar pela zona de controlo de passaportes. A data e o porto de entrada ficariam registados. Quando a guerra rebentasse, o MI5 iria certamente contar com esses registos para localizar os espiões. Se um estrangeiro entrasse no país e nunca mais saísse, o MI5 poderia assumir com segurança que essa pessoa era um agente alemão. Vogel engendrou uma solução - entrar no Reino Unido de barco, em segurança, e a seguir eliminar o registo da entrada eliminando a pessoa em causa. Simples, tirando uma coisa - era necessário um cadáver. Beatrice Pymm, ao morrer, tornou-se Christa Kunst. O MI5 nunca descobrira Catherine porque nunca a tinha procurado. A entrada e a saída dela do país estavam ambas justificadas. Não faziam ideia de que ela existisse sequer.
Catherine encheu outra chávena de chá, colocou rapidamente os auscultadores e aguardou.
Quase entornou o chá em cima de si quando, cinco minutos mais tarde, o rádio começou a fazer barulho.
O operador em Hamburgo premiu ritmadamente uma sucessão de sinais em código.
Os operadores de rádio alemães tinham a reputação de serem os mais precisos do mundo. E também os mais rápidos. Catherine esforçou-se por acompanhá-lo. Quando o operador em Hamburgo terminou, ela pediu-lhe que repetisse a mensagem.
Ele fê-lo, mais lentamente. ;
Catherine agradeceu e desligou.
Levou alguns minutos a encontrar o livro de códigos e mais outros tantos para descodificar a mensagem. Quando terminou, olhou pasmada para ela, incrédula.
Executar rendezvous alfa...
Kurt Vogel queria finalmente que ela se encontrasse com outro agente.
OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
A chuva varria a costa de Norfolk enquanto Sean Dogherty, entorpecido por cinco canecas de cerveja aguada, tentava montar a bicicleta à porta do Hampton Arms. Conseguiu,
à terceira tentativa, e dirigiu-se para casa. Dogherty, pedalando com firmeza, mal reparou na aldeia. Era de facto um lugar desolador, um aglomerado de chalés ao longo de uma única rua, a loja da aldeia, o pub Hampton Arms. A tabuleta já não era pintada desde 1938; a tinta, como quase tudo o resto, tinha sido racionada. A St. John's Church elevava-se na extremidade leste. O cemitério ficava à saída da aldeia. Dogherty benzeu-se inconscientemente ao passar pelo portão e, a seguir, atravessou a ponte de madeira que se estendia sobre a enseada. Passado um momento, a aldeia já tinha desaparecido atrás dele.
Caía a noite; Dogherty esforçou-se por manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos. Era um homem baixo, com cinquenta anos, olhos verdes muito enterrados na cara e uma barba grisalha desmazelada. O nariz, arrebitado e torto, tinha sido partido mais vezes do que se queria lembrar durante uma breve carreira como pugilista de peso meio-médio, em Dublin, e mais umas quantas em lutas de rua, bêbado. Usava um oleado e um gorro de lã. O ar frio cortava-Ihe a pele exposta do rosto: o ar do mar do Norte, parecido com uma lâmina, com o perfume dos campos de gelo do Ártico e dos fiordes noruegueses por onde tinha passado antes de assolar a costa de Norfolk.
A cortina de chuva afastou-se e o terreno tornou-se visível: extensos campos cor de esmeralda, planícies de lama cinzenta sem fim, pântanos de água salgada cheios de juncos e vegetação. À esquerda, uma praia vasta, aparentemente infinita, estendia-se até ao mar. À direita, não muito longe, colinas verdes erguiam-se suavemente até atingirem uma nuvem baixa. Dois gansos-de-brent, vindos da Sibéria para passarem o inverno, levantaram voo dos pântanos e depois pousaram sobre a água, com as asas a baterem delicadamente. Um habitat perfeito para muitas espécies de pássaros, a costa de Norfolk tinha sido em tempos um destino turístico popular. Mas a guerra tinha tornado a observação de aves praticamente impossível. Grande parte de Norfolk estava transformada numa zona militar restrita e o racionamento de gasolina tinha deixado poucos cidadãos com meios para viajarem para um canto tão isolado do país. E quando os tinham, era difícil encontrar o caminho para lá. Na primavera de 1940, com a febre provocada pelo receio de uma invasão a aumentar, o governo tinha retirado todos os sinais de trânsito.
Mais do que outros residentes da costa de Norfolk, Sean Dogherty reparava nessas coisas com especial atenção. Em 1940, tinha sido recrutado para espiar ao serviço da Abwehr e tinha-lhe sido atribuído o nome de código de Esmeralda.
O chalé surgiu ao longe, com o fumo a elevar-se suavemente da chaminé para logo depois ser cortado pelo vento e estender-se pelo prado extenso. Era uma pequena propriedade num terreno arrendado, mas proporcionava uma subsistência modesta - um pequeno rebanho de ovelhas que lhes dava lã e carne, galinhas, uma pequena colheita de tubérculos que, por esses dias, obtinha bons preços no mercado. Dogherty possuía inclusivamente uma velha carrinha em mau estado e transportava géneros das quintas vizinhas para o mercado de King's Lynn. Em resultado disso, foi-lhe atribuída uma ração de gasolina para a agricultura, mais do que a ração civil normal.
Virou para o caminho de entrada do chalé, saiu da bicicleta e empurrou-a pelo trilho cheio de buracos, em direção ao celeiro. Por cima da cabeça, ouvia o rumor dos bombardeiros Lancaster a levantarem voo das bases em Norfolk. Recordava-se de uma época em que
os aviões vinham da direção contrária - os pesados Heinkels da Luftwaffe, espalhando-se sobre o mar do Norte, em direção aos centros industriais de Birmingham e Manchester. Mas os Aliados tinham estabelecido o seu domínio dos céus e os Heinkels raramente se aventuravam sobre Norfolk. Claramente, Dogherty tinha apostado no cavalo errado.
Ergueu o olhar e viu as cortinas da janela da cozinha abrirem-se ligeiramente, viu a imagem desfocada do rosto de Mary através do vidro salpicado de chuva. Hoje
à noite, não, Mary, pensou, desviando conscientemente os olhos. Por favor, outra vez hoje à noite, não.
Não tinha sido difícil à Abwehr convencer Sean Dogherty a trair a Inglaterra e passar a trabalhar para a Alemanha nazi. Em 1921, o irmão mais velho, Daniel, foi preso e enforcado pelos britânicos por liderar uma unidade terrestre do Exército Republicano Irlandês.
Dentro do celeiro, Dogherty abriu um armário de ferramentas e tirou o transmissor-recetor fornecido pela Abwehr, o bloco de códigos, um bloco de notas e um lápis. Ligou o rádio e fumou um cigarro enquanto aguardava. As instruções eram simples - ligar o rádio uma vez por semana e aguardar instruções de Hamburgo. Já tinham passado mais de três anos desde que a Abwehr lhe tinha pedido para fazer alguma coisa. Apesar disso, ligava o rádio zelosamente, à hora indicada, e aguardava dez minutos.
Quando faltavam ainda dois minutos, Dogherty guardou novamente o bloco de códigos e o bloco de notas no armário. Já no último minuto, esticou a mão na direção do cabo de alimentação. Estava prestes a desligar o rádio quando este deu subitamente sinais de vida. Agarrou-se ao bloco de notas e pôs-se a escrever furiosamente até que o rádio se calou. Rapidamente, confirmou a receção da mensagem e terminou a comunicação.
Dogherty demorou vários minutos até descodificar a mensagem.
Quando acabou, não acreditou no que estava a ver.
Executar procedimento de receção número um...
Os alemães queriam que ele acolhesse um agente.
Tinham passado quinze minutos desde que Mary Dogherty, à janela da cozinha, vira o marido entrar no celeiro. Perguntou-se por que razão estaria a demorar tanto
tempo. O jantar de Sean ia arrefecer se ele não viesse para dentro depressa. Limpou as mãos ao avental e levou uma caneca de chá a escaldar para a janela da frente.
A chuva caía com mais violência e o vento chicoteava a costa, vindo do mar do Norte.
Pensou: Que noite horrível para andar lá fora, Sean Dogherty.
Pôs as mãos à volta da caneca de esmalte lascada e deixou que o vapor que de lá saía lhe aquecesse o rosto. Sabia o que Sean estava a fazer no celeiro - estava a
comunicar com os alemães pelo rádio.
Mary tinha de admitir que espiar para os nazis tinha rejuvenescido Sean. Na primavera de 1940, ele fez o reconhecimento de vastas partes da zona rural de Norfolk. Mary assistiu com espanto, à medida que ele foi parecendo despertar para a vida com a atribuição dessa tarefa, pedalando vários quilómetros por dia, à procura de sinais de atividade militar, tirando fotografias às defesas costeiras. As informações eram passadas a um contacto da Abwehr em Londres, que por sua vez a passava a Berlim. Sean achava que era tudo muito perigoso e adorava cada momento.
Mas Mary detestava. Temia que Sean fosse apanhado. Toda a gente estava atenta, à procura de espiões; era uma obsessão nacional. Um deslize, um erro, e Sean seria preso. O Treachery Act de
1940 decretava apenas uma pena por espionagem: a execução. Mary tinha lido sobre execuções de espiões nos jornais, os enforcamentos em Wandsworth e Pentonville, e isso provocava-lhe sempre calafrios. Um dia, temia ela, iria ler que Sean tinha sido executado.
A chuva continuava a cair com mais violência ainda e o vento fustigava com tanta fúria o robusto chalezinho que Mary receava que a casa pudesse vir abaixo. Pensou em si a viver sozinha na velha e degradada quinta; seria terrível. Estremecendo, afastou-se da janela e aproximou-se da lareira.
Se calhar, teria sido diferente se ela tivesse sido capaz de lhe dar filhos. Afastou esse pensamento da cabeça; tinha-se punido por demasiado tempo, desnecessariamente. Era inútil desenterrar coisas em
relação às quais não podia fazer nada. Sean era quem era e já não havia nada que ela pudesse fazer para o mudar.
Mary pensou: Sean, em que é que tu te transformaste?
As pancadas na porta assustaram Mary, fazendo-a derramar o chá no avental. Sean não costumava ficar lá fora sem forma de entrar. Pousou a caneca no peitoril da janela e foi a correr para a porta. Estava preparada para lhe dar um berro por ter saído sem levar as chaves de casa. Em vez disso, quando abriu a porta, viu a figura de Jenny Colville, uma rapariga que vivia do outro lado da aldeia. Estava ali à chuva, com um oleado brilhante pendurado nos ombros magros. Não trazia chapéu e tinha o cabelo que usava até aos ombros colado à cabeça, enquadrando um rosto estranho que um dia poderia vir a ser muito bonito.
Mary percebeu que ela estivera a chorar.
- O que aconteceu, Jenny? O teu pai bateu-te outra vez? Anda a beber?
Jenny assentiu com a cabeça e desatou a chorar.
- Entra, sai dessa chuva - disse Mary. - Vais morrer de frio aí fora, numa noite destas.
Quando Jenny entrou, Mary procurou com os olhos a bicicleta dela no jardim da frente. Não estava lá; ela tinha vindo a pé desde o chalé dos Colville, a mais de um quilómetro e meio dali.
Mary fechou a porta.
- Tira essas roupas. Estão encharcadas. vou buscar-te um roupão para vestires até secarem.
Mary desapareceu dentro do quarto. Jenny fez o que lhe mandaram. Exausta, despiu o oleado, deixando-o deslizar dos ombros para o chão. A seguir, tirou a pesada camisola de lã grossa e largou-a no chão junto ao oleado.
Mary voltou com o roupão.
- Tira o resto da roupa, minha menina - atirou ela numa voz suave, fingindo-se zangada.
- Mas então e o Sean?
Mary mentiu:
- Está lá fora a remendar um buraco numa das suas queridas cercas.
- com este tempo? - cantarolou Jenny com o seu forte sotaque de Norfolk, recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. Mary ficava espantada com a resistência dela. - Ele está maluco, Mary?
- Sempre soube que eras uma criança perspicaz. Agora, vamos lá a tirar o resto dessa roupa molhada.
Jenny despiu as calças e a camisola interior. Costumava vestir-se como um rapaz, ainda mais do que as outras raparigas do campo. A pele era de um branco leitoso e estava toda arrepiada. Teria muita sorte se não apanhasse uma bela constipação. Mary ajudou Jenny a vestir o roupão e envolveu-a nele, apertando-o bem.
- Então, não estás melhor?
- Sim, obrigada, Mary - respondeu Jenny, recomeçando a chorar. - Não sei o que faria sem ti.
Mary puxou Jenny para junto de si.
- Nunca vais ficar sem mim, Jenny. Prometo.
Jenny sentou-se numa cadeira antiga junto da lareira e cobriu-se com uma manta bafienta. Colocou os pés por baixo de si e, passado um momento, parou de tremer e sentiu-se quente e em segurança. Mary estava ao fogão, cantarolando suavemente para si mesma.
Passados poucos momentos, o ensopado já estava a borbulhar, enchendo a casa de um cheiro maravilhoso. Jenny fechou os olhos, com a cabeça cansada a saltar de uma sensação agradável para outra
- o cheiro quente do ensopado de borrego, o calor da lareira, a comovente suavidade da voz de Mary. O vento e a chuva fustigavam a janela junto da cabeça de Jenny. A tempestade fê-la sentir como era maravilhoso estar segura dentro de uma casa tranquila. Desejava que a sua vida fosse sempre assim.
Passados poucos momentos, Mary trouxe um tabuleiro com uma tigela de ensopado, um pão duro e uma caneca de chá a escaldar.
- Endireita-te, Jenny - disse ela, mas não obteve resposta.
Mary pousou o tabuleiro, tapou a rapariga com outra manta e deixou-a dormir.
Mary estava a ler junto da lareira quando Dogherty entrou em casa. Olhou para o marido em silêncio quando ele entrou na sala. Sean apontou para a cadeira onde Jenny estava a dormir e perguntou:
- Porque é que ela está aqui? O pai bateu-lhe outra vez?
- Chiu! - sibilou Mary. - Vais acordá-la.
Mary levantou-se e levou-o para a cozinha. Preparou-lhe um lugar na mesa. Dogherty encheu uma caneca de chá e sentou-se.
- Sabes, o que Martin Colville precisa é de alguém que lhe dê a provar do mesmo remédio. E eu sou o homem indicado para lho dar.
- Por favor, Sean, ele tem metade da tua idade e duas vezes o teu tamanho.
- E o que é que isso quer dizer, Mary?
- Quer dizer que te podias magoar. É a última coisa de que precisamos é que atraias a atenção da polícia com uma luta estúpida. Agora, acaba de jantar e cala-te.
Vais acordar a miúda.
Dogherty fez o que lhe ordenaram e recomeçou a comer. Enfiou uma colherada do ensopado na boca e fez uma careta.
- Jesus, esta comida está mesmo gelada.
- Se tivesses chegado a casa a horas decentes, não estava. Onde é que andaste, Sean?
Sem levantar a cabeça do prato, Dogherty lançou um olhar gelado a Mary.
- Estive no celeiro - disse ele friamente.
- Estiveste com o rádio ligado, à espera de instruções de Berlim? - perguntou Mary num sussurro sarcástico.
- Mais tarde, mulher - resmungou Sean.
- Não percebes que estás a desperdiçar o teu tempo lá, Sean? E a arriscar também os nossos pescoços?
- Eu disse mais tarde, mulher!
- Seu bode velho e estúpido!
- Já chega, Mary!
- Talvez os rapazes de Berlim te dêem um dia uma tarefa de verdade, Sean. Depois vais poder libertar todo o ódio que tens dentro de ti e vamos poder continuar com o que resta das nossas vidas
- desabafou ela, levantando-se, olhando para ele e abanando a cabeça. - Estou cansada, Sean. vou para a cama. Põe mais um bocado de lenha na lareira para a Jenny ficar quente. E não faças nada que a acorde. Ela passou um mau bocado hoje à noite.
Maty subiu as escadas para o quarto e sem fazer barulho fechou a porta depois de entrar. Dogherty foi ao guarda-louça buscar uma garrafa de Bushmills. O uísque valia ouro por esses dias, mas era uma noite especial, por isso serviu-se de uma quantidade generosa.
- Talvez os rapazes de Berlim façam isso mesmo, Mary Dogherty
- disse ele, erguendo o copo num brinde silencioso. - De facto, talvez até já tenham feito.
NOVE LONDRES
Para conseguir entrar para os serviços secretos militares durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred Vicary tinha, na verdade, recorrido ao logro. com vinte e um anos, estava à beira de terminar os estudos em Cambridge e convencido de que a Inglaterra se estava a afundar e, como tal, precisava de todos os homens capazes de
que pudesse dispor. Não queria ter nada que ver com a infantaria. Sabia história suficiente para ter noção de que não havia aí qualquer espécie de glória, mas apenas
tédio, sofrimento e, muito provavelmente, a morte ou um ferimento grave.
O seu melhor amigo, um brilhante estudante de filosofia chamado Brendan Evans, encontrou a solução perfeita. Brendan tinha ouvido dizer que o exército estava a formar algo chamado Corpo dos Serviços Secretos. As únicas qualificações requeridas eram fluência no alemão e no francês, considerável experiência de viagens pela Europa, capacidade de guiar e reparar uma mota e visão perfeita. Brendan contactou o Ministério da Guerra e marcou entrevistas para ambos na manhã seguinte.
Vicary ficou desanimado; não reunia as qualificações necessárias. Falava alemão, ainda que de forma pouco inspirada, um francês aceitável e viajara consideravelmente
pela Europa, incluindo dentro da Alemanha. Mas não sabia guiar uma mota - aliás, era uma geringonça que o assustava de morte - e via horrivelmente mal.
Brendan Evans era o oposto de Vicary: alto, loiro, incrivelmente bonito, possuidor de um juvenil desejo de aventura e sem mãos a medir no
que tocava a mulheres. Mas tinham uma característica em comum: uma memória perfeita.
Vicary concebeu o seu plano.
Ao final dessa tarde, na penumbra fresca de agosto, Brendan ensinou-o a andar de mota num trecho deserto de estrada, na região das Fens. Vicary quase os matou aos
dois por diversas vezes, mas, quando a noite chegou, já avançava em grande velocidade pelos trilhos, desfrutando de uma mistura de excitação e imprudência que nunca
tinha sentido. Na manhã seguinte, durante a viagem de comboio de Cambridge para Londres, Brendan instruiu-o sem parar acerca da anatomia das motas.
Quando chegaram a Londres, Brendan entrou no Ministério da Guerra e Vicary ficou à espera à entrada, sob a luz quente do sol. Brendan reapareceu ao fim de uma hora,
com um sorriso largo. Fui admitido, disse Brendan. Agora é a tua vez. Ouve com atenção. Foi então que lhe disse de memória o gráfico inteiro utilizado no teste
de visão, até as letras irremediavelmente pequenas da última linha.
Vicary tirou os óculos, entregou-os a Brendan e entrou como um cego no edifício escuro e ameaçador. Passou facilmente no exame cometeu apenas um erro, confundindo
um B com um D, mas isso por culpa de Brendan. Vicary entrou de imediato ao serviço, como segundo tenente na unidade de motocicletas do Corpo dos Serviços Secretos,
passaram-lhe uma guia para levantar o uniforme e o equipamento e ordenaram-lhe que cortasse o cabelo, que tinha ficado comprido e encaracolado durante o verão. No dia seguinte, mandaram-no ir à estação de Euston recolher a mota, uma Rudge novinha em folha, embalada num caixote de madeira. Uma semana mais tarde, Brendan e Vicary embarcaram num navio de transporte de tropas rumo a França, acompanhados das motas.
Era tudo tão simples nesse tempo. Os agentes penetravam nas linhas inimigas, contavam o número de tropas, vigiavam as linhas de caminho de ferro. Até utilizavam pombos-correio para entregarem mensagens secretas. Agora, as coisas eram bem mais complexas, um duelo de inteligência através das ondas rádio, que requeria imensa
concentração e atenção aos pormenores.
A Operação Double Cross.
Karl Becker era um exemplo paradigmático. Tinha sido enviado para Inglaterra por Canaris durante os tempos tumultuosos de 1940, quando a invasão parecia uma certeza.
Fazendo passar-se por um homem de negócios suíço, Becker estabeleceu-se, com estilo correspondente, em Kensington e começou a amealhar todos os segredos suspeitos
a que conseguia deitar mão. O que levou Vicary até Becker foi a sua utilização de libras falsas e, no espaço de poucas semanas, o alemão estava já enredado na teia
do MI5. Vicary, com a ajuda dos vigias, ia onde quer que Becker fosse: às festas onde trocava mexericos e emborcava champanhe do mercado negro, aos encontros com
outros agentes de carne e osso, às entregas clandestinas em sítios predeterminados e ao quarto dele, para onde Becker levava mulheres, homens, crianças e sabe Deus
que mais. Ao fim de um mês, Vicary desferiu o golpe. Prendeu Becker - arrancando-o dos braços de uma jovem que mantinha trancada e embriagada com champanhe - e acabou
com uma rede inteira de agentes alemães.
A seguir, veio a parte complicada. Em vez de enforcar Becker, fê-lo mudar de lado e convenceu-o a trabalhar para o MI5 como agente duplo. Na noite seguinte, Becker,
na cela da prisão, ligou o rádio e transmitiu um sinal de identificação codificado ao operador em Hamburgo. O operador pediu que Becker se mantivesse no ar para
receber as instruções do agente da Abwehr que o controlava a partir de Berlim. Foi pedido a Becker que averiguasse a localização e o tamanho exatos de uma base de
caças da RAF em Kent. Becker confirmou a mensagem e terminou a comunicação.
Foi Vicary quem se dirigiu ao aeródromo no dia seguinte. Podia ter telefonado à RAF, obtido as coordenadas da base e enviado a informação para a Abwehr. Mas não seria assim tão fácil para um espião. Para que a mensagem parecesse autêntica, Vicary foi fazer o reconhecimento da base, exatamente como um espião faria. Apanhou o comboio em Londres e, devido aos atrasos, não chegou antes do anoitecer. Um polícia militar abordou-o numa colina junto à base e pediu-lhe que se identificasse. Vicary conseguia ver a base lá em baixo, na planície, com a mesma perspetiva de um espião. Viu um conjunto de hangares semicilíndricos e alguns aviões espalhados pela pista coberta de vegetação. Na viagem de regresso a Londres, Vicary
redigiu um relatório curto acerca do que tinha visto. Salientou que a luz já não era muita, por o comboio se ter atrasado, e que um polícia militar o tinha impedido de se aproximar mais. Nessa noite, Vicary obrigou Becker a enviar ele mesmo o relatório, já que cada espião tinha o seu estilo próprio de digitar, o chamado punho, que os operadores de rádio alemães eram capazes de reconhecer. Hamburgo deu-lhe os parabéns e terminou a comunicação.
Vicary contactou a RAF e explicou a situação. Os verdadeiros caças Spitfire foram transferidos para outro aeródromo, o pessoal foi evacuado e vários caças extremamente
danificados foram abastecidos e colocados na pista. A Luftwaffe veio nessa noite. Os aviões falsos explodiram numa bola de chamas; a tripulação dos bombardeiros
Heinkel pensou sem dúvida que tinha desferido um golpe preciso. No dia seguinte, a Abwehr pediu a Becker que regressasse a Kent e avaliasse os danos. Uma vez mais,
foi Vicary quem lá foi, escrevendo um relatório acerca do que tinha conseguido ver e obrigando Becker a enviá-lo.
A Abwehr ficou em êxtase. Becker tornou-se uma estrela, um superespião, e tudo isso tinha apenas custado à RAF um dia a reparar a pista e a remover os esqueletos
carbonizados dos Spitfires.
Os agentes que controlavam Becker estavam de tal forma impressionados que lhe pediram para recrutar mais agentes, coisa que ele fez - que, na realidade, Vicary fez. No final de 1940, Karl Becker já tinha um círculo de uma dúzia de agentes a trabalhar para si, sendo que alguns o informavam do que descobriam e outros informavam diretamente Hamburgo. Eram todos fictícios, produto da imaginação de Vicary. Este tinha em atenção todos os aspetos da vida deles; apaixonavam-se, tinham casos amorosos,
queixavam-se da falta de dinheiro, perdiam casas e amigos na Blitz.
Vicary deu-se até ao luxo de prender um ou outro; nenhuma rede a atuar em solo inimigo era infalível
e a Abwehr nunca acreditaria na possibilidade de não perder nenhum agente. Era um trabalho extenuante e fastidioso, que exigia atenção ao mais ínfimo pormenor; Vicary
achava-o estimulante e adorava cada minuto.
O elevador estava outra vez avariado e, por isso, Vicary teve de descer as escadas do covil de Boothby para a divisão dos Registos.
Ao abrir a porta, foi invadido pelo cheiro daquele lugar: papel a deteriorar-se, pó, um bafio penetrante devido à humidade que se infiltrava pelas paredes da cave. Lembrava-lhe a biblioteca da universidade. Havia dossiês em prateleiras abertas, dossiês em arquivos, dossiês amontoados no chão de pedra gelado, pilhas de documentos à espera de se transformarem em dossiês. Um trio de raparigas bonitas o pessoal da noite, que dormia em camas improvisadas - andava discretamente de um lado para o outro, falando uma linguagem de inventário que Vicary não conseguia perceber. As raparigas - conhecidas como rainhas da divisão dos Registos, no léxico daquele sítio - pareciam estranhamente deslocadas ali, no meio dos papéis e da escuridão. De certa forma, Vicary esperava virar uma esquina e deparar com um par de monges a ler um manuscrito à luz da vela.
Arrepiou-se. Céus, aquele sítio era frio como uma cripta. Arrependeu-se de não ter trazido uma camisola ou qualquer coisa quente para beber. Estava ali tudo - toda a história secreta do serviço. Enquanto vagueava entre as pilhas de documentos, ocorreu-lhe que, muito tempo depois de abandonar o MI5, também ali estaria um registo eterno de todas as suas ações. Se isso era reconfortante ou repugnante, não tinha a certeza.
Vicary pensou nas observações depreciativas que Boothby tecera sobre ele e a raiva que sentiu causou-lhe um calafrio. Vicary era um extraordinário agente da Operação Double Cross e nem mesmo Boothby o podia negar. Estava plenamente convencido de que era a sua formação como historiador que o tornava tão capaz para o trabalho. Um historiador tem muitas vezes de se ocupar de conjeturas
- pegando numa série de pequenas pistas inconclusivas e, a partir delas, chegar a uma conclusão razoável. A Operação Double Cross era muito semelhante a essa elaboração de conjeturas, só que ao contrário. O trabalho de um agente desse tipo consistia em fornecer aos alemães pequenas pistas inconclusivas para que pudessem chegar às conclusões desejadas. O agente precisava de ser cuidadoso e meticuloso nas pistas que revelava. Tinham de corresponder a uma cuidadosa mistura de realidade e ficção, de verdade e de mentiras meticulosamente disfarçadas. Os espiões falsos de Vicary tinham de trabalhar arduamente para conseguirem as suas informações. E estas tinham de ser ministradas aos alemães em doses pequenas e por vezes insignificantes.
Precisavam de ser consistentes com o disfarce do espião. Por exemplo, não se poderia esperar que um motorista de camiões de Bristol estivesse na posse de documentos roubados em Londres. E as informações nunca deveriam parecer boas demais para serem verdade, pois as informações obtidas com demasiada facilidade são facilmente descartadas.
Os dossiês sobre o pessoal da Abwehr estavam armazenados em prateleiras abertas que se estendiam do chão ao teto, numa pequena divisão no extremo desse piso. Os Vs começavam numa das prateleiras de baixo e depois saltavam para uma no topo. Vicary teve de se pôr de gatas e inclinar a cabeça de lado como se estivesse à procura de um objeto valioso debaixo de uma mobília. Raios! O dossiê estava na prateleira de cima, claro. com esforço, levantou-se e, esticando o pescoço, espreitou para os ficheiros por cima dos óculos em meia-lua. Não valia a pena. Os dossiês estavam quase a dois metros de distância, demasiado longe para conseguir ler os nomes - era a vingança de Boothby contra todos os que não atingiam a altura estipulada para o departamento.
Uma das rainhas da divisão dos Registos deparou com ele a olhar fixamente para cima e disse que lhe ia trazer uma escada de biblioteca.
- A semana passada, Claymore tentou usar uma cadeira e quase partiu o pescoço - trauteou ela.
Regressou pouco depois a arrastar a escada. Deu uma nova olhadela a Vicary, sorriu-lhe como se este fosse um tio maluco e ofereceu-se para lhe ir buscar o dossiê. Vicary assegurou-lhe que conseguia tratar do assunto.
Subiu à escada e, usando o indicador como se fosse uma sonda, percorreu os dossiês. Descobriu uma pasta de arquivo de manilha com um separador vermelho: VOGEL, KURT - ABWHER BERLIM. Tirou-a da prateleira, abriu-a e olhou.
O dossiê de Vogel estava vazio.
Um mês depois de chegar ao MI5, Vicary ficou surpreendido por encontrar Nicholas Jago a trabalhar lá. Jago tinha sido arquivista principal no University College
e fora recrutado pelo MI5 na mesma
semana em que Vicary. Tinha sido colocado na divisão dos Registos e fora-lhe ordenado que impusesse um pouco de disciplina na memória, por vezes volúvel, do departamento.
Jago, tal como a própria divisão dos Registos, era empoeirado, irascível e de trato difícil. Mas, uma vez ultrapassada essa couraça exterior, era capaz de ser gentil
e generoso, transbordando de informações valiosas. Jago tinha ainda outro talento precioso: sabia perder e encontrar dossiês.
Apesar da hora tardia, Vicary encontrou Jago a trabalhar, sentado à secretária do seu exíguo gabinete envidraçado. Ao contrário das salas dos arquivos, era um santuário de limpeza e ordem. Quando Vicary bateu à porta envidraçada, Jago levantou os olhos, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Vicary apercebeu-se de que os olhos de Jago não acompanhavam o sorriso dele. Parecia exausto; Jago vivia naquele sítio. Mas havia outra coisa: em 1940, a sua mulher tinha sido morta durante a Blitz. A morte dela deixara-o destroçado. Tinha jurado a si mesmo derrotar os nazis - não com armas, mas com organização e precisão.
Vicary sentou-se e recusou a esbaforida oferta de chá por parte de Jago - material genuíno que acumulei antes da guerra. Nada parecido com o tabaco atroz, próprio da guerra, com que estava a encher o fornilho do cachimbo antes de o acender com um fósforo. O fumo repugnante cheirava a folhas a arder e ficou a pairar entre eles, numa cortina, enquanto trocavam banalidades acerca do regresso à universidade quando o trabalho ali estivesse terminado.
Aclarando a garganta delicadamente, Vicary indicou que queria passar ao assunto que o trouxera ali.
- Estou à procura de um dossiê acerca de um agente algo obscuro da Abwehr - revelou Vicary. - Fiquei surpreendido quando vi que tinha desaparecido. A capa está na prateleira, mas o que devia estar lá dentro desapareceu.
- E qual é o nome? - perguntou Jago.
- Kurt Vogel.
O rosto de Jago ensombrou-se.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos. Espera aqui, Alfred. É só um momento.
- Eu vou contigo - disse Vicary. - Talvez possa ajudar.
- Não, não - insistiu Jago. - Nem quero ouvir falar disso. Eu não te ajudo a encontrar espiões e tu não me ajudas a encontrar dossiês - atirou, rindo-se da sua própria
piada. - Fica aqui e põe-te à vontade. É só um momento.
É a segunda vez que dizes isso, pensou Vicary. É só um momento... Vicary sabia que Jago era obcecado com os seus dossiês, mas a falta de um dossiê sobre um agente
da Abwehr não era caso para uma emergência no departamento. Constantemente, colocavam-se dossiês no sítio errado ou deitavam-se fora por engano. Uma vez, Boothby
fez soar o alerta vermelho depois de ter perdido uma pasta cheia de documentos importantes. Segundo rezava a lenda do departamento, tinha sido encontrada uma semana mais tarde no apartamento da amante dele.
Passado um momento, Jago regressou apressadamente ao gabinete, com uma nuvem do fumo repugnante do cachimbo a flutuar atrás dele como o vapor de uma locomotiva. Entregou o dossiê a Vicary e sentou-se à secretária.
- Tal como eu suspeitava - anunciou Jago, absurdamente orgulhoso de si mesmo. - Estava ali mesmo na prateleira. Uma das raparigas deve tê-lo guardado na pasta errada. Está sempre a acontecer.
Vicary ouviu a desculpa duvidosa e franziu o sobrolho.
- Interessante... nunca me aconteceu tal coisa.
- Bem, talvez tenhas tido sorte. Nós aqui lidamos com milhares de dossiês por semana. Dava-nos jeito mais pessoal. Já discuti o assunto com o diretor-geral, mas ele disse-me que já atingimos a nossa quota e que não podemos ter mais pessoal.
O cachimbo de Jago tinha-se apagado e ele estava a reacendê-lo com toda a pompa e circunstância. Os olhos de Vicary lacrimejaram à medida que o pequeno gabinete se enchia novamente de fumo. Nicholas Jago era um homem perfeitamente bom e honesto, mas Vicary não acreditava numa só palavra da história que tinha contado. Estava convicto de que alguém tinha retirado o dossiê não há muito tempo e que este não tinha voltado para a prateleira. E esse alguém devia ser alguém bem importante, a julgar pela cara que Jago fez quando Vicary lho pediu.
Vicary serviu-se do dossiê para abrir uma clareira no meio da nuvem de fumo.
- Quem foi a última pessoa a mexer no dossiê de Vogel?
- Alfred, vá lá, sabes que não te posso dizer isso.
Era verdade. Comuns mortais como Vicary tinham de assinar um registo cada vez que retiravam um dossiê. Havia registos que indicavam quem retirava que dossiês e quando. Apenas o pessoal da divisão dos Registos e os chefes do departamento tinham acesso a esses registos. Só um grupo restrito de pessoas com cargos de grande relevo podia aceder aos dossiês sem ter de lavrar registo. Vicary suspeitava que o dossiê de Vogel tinha sido retirado por uma dessas pessoas.
- Tudo o que tenho de fazer é pedir a Boothby uma autorização para ver a lista de acessos e ele dá-ma - disse Vicary. - Porque não me poupas tempo e me deixas ver isso já?
- Pode dar-ta ou não.
- O que queres dizer com isso, Nicholas?
- Ouve, meu velho, a última coisa que eu quero é intrometer-me outra vez entre ti e Boothby.
Jago estava novamente às voltas com o cachimbo, enchendo o fornilho e tirando um fósforo da caixa. Segurava o cachimbo entre os dentes, fazendo com que o fornilho baloiçasse enquanto falava.
- Fala com o Boothby. Se ele disser que podes ver a lista de acessos, é toda tua.
Vicary deixou-o sentado no gabinete fumarento, a tentar acender o seu tabaco barato, com o fósforo a flamejar a cada puxadela do cachimbo. Ao afastar-se com o dossiê de Vogel, Vicary deitou uma última olhadela a Jago e achou que ele parecia um farol num local brumoso.
Ao voltar para o gabinete, Vicary parou na cantina. Não se conseguia lembrar da última vez que tinha comido. A sensação de fome não passava de uma moinha. Já não suspirava por comida boa. Comer tinha-se tornado uma tarefa prática, algo que tinha de se fazer por necessidade, não por prazer. Era como andar em Londres à noite: rapidamente e tentando não sair ferido. Lembrou-se da tarde de maio de 1940 em que o tinham contactado. O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas de cordeiro em sua casa. Que tamanha perda de tempo precioso.
Já era tarde e a seleção era pior do que o habitual: um naco de pão escuro, um pedaço de queijo suspeito, um caldeirão borbulhante
de líquido castanho. Alguém tinha riscado da ementa as palavras caldo de carne e escrito em seu lugar sopa de pedra. Vicary dispensou o queijo e cheirou o caldo.
Parecia suficientemente inócuo. Cuidadosamente, serviu-se de uma concha. O pão era duro como a tábua da cozinha. Vicary cortou um pedaço com a faca romba. Utilizando o dossiê de Vogel como tabuleiro, avançou com cautela por entre as mesas e cadeiras. Numa mesa, estava John Masterman, debruçado sobre um livro de latim. Dois advogados famosos estavam sentados numa mesa a um canto, reeditando um antigo duelo no tribunal. Um popular escritor de livros policiais escrevinhava num caderno desgastado. Vicary abanou a cabeça. O MI5 tinha recrutado um conjunto formidável de talentos.
Subiu as escadas cuidadosamente, com a tigela de sopa a balançar precariamente em cima do dossiê. O que mais lhe faltava era sujar o dossiê. Jago tinha escrito inúmeros memorandos enfurecidos, implorando aos agentes que tivessem mais cuidado com os dossiês.
- E qual é o nome?
- Kurt Vogel.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos.
Vicary tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali que não batia certo. Mas era melhor não forçar as coisas. Era preferível não pensar nisso e deixar o subconsciente juntar as peças.
Pousou o dossiê e a tigela de sopa na secretária e ligou a luz. Leu o dossiê de uma ponta a outra enquanto ia comendo a sopa em pequenos tragos. Sabia a bota de couro cozida. O sal era dos poucos condimentos que os cozinheiros possuíam em abundância e tinham-no usado generosamente. Quando acabou de ler o dossiê pela segunda vez, estava com uma sede digna do deserto e tinha os dedos a começarem a inchar.
Vicary ergueu os olhos e disse:
- Harry, acho que temos aqui um problema.
Harry Dalton, que se deixara adormecer à secretária, na área comum à porta do gabinete de Vicary, levantou-se e entrou. Formavam uma parceria insólita, conhecida humoristicamente no departamento como Músculos & Cérebro, Lda. Harry era alto e atlético, elegante, de cabelo negro densamente coberto de brilhantina, olhos azuis vivos
e um sorriso sempre pronto. Antes da guerra, era o inspetor Harry Dalton, do principal departamento de homicídios da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha nascido e crescido em Battersea e ostentava ainda na voz suave e agradável traços da pronúncia da classe operária do sul de Londres.
- Ele é inteligente, isso é certo - disse Vicary. - Olhe para isto: doutoramento em Direito na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Heller e de Rosenberg.
Não me parece o nazi típico. Os nazis perverteram as leis da Alemanha. Uma pessoa com uma educação destas não poderia estar muito entusiasmado com eles. E depois,
em 1935, decide abandonar de repente o direito e passar a trabalhar para o Canaris, como advogado dele, uma espécie de conselheiro interno da Abwehr? Não acredito
nisso. Acho que ele é um espião e esta história de ser o conselheiro legal de Canaris é só mais uma camada do disfarce.
Vicary estava a folhear o ficheiro outra vez.
- Tem alguma teoria? - perguntou Harry.
- Três teorias, na verdade.
- Então, vamos ouvi-las.
- Teoria número um, Canaris perdeu a confiança nas redes britânicas e encarregou Vogel de levar a cabo uma investigação. Um homem com a experiência e formação de Vogel é o oficial perfeito para examinar minuciosamente os dossiês e todos os relatórios de agentes em busca de inconsistências. Temos sido extremamente cuidadosos, Harry, mas manter a Operação Double Cross é uma tarefa muito complexa. Aposto que lá pelo meio já cometemos um erro ou outro. E se a pessoa certa andasse à procura deles - um homem inteligente como Kurt Vogel, por exemplo -, talvez fosse capaz de os descobrir.
- Teoria número dois?
- Teoria número dois, Canaris encarregou Vogel da criação de uma nova rede. Nesta altura do campeonato, já é um pouco tarde para isso. Era preciso descobrir, recrutar e treinar agentes, além de os infiltrar no país. Isso, por norma, leva meses a ser feito em condições. Duvido que seja isso que andam a fazer, mas não podemos descartar essa ideia.
- Teoria número três?
- A teoria número três é que Kurt Vogel é responsável por uma rede de que ainda não temos conhecimento.
- Uma rede completa de agentes que ainda não desmascarámos? E isso é possível?
- Temos de presumir que sim.
- Então todos os nossos agentes duplos estariam em risco.
- É um castelo de cartas, Harry. Basta só um bom agente para se desmoronar tudo.
Vicary acendeu um cigarro. O tabaco tirou-lhe da boca o sabor do caldo.
- Canaris deve estar debaixo de enorme pressão para apresentar resultados. com certeza que iria querer que fosse o melhor homem dele a dirigir a operação.
- Então isso quer dizer que é como se Kurt Vogel fosse uma panela de pressão.
- Certo.
- E isso pode torná-lo perigoso.
- Mas também pode torná-lo descuidado. Tem de arriscar. Tem de usar o rádio ou enviar um agente para Inglaterra. E, quando o fizer, vamos estar em cima dele.
Ficaram sentados em silêncio durante um momento. Vicary estava a fumar e Harry ia folheando o dossiê de Vogel. Foi então que Vicary lhe contou o que tinha acontecido na divisão dos Registos.
- Estão sempre a desaparecer imensos dossiês, Alfred.
- Sim, mas porquê este dossiê? E, mais importante, porquê agora?
- Boas perguntas, mas desconfio que as respostas sejam muito simples. Quando estamos no meio de uma investigação, o melhor é mantermo-nos concentrados e não nos
desviarmos do assunto.
- Eu sei, Harry - respondeu Vicary, franzindo o sobrolho. Mas isto está a pôr-me louco.
Harry disse:
- Eu conheço uma ou duas rainhas da divisão dos Registos. Vicary olhou para ele.
- Tenho a certeza que sim.
- vou meter o nariz por lá e fazer umas perguntas.
- Faça isso discretamente.
- Não há outra forma de o fazer, Alfred.
- Jago está a mentir, está a esconder qualquer coisa.
- E porque havia ele de mentir?
- Não sei - respondeu Vicary, esmagando o cigarro -, mas sou pago para ter pensamentos desagradáveis.

DEZ
BLETCHLEY PARK, INGLATERRA
Oficialmente, chamava-se Escola Governamental de Códigos e Criptografia. No entanto, não era escola nenhuma. Podia parecer ser uma escola qualquer - uma grande e
feia mansão vitoriana, rodeada por uma cerca alta -, mas a maior parte das pessoas daquela terra de ruas estreitas que crescera ao longo da linha de caminho de ferro
percebia que algo mais importante se passava ali. Os grandes relvados estavam cheios de dezenas de cabanas temporárias. O espaço remanescente inha sido pisado, transformando-se
em carreiros de lama congelada. Os jardins estavam em mau estado e por aparar, assemelhando-se a pequenas selvas. O staff era uma mistura excêntrica, os matemáticos
mais brilhantes do país, campeões de xadrez, magos das palavras cruzadas, todos reunidos para o mesmo objetivo: decifrar os códigos alemães.
Mesmo no mundo notoriamente extravagante de Bletchley Park, Denholm Saunders era considerado um excêntrico. Antes da guerra, era um matemático de topo em Cambridge.
Naquele momento, estava entre os melhores criptólogos do mundo. Vivia numa aldeola nos arredores de Bletchley com a mãe e os gatos siameses, Platão e S. Tomás de Aquino.
Era o final da tarde. Saunders estava na mansão, sentado à secretária, ocupado com duas mensagens enviadas pela Abwehr, de Hamburgo, para agentes alemães no Reino Unido. As mensagens tinham sido intercetadas pelo Radio Security Service, assinaladas como suspeitas e encaminhadas para Bletchley Park para descodificação.
Saunders estava a assobiar fora de tom enquanto raspava com o lápis no bloco de notas, um hábito que irritava solenemente os colegas. Trabalhava na secção de descodificação manual de mensagens cifradas. Era uma área de trabalho exígua e estava a abarrotar, mas era relativamente quente. Era melhor estar ali do que lá fora, numa das cabanas onde os criptólogos se esforçavam arduamente por descodificar as mensagens cifradas do exército e da marinha alemães, como esquimós num iglu.
Ao fim de duas horas, Saunders parou de raspar e de assobiar. A única coisa que se ouvia era o som da neve a derreter, gorgolejando nas goteiras da velha casa. O trabalho dessa tarde tinha sido pouco estimulante: as mensagens tinham sido transmitidas numa variante de um código que o próprio Saunders tinha decifrado em 1940.
- Meu Deus, eles estão a tornar-se um pouco aborrecidos, não estão? - comentou Saunders para ninguém em particular.
O seu superior era um escocês chamado Richardson. Saunders bateu à porta, entrou e pousou as duas mensagens descodificadas em cima da secretária. Richardson leu-as
e franziu o sobrolho. Ainda na véspera, um agente do MI5 chamado Alfred Vicary os tinha posto de sobreaviso para esse tipo de coisas.
Richardson mandou chamar um estafeta motorizado.
- Só há um problema - disse Saunders.
- Qual é?
- Na primeira mensagem, o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Na realidade, até pediu a quem estava a digitar a mensagem que a enviasse uma
segunda vez. Eles irritam-se com esse tipo de coisas. Pode não ser nada. Pode ter havido uma interferência qualquer. Mas talvez seja boa ideia contar isto à rapaziada do MI5.
Richardson pensou: Boa ideia, de facto.
Assim que Saunders saiu, Richardson datilografou uma breve nota descrevendo como o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Cinco minutos mais
tarde, as mensagens descodificadas e a nota de Richardson já estavam numa pasta de couro, prontas para a viagem de sessenta e sete quilómetros até Londres.


CONTINUA

"Em tempo de guerra", escreveu Winston Churchill, "a verdade é tão preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras." No caso das operações de contraespionagem britânicas, isto implicava encontrar um agente o mais improvável possível: um professor de História chamado Alfred Vicary, escolhido pessoalmente por Churchill para expor um traidor extremamente perigoso, mas desconhecido. Contudo, os nazis também escolheram um agente improvável: Catherine Blake, a bela viúva de um herói de guerra, voluntária num hospital e espia naxi sob as ordens diretas de Hitler, incumbida de desvendar os planos dos Aliados para o Dia D...

 

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PRIMEIRA PARTE

UM
SUFFOLK, INGLATERRA: NOVEMBRO DE 1938
Beatrice Pymm morreu porque perdeu o último autocarro para Ipswich.
Vinte minutos antes de morrer, encontrava-se na sombria paragem de autocarros e consultava o horário à luz mortiça do único candeeiro de rua da povoação. Daí a poucos
meses, o candeeiro seria desligado, de acordo com o regulamento do blackout. Beatrice Pymm nunca viria a saber do blackout.
Por agora, o candeeiro brilhava apenas o suficiente para que Beatrice conseguisse ler o horário mergulhado nas sombras. Para o ver melhor, pôs-se em bicos de pés
e seguiu os números com a ponta do indicador, manchado de tinta. A sua mãe, já falecida, queixava-se sempre da tinta com amargura. Considerava impróprio de uma senhora
ter as mãos sempre manchadas. Tinha desejado que Beatrice se tivesse dedicado a um passatempo mais asseado - música, voluntariado, até mesmo a escrita, embora a
mãe de Beatrice não tivesse os escritores em grande conta.
- Raios! - resmungou Beatrice, com a ponta do dedo ainda colada ao horário.
Normalmente, era extremamente pontual. Numa vida sem responsabilidades financeiras, sem amigos, sem família, tinha delineado um plano pessoal rigoroso. Naquele dia, tinha-se desviado dele pintara demasiado tempo e regressara demasiado tarde.
Retirou a mão do horário e levou-a ao rosto, fazendo um esgar de preocupação. A cara do teu pai, dizia a mãe com uma ponta
desespero - uma testa larga e plana, um grande nariz nobre, um queixo recuado. com apenas trinta anos, tinha o cabelo prematuramente raiado de grisalho.
Perguntou-se o que fazer. A sua casa em Ipswich ficava a pelo menos oito quilómetros, demasiado para ir a pé. Ao início da noite, haveria ainda a luz do trânsito na estrada. Talvez alguém lhe desse boleia.
Deixou escapar um longo suspiro de frustração. A sua respiração gelou, pairou diante do seu rosto e depois afastou-se ao sabor do vento frio vindo do pântano. As nuvens dispersaram-se e uma Lua luminosa brilhou através delas. Beattice olhou para cima e viu um halo de gelo em redor dela. Arrepiou-se, sentindo o frio pela primeira vez.
Pegou nas suas coisas: uma mochila de couro, uma tela, um cavalete gasto. Tinha passado o dia a pintar ao longo do estuário do Orwell. A pintura era o seu único
amor e a paisagem da East Anglia o seu único tema. Isso levava-a de facto a uma certa repetição no trabalho. A mãe gostava de ver pessoas nos quadros - cenas de
rua, cafés cheios. Uma vez, até sugeriu a Beatrice que passasse algum tempo em França, de modo a prosseguir a carreira. Beatrice recusou. Adorava os pântanos e os
diques, os estuários e as lagoas, os terrenos pantanosos a norte de Cambridge, as pastagens ondulantes de Suffolk.
com relutância, começou a dirigir-se para casa, caminhando a bom ritmo ao longo da beira da estrada, apesar do peso que transportava. Vestia uma camisa de homem
de algodão, manchada de tinta tal como os seus dedos, uma pesada camisola de lã grossa que a fazia sentir-se como um urso de peluche, um casacão demasiado comprido
nas mangas e calças enfiadas dentro das botas de borracha. Afastou-se do alcance da esfera amarela do candeeiro; a escuridão engoliu-a. Não sentiu qualquer apreensão
por caminhar na escuridão do campo. A mãe, assustada com as suas longas caminhadas solitárias, avisava-a constantemente para ter cuidado com os violadores. Beatrice
descartava sempre a ameaça, considerando-a improvável.
Arrepiou-se com o frio. Pensou na sua casa, um grande chalé nos arredores de Ipswich, que lhe fora deixado pela mãe. Por trás da casa,
no extremo da alameda do jardim, tinha construído um estúdio banhado de luz, onde passava a maior parte do tempo. Para ela, não era invulgar passar dias sem falar
com outro ser humano.
Tudo isto, e ainda mais, era do conhecimento do seu assassino.
Após cinco minutos de caminhada, ouviu o barulho de um motor atrás de si. Um veículo comercial, pensou. Antigo, a julgar pelo ruído irregular do motor. Beatrice
observou o brilho dos faróis espalhar-se como o nascer do Sol através da erva, de ambos os lados da estrada. Ouviu o motor perder potência e o carro começar a avançar
em ponto morto. Sentiu uma rajada de vento quando o veículo a ultrapassou. Sufocou com o fedor do escape.
De seguida, viu-o encostar à berma da estrada e parar.
A mão, visível sob o intenso luar, impressionou Beatrice pela sua estranheza. Saiu pela janela do condutor segundos depois de a carrinha ter parado e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Uma grossa luva de pele, reparou Beatrice, do género das utilizadas pelos trabalhadores que transportam coisas pesadas. Um fato-macaco azul-escuro, talvez.
A mão acenou-lhe uma vez mais. Lá estava outra vez - havia qualquer coisa no modo como se movia que não batia certo. Ela era artista e os artistas conhecem o movimento e o fluir. E havia mais qualquer coisa. Quando a mão se movia, expunha a pele entre a ponta da manga e a base da luva. Mesmo sob a luz fraca, Beatrice conseguia ver que a pele era clara e sem pelos - não parecia o pulso de nenhum trabalhador que já tivesse visto, invulgarmente delgado.
Contudo, não se sentiu alarmada. Acelerou o ritmo e alcançou a porta do passageiro com alguns passos. Abriu-a e colocou as coisas no espaço em frente ao banco. De seguida, ergueu os olhos pela primeira vez para o interior da carrinha e apercebeu-se de que o condutor tinha desaparecido.
Nos últimos segundos conscientes da sua vida, Beatrice Pymm interrogou-se por que razão utilizaria alguém uma carrinha para
transportar uma moto. Ali estava ela, deitada de lado na parte de trás, com dois recipientes de gasolina junto dela.
Ainda de pé junto da carrinha, fechou a porta e chamou. Não houve resposta.
Segundos mais tarde, ouviu o som de uma bota de couro no cascalho.
Ouviu de novo o som, mais perto.
Virou a cabeça e viu o condutor ali parado. Olhou para a cara dele e viu apenas uma máscara de lã preta. Dois poços de um azul-pálido fixavam-na friamente por detrás dos buracos para os olhos. Lábios de aspeto feminino, ligeiramente entreabertos, brilhavam por detrás da abertura para a boca.
Beatrice abriu a boca para gritar. Só conseguiu soltar um breve suspiro antes de o condutor lhe enfiar a mão enluvada na boca. Os dedos penetraram-lhe na carne macia da garganta. A luva sabia horrivelmente a poeira, gasolina e óleo de motor. Beatrice começou a vomitar os restos do almoço do seu piquenique - frango assado, queijo Stilton e vinho tinto.
Depois sentiu a outra mão a tatear-lhe o seio esquerdo. Por um instante, Beatrice pensou que os receios da mãe em relação a violações tinham sido finalmente comprovados. Mas a mão que lhe tocava no peito não era a mão de um molestador ou de um violador. A mão era hábil, como a de um médico, e curiosamente delicada. Moveu-se do peito para as costelas, pressionando com força. Beatrice estremeceu, arquejou e mordeu com força. O condutor pareceu não sentir nada através da luva grossa.
A mão alcançou o fundo das costelas e sondou a carne macia ao cimo do abdómen. Não foi mais além. Um dedo continuou a apertar essa zona. Beatrice ouviu um estalido
agudo.
Um instante de dor insuportável, uma explosão de luz branca e brilhante.
A seguir, uma escuridão benévola.
O assassino tinha treinado vezes sem conta para aquela noite, mas era a primeira vez. O assassino retirou a mão enluvada da boca
da vítima, virou-se e vomitou violentamente. Não havia tempo para sentimentalismos. O assassino era um soldado - major dos serviços secretos - e Beatrice Pymm em
breve seria a inimiga. A sua morte, embora lamentável, era necessária.
O assassino limpou o vómito dos bordos da máscara e meteu mãos à obra. O assassino agarrou na faca de ponta e mola e puxou-a. A ferida reteve-a com força, mas o
assassino puxou com mais força e a lâmina deslizou para fora.
Um assassínio excelente, limpo, com muito pouco sangue.
Vogelficaria orgulhoso.
O assassino limpou o sangue da navalha, voltando a fechar a lâmina, e guardou-a no bolso do fato-macaco. Depois, o assassino agarrou o corpo por baixo dos braços,
arrastou-o para a parte de trás da carrinha e deixou-o cair na berma de alcatrão esboroada.
O assassino abriu as portas traseiras. O corpo entrou em convulsões.
Foi uma luta levantar o corpo e colocá-lo na parte de trás da carrinha, mas um momento depois estava feito. O motor hesitou, depois pegou. A seguir, a carrinha estava de novo a caminho, com os faróis a brilharem através da povoação às escuras, virando para a estrada deserta.
O assassino, tranquilo apesar da presença do corpo, cantou calmamente uma canção da infância para ajudar a passar o tempo. Era uma viagem longa, quatro horas pelo menos. Durante os preparativos, o assassino tinha percorrido a estrada de moto, a mesma que agora se encontrava ao lado de Beatrice Pymm. A viagem levaria muito mais tempo na carrinha. O motor tinha pouca potência, os travões eram maus e fugia bastante para a direita.
O assassino prometeu a si mesmo roubar uma melhor na vez seguinte.
As facadas no coração, por regra, não matam instantaneamente. Mesmo que a arma penetre numa cavidade, o coração continua a bater durante algum tempo até a vítima se esvair em sangue.
Enquanto a carrinha avançava ruidosamente pela estrada, a cavidade torácica de Beatrice Pymm encheu-se rapidamente de sangue.
A sua mente ficou num estado próximo do coma. Teve a sensação de estar prestes a morrer.
Recordou-se dos avisos que a mãe lhe fazia por andar sozinha à noite. Sentiu a viscosidade húmida do seu próprio sangue a escoar-se do corpo para a blusa. Interrogou-se se o seu quadro teria sido danificado.
Depois ouviu o canto. Um belo canto. Levou algum tempo, mas percebeu por fim que o condutor não estava a cantar em inglês. A canção era alemã e a voz a de uma mulher.
Foi então que Beatrice Pymm morreu.
Primeira paragem, dez minutos depois, na margem do rio Orwell, o mesmo lugar onde Beatrice Pymm tinha estado a pintar naquele dia. A assassina deixou o motor da carrinha ligado e saiu. Dirigiu-se ao lugar do passageiro, abriu a porta e tirou o cavalete, a tela e a mochila.
O cavalete foi montado muito próximo da água, que corria lentamente, e a tela colocada nele. A assassina abriu a mochila, retirou de lá as tintas e a palete e pousou-as no solo molhado. Lançou um olhar ao quadro inacabado e achou que era bastante bom. Fora uma pena que não tivesse podido matar alguém com menos talento.
De seguida, retirou a garrafa meio cheia de vinho tinto, derramou o que restava no rio e atirou-a para junto das pernas do cavalete. Pobre Beatrice. Demasiado vinho, um passo descuidado, um mergulho na água gelada, uma lenta viagem até ao mar alto.
Causa da morte: presumivelmente afogada, presumivelmente acidental.
Caso encerrado.
Seis horas mais tarde, a carrinha atravessou a aldeia de Whitchurch, nas West Midlands, e virou para um caminho de terra batida que contornava um campo de cevada. A vala tinha sido cavada na noite anterior - suficientemente profunda para esconder um cadáver, mas não tão profunda que ele não pudesse vir a ser descoberto.
Ela arrastou o corpo de Beatrice Pymm para fora da carrinha e despiu-lhe a roupa ensanguentada. Agarrou o cadáver nu pelos pés e arrastou-o até junto da vala. A seguir, a assassina voltou à carrinha e tirou de lá três artigos - um malho em ferro, um tijolo vermelho e uma pequena pá.
Esta era a parte que ela mais temia; por algum motivo, pior do que o assassínio em si. Largou os três artigos junto ao cadáver e acalmou-se. Lutando contra outra onda de náusea, segurou o malho na mão enluvada, ergueu-o e esmagou o nariz de Beatrice Pymm.
Quando terminou, mal conseguia olhar para o que restava do rosto de Beatrice Pymm. Utilizando primeiro o malho e depois o tijolo, tinha-o esmagado numa massa de sangue, tecido, ossos quebrados e dentes esmigalhados.
Conseguira o efeito pretendido - as feições tinham sido apagadas, o rosto tornara-se irreconhecível.
Fizera tudo o que lhe tinham mandado fazer. Era para ser diferente. Tinha sido treinada num campo especial durante muitos meses, muito mais tempo do que os outros agentes. Iria ser infiltrada mais fundo. Fora por isso que tivera de matar Beatrice Pymm. Não iria desperdiçar o seu tempo a fazer o que outros, agentes menos dotados, poderiam fazer - contar tropas, monitorizar caminhos de ferro, avaliar danos causados por bombas. Isso era fácil. Seria reservada para maiores e melhores coisas. Seria como uma bomba-relógio em contagem decrescente no interior de Inglaterra, à espera de ser ativada, à espera de explodir.
Encostou a bota às costelas e empurrou. O cadáver caiu na vala. Cobriu o corpo com terra. Recolheu as roupas manchadas de sangue e atirou-as para as traseiras da carrinha. Do banco da frente, retirou uma pequena bolsa contendo um passaporte holandês e uma carteira. A carteira tinha documentos de identificação, uma carta de condução de Amesterdão e fotografias de uma família holandesa, gorda e sorridente.
Tudo isto tinha sido forjado pela Abwehr em Berlim.
Atirou a bolsa para as árvores na orla do campo de cevada, a alguns metros da vala. Se tudo corresse conforme planeado, o corpo, já em avançado estado de decomposição e mutilado, seria encontrado daí a alguns meses, juntamente com a bolsa. A polícia iria julgar que a mulher morta era Christa Kunst, uma turista holandesa que entrara no país em outubro de 1938 e cujas férias tinham terminado de modo lamentável e violento.
Antes de partir, deu uma última olhadela à vala. Sentiu uma ponta de tristeza por Beatrice Pymm. Na morte, tinham-lhe sido roubados
o rosto e o nome.
Outra coisa: a assassina tinha agora perdido a sua própria identidade. Durante seis meses, tinha vivido na Holanda, visto que o holandês era uma das suas línguas. Tinha construído cuidadosamente um passado, votado numa eleição local em Amesterdão, permitindo-se mesmo arranjar um jovem amante, um rapaz de dezanove anos com um imenso apetite e disposição para aprender coisas novas. Agora, Christa Kunst jazia numa vala rasa, na orla de um campo de cevada inglês.
A assassina assumiria uma nova identidade pela manhã.
Mas naquela noite não era ninguém.
Voltou a encher o depósito da carrinha e conduziu durante vinte minutos. A povoação de Alderton, assim como Beatrice Pymm, tinha sido cuidadosamente escolhida -
um local onde uma carrinha a arder na berma da estrada, a meio da noite, não seria imediatamente notada.
Tirou a mota da carrinha, apoiando-a numa pesada prancha de madeira, uma tarefa difícil até para um homem forte. Debateu-se com a mota e desistiu quando esta se
encontrava a um metro da estrada. A mota caiu no chão com grande estrondo, o único erro que cometeu durante toda a noite.
Pegou na mota e fê-la deslizar, em ponto morto, até ficar a cerca de cinquenta metros da carrinha. Depois regressou à carrinha. Um dos recipientes ainda continha
alguma gasolina. Espalhou-a no interior da carrinha, despejando a maioria do combustível na roupa de Beatrice Pymm, manchada de sangue.

Quando a carrinha se transformou numa bola de fogo, já ela tinha ligado a mota. Observou a carrinha a arder durante alguns segundos, com a luz alaranjada a dançar
no campo árido e a linha das árvores um pouco mais longe.
A seguir, virou a mota para sul e dirigiu-se para Londres.
DOIS
OYSTER BAY, NOVA IORQUE: AGOSTO DE 1939
Dorothy Lauterbach considerava a sua imponente mansão de pedra a mais bela da North Shore. A maioria dos seus amigos concordava, porque ela era mais rica e eles
queriam convites para as duas festas que os Lauterbach davam todos os verões - um encontro turbulento e ébrio, em junho, e uma ocasião mais meditativa, no final
de agosto, quando a temporada de verão findava num desenlace melancólico.
As traseiras da casa tinham vista para o estuário do Sound. Havia uma agradável praia de areia branca trazida de camião do Massachusetts. Da praia, partia um relvado
bem fertilizado que corria em direção às traseiras da casa, interrompido aqui e ali para orlar os requintados jardins, o campo de ténis em terra vermelha, a piscina
em azul-real.
Os empregados tinham-se levantado cedo para prepararem o bem merecido dia de inatividade da família, montando o equipamento do croquet e a rede de badminton em que
ninguém tocaria, retirando a lona protetora do barco a motor com casco de madeira, que nunca seria desamarrado da doca. Um dia, um empregado apontara corajosamente
à senhora Lauterbach a insensatez desse ritual quotidiano. A senhora Lauterbach tinha-lhe dado uma áspera reprimenda e esse hábito nunca mais fora questionado. Os
brinquedos eram colocados nos seus lugares em cada manhã, ficando abandonados com a mesma tristeza das decorações de Natal em maio, até serem cerimoniosamente retirados
ao pôr do Sol e passarem a noite outra vez guardados.
O piso térreo da casa estendia-se ao longo da água desde o jardim de inverno até à sala de estar, à sala de jantar e, finalmente, à sala Florida embora nenhum dos
outros Lauterbach compreendesse por que razão Dorothy insistia em chamá-la sala Florida quando o sol de verão na North Shore também podia ser tão quente.
A casa tinha sido comprada trinta anos antes, quando os jovens Lauterbach supunham que iriam produzir um pequeno exército como prole. Em vez disso, tiveram apenas
duas filhas que não gostavam muito da companhia uma da outra - Margaret, uma frequentadora dojef-sef bela e muito popular, e Jane. Por isso, a casa tornou-se um
lugar pacífico, de sol quente e cores suaves, onde a maioria do ruído era produzida pelo roçagar de cortinas brancas ao sabor de ligeiras brisas e a incansável busca
da perfeição em todas as coisas de Dorothy Lauterbach.
Naquela manhã - a manhã após a última festa dos Lauterbach -, as cortinas pendiam imóveis nas janelas abertas, à espera de uma brisa que nunca viria. O sol resplandecia
e uma neblina difusa pairava sobre a baía. O ar estava tenso e compacto.
No andar de cima, no seu quarto, Margaret Lauterbach-Jordan tirou a camisa de dormir e sentou-se em frente do toucador. Penteou
o cabelo rapidamente. Era de um louro quase cinza, aclarado pelo sol e curto, fora de moda. Mas era confortável e fácil de cuidar. Além disso, gostava do modo como lhe enquadrava o rosto e realçava a longa e graciosa linha do pescoço.
Olhou para o seu corpo no espelho. Tinha finalmente perdido os últimos e renitentes quilos que tinha ganho quando ficara grávida do seu primeiro filho. As estrias tinham desaparecido e o ventre ostentava um bronzeado intenso. A barriga à mostra estava na moda naquele verão e ela gostava do modo como toda a gente na North Shore tinha ficado surpreendida com a sua forma física. Apenas os seios estavam diferentes - estavam maiores, o que não a apoquentava, porque Margaret sempre se sentira pouco à vontade em relação ao tamanho deles. Os novos sutiãs daquele verão eram mais pequenos e mais rígidos, concebidos para elevar os seios. Margaret gostava deles porque Peter gostava do aspeto que lhe davam.
Vestiu um par de calças de algodão, uma blusa sem mangas, atada com um nó abaixo dos seios, e umas sandálias rasas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho
uma última vez. Era linda - sabia disso -, mas não de um modo ousado, que fizesse virar cabeças nas ruas de Manhattan. A beleza de Margaret era intemporal e subtil, perfeita para a camada social em que tinha nascido.
Pensou: E não tarda nada vais ficar outra vez uma vaca gorda!
Afastou-se do espelho e abriu as cortinas. A luz erma do sol derramou-se pelo quarto. O relvado estava um caos. A tenda era desmontada, os fornecedores embalavam as mesas e as cadeiras, a pista de dança era levantada peça por peça e retirada. A relva, anteriormente verde e exuberante, tinha ficado toda pisada. Abriu as janelas
e aspirou o aroma adocicado a champanhe derramado. Algo nisso a deixou deprimida. Hitlerpode estar a preparar-se para conquistar a Polónia, mas foi reservado um
momento esplendoroso a todos os que assistiram este sábado à noite à gala anual de agosto dada por Bratton e Dorothy Lauterbach. Margaret já quase podia escrever
ela própria as colunas sociais.
Ligou o rádio na mesinha de cabeceira e sintonizou a WNYC. "Til Never Smile Again" tocava com suavidade. Peter agitou-se, ainda a dormir. À luz brilhante do sol,
mal se conseguia distinguir a sua pele de porcelana dos lençóis brancos de cetim. Outrora, ela pensava que os engenheiros eram homens com o cabelo cortado rente,
óculos pretos com lentes grossas e um monte de lápis nos bolsos das camisas. Peter não era assim - maçãs do rosto pronunciadas, uma fina linha do maxilar, suaves
olhos verdes, cabelo quase preto. Nesse momento, deitado na cama, com a parte superior do corpo exposta, tinha o aspeto, pensava Margaret, de um Miguel Angelo tombado.
Destacava-se na North Shore, destacava-se dos rapazes de cabelos claros que tinham nascido no meio de fortunas extraordinárias e planeavam viver a vida em espreguiçadeiras.
Peter era perspicaz, ambicioso e vivo. Mostrava-se muito superior a todos os outros. Margaret gostava disso.
Lançou um olhar ao céu nublado e franziu a testa. Peter detestava dias assim em agosto. Ficaria irritável e rabugento durante todo o dia. Haveria provavelmente uma
tempestade para arruinar a viagem de regresso à cidade.
Pensou: Talvez eu devesse esperar para lhe contar as novidades.
- Levanta-te, Peter, ou vamos ouvir das boas - disse Margaret, empurrando-o com o dedo grande do pé.
- Só mais cinco minutos.
- Não temos cinco minutos, querido. Peter não se mexeu.
- Café - suplicou.
As empregadas tinham deixado café à porta do quarto. Era um hábito que Dorothy Lauterbach detestava; achava que isso fazia o corredor do andar de cima parecer o
Plaza Hotel. Mas permitia-o, se isso significasse que as crianças cumpririam a única regra dos fins de semana - que desceriam para tomar o pequeno-almoço às nove horas em ponto.
Margaret encheu uma chávena de café e entregou-a a Peter. Este deslizou sobre o cotovelo e bebeu um pouco. De seguida, sentou-se na cama e observou Margaret.
- Como é que consegues ficar tão linda dois minutos depois de saíres da cama?
Margaret sentiu-se aliviada.
- Não há dúvida de que estás de bom humor. Temi que estivesses de ressaca e fosses andar perfeitamente insuportável o dia inteiro.
- E estou mesmo de ressaca. Benny Goodman está a tocar na minha cabeça e a minha língua parece que precisa de ser barbeada. Mas não tenho nenhuma intenção de me comportar de maneira...
Fez uma pausa.
- Qual foi a palavra que utilizaste?
- Insuportável.
Ela sentou-se na borda da cama.
- Há uma coisa de que temos de falar e esta parece ser uma altura tão boa como qualquer outra.
- Hum. Parece-me sério, Margaret.
- Depende - respondeu ela, olhando-o com o seu ar brincalhão e depois fingindo-se irritada. - Mas levanta-te e veste-te. Ou não és capaz de te vestir e ouvir ao mesmo tempo?
- Sou um engenheiro altamente preparado e altamente conceituado - retorquiu Peter, obrigando-se a sair da cama, gemendo com o esforço. - Talvez consiga.
- É sobre o telefonema de ontem à tarde.
- Aquele de que não quiseste falar?
- Sim, esse. Era o doutor Shipman. Peter parou de se vestir.
- Estou grávida outra vez. Vamos ter outro filho. - Margaret baixou os olhos e pôs-se a mexer no nó da blusa. - Não planeei nada disto. Limitou-se a acontecer. O meu corpo finalmente recuperou de ter tido o Billy e, bem, a natureza tomou o seu caminho - explicou ela, voltando a olhar para ele. - Suspeitava há algum tempo, mas tinha medo de to dizer.
- E por que raio é que haverias de ter medo de mo dizer?
Mas Peter sabia a resposta à sua própria pergunta. Tinha dito a Margaret que não queria ter mais filhos até ter realizado o sonho da sua vida: abrir a sua própria empresa de engenharia. com apenas trinta e três anos, tinha granjeado a reputação de ser um dos melhores engenheiros do país. Depois de se formar em primeiro lugar no seu ano, no prestigiado Rensselaer Polytechnic Institute, foi trabalhar para a Northeast Bridge Company, a maior empresa de construção da Costa Leste. Cinco anos mais tarde, foi nomeado engenheiro-chefe, tornou-se sócio e foi-lhe atribuída uma equipa de cem pessoas. A American Society of Civil Engineering nomeou-o engenheiro do ano, em
1938, pelo seu trabalho inovador numa ponte sobre o rio Hudson, no norte do estado de Nova Iorque. A Sdentific American publicou um perfil de Peter descrevendo-o como a mente da engenharia mais promissora da sua geração. Mas ele queria mais - queria a sua própria empresa. Bratton Lauterbach tinha prometido financiar a empresa de Peter quando chegasse a altura ideal, possivelmente no ano seguinte. Mas a ameaça de guerra tinha posto um travão a tudo isso. Se os Estados Unidos fossem arrastados para a guerra, deixaria de haver dinheiro, da noite para o dia, para obras públicas de grande envergadura. A nova empresa de Peter afundar-se-ia antes de ter uma hipótese de levantar voo.
- De quanto tempo estás? - perguntou ele.
- Quase dois meses.
O rosto de Peter abriu-se num sorriso.
- Não estás aborrecido comigo? - perguntou Margaret.
- Claro que não!
- E a tua empresa e tudo aquilo que disseste sobre termos de esperar para ter mais filhos?
Beijou-a.
- Isso não importa. Nada disso importa.
- A ambição é uma coisa maravilhosa, mas não demasiada ambição. Às vezes, tens de relaxar e divertir-te, Peter. A vida não é um ensaio geral.
Peter pôs-se de pé e acabou de se vestir.
- E quando é que tencionas dizer à tua mãe?
- No momento certo. Lembras-te da reação dela quando eu fiquei grávida do Billy. Pôs-me maluca. Tenho muito tempo para lhe dizer.
Peter sentou-se junto dela, na cama.
- Vamos fazer amor antes do pequeno-almoço.
- Não podemos, Peter. A mãe vai matar-nos se não descermos. Ele beijou-lhe o pescoço.
- O que foi que disseste sobre a vida não ser um ensaio geral? Ela fechou os olhos e a sua cabeça deslizou para trás.
- Isso não é justo. Estás a deturpar as minhas palavras.
- Não, não estou, estou a beijar-te.
- Sim...
- Margaret!
A voz de Dorothy Lauterbach ecoou pelas escadas acima.
- Estamos a ir, mãe.
- Quem me dera - murmurou Peter, seguindo-a depois para o andar de baixo a fim de tomar o pequeno-almoço.
Walker Hardegen juntou-se-lhes para o almoço junto à piscina. Sentaram-se debaixo do guarda-sol: Bratton e Dorothy, Margaret e Peter, Jane e Hardegen. Uma brisa
húmida e inconstante soprava do Sound. Hardegen era o braço direito de Bratton Lauterbach no banco. Era alto e largo de peito e ombros, e a maioria das mulheres
achava que ele se parecia com Tyrone Power. Era um homem de Harvard e durante o seu último ano tinha marcado um touchdown no jogo com Yale. Os seus tempos de futebol americano tinham-no deixado
com um joelho arruinado e ligeiramente coxo, o que de certo modo o tornava ainda mais atraente. Tinha o sotaque indolente de New England e sorria facilmente.
Pouco tempo depois de Hardegen ter chegado ao banco, convidou Margaret para sair e tiveram vários encontros. Hardegen queria que a relação continuasse, mas Margaret não quis. Terminou tudo discretamente, mas ainda via Walker com regularidade em festas e continuaram amigos. Seis meses mais tarde, conheceu Peter e apaixonou-se. Hardegen ficou fora de si. Uma noite no Copacabana, um pouco bêbado e com muitos ciúmes, acercou-se de Margaret e implorou-lhe que voltasse a andar com ele. Quando ela recusou, agarrou-a bruscamente pelo ombro e abanou-a. Pela expressão gelada no seu rosto, Margaret tornou claro que lhe destruiria a carreira se ele não acabasse com o seu comportamento infantil.
O incidente ficou entre eles. Nem mesmo Peter sabia. Hardegen rapidamente ascendeu nas fileiras do banco e tornou-se o executivo de elevada posição em quem Bratton depositava mais confiança. Margaret notava que existia uma tensão silenciosa entre Hardegen e Peter, uma competitividade natural. Ambos eram jovens, bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. A situação tinha piorado um pouco antes do verão, quando Peter descobriu que Hardegen se opunha ao empréstimo para a sua empresa de engenharia.
- Eu não sou grande adepto de Wagner, especialmente no clima atual - disse Hardegen, fazendo uma pausa para dar um gole no vinho branco gelado, enquanto toda a gente ria do seu comentário. Mas tem mesmo de ir ao Metropolitan ver o Herbert Janssen no Tannhàuser. É maravilhoso.
- Tenho ouvido falar muitíssimo bem dessa ópera - respondeu Dorothy.
Ela adorava falar de ópera, teatro, livros e filmes novos. Hardegen, que conseguia ver e ler tudo apesar de uma imensa carga de trabalho no banco, fazia-lhe a vontade. As artes eram um tema seguro, ao contrário de assuntos familiares e de mexericos, que Dorothy deplorava.
- Vimos a Ethel Merman no novo musical do Cole Porter disse Dorothy, enquanto o primeiro prato, uma salada fria de camarão, era servido. - Não me lembro agora do título.
- Dubany Was a Laãy - interveio Hardegen. - Adorei. Hardegen continuou a falar. Na véspera, tinha ido a Forest Hills
à tarde e visto Bobby Riggs ganhar o jogo que estava a disputar. Achava que Riggs seria garantidamente o vencedor do Open desse ano. Margaret observou a mãe, que observava Hardegen. Dorothy adorava Hardegen, tratando-o praticamente como um membro da família. Tinha tornado claro que preferia Hardegen a Peter. Hardegen era oriundo de uma família rica e conservadora do Maine, não tão rica quanto os Lauterbach, mas que andava lá perto, o que era reconfortante. Peter viera de uma família irlandesa da classe média baixa e crescera na zona ocidental de Manhattan. Podia ser um engenheiro brilhante, mas nunca seria um dos nossos. A disputa ameaçou destruir a relação de Margaret com a mãe. Foi terminada por Bratton, que não iria tolerar objeções ao marido que a filha tinha escolhido. Margaret tinha casado com Peter, numa cerimónia de conto de fadas na St. James' Episcopal Church, em junho de 1935. Hardegen foi um dos seiscentos convidados. Dançara com Margaret durante a receção e comportara-se como um cavalheiro. Até ficou para se despedir do casal antes da lua de mel de dois meses pela Europa. Foi como se o incidente no Copa nunca tivesse acontecido.
Os empregados trouxeram o almoço - um prato frio de salmão estufado - e a conversa mudou inevitavelmente para a guerra iminente na Europa.
Bratton perguntou:
- Há alguma maneira de conseguir parar Hitler neste momento ou a Polónia vai tornar-se a província mais a leste do Terceiro Reich?
Hardegen, advogado e um sagaz investidor, tinha tomado a responsabilidade de desembaraçar o banco dos seus investimentos arriscados na Alemanha e na Europa. Dentro do banco, era tratado carinhosamente por "o nosso nazi" devido ao nome, ao seu alemão perfeito e às viagens frequentes a Berlim. Mantinha igualmente uma rede de excelentes contactos em Washington e funcionava como o principal agente dos serviços de informação do banco.
- Falei com um amigo esta manhã. Ele faz parte da equipa do Henry Stimson, no Ministério da Guerra -- disse Hardegen. - Quando Roosevelt regressou a Washington depois do cruzeiro a bordo do
Tuscaloosa, Stimson encontrou-se com ele na Union Station e foram juntos para a Casa Branca. Quando Roosevelt o questionou acerca da situação na Europa, Stimson respondeu que os dias de paz podiam agora ser contados pelos dedos das mãos.
- Roosevelt regressou a Washington há uma semana - disse Margaret.
- É verdade. Faz as contas. E penso que Stimson estava a ser otimista. Acho que a guerra deve estar por horas.
- Mas então e a comunicação a que o Times se refere na edição de hoje? - perguntou Peter.
Hitler tinha enviado uma mensagem ao Reino Unido na noite anterior e o Times sugeria que isso poderia abrir caminho a uma solução negociada para a crise polaca.
- Ele está a protelar - respondeu Hardegen. - Os alemães têm dezasseis divisões ao longo da fronteira polaca à espera da ordem para avançar.
- Então de que é que Hitler está à espera? - estranhou Margaret.
- De uma desculpa.
- com certeza que os polacos não lhe vão dar uma desculpa para invadir.
- Não, claro que não. Mas isso não vai parar Hitler.
- O que é que está a sugerir, Walker? - indagou Bratton.
- Hitler vai inventar um motivo para atacar, uma provocação que lhe permita invadir sem uma declaração de guerra.
- E os britânicos e os franceses? - perguntou Peter. - Vão fazer jus aos seus compromissos e declarar guerra à Alemanha se a Polónia for atacada?
- Creio que sim.
- Não conseguiram deter Hitler na Renânia, na Áustria ou na Checoslováquia - afirmou Peter.
- Sim, mas com a Polónia é diferente. Agora, o Reino Unido e a França compreendem que é preciso tomar medidas em relação a Hitler.
- E quanto a nós? - interveio Margaret. - Podemos ficar de fora?
- Roosevelt continua a afirmar que se quer manter à margem
- respondeu Bratton -, mas não acredito nele. Se a Europa inteira
for arrastada para a guerra, duvido que sejamos capazes de ficar de fora por muito tempo.
- E o banco? - continuou Margaret.
- Estamos a cessar todos os nossos negócios com parceiros alemães - respondeu Hardegen. - Se houver uma guerra, haverá muitas outras oportunidades de investimento. Esta guerra pode ser exatamente do que nós precisamos para arrancar o país da Depressão de uma vez por todas.
- Ah, não há nada melhor do que retirar lucro da morte e da destruição - disse Jane.
Margaret olhou com severidade para a irmã mais nova e pensou: típico da Jane. Gostava de se apresentar como uma iconoclasta; uma intelectual sombria e taciturna, crítica da sua classe e de tudo o que ela representava. Ao mesmo tempo, frequentava festas sem parar e gastava o dinheiro do pai como se o poço estivesse a ponto de secar. com trinta anos, não tinha meios de subsistência e nenhumas perspetivas de casamento.
- Oh, Jane, andaste a ler Marx outra vez? - perguntou Margaret em tom de brincadeira.
- Margaret, por favor - disse Dorothy.
- Jane passou algum tempo em Inglaterra, há uns anos - continuou Margaret, como se não tivesse ouvido o apelo da mãe para que houvesse paz. - Tornou-se uma grande comunista nessa altura, não foi, Jane?
- Tenho direito a ter uma opinião, Margaret - disparou Jane. Hitler não manda nesta casa.
- Acho que também gostaria de me tornar comunista - disse Margaret. - O verão tem sido bastante aborrecido, com toda esta conversa acerca da guerra. Converter-me ao comunismo seria uma maneira agradável de mudar de rotina. Os Hutton vão dar um baile de máscaras no próximo fim de semana. Podíamos ir disfarçadas de Lenine e Estaline. Depois da festa, podemos ir para North Fork coletivizar todas as quintas. Vai ser muito divertido.
Bratton, Peter e Hardegen desataram a rir às gargalhadas.
- Obrigado, Margaret - disse Dorothy com severidade. - Entretiveste-nos a todos o suficiente para o resto do dia.
A conversa acerca da guerra tinha ido longe demais. Dorothy esticou a mão e tocou no braço de Hardegen.
- Walker, tenho tanta pena que não tenha podido vir à nossa festa ontem à noite. Foi maravilhosa. Deixe-me contar-lhe tudo.
O luxuoso apartamento na Quinta Avenida com vista para o Central Park tinha sido uma prenda de casamento de Bratton Lauterbach. Às sete da noite, Peter Jordan estava à janela. Uma tempestade tinha-se estendido por toda a cidade. No parque, brilhavam relâmpagos sobre as copas das árvores de um verde-profundo. O vento impelia a chuva contra o vidro. Peter tinha regressado sozinho à cidade porque Dorothy insistira para que Margaret comparecesse a uma festa em casa de Edith Blakemore. Margaret estava naquele momento a voltar para a cidade, trazida por Wiggins, o motorista dos Lauterbach. E agora iriam ser apanhados pelo mau tempo.
Peter esticou o braço e lançou uma olhadela ao relógio pela quinta vez em cinco minutos. Tinha ficado de se encontrar com o chefe da comissão responsável pelas estradas e pontes da Pennsylvania, no Stork Club, para um jantar às sete e meia. A Pennsylvania estava a receber propostas e projetos para uma nova ponte sobre o rio Allegheny. O patrão de Peter queria que ele fechasse o negócio nessa noite. Era muitas vezes convocado para receber clientes. Era jovem e esperto, e a sua bela mulher era filha de um dos mais poderosos banqueiros do país. Formavam um par esplêndido.
Pensou: Onde é que ela estará, raios?
Ligou para a casa de Oyster Bay e falou com Dorothy.
- Não sei o que lhe dizer, Peter. Ela já saiu há muito tempo. Porventura, o Wiggins está a demorar mais por causa do mau tempo. Sabe como é o Wiggins... basta um sinal de chuva e quase que para.
- Dou-lhe mais quinze minutos. Depois, tenho de sair.
Peter sabia que Dorothy não faria conversa de circunstância, por isso desligou antes de se instalar um silêncio incómodo. Preparou um gim tónico e bebeu-o rapidamente enquanto esperava. Às 19h15, desceu no elevador e aguardou no vestíbulo enquanto o porteiro saía para enfrentar a chuva e chamava um táxi.
Quando a minha mulher chegar, peça-lhe para ir diretamente
para o Stork Club.
- Sim, senhor Jordan.
O jantar correu bem, apesar de Peter se ter levantado três vezes para telefonar para o apartamento e para a casa de Oyster Bay. Às
20h30, já não estava aborrecido, estava preocupadíssimo.
Às 20h45, Paul Delano, o chefe de mesa, dirigiu-se a Peter.
- O senhor tem uma chamada no bar.
- Obrigado, Paul.
Peter pediu licença. No bar, teve de levantar a voz acima do tinir dos copos e do ruído das conversas.
- Peter, é a Jane.
Peter ouviu a voz dela tremer.
- O que se passa?
- Temo que tenha havido um acidente.
- Onde estás?
- Estou na esquadra de polícia do condado de Nassau.
- O que aconteceu?
- Um carro meteu-se à frente deles, na autoestrada. Wiggins não conseguiu vê-lo com a chuva. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde.
- Oh, meu Deus!
- Wiggins está em muito mau estado. Os médicos não têm muita esperança que ele sobreviva.
- E a Margaret, raios?
Os Lauterbach não choravam em funerais; o luto era feito em privado. A cerimónia foi realizada na St. James' Episcopal Church, a mesma igreja em que Peter e Margaret se tinham casado quatro anos antes. O presidente Roosevelt enviou uma nota de condolências e expressou o seu pesar por não poder estar presente. Mas a maioria da alta sociedade de Nova Iorque compareceu. Bem como a maioria do mundo das finanças, ainda que os mercados estivessem em tumulto. A Alemanha tinha invadido a Polónia e o mundo estava à espera da eclosão da guerra na Europa.
Billy permaneceu junto de Peter durante as exéquias. Vestia calças curtas, um pequeno blaer e gravata. Quando a família começou a sair da igreja em fila, estendeu a mão e puxou a bainha do vestido preto da tia Jane.
- A mamã vai voltar algum dia a casa?
- Não, Billy, não vai voltar. Ela deixou-nos.
Edith Blakemore ouviu por acaso a pergunta da criança e começou a chorar.
- Que tragédia - lamentou ela. - Que tragédia sem sentido!
Margaret foi enterrada sob um céu brilhante na campa de família, em Long Island. Durante as últimas palavras do reverendo Pugh, um murmúrio atravessou os enlutados em redor da campa e depois dissipou-se.
Quando terminou, Peter regressou à limusina com o seu melhor amigo, Shepherd Ramsey. Shepherd tinha apresentado Peter a Margaret. Mesmo com o seu fato escuro sombrio, tinha o aspeto de ter acabado de sair do convés do seu veleiro.
- De que estava toda a gente a falar? - perguntou Peter. Foi bastante grosseiro.
- Houve pessoas que chegaram atrasadas e que tinham estado a ouvir as notícias no rádio do carro - disse Shepherd. - O Reino Unido e a França acabaram de declarar guerra à Alemanha.
TRÊS
LONDRES: MAIO DE 1940
O professor Alfred Vicary desapareceu sem explicação do University College London, na terceira sexta-feira de maio de 1940. Uma secretária chamada Lillian Walford
foi o último membro do staffa. ver Vicary antes do seu abrupto desaparecimento. Numa rara indiscrição, revelou aos outros professores que a última chamada telefónica
que Vicary recebera tinha sido do novo primeiro-ministro. Na verdade, ela até tinha falado pessoalmente com o senhor Churchill.
- Aconteceu a mesma coisa com Masterman e Cheney em Oxford - disse tom Perrington, um egiptólogo, enquanto dava uma vista de olhos à entrada no livro de registos
telefónicos. - Chamadas misteriosas, homens de fatos escuros. Suspeito que o nosso caro amigo Alfred tenha passado para trás do véu.
Depois acrescentou sotto você:
- Para o interior da Acrópole secreta.
O sorriso lânguido de Perrington não conseguia esconder a sua desilusão, comentaria posteriormente Miss Walford. Era uma pena que o Reino Unido não estivesse em guerra com os antigos egípcios
- talvez Perrington também tivesse sido escolhido.
Vicary passou as suas últimas horas no seu gabinete abarrotado e desorganizado, com vista para Gordon Square, dando os últimos retoques num artigo para o Sundoy Times. A atual crise poderia ter
sido evitada, sugeria o texto, se o Reino Unido e a França tivessem atacado a Alemanha em 1939, quando Hitler ainda estava absorto com a Polónia. Sabia que seria severamente criticado devido ao atual clima; o último artigo que escrevera tinha sido condenado como chunhilliano e belicista por uma publicação da extrema-direita
pró-nazi. Vicary esperava no seu íntimo que o novo artigo fosse recebido de um modo semelhante.
Era um glorioso dia de fim de primavera - sol brilhante, mas tempo dececionantemente fresco. Vicary, um jogador de xadrez talentoso, ainda que relutante, apreciava
o logro. Levantou-se, vestiu um casaco de malha e depois retomou o trabalho.
O clima agradável dava uma imagem falsa da realidade. O Reino Unido era uma nação sitiada - sem defesas, assustada, titubeando em total confusão. Foram elaborados planos para evacuar a família real para o Canadá. O governo pediu que o outro tesouro nacional do Reino Unido, as suas crianças, fosse enviado para o campo, onde estariam a salvo dos bombardeiros da Luftwaffe.
Através da utilização de hábil propaganda, o governo tinha tornado a população extremamente consciente da ameaça colocada por espiões e quinta-colunistas. Estava agora a sofrer as consequências. Os regimentos de polícia estavam a ser soterrados por relatórios sobre estranhos, indivíduos de ar esquisito ou cavalheiros com aspeto de alemães. Os cidadãos escutavam conversas empabs, ouvindo o que queriam e comunicando depois à polícia. Relatavam sinais de fumo, luzes a piscarem na costa e espiões paraquedistas. Um rumor atravessou o país, segundo o qual agentes alemães se tinham feito passar por freiras durante a invasão dos Países Baixos; de repente, as freiras tornaram-se suspeitas. A maioria só saía do santuário murado dos seus conventos quando era absolutamente necessário.
Um milhão de homens demasiado novos, demasiado velhos ou demasiado débeis para ingressar nas forças armadas apressou-se a alistar-se na Guarda Territorial. Não havia espingardas para a guarda, por isso armavam-se com o que podiam - caçadeiras, espadas, cabos de vassoura, clavas medievais, facas nepalesas, até tacos de golfe. Aqueles que por algum motivo não conseguiam encontrar a arma adequada recebiam ordens para andar com pimenta para lançar aos olhos dos soldados alemães saqueadores.
Vicary, um reputado historiador, observou a agitação dos preparativos da sua nação para a guerra com um misto de enorme orgulho e silencioso desânimo. Ao longo dos anos trinta, os seus artigos de jornal e conferências tinham avisado que Hitler representava uma séria ameaça à Inglaterra e ao resto do mundo. Mas o Reino Unido, esgotado pela última guerra com os alemães, não tinha estado com disposição para ouvir falar de outra. Mas, naquele preciso momento, o exército alemão avançava pela França com a tranquilidade de um passeio automobilístico de fim de semana. Em breve, Adolf Hitler estaria no topo de um império que se estenderia do Círculo Polar Ártico até ao Mediterrâneo. E o Reino Unido, insuficientemente armado e mal preparado, encontrava-se sozinho contra ele.
Vicary terminou o artigo, pousou o lápis e leu-o desde o início. Lá fora, o Sol estava a pôr-se num mar alaranjado sobre Londres. O cheiro de flores primaveris que floresciam nos jardins da Gordon Square entrava pela janela. A tarde tinha arrefecido; era provável que as flores dessem início a uma crise de espirros. Mas a brisa sabia-lhe maravilhosamente no rosto e, por alguma razão, fazia o chá saber melhor. Deixou a janela aberta e desfrutou.
A guerra estava a fazê-lo pensar e agir de um modo diferente. Estava a fazê-lo olhar mais afetuosamente para os seus compatriotas, que normalmente observava com uma atitude próxima do desespero. Espantava-se com o facto de serem capazes de dizer piadas enquanto entravam em fila indiana no abrigo da estação de metro e com o modo como cantavam nos pubs para esconderem o medo. Levou algum tempo até que Vicary reconhecesse os seus sentimentos pelo que eles eram - patriotismo. Ao longo de uma vida de estudo, tinha concluído que aquela era a força mais destrutiva do planeta. Mas, naquele momento, sentia a agitação do patriotismo no seu próprio peito e não estava envergonhado. Nós somos bons e eles são maus. O nosso nacionalismo é justificado.
Vicary tinha decidido que queria contribuir. Queria fazer algo em vez de observar o mundo através da sua janela bem protegida.
Às seis da tarde, Lillian Walford entrou sem bater. Era alta, com pernas de lançador de pesos e óculos redondos que ampliavam um olhar inabalável. Começou a pôr papéis em ordem e a fechar livros com a tranquila eficiência de uma enfermeira noturna.
Nominalmente, Miss Walford trabalhava para todos os professores do departamento. Mas ela acreditava que Deus, na sua infinita sabedoria, confiava a cada pessoa uma alma para dela cuidar. E se havia uma pobre alma a precisar de que cuidassem dela, era o professor Vicary. Durante dez anos, tinha orientado os pormenores da vida simples de Vicary com uma precisão militar. Certificava-se de que havia comida na casa dele em Draycott Place, em Chelsea. Assegurava-se de que as camisas lhe eram entregues e continham a quantidade exata de goma - não em demasia, pois isso irritar-lhe-ia a pele suave do pescoço. Tratava-lhe das contas e censurava-o regularmente sobre o estado da sua conta bancária mal gerida. Contratava novas empregadas com uma regularidade sazonal porque os ataques de mau feitio dele afugentavam as anteriores. Apesar da proximidade das suas relações profissionais, nunca se tratavam pelos nomes de batismo. Ela era Miss Walford e ele, o professor Vicary. Ela preferia ser vista como uma assistente pessoal e, de maneira pouco característica, Vicary fazia-lhe a vontade.
Miss Walford tocou de raspão em Vicary, ao passar, e fechou a janela, lançando-lhe um olhar de censura.
- Se não se importa, professor Vicary, vou-me embora para casa.
- Claro, Miss Walford.
Ele olhou para ela. Era um homem pequeno, inquieto e com ar de estudioso, careca no cimo da cabeça, à exceção de alguns fios de cabelo grisalho despenteados. Os seus maltratados óculos em meia-lua repousavam-lhe na ponta do nariz. Estavam manchados com dedadas por causa do hábito de os retirar e voltar a pôr sempre que se sentia nervoso. Usava um casaco de tweed fustigado pelas intempéries e uma gravata manchada de chá, escolhida com desleixo. O seu modo de andar era objeto de piadas na universidade e, sem que tivesse conhecimento, alguns dos seus alunos tinham aprendido a imitá-lo na perfeição. Um joelho destruído durante a guerra anterior tinha-o deixado com um coxear mecanizado e as articulações presas - um soldado de brincar que já não funcionava em condições, pensava Miss Walford. A cabeça tinha tendência a inclinar-se para baixo a fim de lhe permitir ver por cima dos óculos e ele parecia estar sempre a correr para algum lugar onde preferiria não estar.
O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas
de cordeiro em sua casa - disse Miss Walford, franzindo o sobrolho a uma confusa pilha de papéis como se se tratasse de uma criança desobediente. - Disse que poderia ser o último cordeiro que se conseguiria arranjar nos próximos tempos.
- Creio bem que sim - respondeu Vicary. - Há várias semanas que já não aparece carne na ementa do Connaught.
- Isto está a tornar-se um pouco absurdo, não acha, professor Vicary? Hoje, o governo decretou que os tejadilhos dos autocarros londrinos fossem pintados do cinzento dos couraçados - revelou Miss Walford. -- Acham que será mais difícil para a Luftwaffe bombardeá-los.
- Os alemães são implacáveis, Miss Walford, mas mesmo assim não vão perder tempo a bombardear autocarros de passageiros.
- E também decretaram que não devíamos abater pombos-correios. Fazia o favor de me explicar como é que eu sou capaz de distinguir um pombo-comw de um pombo normal?
- Nem lhe consigo dizer quantas vezes me sinto tentado a abater pombos - atirou Vicary.
- Já agora, também tomei a liberdade de lhe encomendar molho de hortelã - anunciou Miss Walford. - Sei que comer uma costeleta de cordeiro sem molho de hortelã lhe pode dar cabo da semana.
- Obrigado, Miss Walford.
- O seu editor ligou para dizer que as provas do novo livro estão prontas para revisão.
- E com apenas quatro semanas de atraso. Um recorde para Cagley. Lembre-me de procurar um novo editor, Miss Walford.
- Sim, professor Vicary. Miss Simpson ligou para dizer que não estará disponível para jantar consigo esta noite. A mãe adoeceu. Pediu-me para lhe dizer que não é nada de grave.
- Raios - murmurou Vicary.
Andava ansioso por se encontrar com Alice Simpson. Era a relação mais séria que tinha com uma mulher em muito tempo.
- É tudo?
- Não, o primeiro-ministro telefonou.
- O quê? Por que raio não me avisou?
- O senhor deixou instruções rigorosas para não ser incomodado. Quando lhe expliquei isso, o senhor Churchill foi bastante compreensivo. Diz que nada o transtorna mais do que ser interrompido quando está a escrever.
Vicary franziu o sobrolho.
- A partir deste momento, Miss Walford, tem a minha explícita permissão para me interromper quando o senhor Churchill telefonar.
- Sim, professor Vicary - respondeu ela, ainda com a plena convicção de que tinha agido corretamente.
- O que disse o primeiro-ministro?
- Que conta consigo para o almoço de amanhã em Chartwell.
Vicary variava de percurso quando regressava a casa, de acordo com a sua disposição. Por vezes, preferia abrir caminho por uma rua comercial movimentada ou passar
pelo meio do rebuliço da multidão no Soho. Noutras noites, deixava as vias principais e percorria as tranquilas ruas residenciais, ora detendo-se a contemplar um
exemplar de arquitetura georgiana esplendidamente iluminado, ora retardando o passo para ouvir os sons de música, risos e tinir dos copos provenientes de uma festa
divertida.
Naquela noite, ia andando indolentemente por uma rua sossegada durante os últimos resquícios do crepúsculo.
Antes da guerra, passara a maioria das noites a fazer investigação na biblioteca, percorrendo os corredores entre as estantes como um fantasma até altas horas da
noite. Numa ou noutra noite, adormecia. Miss Walford deu instruções aos porteiros noturnos - quando o encontrassem deveriam acordá-lo, enfiar-lhe o impermeável e enviá-lo para casa.
O blackout tinha modificado essa situação. Todas as noites, a cidade mergulhava numa profunda escuridão. Os londrinos de gema perdiam-se nas ruas em que andavam
há anos. Para Vicary, que sofria de cegueira noturna, o blackout tornava a navegação próxima do impossível. Imaginava que as coisas deveriam ter sido assim dois milénios antes, quando Londres era um aglomerado de cabanas em madeira ao longo das margens pantanosas do rio Tamisa. O tempo tinha-se
dissipado, os séculos, recuado, e o progresso inegável da humanidade fora interrompido pela ameaça dos bombardeiros de Góring. Todas as tardes, Vicary fugia da universidade
e apressava-se em direção a casa antes que ficasse encalhado nas ruas secundárias de Chelsea. Uma vez seguro dentro de casa, bebia os dois copos de Borgonha da praxe e devorava o prato de costeletas e ervilhas que a empregada lhe deixava num fogão quente. Se não lhe preparassem as refeições, passaria fome, já que ainda se debatia com as complexidades da moderna cozinha inglesa.
Depois do jantar, um pouco de música, uma peça de teatro na telefonia, ou mesmo um romance policial, uma obsessão privada que não revelava a ninguém. Vicary gostava de mistérios; gostava de enigmas. Gostava de utilizar as suas capacidades de raciocínio e dedução para resolver os casos muito antes de o autor fazer isso por ele. Também gostava dos estudos de personagem nos mistérios e muitas vezes encontrava paralelos no seu próprio trabalho - a razão pela qual, por vezes, pessoas boas faziam coisas más.
Adormecer era um processo gradual. Começava na sua cadeira preferida, com o candeeiro de leitura ainda aceso. Depois, mudava-se para o sofá. De seguida, normalmente nas últimas horas antes do amanhecer, subia para o quarto, no andar de cima. Por vezes, a concentração necessária para despir a roupa deixava-o demasiado desperto para voltar a adormecer e, por isso, ficava acordado a pensar, à espera do amanhecer cinzento e do riso malicioso da velha pega que chapinhava todas as manhãs na fonte do jardim, lá fora.
Tinha dúvidas se iria conseguir dormir grande coisa nessa noite
- ainda por cima, depois da convocatória de Churchill.
Não era invulgar Churchill ligar-lhe para o gabinete, era mais o timing. Vicary e Churchill eram amigos desde o outono de 1935, quando Vicary assistira a uma conferência dada por Churchill em Londres. Churchill, confinado à desolação dos lugares de trás do parlamento britânico, era uma das poucas vozes no Reino Unido a alertar para a ameaça colocada pelos nazis. Nessa noite, afirmara que a Alemanha se estava a rearmar a um ritmo frenético, que Hitler pretendia combater assim que fosse capaz. A Inglaterra tinha de se rearmar imediatamente, defendeu ele, ou enfrentar ser escravizada pelos nazis.
O público pensou que Churchill tinha perdido a cabeça e apupou-o sem misericórdia. Churchill interrompera abruptamente as suas observações e regressara a Chartwell, mortificado.
Naquela noite, Vicary tinha-se deixado ficar ao fundo do auditório a assistir ao espetáculo. Também ele andava a observar a Alemanha cuidadosamente desde que Hitler ascendera ao poder. Tinha previsto discretamente perante os colegas que a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra dentro de pouco tempo, talvez ainda antes do final da década. Ninguém prestara atenção. Havia muita gente que pensava que Hitler era um bom contrapeso à União Soviética e que devia ser apoiado. Vicary achava que isso era um absurdo total. À semelhança do resto do país, considerava Churchill um pouco aventureiro, um tanto belicoso. Mas em se tratando dos nazis, Vicary achava que Churchill tinha toda a razão.
Quando regressou a casa, Vicary sentou-se à secretária e escreveu-lhe rapidamente um bilhete, com uma única frase: Assisti à sua conferência em Londres e concordo com cada palavra que proferiu. Cinco dias mais tarde, chegou um bilhete de Churchill a casa de Vicary: Meu Deus, afinal não estou sozinho. O grande Vicary está ao meu lado! Por favor, conceda-me a honra de vir almoçar a Chartwell este domingo.
O primeiro encontro entre ambos foi um sucesso. Vicary foi imediatamente incorporado no círculo de académicos, jornalistas, funcionários públicos e oficiais que iria aconselhar e fornecer informações a Churchill acerca da Alemanha durante o resto da década. Winston forçava Vicary a ouvi-lo enquanto percorria o antigo piso de madeira da sua biblioteca e explicava as suas teorias acerca das intenções alemãs. Por vezes, Vicary discordava, forçando Churchill a clarificar os seus pontos de vista. Por vezes, Churchill perdia a calma e recusava voltar atrás. Vicary mantinha-se firme. A amizade entre ambos foi cimentada desse modo.
Naquele preciso momento, caminhando através da escuridão crescente, Vicary pensou na convocatória de Churchill para ir até Chartwell. Não era certamente apenas para uma conversa amistosa.
Vicary virou para uma rua de casas brancas geminadas, de estilo georgiano, pintadas de rosa pelos últimos minutos do crepúsculo primaveril. Caminhou lentamente, como se estivesse perdido, com uma
mão a agarrar a mala, pesada como chumbo, e a outra enfiada no bolso do impermeável. Uma mulher atraente, aproximadamente da sua idade, emergiu da soleira de uma
porta. Um homem elegante e de ar aborrecido seguia-a. Mesmo ao longe - mesmo com a sua terrível visão -, conseguiu perceber que era Helen. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar - a postura ereta, o pescoço alto, o caminhar desdenhoso, como se estivesse sempre prestes a pisar qualquer coisa desagradável. Vicary viu-os entrar para o
banco de trás de um carro conduzido por um motorista. O carro arrancou, afastando-se do passeio, e avançou na sua direção. Dá meia-volta, meu grande parvo! Não olhes
para ela! Mas foi incapaz de seguir o seu próprio conselho. Quando o carro passou por ele, virou a cabeça e olhou para o banco de trás. Ela viu-o - por um instante,
apenas -, mas foi o suficiente. Embaraçada, baixou imediatamente os olhos. Vicary, através do vidro traseiro do carro, observou-a a virar-se e a sussurrar alguma
coisa ao marido que o fez soltar uma gargalhada, atirando a cabeça para trás.
Idiota! Idiota dum raio!
Vicary recomeçou a andar. Olhou em frente e observou o carro a desaparecer ao virar da esquina. Interrogou-se para onde iriam a outra festa, talvez ao teatro. Porque
não a esqueço simplesmente? já passaram vinte e cinco anos, por amor de Deus! E depois pensou:
- E porque é que o teu coração está a bater como se fosse a primeira
vez que a visses?
Continuou a andar o mais rapidamente que pôde até ficar cansado e sem fôlego. Pensou em qualquer coisa que lhe viesse à mente - tudo menos ela. Chegou a um parque infantil e ficou parado junto ao portão de ferro, a olhar fixamente para as crianças através das grades. Tinham roupa a mais para maio e andavam aos encontrões umas
às outras, como minúsculos pinguins roliços. Um qualquer espião alemão que estivesse à espreita iria certamente aperceber-se de que muitos londrinos tinham ignorado
o aviso do governo e mantido os filhos junto de si, na cidade. Vicary, normalmente indiferente a crianças, manteve-se ao portão, a ouvir, hipnotizado, pensando que
não havia nada tão reconfortante como o som dos pequeninos a brincar.
O carro de Churchill esperava-o na estação. Acelerou, com a capota descida, através dos campos verdes e ondulados do sudeste de Inglaterra. Estava fresco, corria uma brisa e parecia que tudo estava em flor. Vicary ia sentado no banco de trás, com uma mão a manter o casaco fechado e a outra a segurar o chapéu na cabeça. O
vento soprava por cima do descapotável como o temporal sobre a proa de um navio. Pensou se haveria de pedir ao condutor para parar o carro e subir a capota. Foi
então que começou o inevitável ataque de espirros, primeiro como se fossem disparos esporádicos de um atirador furtivo, depois progredindo para uma autêntica barragem de artilharia. Vicary não conseguia decidir que mão libertar para cobrir a boca. Virava a cabeça repetidamente ao espirrar, fazendo com que as pequenas rajadas de humidade e germes fossem levadas pelo vento.
O condutor viu os constantes movimentos de Vicary pelo retrovisor e ficou alarmado.
- Quer que pare o carro, professor Vicary? - perguntou, levantando o pé do acelerador.
O ataque de espirros acalmou e por fim Vicary foi capaz de apreciar a viagem. Em regra, não se interessava pelo campo. Era um londrino. Gostava das multidões, do ruído e do trânsito e tendia a ficar desorientado em espaços abertos. Também detestava a tranquilidade das noites. A sua mente vagueava e ele ficava convencido de que havia assaltantes deambulando na escuridão. Mas, naquele momento, recostou-se no banco do carro, maravilhado com a beleza natural de Inglaterra.
O carro virou para o caminho de entrada de Chartwell. A pulsação de Vicary aumentou quando saiu do carro. Ao aproximar-se da porta, esta abriu-se e lá estava o homem de Churchill, Inches, para o cumprimentar.
- bom dia, professor Vicary. O senhor primeiro-ministro tem estado a aguardar a sua chegada com muitíssima ansiedade.
Vicary entregou o casaco e o chapéu e entrou. Cerca de uma dúzia de homens e um par de raparigas estavam a trabalhar na sala de estar, alguns de uniforme, outros,
como Vicary, à civil. Falavam num tom abafado e confessional, como se todas as notícias fossem mas.
Um telefone tocou, depois outro. Todos eram atendidos ao primeiro toque.
- Espero que tenha tido uma viagem agradável - estava a dizer Inches.
- Maravilhosa - respondeu Vicary, mentindo educadamente.
- Como é hábito, o senhor Churchill está atrasado esta manhã
- disse Inches. De seguida, acrescentou em tom de confidência: Ele estabelece uma agenda impossível de cumprir e todos nós passamos o resto do dia a tentar respeitá-la.
- Compreendo, Inches. Onde quer que eu espere?
- Na verdade, o senhor primeiro-ministro está muito ansioso por vê-lo esta manhã. Pediu para o levar ao andar de cima assim que o senhor chegasse.
- Ao andar de cima?
Inches bateu suavemente e abriu a porta da casa de banho. Churchill estava estendido na banheira, com um charuto na mão e o segundo copo de uísque do dia pousado numa pequena mesa de fácil acesso. Inches anunciou Vicary e retirou-se.
- Vicary, meu caro amigo - disse ele, colocando de seguida a boca ao nível da água e fazendo bolhas. - Que bom ter vindo.
Vicary achou opressiva a temperatura quente da casa de banho. E também achou difícil não se rir perante o enorme homem rosado a chapinhar na banheira como uma criança.
Despiu o casaco de tweed e, com relutância, sentou-se na sanita.
- Queria trocar umas palavras consigo em privado... foi por isso que o convidei a vir aqui à minha toca. - Churchill franziu os lábios.
- Vicary, devo admitir desde já que estou aborrecido consigo.
Vicary endireitou-se.
Churchill abriu a boca para continuar, mas deteve-se. Um olhar perplexo e derrotado despontou-lhe no rosto.
- Inches! - berrou Churchill.
Inches entrou.
- Sim, senhor Churchill?
- Inches, creio que a água da minha banheira baixou dos 40 graus. É capaz de verificar o termómetro?
Arregaçando a manga, Inches retirou o termómetro da água. Estudou-o como um arqueólogo a examinar um fragmento de osso antigo.
- Ah, tem razão, senhor. A temperatura da água caiu para os 39 graus. Devo aquecê-la?
- Claro.
Inches abriu a torneira da água quente e deixou-a correr por instantes. Churchill sorriu quando a água da banheira atingiu a temperatura adequada.
- Muito melhor, Inches.
Churchill virou-se de lado. A água caiu em cascata por cima do bordo da banheira, molhando a perna das calças de Vicary.
- O senhor primeiro-ministro estava a dizer?
- Ah, sim, estava a dizer, Vicary, que estou aborrecido consigo. Nunca me tinha dito que quando era novo era bastante bom a jogar xadrez. Batia todos os jovens promissores em Cambridge, segundo me disseram.
Vicary, absolutamente confuso, respondeu:
- Peço desculpa, senhor primeiro-ministro, mas o xadrez nunca foi tema que surgisse em nenhuma das nossas conversas.
- Brilhante, implacável, arriscado: foi como as pessoas me descreveram o seu jogo. - Churchill calou-se por uns instantes e, a seguir, disse: - E também fez parte do Corpo dos Serviços Secretos durante a Primeira Guerra Mundial.
- Estive apenas na Unidade de Motocicletas. Fazia de correio, nada mais.
Churchill desviou o olhar de Vicary para o teto, fitando-o.
- Em 1250 a.C., o Senhor disse a Moisés que enviasse agentes para espiar a terra de Canaã. O Senhor teve a amabilidade de dar alguns conselhos a Moisés sobre como recrutar os espiões. Apenas os melhores e mais brilhantes homens eram capazes de uma tarefa tão importante, disse o Senhor, e Moisés cumpriu as instruções à risca.
- Isso é verdade, senhor primeiro-ministro - disse Vicary. Mas também é verdade que a informação recolhida pelos espiões de Moisés foi mal utilizada. Em resultado disso, os israelitas passaram mais quarenta anos a percorrer o deserto.
Churchill sorriu.
- Já devia ter aprendido há muito a nunca discutir consigo. O Alfred tem uma mente ágil. Sempre admirei isso.
- O que quer o senhor que eu faça?
- Quero que aceite um lugar nos serviços secretos militares.
- Mas, senhor primeiro-ministro, eu não estou qualificado para esse tipo de...
- Não há ninguém que saiba o que anda a fazer por aquelas bandas - disse Churchill, interrompendo Vicary. - Especialmente os agentes profissionais.
- Mas e os meus alunos? A minha investigação?
- Os seus alunos entrarão em breve no serviço militar, para lutar pela vida. E quanto à sua investigação, ela pode esperar. - Churchill fez uma pausa. - Conhece John Masterman e Christopher Cheney, de Oxford?
- Não me diga que eles foram convocados?
- com efeito, e não espere encontrar nenhum matemático digno desse nome em qualquer universidade - retorquiu Churchill. Foram todos abocanhados e empacotados para Bletchley Park.
- E que raio andam eles a fazer por lá?
- A tentar descobrir os códigos alemães.
Por breves instantes, Vicary fez questão de mostrar que estava a ponderar o assunto.
- Julgo que aceito.
- Otimo! - exclamou Churchill, batendo com o punho no rebordo da banheira. - Na segunda-feira, deve apresentar-se logo pela manhãzinha a Sir Basil Boothby. Ele é o chefe da divisão para a qual vai ser destacado. E também é o perfeito imbecil inglês. Opor-se-ia a mim, se pudesse, mas é demasiado estúpido para isso. Um idiota
de primeira apanha.
- Parece encantador.
- Ele sabe que eu e o Alfred somos amigos e por isso vai fazer-lhe frente. Não deixe que ele o intimide. Entendido?
- Sim, senhor primeiro-ministro.
- Preciso de alguém em quem possa confiar dentro daquele departamento. Está na altura de voltar a colocar a inteligência nos
serviços secretos militares1. Além do mais, isto será bom para si, Alfred. Está na altura de sair da sua biblioteca empoeirada e regressar ao mundo dos vivos.
Vicary foi apanhado desprevenido pela repentina intimidade de Churchill. Pensou na noite anterior, no passeio até casa, no olhar lançado ao carro de Helen.
- Sim, senhor primeiro-ministro, creio que está na altura. E o que irei fazer exatamente pelos serviços secretos militares?
Mas Churchill tinha mergulhado debaixo da linha da água e desaparecido.
1 No original, Military Intelligence; trocadilho com a palavra intettigence, que pode significar, entre outras coisas, inteligência e serviços secretos. (N. do T.)
QUATRO
RASTENBURG, ALEMANHA: JANEIRO DE 1944
O contra-almirante Wilhelm Franz Canaris era um homem pequeno e nervoso que falava com um ligeiro ceceio e possuía um humor sarcástico nas raras ocasiões em que
decidia exibi-lo. De cabelo branco e olhos azuis penetrantes, estava sentado no banco de trás de um Mercedes oficial, que se deslocava ruidosamente do aeródromo
de Rastenburg até ao búnquer secreto de Hitler, a cerca de 15 quilómetros de distância. Normalmente, Canaris evitava uniformes e aparatos militares de todo o género,
preferindo um fato escuro de homem de negócios. Mas visto que se ia encontrar com Adolf Hitler e com os mais importantes oficiais da Alemanha, envergava o seu uniforme
da Kriegsmarine por baixo do sobretudo formal.
Conhecido como a Velha Raposa tanto pelos amigos como pelos seus detratores, a personalidade distante e reservada de Canaris adequava-se na perfeição ao mundo impiedoso da espionagem. Preocupava-se mais com os seus dois dachshunds, que dormiam nesse momento aos seus pés, do que com qualquer outra pessoa, exceto a mulher, Erika, e as filhas. Quando o trabalho obrigava a viagens noturnas, reservava um segundo quarto, com camas duplas, de modo que os cães pudessem dormir confortavelmente. Quando era necessário deixá-los em Berlim, Canaris contactava constantemente os seus assessores para se certificar de que os animais tinham comido e defecado apropriadamente. Os membros da Abwehr que ousassem falar mal dos cães enfrentavam a ameaça bem real de ficarem com as carreiras destruídas
se uma palavra da sua maledicência alcançasse os ouvidos de Canaris. Educado numa villa murada em Aplerbeck, nos subúrbios de Dortmund, Wilhelm Canaris fazia parte da elite tão detestada por Adolf Hitler - filho de um barão das chaminés e descendente de italianos
emigrados para a Alemanha no século xvi. Falava as línguas dos amigos da Alemanha, bem como as dos seus inimigos - italiano, espanhol, inglês, francês e russo -, e presidia regularmente a recitais de música de câmara no salão da sua imponente casa de Berlim. Em
1933, tinha o posto de comandante de um entreposto naval no mar Báltico, em Swinemúnde, quando Hitler o escolheu inesperadamente para dirigir a Abwehr, os serviços de informação e contraespionagem do estado-maior alemão. Hitler deu instruções ao seu novo mestre espião para criar uns serviços secretos que seguissem o modelo britânico - uma ordem, afazer o seu trabalho com paixão - e Canaris assumiu formalmente o comando da agência de espionagem no dia de Ano Novo de 1934, a data do seu quadragésimo sétimo aniversário.
Esta decisão iria revelar-se uma das piores de Hitler. Desde que assumira o comando da Abwehr, Wilhelm Canaris andava embrenhado numa ação altamente arriscada - garantir ao estado-maior as informações de que necessitava para conquistar grande parte da Europa, ao mesmo tempo que utilizava os serviços como uma ferramenta para livrar a Alemanha de Hitler. Era o líder do movimento de resistência apelidado de Orquestra Negra - Schwarçe Kapelle - pela Gestapo. Um grupo muito unido de oficiais alemães, membros do governo e líderes civis, a Orquestra Negra tinha tentado, sem sucesso, derrubar o Fúhrer e negociar um acordo de paz com os Aliados. Canaris também tinha estado envolvido noutras atividades de traição. Em 1939, depois de saber dos planos de Hitler para invadir a Polónia, avisou os britânicos numa vã tentativa de os induzir à ação. Fez o mesmo em 1940, quando Hitler anunciou os seus planos para a invasão dos Países Baixos e da França.
Canaris virou-se e olhou pela janela, observando a floresta de Gõrlitz a passar diante de si - negra, silenciosa, densamente arborizada, como um cenário de conto de fadas dos irmãos Grimm. Canaris, perdido na tranquilidade das árvores cobertas de neve, pensava no
recente atentado à vida do Fúhrer. Dois meses antes, em novembro, um jovem capitão de nome Axel von dem Bussche tinha-se voluntariado para assassinar Hitler durante a inspeção de um novo sobretudo para a Wehrmacht. Bussche planeou esconder algumas granadas debaixo do casaco e, a seguir, detoná-las durante a demonstração, matando-se
e ao Fúhrer. Mas, um dia antes da tentativa de assassínio, os bombardeiros aliados destruíram o edifício onde os casacos estavam armazenados. A demonstração foi
cancelada e nunca chegou a ser reagendada.
Canaris sabia que haveria mais tentativas - mais alemães corajosos prontos a sacrificar a própria vida a fim de derrubar Hitler -, mas também sabia que o tempo fugia.
A invasão anglo-americana da Europa era uma certeza. Roosevelt tinha tornado claro que não aceitaria nada menos do que uma rendição incondicional. A Alemanha seria
destruída, tal como Canaris temera em 1933, quando as ambições messiânicas de Hitler se tinham tornado claras para ele. Também se apercebeu de que o seu ténue controlo sobre a Abwehr enfraquecia de dia para dia. Vários membros da equipa executiva de Canaris, no quartel-general da Abwehr, em Berlim, tinham sido presos pela Gestapo e acusados de traição. Os seus inimigos andavam a conspirar para se apoderarem do comando da agência de espionagem e colocar-lhe o pescoço num nó de corda de piano. Percebeu que tinha os dias contados - que a sua longa, perigosa e arriscada ação estava a chegar ao fim.
O carro oficial passou pela miríade de portões e postos de controlo, depois virou para o complexo no Wolfschanze1 de Hitler a Toca do Lobo. Os dachshunds acordaram,
ganindo nervosamente, e saltaram para o colo de Canaris. A conferência iria ter lugar na sala de mapas glacial e abafada, no búnquer subterrâneo. Canaris saiu do
carro e atravessou, com ar sombrio, o complexo. Ao fundo das escadas, encontrava-se um guarda-costas corpulento das SS, pronto para aliviar Canaris de quaisquer
armas que pudesse levar. Canaris, que evitava armas e detestava violência, abanou a cabeça e passou por ele.
1 Quartel-general de Hitler na Prússia Oriental. (N. do T.)
- Em novembro, emiti a Diretiva Número Cinquenta e Um do Fúhrer - começou a dizer Hitler sem preâmbulos, caminhando furiosamente pela sala com as mãos cruzadas atrás
das costas.
Envergava uma túnica cinzento-clara, calças pretas e botas de cano alto resplandecentes. No bolso do peito do lado esquerdo usava a Cruz de Ferro que tinha conquistado
em Ypres enquanto soldado de infantaria no Regimento List, durante a Primeira Guerra Mundial.
- A Diretiva Número Cinquenta e Um exprimia a minha convicção de que os anglo-saxões tentarão invadir o noroeste da França o mais tardar na primavera, talvez antes.
Durante os dois últimos meses, não vi nada que me fizesse mudar de opinião.
Sentado à mesa da conferência, Canaris observou o Fúhrer a pavonear-se ao redor da sala. A inclinação pronunciada de Hitler, causada pela cifose da coluna, parecia
ter piorado. Canaris interrogou-se se ele estaria finalmente a sentir a pressão. Tinha razões para isso. O que tinha dito Frederico, o Grande?Quem defende tudo, não defende nada. Hitler deveria ter prestado atenção ao conselho do seu guia espiritual, já que a Alemanha estava na mesma posição em que se encontrara durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha conseguido conquistar mais território do que o que podia defender.
A culpa era exclusivamente de Hitler - o raio do louco Canaris lançou uma olhadela ao mapa. A leste, as tropas alemãs combatiam ao longo de uma frente de 2000 quilómetros.
Qualquer esperança de uma vitória militar contra os russos tinha sido esmagada em julho, em Kursk, onde o Exército Vermelho tinha dizimado uma ofensiva da Wehrmacht e infligido baixas vertiginosas. Naquele preciso momento, o exército alemão tentava manter uma linha que se estendia desde Leninegrado até ao mar Negro. Ao longo do Mediterrâneo, a Alemanha defendia 3000 quilómetros de costa. E a ocidente Meu Deus!, pensou Canaris -, 6000 quilómetros de território que se estendia desde a Holanda até à extremidade sul da baía de Biscaia. A Festung Europa de Hitler - a Fortaleza Europa - estava dispersa e vulnerável por todos os lados.
Canaris olhou em redor para os homens sentados ao seu lado. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, comandante supremo de todas as forças alemãs a ocidente; o marechal de campo Erwin Rommel, comandante do Grupo B do Exército, no noroeste da França; o Reichsfúhrer Heinrich Himmler, líder das SS e chefe da polícia alemã. Meia dúzia dos homens mais cruéis e leais a Himmler estava de vigia, apenas no caso de algum dos membros da cúpula do Terceiro Reich decidir fazer um atentado contra a vida do Fúhrer.
Hitler parou e disse:
- A Diretiva Cinquenta e Um também mencionava a minha convicção de que já não podemos justificar a redução do nosso número de tropas a ocidente de modo a apoiar as forças que combatem os bolcheviques. No leste, a vastidão da área vai permitir-nos, como último recurso, abdicar de grandes áreas de território antes de o inimigo ameaçar a pátria alemã. Não é assim a ocidente. Se a invasão anglo-saxónica tiver êxito, as consequências serão desastrosas. Portanto, é aqui, no noroeste da França, que a batalha mais decisiva da guerra terá lugar.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- A invasão enfrentará todo o nosso poderio e será destruída no mar alto. Se tal não for possível, e se os anglo-saxões conseguirem assegurar temporariamente uma cabeça de praia, devemos estar preparados para reposicionar rapidamente as nossas forças, organizar um contra-ataque gigantesco e obrigar os invasores a retroceder para o mar - afirmou Hitler, cruzando os braços. - Mas para alcançar esse objetivo, temos de conhecer a ordem de batalha do inimigo. Temos de saber quando é que pretende atacar. E, o mais importante, onde. Herr Generalfeldmarshal?
O marechal de campo Gerd von Rundstedt levantou-se e deslocou-se num andar cansado até ao mapa, segurando com a mão direita o bastão incrustado de jóias de marechal de campo com que andava sempre. Conhecido como o último dos cavaleiros alemães, Rundstedt tinha sido demitido e chamado de novo ao serviço por Adolf Hitler mais vezes do que Canaris, ou mesmo o seu próprio staff, se conseguia lembrar. Detestava o mundo fanático dos nazis e tinha sido
Rundstedt quem apelidara escarninhamente Hitler de caboinho da boémia. A tensão de cinco longos anos de guerra começava a notar-se nas finas feições aristocráticas
do seu rosto. Os rígidos e precisos maneirismos que caracterizavam os oficiais do Estado-Maior do tempo do Império tinham desaparecido. Canaris sabia que Rundstedt
bebia mais champanhe do que devia e precisava de grandes quantidades de uísque para dormir à noite. Levantava-se com regularidade às dez da manhã, uma hora muito
pouco militar; o staffào seu quartel-general, em St. Germain-en-Laye, raramente agendava reuniões para antes do meio-dia.
Apesar da idade avançada e do declínio moral, Rundstedt continuava a ser o melhor soldado da Alemanha - um estratega e planeador brilhante, como tinha demonstrado aos polacos, em 1939, e aos franceses e britânicos, em 1940. Canaris não invejava a situação de Rundstedt. No papel, dirigia a força mais poderosa do Ocidente um milhão e meio de homens, incluindo 350 000 tropas de choque Waffen-SS, dez divisões Panzer e duas divisões de paraquedistas de elite Fallschirmjager. Se fossem posicionadas rápida e corretamente, as tropas de Rundstedt ainda seriam capazes de impor aos Aliados uma derrota devastadora. Mas se o velho cavaleiro teutónico tivesse um palpite errado - se mobilizasse as suas forças incorretamente ou cometesse erros táticos uma vez começada a batalha - os Aliados estabeleceriam a sua preciosa base de operações no continente e a guerra no Ocidente estaria perdida.
- Na minha opinião, a equação é simples - começou a dizer Rundstedt. - A leste do Sena, no Pas-de-Calais, ou a oeste do Sena, na Normandia. Cada um tem as suas vantagens e desvantagens.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal. Rundstedt prosseguiu num tom monótono:
- Calais é o fulcro da costa no canal da Mancha. Se o inimigo assegurar uma cabeça de praia em Calais, pode virar-se para leste e ficar a poucos dias de marcha do Ruhrgebiet, o nosso coração industrial. Os americanos querem que a guerra termine por altura do Natal. Se conseguirem desembarcar em Calais, talvez sejam capazes de concretizar esse desejo.
Rundstedt fez uma pausa para permitir que o seu aviso fosse assimilado e, a seguir, retomou o relatório.
- Há outra razão por que Calais faz sentido militarmente: é o ponto onde o canal da Mancha é mais estreito. O inimigo será capaz de despejar homens e equipamento em Calais quatro vezes mais depressa do que na Normandia ou na Bretanha. Não se esqueçam, o relógio começa a contar para o inimigo no momento em que a invasão se iniciar. Tem de acumular tropas, armas e material a um ritmo extremamente rápido. Há três portos de águas profundas na região do Pas-de-Calais - explicou Rundstedt, indicando cada um com a ponta do bastão, subindo pela costa. - Bolonha, Calais e Dunquerque.
O inimigo precisa de portos. É minha convicção que o primeiro objetivo dos invasores será capturar e reabrir um porto importante e reabri-lo o mais rapidamente possível, porque sem um porto importante o inimigo não pode abastecer as
tropas. Se não conseguir abastecer as tropas, está acabado.
- Impressionante, Herr Generalfeldmarshal - disse Hitler. Mas porque não a Normandia?
- A Normandia apresenta muitos problemas ao inimigo. A distância pelo canal da Mancha é muito maior. Em alguns pontos, encontram-se falésias elevadas entre as praias e o continente. O porto mais próximo é Cherburgo, na ponta de uma península altamente defendida. O inimigo poderia levar vários dias para nos conseguir tirar Cherburgo. E mesmo que o conseguisse, sabe que preferiríamos inutilizá-lo a abdicar dele. Mas o argumento mais lógico contra o ataque na Normandia, na minha opinião, é a sua localização geográfica. Fica demasiado a ocidente. Mesmo que o inimigo consiga desembarcar na Normandia, corre o risco de ficar preso e estrategicamente isolado. Tem de nos combater em toda a extensão da França antes de atingir sequer solo alemão.
- Qual é a sua opinião, Herr Generalfeldmarshal? - disparou Hitler.
- Talvez os Aliados tentem alguma trapaça - respondeu Rundstedt cautelosamente, com os dedos a agitarem-se sobre o bastão. - Talvez um desembarque a servir de manobra de diversão, como o senhor mesmo sugeriu, meu Fúhrer. Mas o verdadeiro ataque vai dar-se aqui - afirmou, batendo no mapa. - Em Calais.
- Almirante Canaris? - exclamou Hitler. - De que informações dispõe para apoiar esta teoria?
Pouco propenso a exibições formais diante do mapa, Canaris continuou sentado. Enfiou a mão no bolso direito interior do casaco, onde tinha um pacote de cigarros. Os homens das SS estremeceram nervosamente. Abanando a cabeça, Canaris tirou lentamente os cigarros
e mostrou-os. Acendeu um com toda a calma e lançou uma baforada
de fumo na direção de Himmler, sabendo muito bem da especial irritação que o Reichsfúhrer nutria pelo tabaco. Himmler olhou fixamente para ele, através da cortina
de fumo azul em espiral, não revelando qualquer emoção no olhar e com a face a contrair-se nervosamente.
Canaris explicou que a Abwehr estava a recolher e a analisar três tipos de informação relacionada com os preparativos para a invasão - fotografias aéreas das tropas
inimigas, no sul de Inglaterra, comunicações do inimigo via rádio, monitorizadas pela Funkabwehr, o serviço de escutas da agência, e relatórios de agentes a atuarem
no interior do Reino Unido.
- E o que lhe dizem essas informações, Herr Admirai? - vociferou Hitler.
- A nossa recolha inicial de informações tende a apoiar a avaliação do marechal de campo: que os Aliados pretendem atacar em Calais. De acordo com os nossos agentes,
tem havido um aumento da atividade do inimigo no sudeste de Inglaterra, do outro lado do canal da Mancha, em frente ao Pas-de-Calais. Nós monitorizámos as transmissões telegráficas referentes a uma nova força denominada First United States Army Group. Também temos vindo a analisar a atividade aérea do inimigo no noroeste da França. Está a passar muito mais tempo a sobrevoar Calais, com o propósito de bombardeamento e de reconhecimento, do que a Normandia ou a Bretanha. E tenho ainda mais uma nova informação a relatar, meu Fúhrer. Um dos nossos agentes em Inglaterra tem uma fonte dentro do alto comando aliado. Na noite passada, o agente transmitiu um relatório. O general Eisenhower chegou a Londres. Os americanos e os britânicos pretendem manter a sua presença em segredo por enquanto.
Hitler pareceu impressionado com o relatório do agente. Canaris pensou: se ao menos Hitler soubesse a verdade - que, neste momento, apenas a poucos meses da batalha mais importante da guerra,
as redes de informação da Abwehr em Inglaterra estão muito provavelmente em frangalhos. Canaris culpava Hitler. Durante os preparativos para a operação Seelõwe -
a invasão abortada do Reino Unido -, Canaris e a sua equipa enviaram temerariamente uma torrente de espiões para Inglaterra. Toda a cautela foi mandada às malvas,
por causa da necessidade urgente de informações sobre as defesas costeiras e o posicionamento das tropas britânicas. Os agentes foram recrutados à pressa, mal treinados
e equipados de forma ainda pior. Canaris suspeitava que a maioria tivesse ido parar diretamente às mãos do MI5, infligindo danos permanentes em redes que tinham
sido construídos ao longo de vários anos de trabalho meticuloso. Naquele momento, não o podia admitir; fazê-lo seria assinar a sua própria sentença de morte.
Adolf Hitler começou de novo a dar voltas pela sala. Canaris sabia que Hitler não temia a futura invasão. Muito pelo contrário, acolhia-a com pra2er. Tinha dez milhões de alemães mobilizados e uma indústria de armamento que, apesar do bombardeamento implacável dos Aliados e da escassez de mão de obra e matéria-prima, continuava a produzir quantidades colossais de armas e material. Mantinha-se confiante na sua capacidade de repelir a invasão e infligir aos Aliados uma derrota cataclísmica. À semelhança de Rundstedt, acreditava que um desembarque no Pas-de-Calais fazia sentido estratégico e era aí que a sua Atlantikwall mais se parecia com a visão de uma fortaleza inexpugnável. com efeito, tinha tentado forçar os Aliados a invadir em Calais, ordenando que as plataformas de lançamento das bombas V-1 e V-2 fossem aí colocadas. No entanto, Hitler também estava ciente de que os britânicos e os americanos tinham recorrido ao logro durante a guerra e de que o voltariam a fazer antes de invadirem a França.
- Vamos inverter os papéis - disse Hitler por fim. - Se eu fosse invadir a França a partir de Inglaterra, o que faria? Viria pelo caminho mais óbvio? O caminho que o meu inimigo espera que eu siga? Organizaria um ataque frontal à parte da costa mais protegida? Ou seguiria outro caminho e tentaria surpreender o inimigo? Transmitiria mensagens falsas via rádio e enviaria relatórios falsos através dos espiões? Faria declarações enganadoras à imprensa? A resposta
a todas estas questões é sim. Temos de contar que os britânicos recorram ao logro e até a um grande desembarque como manobra de diversão. Por mais que eu gostasse que eles tentassem desembarcar em Calais, devemos estar preparados para a possibilidade de uma invasão na Normandia ou na Bretanha. Para isso, os nossos Panzers devem manter-se bem afastados da costa até que as intenções do inimigo fiquem claras. De seguida, concentraremos a nossa base militar no ponto principal da invasão e obrigá-los-emos a retroceder para
o mar.
- Há outra coisa a ter em conta e que pode fundamentar a sua argumentação - disse o marechal de campo Erwin Rommel.
Hitler rodou nos calcanhares e encarou-o.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal.
Rommel apontou para o enorme mapa, que se estendia do chão até ao teto, atrás de Hitler.
- Se me der licença que faça uma demonstração, meu Fúhrer.
- Claro.
Rommel enfiou a mão na pasta, tirou um compasso de calibre e, a seguir, levantou-se e dirigiu-se para o mapa. Em dezembro, Hitler tinha-lhe atribuído o comando do
Grupo B do exército ao longo da costa do canal da Mancha. O Grupo B do exército incluía o 7.º Exército na região da Normandia, o 15.º Exército entre o estuário do
Sena e o golfo Zuiderzee, e o Exército da Holanda. Física e psicologicamente recuperado das desastrosas derrotas no Norte de África, a famosa Raposa do Deserto tinha-se
atirado à sua nova missão com uma incrível demonstração de energia, lançando-se a toda a hora pela costa francesa no seu Mercedes 230 cabriolei, inspecionando as defesas costeiras e o posicionamento das tropas e bases militares. Tinha prometido transformar o litoral francês num jardim do Diabo - um cenário de artilharia, campos de minas, fortificações em cimento e arame farpado do qual o inimigo nunca conseguiria sair. No entanto, em privado, Rommel defendia que qualquer fortificação concebida pelo ser humano podia também ser destruída por ele.
De pé, junto ao mapa, abriu o compasso e disse:
- Isto representa o raio de ação dos caças Spitfm e Mustang do inimigo. E estas são as posições das principais bases dos caças no sul de Inglaterra.
Rommel colocou as pontas do compasso em cada um dos locais e desenhou uma série de arcos no mapa.
- Como pode ver, meu Fúhrer, tanto a Normandia como Calais se encontram bem dentro do raio de ação dos caças do inimigo. Por esse motivo, devemos considerar ambas as áreas como possíveis locais para a invasão.
Hitler assentiu com a cabeça, impressionado com a demonstração de Rommel.
- Agora, coloque-se na posição do inimigo por um momento, Herr Generalfeldmarshal. Se estivesse a tentar invadir a França a partir de Inglaterra, onde é que atacaria?
Por breves instantes, Rommel fez questão de mostrar que estava a ponderar bem a questão e, a seguir, respondeu:
- Devo admitir, meu Fúhrer, que todos os indícios apontam para uma invasão no Pas-de-Calais. Mas não consigo livrar-me da convicção de que o inimigo nunca iria tentar um ataque frontal à nossa maior concentração de forças. E também me sinto influenciado pela experiência em África, meu Fúhrer. Os britânicos recorreram ao logro antes da Batalha de Alamein e vão voltar a fazê-lo antes de invadirem a França.
- E a Westwall, Herr Generalfeldmarshal? Como é que têm avançado os trabalhos?
- Ainda há muito a fazer, meu Fúhrer. Mas estamos a avançar bem.
- E vai estar tudo terminado antes da primavera?
- Creio que sim. Mas as fortificações costeiras não chegam para deter o inimigo. Temos de ter as nossas bases militares devidamente dispostas. E para isso receio bem que tenhamos de saber onde é que eles planeiam atacar. Só isso nos servirá de alguma coisa. Se o inimigo for bem-sucedido, a guerra pode estar perdida.
- Isso é um absurdo - lançou Heinrich Himmler. - Sob o comando do Fúhrer, a vitória final da Alemanha é ponto assente. As praias da França vão ser um cemitério para os britânicos e os americanos.
- Não - interveio Hitler, gesticulando. - O marechal de campo Rommel tem razão. Se o inimigo conseguir assegurar uma cabeça
de praia, então a guerra estará perdida. Mas, se aniquilarmos a invasão antes de ter sequer começado - prosseguiu Hitler, com a cabeça inclinada para trás e os olhos a chamejarem -, seriam necessários vários meses para organizar outra tentativa. O inimigo nunca voltaria a tentar! Roosevelt nunca seria reeleito. Até poderia acabar preso num sítio qualquer! O moral dos britânicos iria desabar da noite para o dia. Churchill, aquele velho gordo e doente, seria destruído! com os americanos e os britânicos paralisados, a lamberem as feridas, podemos deslocar homens e matériel do Ocidente e despejá-los no Leste. Estaline vai ficar à nossa mercê. Vai tentar negociar um acordo de paz. Tenho a certeza disso.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- Mas, se queremos deter o inimigo, temos de saber o local da invasão - afirmou. - Os meus generais pensam que será em Calais. Eu estou cético - confessou, rodando nos calcanhares e olhando fixamente para Canaris. - Herr Admirai, quero que resolva o impasse.
- Isso pode não ser possível - disse Canaris cautelosamente.
- A missão da Abwehr não é fornecer informações militares?
- E claro que sim, meu Fúhrer.
- Dispõe de espiões a atuarem dentro do Reino Unido, este relatório acerca da chegada do general Eisenhower a Londres é prova disso.
- Obviamente, meu Fúhrer.
- Então, sugiro que comece a trabalhar, Herr Admirai. Quero provas das intenções dos inimigos. Quero que me traga o segredo da invasão. E rapidamente, Herr Admirai. Deixe-me assegurar-lhe: não dispõe de muito tempo.
Hitler empalideceu visivelmente e pareceu subitamente exausto.
- Agora, a menos que os senhores tenham mais alguma má notícia para me dar, vou retirar-me para dormir umas horas. Foi uma noite muito longa.
Levantaram-se todos enquanto Hitler subia as escadas.
CINCO
NORTE DE ESPANHA: AGOSTO DE 1936
Ele encontra-se diante das portas abertas para a noite cálida, segurando uma garrafa de vinho branco gelado. Serve-se de outro copo sem se oferecer para encher novamente o dela. Ela está deitada na cama, a fumar e a ouvir a vo dele. Escutando o vento quente que agita as árvores lá fora, junto à varanda. Relâmpagos tremelum silenciosamente sobre o vale. O seu vale, como ele está sempre a dier. A porra do meu vale. E se os filhos da puta dos lealistas alguma ve mo tentarem tirar, corto-lhes a merda dos tomates e atiro-os aos cães.
-Quem te ensinou a disparar assim?-pergunta ele.
Tinham ido à caça de manhã e ela tinha capturado quatro faisÕes contra um dele.
- O meu pai.
- Disparas melhor do que eu. -Já reparei.
Uma vez mais, os relâmpagos surgem silenciosamente na sala e ela consegue ver Emílio com clareza durante alguns segundos. É trinta anos mais velho e, no entanto,
ela acha-o lindo. Tem cabelo louro-grisalho e o sol pôs-lhe a cara da cor do couro polido de uma sela. O nariz é longo e afilado, como a lâmina de um machado. Queria
ser beijada pelos lábios dele, mas desde a primeira vez ele queria-a muito depressa e de modo rude e o Emilio consegue sempre toda a merda que quer, querida.
- Falas inglês muito bem - informa-a ele, como se ela estivesse a ouvir isso pela primeira
vez - O teu sotaque é perfeito. Nunca consegui perder o meu, por mais
que tentasse.
- A minha mãe era inglesa.
- Onde está ela agora?
- Morreu há muito tempo.
- Também falas francês?
- Sim - responde ela.
- Italiano.
- Sim, falo italiano.
- O teu espanhol é que não é assim tão bom.
- Chega para o que é preciso - di ela.
Ele está a tocar no pénis enquanto fala. Adora-o tal como adora o seu dinheiro e a sua terra. Fala dele como se fosse um dos seus melhores cavalos. Na cama, é como
uma terceira pessoa.
- Deitas-te com a Maria ao pé da ribeira, mas depois à noite deixas que eu entre na tua cama efoda contigo - diz ele.
- É uma maneira de pôr as coisas - responde ela. -Queres que eu pare com a Maria?
- Tu fazes a maria feliz - responde ele, como se a felicidade justificasse alguma coisa.
- Ela faze-me feliz.
- Nunca conheci uma mulher como tu - disse ele, pondo um cigarro no canto da boca e acendendo-o, com as mãos em concha para o proteger da brisa noturna. - Fodes comigo
e com a minha filha no mesmo dia, sem pestanejar.
- Não acredito nisso de criar afetos. Ele ri-se, no seu riso calmo e controlado.
- Isso é maravilhoso - responde ele, sorrindo outra vez calmamente. Não acreditas nisso de criar afetos. Isso é magnífico. Tenho pena do pobre canalha que cometa
o erro de se apaixonar por ti.
- Também eu.
- E tens alguns sentimentos?
- Não, nem por isso.
- Amas alguém ou alguma coisa?
- Amo o meu pai - responde ela. - E amo estar deitada ao pé da ribeira com a Maria.
Maria é a única mulher que conheceu até hoje cuja beleza a ameaça.
Neutralaria essa ameaça pilhando a beleza de Maria para si mesma. A sua juba de
cabelos castanhos encaracolados. A imaculada pele cor de azeitona. Os seios perfeitos que são como pêras no verão na sua boca. Os lábios que são a coisa mais suave em que já tocou. "Vem passar o verão a Espanha comigo, na estancia da minha família",
diz Maria numa tarde chuvosa em Paris, onde ambas se encontram a estudar, na
Sorbonne. O pai vai ficar desiludido, mas a ideia de passar um verão na Alemanha a observar a merda dos nais a desfilar pelas ruas não significa nada para ela. Mas
não sabia que a alternativa seria enfiar-se bem no meio de uma guerra civil.
Mas a guerra não perturba o insolente enclave paradisíaco de Emílio, no sopé dos Pirenéus. É o verão mais maravilhoso da vida dela. De manhã, os três caçam ou passeiam
os cães e, à tarde, ela e Maria vão até à ribeira, nadam nos lagos profundos e gélidos e
bronzeiam-se nas rochas cálidas. Maria gosta mais quando estão lá fora. Gosta
da sensação do sol nos seios e de Anna entre as pernas. "O meu pai também te quer, sabes?", anuncia Maria uma tarde em que estão deitadas à sombra de um eucalipto.
"Podes tê-lo. Só não te apaixones por ele. Toda a gente está apaixonada por ele."
Emílio está outra vez a falar:
-Quando voltares para Paris, no próximo mês, quero que te encontres com uma pessoa.
Faz isso por mim?
- Depende.
- De quê?
- De quem for.
- Ele vai entrar em contacto contigo. Quando lhe falar de ti, vai ficar muito interessado.
- Não vou dormir com ele.
- Ele não vai estar interessado em dormir contigo. É um homem de família. Tal como eu - acrescenta, rindo-se com o seu riso mais uma vez.
- E qual é o nome dele?
- Os nomes não são importantes para ele.
- Dime o nome dele.
- Não tenho a certeza do nome que ele usa atualmente.
- E o que é que o teu amigo faz?
- Trabalha com informação.
Ele regressa à cama. A. conversa excitou-o. Tem o pénis novamente duro e deseja-a outra
vez de imediato. Está a afastar-lhe as pernas e a tentar penetrá-la. Ela
pega-lhe nas mãos para o ajudar e a seguir crava as unhas nele.
- Ahhhh! Meu Deus, Anna! com tanta força, não!
- Diz-me o nome dele.
- É contra as regras... não posso.
- Diz-me - insiste ela, cravando-lhe as unhas com mais força.
- Vogel- murmura ele. - O nome dele é Kurt Vogel. Jesus!
BERLIM: JANEIRO DE 1944
A Abwehr tinha dois tipos básicos de espiões em ação contra o Reino Unido. A Corrente-S consistia em agentes que entravam no país, se instalavam com identidades
falsas e desenvolviam atividades de espionagem. Os agentes da Corrente-R eram maioritariamente cidadãos de outros países que entravam periodicamente no Reino Unido,
de forma legal, recolhiam informações e enviavam relatórios aos seus superiores em Berlim. Havia uma terceira rede de espiões mais pequena e altamente secreta referida
como a Corrente-V- um punhado de agentes adormecidos, excecionalmente treinados, que se infiltravam de forma profunda na sociedade inglesa e esperavam, por vezes
durante anos, até serem ativados. Foi assim chamada devido ao seu criador e único agente que a comandava, Kurt Vogel.
O modesto império de Vogel consistia em duas salas no quarto piso do quartel-general da Abwehr, localizado num par de austeros prédios geminados, em pedra cinzenta,
nos números 74 e 76 da Tirpitz Ufer. As janelas davam para o Tiergarten, o parque com 255 hectares no coração de Berlim. Em tempos, tinha tido uma vista espetacular. Mas meses de bombardeamentos por parte dos Aliados tinham deixado crateras do tamanho de Panzers nos caminhos equestres e reduzido a maioria dos castanheiros e das tílias a tocos carbonizados. Grande parte do gabinete de Vogel estava ocupada por uma fila de armários de aço trancados e um pesado cofre. Vogel suspeitava que os empregados do registo central da Abwehr tinham passado a trabalhar para a Gestapo e recusava-se a guardar lá os dossiês. O seu único assistente - um tenente condecorado da Wehrmacht chamado
Werner Ulbricht, que tinha ficado estropiado a lutar contra os russos . trabalhava na antessala. Guardava um par de pistolas Luger na gaveta de cima da secretária
e Vogel tinha-lhe ordenado que disparasse contra qualquer pessoa que entrasse sem autorização. Ulbricht sofria de pesadelos em que matava Wilhelm Canaris por engano.
Oficialmente, Vogel detinha o posto de capitão na Kriegsmarine, mas era apenas uma formalidade concebida para lhe permitir o acesso necessário para atuar junto de
determinados grupos. Tal como o seu mentor, Canaris, raramente envergava o uniforme. O seu guarda-roupa variava pouco - um fato cinzento-escuro a lembrar o de um
cangalheiro, uma camisa branca, uma gravata negra. Tinha cabelo grisalho-escuro, que parecia ter sido ele a cortar, e o olhar intenso de um revolucionário de café.
A voz era como uma dobradiça enferrujada e, depois de quase uma década de conversas clandestinas em cafés, salas de hotel e escritórios sob escuta, raramente se
elevava acima de um murmúrio de capela. Ulbricht, surdo de um ouvido, esforçava-se constantemente por o ouvir.
A paixão de Vogel pelo anonimato raiava o absurdo. No gabinete havia apenas um objeto pessoal, um retrato da mulher, Gertrude, e das filhas gémeas. Enviara-as para
a casa da mãe de Gertrude, na Baviera, quando os bombardeamentos começaram e via-as com pouca frequência. Sempre que saía do gabinete, mesmo por curtos momentos,
retirava o retrato de cima da secretária e fechava-o na gaveta. Até mesmo o seu distintivo de identificação era um enigma. Não tinha fotografia - Vogel recusava
ser fotografado há anos - e o nome era falso. Possuía um pequeno apartamento perto do gabinete, a que se chegava depois de um agradável passeio ao longo das frondosas
margens do Landwehr Kanal, para aquelas raras noites em que se permitia escapar. A senhoria achava que ele era um professor universitário com uma série de namoradas.
Mesmo dentro da Abwehr, pouco mais se sabia dele.
Kurt Vogel tinha nascido em Dusseldorf. O pai era o diretor de um Gymnasium local, a mãe uma professora de música em part-time que tinha abandonado uma carreira
promissora como pianista para casar e criar uma família. Vogel tinha feito um doutoramento em Direito, na Universidade de Leipzig, onde estudara Direito Civil e
Político com duas das maiores mentes jurídicas da Alemanha, Herman
Heller e Leo Rosenberg. Era um aluno brilhante, o melhor da sua turma, e os professores previram discretamente que Vogel se sentaria um dia no Reichsgericht, o Supremo
Tribunal da Alemanha.
Hitler alterou tudo isso. Hitler acreditava no poder dos homens, não no poder do Direito. Poucos meses após ter tomado o poder, já tinha virado do avesso todo o sistema judicial da Alemanha. O Fíihrergewalt - o poder do Fúhrer - tornou-se a única lei do país e todos os caprichos de Hitler eram imediatamente traduzidos em códigos e regulamentos. Vogel lembrava-se de algumas máximas ridículas cunhadas pelos arquitetos da revisão legal da Alemanha imposta por Hitler. A lei é o que é útil ao povo alemão! A lei deve ser interpretada através de saudáveis emoções populares! Quando o poder judiciário ordinário se interpôs, os nazis estabeleceram os seus próprios tribunais, os Volksgerichtshof, os Tribunais do Povo. Na opinião de Vogel, o dia mais negro na história da jurisprudência alemã ocorreu em outubro de 1933, quando dez mil advogados, nos degraus do Reichsgericht, em Leipzig, ergueram os braços na saudação nazi e juraram seguir o rumo do Ftihrer até ao fim dos nossos dias. Vogel tinha sido um deles. Naquela noite, regressou ao pequeno apartamento que partilhava com Gertrude, queimou os livros de Direito no fogão e bebeu até não poder mais.
Vários meses mais tarde, no inverno de 1934, foi abordado por um homem pequeno e austero, com um par de dachshunds - Wilhelm Canaris, o novo chefe dos serviços secretos militares alemães. Canaris perguntou a Vogel se estaria disposto a trabalhar para a Abwehr. Vogel aceitou, com uma condição - que não fosse obrigado a filiar-se no partido nazi e, na semana seguinte, desapareceu no mundo dos serviços secretos militares alemães. Oficialmente, estava ao serviço como conselheiro legal interno de Canaris. Extraoficialmente, foi-lhe atribuída a tarefa de preparar a guerra contra os britânicos que Canaris considerava inevitável.
Naquele preciso momento, Vogel estava sentado à secretária debruçado sobre um memorando, com os nós dos dedos a pressionar as têmporas. Esforçava-se por se concentrar no meio do ruído o chocalhar do velho elevador à medida que se arrastava para cima e para baixo no poço mesmo por trás da parede, o respingar da chuva gelada nas janelas, a cacofonia das buzinas dos automóveis que
acompanhava a hora de ponta no entardecer de Berlim. Tirou as mãos das têmporas e tapou os ouvidos, apertando até fazer silêncio. O memorando tinha-lhe sido dado por Canaris naquele dia, algumas horas depois de a Velha Raposa ter regressado de uma reunião com Hitler, em Rastenburg. Canaris achava que parecia promissor e Vogel não podia deixar de concordar.
- Hitler quer resultados, Kurt - tinha dito Canaris, sentando-se atrás da antiga secretária desgastada, como um velho fidalgo impenetrável, com os olhos a percorrerem as prateleiras transbordantes de livros como se estivesse à procura de um volume precioso há muito perdido. - Ele quer provas de que é em Calais ou na Normandia. Talvez seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Vogel tinha lido o memorando uma vez, rapidamente. Naquele instante, estava a lê-lo uma segunda vez, mais cuidadosamente. Na verdade, era mais do que prometedor - era perfeito, a oportunidade de que estava à espera. Quando terminou, ergueu o olhar e sussurrou o nome de Ulbricht várias vezes, como se estivesse a falar diretamente ao ouvido dele. Por fim, não recebendo resposta, levantou-se e dirigiu-se à antessala. Ulbricht estava a limpar as Lugers.
- Werner, estou a chamá-lo há cinco minutos - disse Vogel, com uma voz quase inaudível.
- Peço desculpa, capitão. Não o ouvi.
- Quero ver o Míiller logo pela manhãzinha. Marque-me uma reunião para amanhã.
- Sim, senhor.
- E, Werner, faça qualquer coisa ao raio dos ouvidos. Tive de gritar a plenos pulmões ali dentro.
Os bombardeiros chegaram à meia-noite quando Vogel dormia uma sesta intermitente no gabinete numa dura cama de campanha. Pôs os pés no chão, levantou-se e dirigiu-se para a janela enquanto os aviões zumbiam lá em cima. Berlim estremecia à medida que os primeiros fogos deflagravam nos bairros de Pankow e Weissensee. Vogel
interrogou-se quanto mais poderia a cidade aguentar. Vastas secções da capital do Reich de mil anos já tinham sido reduzidas a destroços. Muitos dos mais famosos bairros da cidade pareciam desfiladeiros de tijolo pulverizado e aço retorcido. As tílias do Unter den Linden tinham sido queimadas, tal como grande parte dos bancos e lojas, outrora resplandecentes, que se estendiam pela ampla avenida. O famoso relógio da Igreja Memorial Kaiser Wilhelm tinha-se imobilizado nas 7h30 desde novembro, quando os bombardeiros aliados tinham devastado quatrocentos hectares de Berlim numa única noite.
O memorando girava na sua cabeça enquanto ele observava o ataque noturno.
ABWEHR/BERLIM XFU0465848261
PARA: CANARIS
DE: MULLER
DATA: 2 NOV43
A 21 DE OUTUBRO, O CAPITÃO DIETRICH DA BASE DE ASUNCION INTERROGOU O
OPERACIONAL AMERICANO SCORPIO NA CIDADE DO PANAMÁ. COMO SABE, SCORPIO É UM DOS NOSSOS AGENTES MAIS IMPORTANTES NA AMÉRICA. OCUPA UMA POSIÇÃO IMPORTANTE NOS CÍRCULOS FINANCEIROS DE NOVA IORQUE E TEM BOAS RELAÇÕES EM WASHINGTON. É AMIGO PESSOAL DE MUITOS QUADROS SUPERIORES DO MINISTÉRIO DA
GUERRA E DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS . ENCONTROU-SE PESSOAL-
MENTE com ROOSEVELT. AO LONGO DA GUERRA, AS SUAS INFORMAÇÕES TÊM SIDO ATEMPADAS E ALTAMENTE PRECISAS. RECORDO-LHE A INFORMAÇÃO QUE NOS FORNECEU
ACERCA DAS REMESSAS DE ARMAS AMERICANAS PARA OS BRITÂNICOS .
DE ACORDO com SCORPIO, UM REPUTADO ENGENHEIRO AMERICANO CHAMADO PETER
JORDAN FOI RECRUTADO PELA MARINHA AMERICANA NO MÊS PASSADO E ENVIADO PARA
LONDRES PARA TRABALHAR NUM PROJETO DE CONSTRUÇÃO ALTAMENTE SECRETO. JORDAN NÃO POSSUI NENHUMA EXPERIÊNCIA MILITAR ANTERIOR. SCORPIO CONHECE
JORDAN PESSOALMENTE E FALOU com ELE ANTES DA SUA PARTIDA PARA LONDRES.
SCORPIO AFIRMA QUE O PROJETO ESTÁ SEM DÚVIDA RELACIONADO com O PLANO DO
INIMIGO PARA INVADIR A FRANÇA.
JORDAN É RESPEITADO PELO TRABALHO DESENVOLVIDO EM VÁRIOS PROJETOS IMPORTANTES
DE PONTES AMERICANOS. JORDAN É VIÚVO. A MULHER, FILHA DO BANQUEIRO
AMERICANO BRATTON LAUTERBACH, MORREU NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM AGOSTO DE 1939 . SCORPIO ACHA QUE JORDAN É BASTANTE VULNERÁVEL A UMA ABORDAGEM
DE UM ELEMENTO FEMININO.
JORDAN VIVE ATUALMENTE SOZINHO, NA ZONA DE LONDRES CONHECIDA COMO KENSINGTON
. SCORPIO FORNECEU A MORADA DA CASA, BEM COMO A COMBINAÇÃO DO COFRE QUE SE ENCONTRA NO ESTÚDIO .
SUGIRA AÇÃO.
Vogel reparou num feixe de luz na soleira da porta e ouviu o arrastar da perna de pau de Ulbricht contra o chão. Os bombardeamentos perturbavam Ulbricht de um modo que ele não conseguia pôr em palavras e que Vogel nunca seria capaz de compreender. Retirou o porta-chaves da gaveta da secretária e dirigiu-se a um dos armários de aço. O ficheiro encontrava-se dentro de uma pasta negra sem identificação. Vogel voltou para a secretária, serviu-se de um grande copo de conhaque e abriu o dossiê. Estava lá tudo, as fotografias, o material relativo aos antecedentes, os relatórios de execução. Mas não precisava de o ler. Tinha sido ele a escrevê-lo e, tal como a pessoa em questão, era amaldiçoado com uma memória perfeita.
Virou mais algumas páginas e encontrou as notas que tinha redigido depois do primeiro encontro entre ambos, em Paris. Por baixo delas, estava uma cópia do telegrama que lhe fora enviado pelo homem que a tinha descoberto, Emilio Romero, um rico proprietário rural espanhol, um fascista, um caçador de talentos para a Abwehr.
Ela é tudo aquilo de que andas à procura. Gostava de ficar com ela para mim, mas, como sou amigo, vou dar-ta. A um preço razoável, é claro.
Na sala, fez-se de repente um frio de gelar os ossos. Vogel deitou-se na cama de campanha e tapou-se com um cobertor.
Hitler quer resultados, Kurt. Talve seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Por vezes, imaginava-se a deixá-la infiltrada até tudo ter terminado e, a seguir, a encontrar algum modo de a tirar de lá. Mas ela era perfeita para aquilo, claro. Era linda, era inteligente e o seu inglês e o conhecimento que tinha da sociedade britânica eram irrepreensíveis. Virou-se e viu a fotografia de Gertrude e das filhas. Pensar que tinha fantasiado abandoná-las por ela. Tinha sido tão tolo. Desligou as luzes. O ataque aéreo tinha terminado. A noite era uma sinfonia de sirenes. Tentou dormir, mas era escusado. Não a conseguia tirar da cabeça.
Pobre Vogel, pus-te o coração de pernas para o ar, não foi?
Os olhos da fotografia perfuravam-no. Era obsceno olhar para eles, recordá-la. Levantou-se, dirigiu-se para a secretária e guardou a foto na gaveta.
- Por amor de Deus, Kurt! - exclamou Múller quando Vogel entrou no seu gabinete, na manhã seguinte. - Quem é que te tem cortado o cabelo, meu amigo? Deixa-me dar-te o nome da mulher que tem cortado o meu, talvez ela te possa ajudar.
Vogel, exausto depois de uma noite de pouco sono, sentou-se e contemplou em silêncio a figura diante dele. Paul Múller era responsável pela rede dos serviços de informações da Abwehr nos Estados Unidos. Era baixo, atarracado e estava impecavelmente vestido com um fato francês lustroso. Tinha o cabelo liso com brilhantina penteado para trás, deixando a descoberto o rosto de querubim. A boca pequena era generosa e vermelha, como a de uma criança que acabou de comer doce de cereja.
- Vejam só, o grande Kurt Vogel aqui, no meu gabinete - exclamou Múller, com um sorriso afetado. - A que devo o privilégio?
Vogel retirou a cópia do memorando de Múller do bolso do casaco e abanou-a diante dele.
- Fala-me de Scorpio - disse.
- Então, o Velho lá fez circular finalmente o meu memorando. Olha para a data dessa maldita coisa. Dei-lhe isso há um mês e meio. Tem estado a apanhar pó na secretária dele. Essa informação é ouro. Mas vai para a Toca do Lobo e não volta mais - queixou-se Múller, fazendo depois uma pausa, acendendo um cigarro e lançando o fumo para o teto. - Sabes, Kurt, às vezes, pergunto-rne de que lado estará Canaris.
A observação não era invulgar naqueles tempos. Desde a prisão de vários membros do comando da Abwehr sob a acusação de traição, o moral em Tirpitz Ufer tinha caído para níveis até aí inauditos. Vogel pressentiu que a agência de serviços secretos militares da Alemanha se encontrava perigosamente à deriva. Tinha ouvido rumores de que Canaris deixara de agradar a Hitler. Havia até rumores entre
o staffde que Himmler estava a conspirar para fazer cair Canaris e colocar a Abwehr sob o controlo das SS.
- Fala-me de Scorpio - repetiu Vogel.
- Jantei com ele em casa de um diplomata americano - revelou Miiller, atirando a cabeça redonda para trás e contemplando o teto. - Antes da guerra, em 1937, creio
eu. vou verificar no dossiê dele para ter a certeza. O alemão do tipo era melhor do que o meu. Achava que os nazis eram um maravilhoso bando de companheiros a fazer
grandes coisas pela Alemanha. A única coisa que ele odiava mais do que os judeus eram os bolcheviques. Foi como uma audição. Recrutei-o eu mesmo no dia seguinte.
A presa mais fácil da minha carreira.
- Quais são os antecedentes dele? Múller sorriu:
- Investimento bancário. Ivy League, bons contactos com a indústria, amizades com meia Washington. As informações dele sobre a produção de armamento têm sido excelentes.
Vogel estava a dobrar o memorando e a guardá-lo outra vez no bolso.
- E o nome dele?
- Vá lá, Kurt. É um dos meus melhores agentes.
- Quero o nome dele.
- Este sítio é como uma peneira, sabes disso. Se eu te disser, toda a gente fica a saber.
- Quero uma cópia do dossiê dele na minha secretária daqui a uma hora - ordenou Vogel, com a voz baixa pouco mais do que um sussurro. - E quero tudo o que tenhas sobre o engenheiro.
- Posso dar-te as informações relacionadas com o Jordan.
- Quero tudo, e, se tiver de ir falar com o Canaris, faço isso.
- Oh, por amor de Deus, Kurt, não vais a correr ter com o tio Willy, pois não?
Vogel levantou-se e abotoou o casaco.
- Quero o nome dele e quero o dossiê dele. Vogel virou-se e saiu do gabinete.
- Kurt, volta aqui - gritou Múller. - Vamos resolver isto, por amor de Deus.
- Se quiseres falar, estou no gabinete do Velho - atirou Vogel afastando-se pelo corredor estreito.
- Muito bem, ganhaste - lançou Múller, com as mãos bem tratadas a vasculharem num arquivo. - Aqui está a merda do dossiê. Não tens de ir a correr ter com o tio Willy outra vez. Meu Deus, às vezes, és pior do que os cabrões dos nazis.
Vogel passou o resto da manhã a ler o dossiê sobre Peter Jordan. Quando terminou, retirou um par de ficheiros de um dos arquivos, voltou para a secretária e leu-os cuidadosamente.
O primeiro ficheiro continha informações sobre um irlandês que tinha trabalhado como espião durante um curto período de tempo, mas que deixara de o fazer porque as informações que recolhia eram consideradas fracas. Vogel ficara com o dossiê dele e colocara-o na folha de salários da Corrente-V. Vogel não estava preocupado com a péssima avaliação que o espião tinha recebido no passado - não andava à procura de um espião. Havia outras qualidades no agente que Vogel considerava interessantes. Era dono de uma pequena quinta, numa região isolada na costa de Norfolk, no Reino Unido. Era uma casa segura perfeita - suficientemente perto de Londres para se fazer a viagem de comboio em três horas, suficientemente longe para não estar cheia de agentes do MI5 à sua volta.
O segundo ficheiro continha o dossiê de um antigo paraquedista da Wehrmacht que fora impedido de continuar a saltar por causa de um ferimento na cabeça. O homem possuía todas as qualidades de que Vogel gostava - um inglês perfeito, bom olho para o pormenor, inteligência fria. Ulbricht tinha-o encontrado num posto de escuta de comunicações da Abwehr, no norte da França. Vogel colocou-o na folha de salários da Corrente-V e guardou-o para missões adequadas.
Vogel afastou os ficheiros e redigiu duas mensagens. Acrescentou os códigos a serem utilizados, as frequências em que as mensagens seriam enviadas e o horário de transmissão. De seguida, olhou para cima e chamou Ulbricht.
- Sim, Herr Kapitàn - disse Ulbricht ao entrar no escritório, coxeando pesadamente com a perna de pau.
Vogel olhou para Ulbricht durante um instante antes de falar, interrogando-se se o homem estaria à altura das exigências de uma operação como a que queria empreender. Ulbricht tinha vinte e sete anos, mas parecia ter, no mínimo, quarenta. Tinha o cabelo preto, cortado rente, salpicado de cinzento. Rugas de dor corriam como afluentes desde o canto do olho bom. Perdera o outro olho na explosão; a órbita vazia estava escondida por uma elegante pala negra. Uma Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro balançava-lhe ao pescoço. O botão de cima da túnica de Ulbricht estava desapertado porque o esforço que significava o mais simples movimento o punha a transpirar. Durante todo o tempo em que tinham trabalhado juntos, Vogel nunca ouvira Ulbricht queixar-se uma única vez.
- Quero que vá a Hamburgo amanhã à noite - informou Vogel, entregando a Ulbricht as transcrições das mensagens. - Mantenha-se ao pé do operador de rádio enquanto ele as estiver a enviar. Assegure-se de que não há nenhum engano. Certifique-se de que as confirmações dos agentes estão corretas. Se houver alguma coisa de invulgar,
quero ser informado. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Antes de ir, quero que me localize Horst Neumann. - Está em Berlim, creio eu.
- E onde é que está hospedado?
- Não tenho a certeza - disse Ulbricht. - Mas acho que há uma mulher envolvida.
- Normalmente há - disse Vogel, indo até à janela e olhando para baixo. - Contacte o staffàa quinta Dahlem. Diga-lhes que contem connosco hoje à noite. Quero que
vá lá ter amanhã, quando regressar de Hamburgo. Diga-lhes que vamos ficar uma semana. Temos muita coisa a estudar. E diga-lhes para preparar a plataforma de salto
no celeiro. Neumann já não salta de um avião há muito tempo. Vai precisar de treinar.
- Sim, senhor.
Ulbricht saiu, deixando Vogel sozinho no gabinete. Este ficou à janela durante bastante tempo, a pensar naquilo mais uma vez. Era o segredo mais bem guardado da guerra e planeava roubá-lo com uma mulher, um aleijado, um paraquedista que não podia saltar e um
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traidor britânico. Que grande equipa que tu reuniste, Kurt, meu velho. Se a sua pele não estivesse em jogo, teria achado tudo aquilo engraçado. Em vez disso, limitou-se a ficar ali, como uma estátua, observando a neve a acumular-se silenciosamente sobre o Tiergarten, roendo-se de preocupação.
SEIS LONDRES
Os Serviços Secretos e de Segurança do Império Britânico mais conhecidos pela sua designação enquanto serviços secretos militares, MI5 - tinham a sua sede num pequeno
e exíguo prédio de escritórios, no número 58 da St. James's Street. A ocupação do MI5 era a contraespionagem. No léxico da espionagem, contraespionagem significa
proteger segredos; e, quando necessário, capturar espiões. Durante grande parte dos seus quarenta anos de existência, os Serviços de Segurança labutaram à sombra do seu primo mais charmoso, os Serviços Secretos, ou MI6. Essas rivalidades internas não preocupavam muito o professor Vicary. Foi no MÍ5 que Vicary ingressou, .em maio de 1940, e era aí que, numa noite sombria e chuvosa cinco dias depois da conferência secreta de Hitler em Rastenburg, continuava a poder ser encontrado.
O último andar era a reserva particular dos quadros superiores o gabinete do diretor-geral, o seu secretariado, os diretores-adjuntos e os chefes de divisão. Era lá que ficava o gabinete do brigadeiro Sir Basil Boothby, escondido por trás de um par de intimidantes portas de carvalho. Um par de luzes brilhava por cima das portas: uma vermelha, que significava que a sala estava demasiado exposta para se permitir o acesso, e outra verde, cujo significado era: entre por sua própria conta e risco. Vicary, como sempre, hesitou antes de carregar na campainha.
Vicary tinha sido convocado às nove horas, enquanto estava a fechar as suas coisas à chave no armário cinzento-escuro e a arrumar
a cabana, o nome que dava ao seu pequeno gabinete. Quando o MI5 explodiu em tamanho, no início da guerra, o espaço tornou-se um bem precioso. Vicary foi relegado para um cubículo sem janelas, do tamanho de um armário de vassouras, com uma burocrática e desgastada carpete verde e uma pequena e robusta secretária de diretor de escola. O parceiro de Vicary, um antigo agente da Polícia Metropolitana chamado Harry Dalton, sentava-se com os outros membros menos importantes numa área comum,
no centro do piso. Em torno desse sítio, havia uma azáfama própria de uma sala de redação, e Vicary apenas se aventurava até lá quando era absolutamente necessário.
Oficialmente, Vicary ocupava o posto de major no Corpo dos Serviços Secretos, embora os postos militares não significassem quase nada dentro do departamento. A maioria do staff referia-se habitualmente a ele como Professor, e Vicary apenas tinha vestido o uniforme duas vezes. No entanto, a maneira de vestir de Vicary mudara. Abandonara os fatos de tweed da universidade, vestindo em vez disso fatos de um cinzento-escuro que tinha comprado antes de a roupa, tal como tudo o resto, ter sido racionada. Por vezes, deparava com um conhecido ou com um velho colega do University College. Apesar dos incessantes avisos do governo sobre os perigos de conversas imprudentes, perguntavam inevitavelmente a Vicary o que estava a fazer ao certo. Normalmente, ele sorria com ar cansado, encolhia os ombros e dava a resposta prescrita: estava a trabalhar num departamento muito aborrecido do Ministério da Guerra.
Por vezes, era aborrecido, mas não acontecia frequentemente. Churchill tinha razão - era tempo de regressar ao mundo dos vivos. A chegada ao MI5, em maio de 1940, tinha sido um renascimento. Desabrochou na atmosfera dos serviços secretos em tempo de guerra: as longas horas, as crises, até mesmo o chá horrível da cantina. Até tinha voltado a fumar cigarros, a que tinha renunciado no último ano em Cambridge. Adorava ser ator no teatro da realidade. Duvidava seriamente se conseguiria voltar a sentir-se satisfeito no santuário do mundo académico.
Era evidente que as horas e a tensão estavam a produzir os seus efeitos, mas nunca se sentira tão bem. Conseguia trabalhar mais tempo e precisava de dormir menos. Quando acabava por ir para a cama,
adormecia imediatamente. À semelhança dos outros agentes, passava muitas noites na sede do MI5, dormindo na pequena cama de campanha que conservava fechada junto à secretária.
Apenas os maus-tratos infligidos aos óculos em meia-lua sobreviveram à catarse de Vicary - continuavam manchados e ameigados e eram uma espécie de piada dentro do departamento. Em momentos de aflição, ainda os procurava batendo nos bolsos distraidamente e punha-os para se reconfortar.
Era o que fazia naquele momento, quando a luz por cima da porta do gabinete de Boothby ficou de repente verde. Vicary carregou na campainha, com o ar pensativo de um homem prestes a assistir ao funeral de um amigo de infância. A campainha tocou suavemente, a porta abriu-se e Vicary entrou.
O gabinete de Boothby era grande e largo, com belas pinturas, uma lareira a gás, valiosos tapetes persas e uma vista magnífica fornecida pelas janelas altas. Sir Basil deixou Vicary à espera os dez minutos da praxe e entrou por fim na sala, por uma segunda porta, que ligava o gabinete ao secretariado do diretor-geral.
O brigadeiro Sir Basil Boothby tinha o tamanho e a escala típicos de um inglês - alto, magro, exibindo ainda sinais da agilidade física que tinha feito dele um atleta
famoso nos tempos de estudante. Via-se isso no modo fácil como o braço forte segurava a bebida, nos ombros quadrados e no pescoço grosso, nos quadris estreitos onde calças, colete e casaco convergiam numa perfeição graciosa. Tinha a beleza vigorosa que um certo tipo de mulheres mais novas acha atraente. O cabelo e as sobrancelhas de um louro-acinzentado eram tão exuberantes que os espirituosos do departamento se referiam a ele como o escovilhão do quinto andar.
Oficialmente, pouco se sabia acerca da carreira de Boothby apenas que tinha feito parte das organizações de serviços secretos e contraterrorismo britânicas ao longo de toda a sua vida profissional. Vicary achava que a má-língua e os rumores que envolviam um homem diziam mais sobre ele do que o seu currículum vitae. As especulações acerca de Boothby tinham dado origem a uma atividade verdadeiramente próspera dentro do departamento. Segundo o que se
dizia, Boothby tinha dirigido uma rede de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial, que se infiltrara no estado-maior alemão. Em Deli, executou ele próprio um indiano acusado do assassínio de um cidadão britânico. Na Irlanda, espancou um homem até à morte com a coronha da pistola por se recusar a divulgar a localização de um esconderijo de armas. Era especializado em artes marciais e utilizava o tempo livre para manter a sua perícia. Era ambidestro e conseguia escrever, fumar, beber o gim e a cerveja amarga ou partir um pescoço com qualquer uma das mãos. Jogava ténis tão bem que poderia ter ganho o torneio de Wimbledon. Enganadora era a palavra utilizada mais frequentemente para descrever a forma como jogava e a capacidade para mudar de mão a meio de um jogo continuava a desconcertar os adversários. A sua vida sexual era muito discutida e debatida
- um mulherengo implacável que tinha levado para a cama metade das datilógrafas e das raparigas da divisão dos Registos e, simultaneamente, homossexual.
Na opinião de Vicary, Sir Basil Boothby simbolizava tudo o que havia de errado nos serviços secretos britânicos entre as duas guerras mundiais - o inglês de boas famílias, educado em Eton e Oxford, que achava que o exercício secreto do poder era um direito adquirido por nascimento, tal como a fortuna da família e a mansão secular em Hampshire. Inflexível, indolente, ortodoxo, um polícia de sapatos feitos à mão e fato da Savile Row. Boothby tinha sido eclipsado intelectualmente pelos novos recrutas atraídos para o MI5 desde o início da guerra - os melhores cérebros das universidades, os melhores advogados dos escritórios mais prestigiados de Londres. Naquele momento, encontrava-se numa posição nada invejável - a supervisionar homens que eram mais espertos do que ele, ao mesmo tempo que tentava ficar com os louros burocráticos pelas façanhas deles.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Alfred. Tive uma reunião nas Salas de Guerra Subterrâneas com Churchill, o diretor-geral, Menzies e Ismay. Receio bem que tenhamos uma grave crise nas nossas mãos. vou beber brandy com soda. O que vai tomar?
- Uísque - respondeu Vicary, observando Boothby.
Apesar de ser um dos agentes mais importantes do MI5, Boothby ainda tinha um orgulho infantil em pronunciar os nomes das pessoas poderosas com quem se encontrava regularmente. O grupo de
homens que se tinha acabado de reunir na fortaleza subterrânea do primeiro-ministro era a elite da comunidade dos serviços secretos britânica durante o período da guerra - o diretor-geral do MI5, Sir David Petrie; o diretor-geral do MI6, Sir Stewart Menzies; e o chefe da equipa pessoal de Churchill, o general Sir Hastings Ismay. Boothby carregou num botão na mesa e pediu à secretária para trazer a bebida de Vicary. Foi até à janela, levantou a cortina opaca e olhou lá para fora.
- Peço a Deus que não venham outra vez hoje à noite, a maldita Luftwaffe. Era diferente em 1940. Era tudo novo e excitante, de um modo estranho. Transportar o próprio capacete de aço debaixo do braço para ir jantar. Correr para os abrigos. Assistir ao fogo nos telhados. Mas não acho que Londres consiga suportar outro inverno com uma Blitz em plena força. As pessoas estão todas tão cansadas. Cansadas, esfomeadas, esfarrapadas e fartas das humilhações mesquinhas que acompanham uma guerra. Não sei bem quanto mais é que este país consegue aguentar.
A secretária de Boothby trouxe a bebida de Vicary. Vinha no centro de uma bandeja de prata, em cima de um guardanapo de papel branco. Boothby tinha uma obsessão com as manchas de água na mobília do escritório. Sentou-se numa cadeira ao lado de Vicary e cruzou as pernas compridas, com a biqueira do sapato engraxado a apontar para a rótula de Vicary como uma arma carregada.
- Temos uma nova missão para si, Alfred. E de modo que possa compreender verdadeiramente a sua importância, decidimos que é necessário levantar um pouco o véu e mostrar-lhe um bocadinho mais do que lhe foi permitido ver até agora. Compreende o que lhe estou a dizer?
- Creio que sim, Sir Basil.
- O Alfred é que é o historiador. Sabe muito acerca de Sun-Tzu?
- A China do século iv a.C. não é propriamente a minha área, Sir Basil. Mas já o li.
- E sabe o que é que Sun-Tzu escreveu sobre o logro militar, Alfred?
- Sun-Tzu escreveu que toda a guerra tem por base o logro. Pregava que todas as batalhas eram ganhas ou perdidas antes de sequer serem travadas. O conselho era simples...
ataca o inimigo quando ele está desprevenido e surge onde não és esperado. Disse que era vital minar o inimigo, subvertê-lo e corrompê-lo, semear a discórdia interna entre os seus líderes e destruí-lo sem o combater.
- Muito bem, Alfred - exclamou Boothby, visivelmente impressionado. - Infelizmente, nunca seremos capazes de destruir Hitler sem o combatermos. E para termos alguma hipótese de o derrotar num combate, temos de o enganar primeiro. Temos de prestar atenção a essas palavras sábias de Sun-Tzu. Temos de surgir onde não somos esperados.
Boothby levantou-se, dirigiu-se à secretária e trouxe uma pasta segura. Era de metal - da cor da prata polida - e tinha algemas presas à pega.
- Está prestes a ser Bigoted- disse Boothby, abrindo a pasta.
- Peço desculpa?
- Bigoted- é uma classificação ultrassecreta desenvolvida especialmente para ocultar a invasão. O nome vem de um selo que colocámos em documentos transportados por agentes britânicos para Gibraltar para a invasão do Norte de África. To Gib - para Gibraltar. Apenas pusemos as letras ao contrário. To Gib tornou-se BIGOT.
- Estou a perceber - disse Vicary.
Quatro anos depois de ter chegado ao MI5, Vicary ainda considerava ridículos muitos dos nomes de código e classificações de segurança.
- BIGOT refere-se agora a quem conheça o segredo mais importante da Operação Overlord... o momento e o local da invasão da França. Se souber o segredo, é um BIGOT. Todos os documentos relacionados com a invasão levam um selo BIGOT.
Boothby abriu a pasta, meteu a mão lá dentro e tirou um dossiê bege. Pousou-o cuidadosamente na mesa de café. Vicary olhou para a capa e de seguida para Boothby. Estava identificada com a espada e o escudo do SHAEF - o Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas - e carimbada com um selo BIGOT. Por baixo, estavam as palavras Plano Bodyguard [Escolta], seguidas pelo nome de Boothby e um número de distribuição.
- É uma irmandade muito pequena aquela em que está prestes a entrar... apenas algumas centenas de agentes - retomou Boothby. E há quem ache que isso já é demasiado. E também o devo informar de que os seus antecedentes pessoais e profissionais foram amplamente investigados. Nenhuma pedra ficou por virar, como se costuma dizer. Fico feliz por lhe transmitir que não é membro conhecido de nenhuma organização fascista ou comunista, que não bebe em excesso, pelo menos em público, que não anda com mulheres dissolutas e que não é homossexual nem qualquer outro tipo de depravado sexual.
- É bom saber.
- E também o devo informar de que pode ser alvo de verificações de segurança e vigilância adicionais em qualquer altura. Nenhum de nós foi isentado disso. Nem mesmo o general Eisenhower.
- Compreendo, Sir Basil.
- Muito bem. Primeiro, gostava de lhe fazer uma pergunta ou duas. O seu trabalho tem-se debruçado sobre a invasão. O número de casos que tratou tem-lhe dado uma ideia sobre alguns dos preparativos. Onde acha que planeamos atacar?
- Baseado no pouco que sei, diria que os vamos atacar na Normandia.
- E como é que avalia as possibilidades de sucesso de um desembarque na Normandia?
- As invasões anfíbias são, por natureza, a mais complexa de todas as operações militares - respondeu Vicary. - Especialmente quando envolvem o canal da Mancha. Júlio César e Guilherme, o Conquistador, conseguiram fazê-lo. Napoleão e os espanhóis falharam. Hitler acabou por desistir em 1940. Eu diria que as probabilidades de uma invasão bem-sucedida não ultrapassam os cinquenta por cento.
Boothby resmungou:
- Se tanto, Alfred, se tanto.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete.
- Até agora, conseguimos levar a bom porto três operações anfíbias... Norte de África, Sicília e Salerno. Mas nenhum desses desembarques envolveu uma costa fortificada.
Boothby parou de caminhar e olhou para Vicary.
- Tem razão, já agora. É na Normandia. E está agendado para o final da primavera. E para termos sequer essas suas probabilidades de sucesso de cinquenta por cento,
Hitler e os generais deles têm de pensar que vamos atacar noutro lugar - revelou Boothby, sentando-se e pegando no dossiê. -
É por isso que desenvolvemos isto: chama-se
Plano Bodyguard. Sendo historiador, acho que terá uma estima especial pelo Plano Bodyguard. É uma ruse deguerre de uma amplitude e ambição nunca antes tentadas.
O nome de código não significava nada para Vicary. Boothby prosseguiu com a sua palestra de doutrinação:
-Já agora, o Plano Bodyguard chamava-se Plano Jael. Recebeu o seu novo nome por respeito a uma observação bastante eloquente que o primeiro-ministro fez a Estaline,
em Teerão. Churchill disse: Em tempo de guerra, a verdade é Ião preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras. O Velho tem um certo jeito
para as palavras, reconheço-lhe. O Plano Bodyguard não é apenas uma operação.
É o nome de código para todas as operações estratégicas de cobertura e logro que serão
levadas a cabo numa escala global, com o intuito de enganar Hitler e o seu cstado-maior em relação às nossas intenções no Dia D.
Boothby pegou no dossiê e folheou-o furiosamente.
- A componente mais importante do Plano Bodyguard é a Operação Fortitude [Fortaleza]. O objetivo da Fortitude é atrasar ao máximo a reação da Wehrmacht à invasão,
levando-os a acreditar que outras partes do noroeste da Europa também estão sob ameaça direta de ataque, especificamente a Noruega e o Pas-de-Calais.
"O nome de código do logro norueguês é Fortitude Norte. O objetivo é forçar Hitler a deixar vinte e sete divisões na Escandinávia, convencendo-o de que planeamos atacar a Noruega, antes ou mesmo depois do Dia D. A Fortitude Su] é a mais crucial e, atrevo-me a dizer, a mais perigosa das duas operações.
Boothby passou para outra página do dossiê e suspirou profundamente.
- O objetivo da Fortitude Sul é convencer lentamente Hitler, os generais e os agentes secretos dele de que pretendemos organizar não
uma invasão da França, mas duas. O primeiro ataque, de acordo com a Fortitude Sul, deverá ser uma manobra de diversão na baía do Sena, na Normandia. O segundo ataque,
o golpe principal, terá lugar três dias mais tarde, do outro lado do estreito de Dover, em Calais. A partir de Calais, os nossos exércitos invasores podem seguir
diretamente para leste e entrar na Alemanha em poucas semanas - explicou Boothby, fazendo uma pausa para dar um gole no brandy com soda e permitir que as suas palavras
fossem assimiladas. - Segundo a Operação Fortitude, o objetivo do primeiro assalto é forçar Rommel e Von Rundstedt a lançarem as unidades Panzer de elite do Décimo
Quinto Exército Alemão na Normandia, deixando assim Calais desprotegida quando a verdadeira invasão ocorrer. Obviamente, nós queremos que aconteça o contrário. Queremos que os Panzers do Décimo Quinto Exército se mantenham em Calais, à espera da verdadeira invasão, paralisados pela indecisão, enquanto desembarcamos na Normandia.
- De uma simplicidade brilhante.
- Absolutamente - retorquiu Boothby. - Mas com uma fraqueza flagrante. Não dispomos de homens suficientes para a levar a cabo. No final da primavera, haverá apenas trinta e sete divisões no Reino Unido, americanas, britânicas e canadianas, o que mal chega para organizar um ataque contra a França, muito menos dois. Para que a Operação Fortitude tenha alguma possibilidade de sucesso, temos de convencer Hitler e os seus generais de que temos as divisões necessárias para organizar duas invasões.
- E como raio vamos fazer isso?
- Ora, vamos criar simplesmente um exército de um milhão de homens. Vamos fazê-lo aparecer como que por encanto, a partir, receio bem, do nada.
Vicary deu um gole na bebida e olhou fixamente para Boothby, de rosto incrédulo.
- Não podem estar a falar a sério.
- Podemos, sim, Alfred, estamos a falar muito a sério. Para que a invasão tenha a tal hipótese em duas de ser bem-sucedida, temos de convencer Hitler, Rommel e Von Rundstedt de que dispomos de uma força gigantesca e poderosa dissimulada nas falésias de Dover,
à espera para atacar em força o outro lado do canal da Mancha, em Calais. Não a teremos, como é óbvio. Mas, quando terminarmos, os alemães vão acreditar que se encontram face a uma força viva e verdadeira, com umas trinta divisões. Se não acreditarem que essa força existe, se falharmos e perceberem o nosso logro, há uma grande probabilidade de o regresso à Europa, como Churchill lhe chama, acabar num fracasso sangrento e cataclísmico.
- E esse exército fantasma tem nome? - perguntou Vicary.
- Naturalmente: o First United States Army Group. FUSAG, para abreviar. Até tem um comandante, o próprio Patton. À sua disposição, Patton terá à volta de um milhão de homens. Correspondendo maioritariamente a nove divisões do Terceiro Exército dos Estados Unidos e a duas divisões do Primeiro Exército Canadiano. O FUSAG até tem um quartel-general em Londres, em Bryanston Square.
Vicary pestanejou rapidamente, tentando digerir as informações extraordinárias que estava a receber. Imagine-se, criar um exército de um milhão de homens a partir do nada. Boothby tinha razão: era uma rase de guerre de proporções inimagináveis. Fazia o cavalo de Tróia de Ulisses parecer uma brincadeira de crianças.
- Hitler não é nenhum tolo, nem os generais dele. Aprenderam bem as lições de Clausewitz e Clausewitz deu alguns conselhos muito valiosos sobre a espionagem em tempo de guerra: Grande parte das informações obtidas na guerra é contraditória, uma parte ainda considerável é falsa
e, de longe, a maior parte é duvidosa. Os alemães não vão acreditar que existe um exército de um milhão de homens acampado na zona rural de Kent só porque nós lhes dizemos que assim é.
Boothby sorriu, voltou a meter a mão na pasta e tirou outro dossiê.
- É verdade, Vicary. E foi por isso que inventámos isto: a Operação Mercury. O objetivo da Operação Mercury é dar carne e ossos ao nosso pequeno exército de fantasmas. Nas próximas semanas, à medida que as forças fantasma do FUSAG começarem a chegar ao Reino Unido, vamos inundar as ondas rádio de tráfego, com algumas comunicações enviadas em códigos que sabemos que os alemães já quebraram e outras en clair. Tudo tem de ser perfeito, exatamente como aconteceria se fôssemos colocar um verdadeiro exército de um milhão de homens em Kent. Quartéis-mestres a queixarem-se da falta
de tendas. Messes insurgindo-se contra a escassez de comida e de talheres. Conversas via rádio durante os exercícios. A partir deste momento e até à invasão, vamos bombardear os postos de escuta deles no norte da França com perto de um milhão de mensagens. E algumas dessas mensagens darão aos alemães uma pequena pista, ínfimas informações sobre a localização das forças ou o seu posicionamento. Obviamente, queremos que os alemães descubram essas pistas e se agarrem a elas.
- Um milhão de mensagens via rádio? Como é isso possível?
- com o US 3103 Signals Service Battalion. Vão trazer uma equipa formidável - atores da Broadway, estrelas da rádio, especialistas em vozes. Homens que conseguem imitar o sotaque de um judeu de Brooklyn num minuto e o horrível tom arrastado de um trabalhador agrícola do Texas no outro. Vão gravar as mensagens falsas num estúdio, em discos de dezasseis polegadas, e depois emiti-las em camiões a circular pela zona rural de Kent.
- Inacreditável - exclamou Vicary baixinho.
- Sim, completamente. E isso é só uma parte. A Operação Mercury é responsável pelo que os alemães vão ouvir através do ar. Mas também temos de ter em conta o que eles vão ver a partir ao ar. Temos de fazer com que pareça que um gigantesco exército se está a reunir lenta e metodicamente no canto sudeste do país. Tendas que cheguem para albergar um milhão de homens, uma gigantesca armada de aviões, tanques e barcos de desembarque. Até vamos construir o raio de um depósito de gasolina em Dover.
Vicary disse:
- Mas, Sir Basil, de certeza que não dispomos de aviões, tanques e lanchas de desembarque suficientes para desperdiçar num logro.
- Claro que não. Vamos ser nós próprios a construí-los, com contraplacado e lona. Vistos do solo, vão parecer exatamente o que são: falsificações toscas e preparadas à pressa. Mas vistos do ar, pelas objetivas das câmaras de vigilância da Luftwaffe, vão parecer verdadeiros.
- E como podemos ter a certeza de que os aviões de vigilância vão conseguir penetrar nas nossas defesas?
Boothby fez um grande sorriso, terminou a bebida e acendeu um cigarro calmamente.
- Agora está a compreender, Alfred. Nós temos a certeza de que eles vão conseguir penetrar nas nossas defesas porque vamos deixar. Nem todos, claro. Eram capazes de perceber que havia marosca se fizéssemos isso. A RAF e os aviões americanos vão patrulhar constantemente os céus sobre o nosso FUSAG. E vão perseguir alguns dos invasores. Mas a alguns deles, apenas àqueles que estiverem a voar acima dos trinta mil pés, devo acrescentar, será permitido penetrar. Se tudo correr de acordo com o guião, os analistas de vigilância aérea de Hitler vão dizer-lhe a mesma coisa que os agentes responsáveis pelas escutas no norte da França lhe estão a dizer, que existe uma gigantesca força aliada a postos no Pas-de-Calais.
Vicary estava a abanar a cabeça.
- Comunicações via rádio e fotografias aéreas, duas das formas que os alemães têm para recolher informações acerca das nossas intenções. A terceira forma é, claro, através de espiões.
Mas sobravam realmente alguns espiões? Em setembro de 1939, no dia em que a guerra rebentou, o MI5 e a Scotland Yard empreenderam uma gigantesca rusga, reunindo todos aqueles de que desconfiavam. Foram todos presos, transformados em agentes duplos ou enforcados. Em maio de 1940, quando Vicary chegou, o MI5 estava prestes a capturar os novos espiões que Canaris enviava para Inglaterra para recolherem informações sobre a futura invasão. Esses novos espiões sofreram o mesmo destino que a vaga anterior.
Caçador de espiões não era a expressão apropriada para descrever o que Vicary fazia no MI5. Era tecnicamente um agente da Operação Double Cross [Dupla Traição]. Tinha a missão de garantir que a Abwehr continuava a acreditar que os seus espiões ainda se encontravam infiltrados, a recolher informações e a enviá-las para os agentes que os controlavam a partir de Berlim. Manter os agentes vivos, para a Abwehr, trazia vantagens óbvias. O MI5 tinha sido capaz de manipular os alemães desde o início da guerra, controlando o fluxo de informações saído das Ilhas Britânicas. Isso também fez com que a Abwehr não enviasse novos agentes para Reino Unido, já que Canaris e os agentes de controlo julgavam que a maioria dos espiões ainda se encontrava ativa.
- Exato, Alfred. A terceira fonte de informações de Hitler sobre a invasão são os espiões dele. Os espiões de Canaris, melhor dizendo.
E nós sabemos como eles são eficazes. Os agentes alemães sob o nosso controlo vão dar um contributo vital ao Plano Bodyguard, confirmando a Hitler muito do que ele consegue ver a partir dos céus e ouvir através das ondas rádio. De facto, um dos nossos agentes duplos, Tate, já foi posto em jogo.
Tate ficou com esse nome de código por causa de uma extraordinária parecença com o popular comediante de music hall Harry Tate. O seu nome verdadeiro era Wulf Schmidt, um agente da Abwehr que saltou de paraquedas de um Heinkel 111 para a zona rural de Cambridgeshire, na noite de 19 de setembro de 1940. Vicary, embora não lhe tivessem atribuído o caso Tate, sabia o essencial. Tendo passado a noite ao relento, enterrou o paraquedas e o rádio e, a seguir, dirigiu-se à povoação mais próxima. O primeiro sítio em que parou foi a barbearia de Wilfred Searle, onde comprou um relógio de bolso para substituir o relógio de pulso que tinha esmagado ao saltar do Heinkel. Depois, comprou um exemplar do Times à senhora Field, a vendedora de jornais, lavou o tornozelo inchado na bomba da povoação e tomou o pequeno-almoço num pequeno café. Por fim, às dez da manhã, foi preso pelo soldado tom Cousins, da reserva territorial da zona. No dia seguinte, levaram-no de carro para as instalações de interrogatório do MI5, em Ham Common, no condado de Surrey, e foi aí que, após treze dias de interrogatório, Tate concordou em trabalhar como agente duplo e enviar mensagens da Operação Double Cross para Hamburgo através do rádio.
- A propósito, Eisenhower está em Londres. Do nosso lado, só um número muito restrito é que sabe disso. No entanto, Canaris sabe disso. E agora Hitler também o sabe. Na verdade, os alemães sabiam que Eisenhower estava cá antes de ele se instalar para passar a primeira noite em Hayes Lodge. E sabiam que ele estava cá porque Tate lhes disse que ele estava cá. Foi perfeito, claro, uma informação aparentemente importante, mas no entanto completamente inofensiva. Agora, a Abwehr acha que Tate tem uma fonte importante e credível dentro do SHAEF. Essa fonte será crucial à medida que a invasão se aproximar. Vão dar uma mentira importante a Tate para ele transmitir. E, com alguma sorte, a Abwehr também vai acreditar nela.
"Nas próximas semanas, os espiões de Canaris vão começar a ver sinais de um grande aumento de homens e material no sudeste de Inglaterra. Vão ver tropas canadianas e americanas. Vão ver acampamentos e áreas de reagrupamento. Vão ouvir histórias do povo britânico acerca dos terríveis inconvenientes de ter tantos soldados amontoados num lugar tão pequeno. Vão ver o general Patton a andar pelas povoações da East Anglia com as suas botas engraxadas e o seu revólver com a coronha de marfim. Os que forem bons até vão ficar a saber os nomes dos comandantes de topo deste exército e enviar esses nomes para Berlim. A sua própria rede da Operação Double Cross vai desempenhar um papel decisivo, Alfred.
Boothby parou por uns instantes, esmagou o cigarro e acendeu outro logo de imediato.
- Mas o Alfred está a abanar a cabeça. Suspeito que tenha descoberto o calcanhar de Aquiles de todo este plano de logro.
Os lábios de Vicary curvaram-se num sorriso cuidadoso. Porventura, Boothby, sabendo do amor de Vicary pela história e tradições gregas, percebera que ele iria pensar automaticamente na Guerra de Tróia ao ser informado dos pormenores da Operação Fortitude.
- Posso? - perguntou Vicary, apontando para o maço de cigarros Player's. - Acho que deixei os meus lá em baixo.
- Claro - respondeu Boothby, passando o maço a Vicary e oferecendo-lhe a chama do seu isqueiro.
- Aquiles morreu depois de ser atingido por uma seta no seu único ponto vulnerável, o calcanhar - disse Vicary. - O calcanhar de Aquiles da Operação Fortitude é o facto de poder ir por água abaixo com um relatório genuíno de uma fonte em que Hitler confie. Será necessário manipular por completo todas as fontes de informação que Hitler e os seus agentes secretos possuam. Têm todas de ser envenenadas para que a Operação Fortitude funcione. Hitler tem de ser apanhado numa rede completa de mentiras. Se uma nesga de verdade conseguir passar, todo o estratagema poderá ir por água abaixo.
Parando para fumar o seu Player's, Vicary não pôde resistir a estabelecer um paralelo histórico.
- Quando acabaram com Aquiles, a armadura dele foi dada a Ulisses. A nossa armadura, receio bem, vai ser dada a Hitler.
Boothby pegou no copo vazio e girou-o conscientemente na sua larga palma da mão.
- Esse é o perigo inerente a todos os logros militares, não é, Alfred? Indicam quase sempre o caminho para a verdade. O general Morgan, o autor do plano da invasão,
disse-o melhor. Bastaria um espião decente alemão percorrer a costa sul de Inglaterra, da Cornualha a Kent. Se isso acontecesse, tudo isto desabaria. E, ao mesmo tempo, as esperanças da Europa. E foi por isso que estivemos a noite toda enfiados numa sala com o primeiro-ministro e é por isso que o Alfred está aqui agora.
Boothby levantou-se e recomeçou a andar lentamente de um lado para o outro do gabinete.
- A partir deste momento, estamos a agir partindo do pressuposto de que envenenámos de facto todas as fontes de informação de Hitler. E também estamos a agir partindo do pressuposto de que temos todos os espiões de Canaris no Reino Unido contabilizados e de que nenhum está a atuar fora do nosso controlo. Não nos estaríamos a lançar num estratagema como a Operação Fortitude se não fosse esse o caso.
Boothby afastou-se da fraca luz do candeeiro e desapareceu num canto escuro do gabinete.
- Na semana passada, Hitler organizou uma conferência em Rastenburg. Estiveram lá os pesos pesados todos, Rommel, Von Rundstedt, Canaris e Himmler. O assunto foi a invasão. Especificamente, o momento e o local da invasão. Hitler encostou uma arma à cabeça de Canaris - figurativamente, não literalmente - e ordenou-lhe que descobrisse a verdade ou teria de enfrentar consequências bastante penosas. Canaris, por sua vez, atribuiu essa tarefa a um homem da sua equipa chamado Vogel, Kurt Vogel. Até agora, sempre acreditámos que Kurt Vogel era o conselheiro legal de Canaris. Como é óbvio, estávamos enganados. A sua missão, Alfred, é garantir que Kurt Vogel não descobre a verdade. Não tive oportunidade de ler o dossiê dele. Suspeito que a divisão dos Registos possa ter alguma coisa sobre ele.
- Certo - exclamou Vicary.
Boothby estava outra vez iluminado pela ténue luz. Franziu o sobrolho ligeiramente, como se tivesse ouvido por acaso alguma coisa
desagradável na sala ao lado, e depois mergulhou num longo silêncio especulativo.
- Alfred, quero que uma coisa fique completamente clara desde o início deste caso. O
primeiro-ministro insistiu para que a missão lhe fosse atribuída a si, perante
as enérgicas objeções do diretor-geral e as minhas.
Vicary fitou Boothby olhos nos olhos por um momento e, a seguir, sentindo-se embaraçado com o comentário, desviou o olhar. Deixou que os olhos divagassem pelas paredes.
Pelas dezenas de fotografias de Sir Basil com pessoas famosas. Pelo painel de carvalho muito bem polido. Pelo velho remo pendurado na parede, estranhamente desenquadrado naquele cenário formal. Talvez fosse uma recordação de tempos mais felizes e menos complicados, pensou Vicary. De um rio gelado ao nascer do Sol. De Oxford contra Cambridge. De viagens de comboio para casa em tardes frescas de outono.
- Permita-me que lhe explique o comentário. O Alfred tem feito um ótimo trabalho. A sua rede Becker tem-se revelado um sucesso assombroso. Mas tanto o diretor-geral
como eu achamos que um homem mais experiente se poderia adequar melhor a um caso como este.
- Compreendo - retorquiu Vicary.
Um homem mais experiente significava um oficial de carreira e não um desses novos recrutas de que Boothby desconfiava tanto.
- Mas, obviamente - retomou Boothby -, não fomos capazes de convencer o primeiro-ministro de que o Alfred não era o melhor homem para este caso. Por isso, é seu. Vá-me atualizando regularmente sobre os desenvolvimentos. E boa sorte, Alfred. Suspeito que vá precisar.
SETE LONDRES
Em janeiro de 1944, o clima tinha reocupado o seu lugar enquanto obsessão principal do povo britânico. O verão e outono tinham sido invulgarmente secos e quentes;
o inverno, quando chegou, invulgarmente frio. Nevoeiros gelados subiam do rio, assolavam Westminster e Belgravia, pairavam como o fumo de um revólver sobre as ruínas de Battersea e Southwark. A Blitz era pouco mais do que uma recordação longínqua. As crianças tinham regressado. Enchiam as lojas de brinquedos e os grandes armazéns, com as mães a reboque, trocando prendas de Natal que não queriam por artigos mais convenientes. Na noite de Ano Novo, grandes multidões atolaram Piccadilly Circus. Tudo poderia até ter parecido normal, não fosse a celebração ter tido lugar na escuridão do blackout. Mas, passados alguns dias, a Luftwaffe, depois de uma longa e agradável ausência, regressou aos céus de Londres.
Às oito horas dessa noite, Catherine Blake correu pela ponte de Westminster. Havia incêndios ao longo do East End e das docas, projéteis luminosos e holofotes cruzavam o céu noturno. Catherine conseguia ouvir o baque surdo do fogo proveniente das baterias antiaéreas em Hyde Park e ao longo do Embankment e sentir o sabor acre do fumo vindo dos céus. Sabia que a aguardava uma noite longa e atarefada.
Virou para a Lambeth Palace Road e ocorreu-lhe um pensamento absurdo - estava absolutamente esfomeada. Nunca houvera tão
pouca comida disponível. O outono seco e o frio implacável do inverno tinham-se aliado para eliminar quase todas as verduras do país. As batatas e as couves-de-bruxelas eram iguarias. Os nabos e as rutabagas eram os únicos alimentos abundantes. Pensou: Se eu tiver de comer mais um nabo, dou um tiro na cabeça. Ainda assim, suspeitava que as coisas estariam muito piores em Berlim.
Um polícia - um homem baixo e gordo que parecia demasiado velho para entrar no exército - vigiava a entrada da Lambeth Palace Road. Levantou a mão e, gritando acima dos uivos das sirenes de ataque aéreo, pediu-lhe a identificação.
Como sempre, o coração de Catherine pareceu parar.
Mostrou-lhe um distintivo que a identificava como membro do Serviço de Voluntariado Feminino. O polícia deu uma olhadela ao distintivo e depois à cara dela. Catherine tocou no ombro do polícia e inclinou-se para ele de modo que quando falasse ele sentisse a respiração dela no ouvido. Era uma técnica que utilizava há vários anos para neutralizar os homens.
Catherine disse:
- Sou enfermeira voluntária no Hospital St. Thomas.
O polícia levantou os olhos. Pela expressão que tinha no rosto, Catherine percebeu que ele já não era uma ameaça. Estava a sorrir estupidamente, contemplando-a como se tivesse acabado de se apaixonar. A reação não era nenhuma novidade para Catherine. Ela era extraordinariamente bonita e tinha utilizado essa beleza como uma arma durante toda a vida.
O polícia devolveu-lhe a sua identificação.
- As coisas estão muito más?
- Bastante: tenha cuidado e mantenha a cabeça baixa.
A necessidade de ambulâncias em Londres excedia de longe a oferta. As autoridades deitavam a mão a tudo o que pudesse servir, carrinhas de entrega, camiões do leite, qualquer coisa com quatro rodas, um motor e espaço na parte de trás para um ferido e um médico. Catherine reparou numa cruz vermelha pintada sobre o nome desbotado de uma popular padaria local, numa das ambulâncias que seguiam em catadupa para a entrada das urgências do hospital.
Catherine começou a andar mais depressa, seguindo a ambulância, e entrou no hospital. A confusão era total. As urgências estavam
cheias de feridos. Pareciam estar por todo o lado: no chão, nos corredores, até mesmo no posto das enfermeiras. Alguns gritavam. Outros estavam sentados a olhar espantados, demasiado aturdidos para compreenderem o que lhes tinha acontecido. Dezenas de doentes ainda não tinham sido vistos por um médico ou uma enfermeira. E a cada minuto chegavam mais.
Catherine sentiu uma mão no ombro.
- Não há tempo para ficar aí especada, Miss Blake. Catherine virou-se e viu o rosto severo de Enid Pritt. Antes da
guerra, Enid era uma mulher simpática, por vezes confusa, acostumada a lidar com casos de gripe e, de vez em quando, com quem fosse derrotado numa luta de navalhas à porta de um pub, num sábado à noite. Tudo isso tinha mudado com a guerra. Andava direita como uma estaca e falava numa voz clara de parada militar, nunca utilizando mais do que as palavras necessárias para se referir a um assunto. Dirigia uma das enfermarias mais movimentadas de toda a cidade de Londres sem qualquer dificuldade. Um ano antes, o marido, de vinte e oito anos, morrera na Blitz. Enid Pritt não tinha feito luto. Isso podia esperar até que os alemães fossem derrotados.
- Não os deixe perceberem aquilo em que está a pensar, Miss Blake - disse Enid Pritt rispidamente. - Assusta-os ainda mais. Tire o casaco e mãos à obra. Há pelo menos cento e cinquenta feridos só neste hospital e as morgues estão a encher-se rapidamente. Disseram-me para esperar ainda mais gente.
- Já não via isto assim desde setembro de 1940.
- É por isso que eles precisam de si. Agora, mãos à obra, minha menina, o mais depressa que puder.
Enid Pritt atravessou as urgências como um comandante num campo de batalha. Catherine observou-a a repreender outra jovem enfermeira por causa de um curativo desajeitado. Enid Pritt não tinha favoritas, era dura com todas as enfermeiras e voluntárias. Catherine pendurou o casaco e avançou por um corredor cheio de feridos. Começou por uma rapariguinha que estava a apertar um urso de peluche esfarrapado e chamuscado.
- Onde te dói, pequenina?
- No braço.
Catherine enrolou a manga da camisola da rapariga, deixando ver um braço que se encontrava obviamente partido. A criança estava em choque e não tinha consciência da dor. Catherine manteve-a a falar, tentando com que não pensasse na ferida.
- Como te chamas, querida? -;
- Ellen.
- E onde moras?
- Em Stepney, mas a nossa casa já não está lá. A voz dela estava calma e não revelava emoção.
- E onde estão os teus pais? Estão aqui contigo?
- O bombeiro disse-me que agora estão com Deus. Catherine não disse nada, apenas segurou a mão da menina.
- O médico já vem ver-te. Fica só quietinha e não tentes mexer o braço. Está bem, Ellen?
- Sim - respondeu ela. - És muito bonita. Catherine sorriu.
- Obrigada. Queres saber uma coisa?
- O quê?
- Tu também.
Catherine avançou novamente pelo corredor. Um homem de idade, com uma contusão no cimo da careca, olhou para ela enquanto Catherine examinava a ferida.
- Estou ótimo, menina. Há muita gente pior do que eu. Olhe por eles primeiro.
Ela alisou-lhe o parco e desgrenhado cabelo grisalho e fez o que ele pediu. Era uma qualidade que ela tinha visto nos ingleses uma e outra vez. Era um disparate
Berlim retomar a Blitz. Quem lhe dera que lhe fosse permitido dizer-lhes isso.
Catherine continuou a avançar pelo corredor, cuidando dos feridos, ouvindo as histórias deles enquanto trabalhava.
- Eu estava na cozinha a servir-me da porra de uma chávena de chá quando BOOM! Uma bomba de quatrocentos e cinquenta quilos rebenta-me mesmo à porra da porta de
casa. Quando dei por mim, estou estatelado de costas no meio do que dantes era o meu jardim, a olhar para uma pilha de destroços que dantes era a porra da minha
casa.
- Tem cuidado com a língua, George. Estás a ser mal-educado. Além disso, há crianças aqui.
Isso não foi assim tão mau, companheiro. A casa em frente
à minha, do outro lado da rua, apanhou com uma bomba mesmo em cima. Uma família de quatro pessoas, gente boa, exterminada.
Uma bomba caiu ali perto; o hospital estremeceu.
Uma freira, gravemente ferida, abençoou-se e começou a dizer um pai-nosso para que as outras pessoas a acompanhassem.
- Vai ser preciso mais do que uma oração para expulsar a Luftwaffe dos céus hoje à noite, irmã.
- ... venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade...
- Perdi a minha mulher na Blitz de 1940. Acho que também devo ter perdido a minha única filha esta noite.
- ... assim na Terra como no Céu...
- Que guerra, irmã, que porra de guerra.
- ... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
- Sabes, Mervin, tenho a impressão de que Hitler não gosta muito de nós.
- Também reparei nisso.
Nas urgências irromperam gargalhadas.
Dez minutos mais tarde, quando a freira decidiu que a oração tinha chegado ao fim, começou a inevitável cantoria.
- ... Atira capara fora o barril... Catherine abanou a cabeça.
- ... Vamos ter um barril de alegria...
Mas, passado um momento, deu por si a cantar com o resto das pessoas.
Na manhã seguinte, eram oito horas quando entrou no seu apartamento. O correio da manhã tinha chegado. A senhoria, a senhora Hodges, enfiava-lho sempre por baixo da porta. Catherine curvou-se, apanhou o correio e lançou de imediato três dos envelopes no caixote do lixo da cozinha. Não precisava de os ler porque ela mesma os tinha escrito e enviado de diferentes locais de Londres. Em circunstâncias normais, Catherine não receberia cartas pessoais, já que não
tinha amigos nem família no Reino Unido. Mas seria estranho que uma rapariga atraente e educada nunca se correspondesse com ninguém - e a senhora Hodges era um pouco bisbilhoteira - e, por isso, Catherine lançou-se num intricado estratagema para garantir que recebia um fluxo constante de postais e cartas pessoais.
Foi à casa de banho e abriu as torneiras por cima da banheira. A pressão era baixa, a água gotejava da torneira num fio, mas pelo menos estava quente. Havia pouca água por causa do verão e outono secos e o governo ameaçava racioná-la também. Encher a banheira demoraria alguns minutos.
Quando foi recrutada, Catherine Blake não estava em posição de fazer exigências, mas tinha feito uma - dinheiro que lhe permitisse viver confortavelmente. Tinha
sido educada em grandes casas geminadas e em vastas propriedades rurais - os pais eram da classe alta, e passar a guerra numa pensão qualquer parecida com um casebre, partilhando uma casa de banho com seis outras pessoas, estava fora de questão. Segundo o seu disfarce, era uma viúva de guerra, de uma família da classe média de respeitáveis recursos, e o apartamento assentava na perfeição - um conjunto de divisões, modesto mas confortável, numa casa vitoriana em Earl's Court.
A sala de estar era acolhedora, parcamente mobilada, embora um estranho pudesse ficar impressionado com a completa ausência de artigos pessoais. Não havia fotografias nem lembranças. Tinha um quarto com uma cama de casal confortável, uma cozinha com todos os eletrodomésticos modernos e a sua própria casa de banho, com uma grande banheira.
O apartamento tinha outras características que uma inglesa comum a viver sozinha poderia não exigir. Ficava no último piso, onde a mala rádio AFU podia receber transmissões de Hamburgo com pouca interferência, e a janela de sacada vitoriana, na sala de estar, tinha uma vista desimpedida da rua lá em baixo.
Dirigiu-se para a cozinha e colocou uma chaleira de água ao lume. O trabalho de voluntariado consumia-lhe tempo e deixava-a exausta, mas era essencial para o disfarce. Toda a gente estava a fazer alguma coisa para ajudar. Não iria parecer bem uma rapariga saudável
e sem família não fazer nada em prol do esforço de guerra. Ir trabalhar para uma fábrica de munições era arriscado - o disfarce poderia não resistir a uma verificação de antecedentes minuciosa - e alistar-se no ramo feminino da Marinha Real Britânica estava fora de questão. O Serviço de Voluntariado Feminino era a solução de compromisso perfeita. Precisavam desesperadamente de pessoas. Quando Catherine se candidatou, em setembro de 1940, foi colocada ao serviço nessa mesma noite. Tratava de feridos no Hospital St. Thomas e distribuía livros e biscoitos no metropolitano durante os ataques aéreos noturnos. A julgar pelas aparências, era a rapariga inglesa modelo a cumprir o seu dever.
Por vezes, não podia deixar de se rir.
A chaleira apitou. Voltou para a cozinha e fez chá. Como todos os londrinos, tinha ficado viciada em chá e cigarros; parecia que o país inteiro vivia de tanino e tabaco e Catherine não era exceção. Tinha esgotado a ração de leite em pó e de açúcar e, por isso, bebeu o chá sem mais nada. Em momentos como aquele, sentia saudades do café forte e amargo de casa e de um pedaço de bolo de Berlim.
Terminou a primeira chávena de chá e encheu a segunda. Queria tomar banho, enfiar-se na cama e dormir sem parar, mas tinha trabalho a fazer e precisava de se manter acordada. Teria chegado a casa uma hora mais cedo se se deslocasse por Londres como uma mulher comum. Teria atravessado Londres de metro até EarPs Court. Mas Catherine não se deslocava por Londres como uma mulher comum. Tinha apanhado um comboio, depois um autocarro, a seguir um táxi e depois outro autocarro. Tinha saído do autocarro antes da paragem indicada e feito os últimos quatrocentos metros até ao apartamento a pé, verificando constantemente se não estava a ser seguida. Quando chegou por fim a casa, estava ensopada da chuva, mas tinha a certeza de que estava só. Passados mais de cinco anos, alguns agentes poderiam ficar tentados a tornarem-se complacentes. Era uma das razões que explicavam que ela tivesse sobrevivido quando outros tinham sido presos e enforcados.
Entrou na casa de banho e despiu-se à frente do espelho. Era alta e estava em forma; vários anos de duras cavalgadas e caçadas tinham-na tornado muito mais forte do que a maioria das mulheres e muitos
homens. Era larga de ombros e tinha braços macios e firmes como uma estátua. Os seios eram redondos e pesados, muitíssimo bem feitos, e a barriga firme e lisa. Como quase toda a gente, estava mais magra do que era antes da guerra. Retirou o gancho que lhe prendia o cabelo num discreto carrapito de enfermeira, deixando-o cair para o pescoço e ombros, enquadrando-lhe o rosto. Os olhos eram de um azul muito claro - da cor de um lago prussiano, dizia-lhe o pai sempre - e as maçãs do rosto largas e proeminentes, mais alemãs do que inglesas. O nariz era comprido e delicado, a boca generosa e com lábios sensuais.
Pensou: Bem vistas as coisas, ainda és uma mulher muito atraente, Catherine Blake.
Entrou na banheira, sentindo-se de repente muito só. Vogel tinha-a advertido em relação à solidão. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão intensa. Por vezes, conseguia ser até pior do que o medo. Achava que seria preferível estar completamente só - isolada numa ilha deserta ou no cimo de uma montanha - em vez de rodeada de pessoas em que não podia tocar.
Não tinha permitido a si própria ter um amante desde o rapaz na Holanda. Sentia falta dos homens e sentia falta do sexo, mas conseguia viver sem ambos. O desejo, tal como todas as suas emoções, era algo que conseguia ligar e desligar como um interruptor. Além disso, ter um homem era difícil com o seu tipo de trabalho. Os homens tinham tendência a ficar obcecados com ela. A última coisa de que precisava era de um homem perdido de amores a investigar o seu passado.
Catherine acabou de tomar banho e saiu da banheira. Penteou o cabelo molhado rapidamente e vestiu o roupão. Foi à cozinha e abriu a porta da despensa. As prateleiras estavam vazias. A mala rádio estava na prateleira de cima. Tirou-a de lá e levou-a para a sala de estar, junto à janela, onde a receção era melhor. Abriu a tampa e ligou o rádio.
Havia outra razão que explicava que nunca tivesse sido apanhada
- Catherine não fazia transmissões. Todas as semanas, ligava o rádio por um período de dez minutos. Se Berlim tivesse ordens para ela, enviar-lhas-ia.
Durante cinco anos, não tinha havido nada, apenas o assobiar da atmosfera.
Tinha comunicado com Berlim apenas uma vez, na noite a seguir a ter assassinado a mulher em Suffolk e assumido a identidade dela. Eeatríce Pymm... Nesse momento, pensou na mulher sem sentir remorsos. Catherine era um soldado e durante a guerra os soldados eram obrigados a matar. Além disso, o crime não tinha sido gratuito - era absolutamente necessário.
Havia duas maneiras de um agente se introduzir no Reino Unido: clandestinamente, de paraquedas ou num pequeno barco, ou abertamente, como passageiro de um barco ou avião. Cada um dos métodos tinha os seus inconvenientes. Tentar introduzir-se no país sem ser detetado a partir do ar ou de um pequeno barco era arriscado. O agente poderia ser localizado ou ferir-se na queda; aprender simplesmente a saltar de paraquedas teria acrescentado meses ao treino já interminável de Catherine. O segundo método, entrar por meios legais, também acarretava os seus perigos. O agente teria de passar pela zona de controlo de passaportes. A data e o porto de entrada ficariam registados. Quando a guerra rebentasse, o MI5 iria certamente contar com esses registos para localizar os espiões. Se um estrangeiro entrasse no país e nunca mais saísse, o MI5 poderia assumir com segurança que essa pessoa era um agente alemão. Vogel engendrou uma solução - entrar no Reino Unido de barco, em segurança, e a seguir eliminar o registo da entrada eliminando a pessoa em causa. Simples, tirando uma coisa - era necessário um cadáver. Beatrice Pymm, ao morrer, tornou-se Christa Kunst. O MI5 nunca descobrira Catherine porque nunca a tinha procurado. A entrada e a saída dela do país estavam ambas justificadas. Não faziam ideia de que ela existisse sequer.
Catherine encheu outra chávena de chá, colocou rapidamente os auscultadores e aguardou.
Quase entornou o chá em cima de si quando, cinco minutos mais tarde, o rádio começou a fazer barulho.
O operador em Hamburgo premiu ritmadamente uma sucessão de sinais em código.
Os operadores de rádio alemães tinham a reputação de serem os mais precisos do mundo. E também os mais rápidos. Catherine esforçou-se por acompanhá-lo. Quando o operador em Hamburgo terminou, ela pediu-lhe que repetisse a mensagem.
Ele fê-lo, mais lentamente. ;
Catherine agradeceu e desligou.
Levou alguns minutos a encontrar o livro de códigos e mais outros tantos para descodificar a mensagem. Quando terminou, olhou pasmada para ela, incrédula.
Executar rendezvous alfa...
Kurt Vogel queria finalmente que ela se encontrasse com outro agente.
OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
A chuva varria a costa de Norfolk enquanto Sean Dogherty, entorpecido por cinco canecas de cerveja aguada, tentava montar a bicicleta à porta do Hampton Arms. Conseguiu,
à terceira tentativa, e dirigiu-se para casa. Dogherty, pedalando com firmeza, mal reparou na aldeia. Era de facto um lugar desolador, um aglomerado de chalés ao longo de uma única rua, a loja da aldeia, o pub Hampton Arms. A tabuleta já não era pintada desde 1938; a tinta, como quase tudo o resto, tinha sido racionada. A St. John's Church elevava-se na extremidade leste. O cemitério ficava à saída da aldeia. Dogherty benzeu-se inconscientemente ao passar pelo portão e, a seguir, atravessou a ponte de madeira que se estendia sobre a enseada. Passado um momento, a aldeia já tinha desaparecido atrás dele.
Caía a noite; Dogherty esforçou-se por manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos. Era um homem baixo, com cinquenta anos, olhos verdes muito enterrados na cara e uma barba grisalha desmazelada. O nariz, arrebitado e torto, tinha sido partido mais vezes do que se queria lembrar durante uma breve carreira como pugilista de peso meio-médio, em Dublin, e mais umas quantas em lutas de rua, bêbado. Usava um oleado e um gorro de lã. O ar frio cortava-Ihe a pele exposta do rosto: o ar do mar do Norte, parecido com uma lâmina, com o perfume dos campos de gelo do Ártico e dos fiordes noruegueses por onde tinha passado antes de assolar a costa de Norfolk.
A cortina de chuva afastou-se e o terreno tornou-se visível: extensos campos cor de esmeralda, planícies de lama cinzenta sem fim, pântanos de água salgada cheios de juncos e vegetação. À esquerda, uma praia vasta, aparentemente infinita, estendia-se até ao mar. À direita, não muito longe, colinas verdes erguiam-se suavemente até atingirem uma nuvem baixa. Dois gansos-de-brent, vindos da Sibéria para passarem o inverno, levantaram voo dos pântanos e depois pousaram sobre a água, com as asas a baterem delicadamente. Um habitat perfeito para muitas espécies de pássaros, a costa de Norfolk tinha sido em tempos um destino turístico popular. Mas a guerra tinha tornado a observação de aves praticamente impossível. Grande parte de Norfolk estava transformada numa zona militar restrita e o racionamento de gasolina tinha deixado poucos cidadãos com meios para viajarem para um canto tão isolado do país. E quando os tinham, era difícil encontrar o caminho para lá. Na primavera de 1940, com a febre provocada pelo receio de uma invasão a aumentar, o governo tinha retirado todos os sinais de trânsito.
Mais do que outros residentes da costa de Norfolk, Sean Dogherty reparava nessas coisas com especial atenção. Em 1940, tinha sido recrutado para espiar ao serviço da Abwehr e tinha-lhe sido atribuído o nome de código de Esmeralda.
O chalé surgiu ao longe, com o fumo a elevar-se suavemente da chaminé para logo depois ser cortado pelo vento e estender-se pelo prado extenso. Era uma pequena propriedade num terreno arrendado, mas proporcionava uma subsistência modesta - um pequeno rebanho de ovelhas que lhes dava lã e carne, galinhas, uma pequena colheita de tubérculos que, por esses dias, obtinha bons preços no mercado. Dogherty possuía inclusivamente uma velha carrinha em mau estado e transportava géneros das quintas vizinhas para o mercado de King's Lynn. Em resultado disso, foi-lhe atribuída uma ração de gasolina para a agricultura, mais do que a ração civil normal.
Virou para o caminho de entrada do chalé, saiu da bicicleta e empurrou-a pelo trilho cheio de buracos, em direção ao celeiro. Por cima da cabeça, ouvia o rumor dos bombardeiros Lancaster a levantarem voo das bases em Norfolk. Recordava-se de uma época em que
os aviões vinham da direção contrária - os pesados Heinkels da Luftwaffe, espalhando-se sobre o mar do Norte, em direção aos centros industriais de Birmingham e Manchester. Mas os Aliados tinham estabelecido o seu domínio dos céus e os Heinkels raramente se aventuravam sobre Norfolk. Claramente, Dogherty tinha apostado no cavalo errado.
Ergueu o olhar e viu as cortinas da janela da cozinha abrirem-se ligeiramente, viu a imagem desfocada do rosto de Mary através do vidro salpicado de chuva. Hoje
à noite, não, Mary, pensou, desviando conscientemente os olhos. Por favor, outra vez hoje à noite, não.
Não tinha sido difícil à Abwehr convencer Sean Dogherty a trair a Inglaterra e passar a trabalhar para a Alemanha nazi. Em 1921, o irmão mais velho, Daniel, foi preso e enforcado pelos britânicos por liderar uma unidade terrestre do Exército Republicano Irlandês.
Dentro do celeiro, Dogherty abriu um armário de ferramentas e tirou o transmissor-recetor fornecido pela Abwehr, o bloco de códigos, um bloco de notas e um lápis. Ligou o rádio e fumou um cigarro enquanto aguardava. As instruções eram simples - ligar o rádio uma vez por semana e aguardar instruções de Hamburgo. Já tinham passado mais de três anos desde que a Abwehr lhe tinha pedido para fazer alguma coisa. Apesar disso, ligava o rádio zelosamente, à hora indicada, e aguardava dez minutos.
Quando faltavam ainda dois minutos, Dogherty guardou novamente o bloco de códigos e o bloco de notas no armário. Já no último minuto, esticou a mão na direção do cabo de alimentação. Estava prestes a desligar o rádio quando este deu subitamente sinais de vida. Agarrou-se ao bloco de notas e pôs-se a escrever furiosamente até que o rádio se calou. Rapidamente, confirmou a receção da mensagem e terminou a comunicação.
Dogherty demorou vários minutos até descodificar a mensagem.
Quando acabou, não acreditou no que estava a ver.
Executar procedimento de receção número um...
Os alemães queriam que ele acolhesse um agente.
Tinham passado quinze minutos desde que Mary Dogherty, à janela da cozinha, vira o marido entrar no celeiro. Perguntou-se por que razão estaria a demorar tanto
tempo. O jantar de Sean ia arrefecer se ele não viesse para dentro depressa. Limpou as mãos ao avental e levou uma caneca de chá a escaldar para a janela da frente.
A chuva caía com mais violência e o vento chicoteava a costa, vindo do mar do Norte.
Pensou: Que noite horrível para andar lá fora, Sean Dogherty.
Pôs as mãos à volta da caneca de esmalte lascada e deixou que o vapor que de lá saía lhe aquecesse o rosto. Sabia o que Sean estava a fazer no celeiro - estava a
comunicar com os alemães pelo rádio.
Mary tinha de admitir que espiar para os nazis tinha rejuvenescido Sean. Na primavera de 1940, ele fez o reconhecimento de vastas partes da zona rural de Norfolk. Mary assistiu com espanto, à medida que ele foi parecendo despertar para a vida com a atribuição dessa tarefa, pedalando vários quilómetros por dia, à procura de sinais de atividade militar, tirando fotografias às defesas costeiras. As informações eram passadas a um contacto da Abwehr em Londres, que por sua vez a passava a Berlim. Sean achava que era tudo muito perigoso e adorava cada momento.
Mas Mary detestava. Temia que Sean fosse apanhado. Toda a gente estava atenta, à procura de espiões; era uma obsessão nacional. Um deslize, um erro, e Sean seria preso. O Treachery Act de
1940 decretava apenas uma pena por espionagem: a execução. Mary tinha lido sobre execuções de espiões nos jornais, os enforcamentos em Wandsworth e Pentonville, e isso provocava-lhe sempre calafrios. Um dia, temia ela, iria ler que Sean tinha sido executado.
A chuva continuava a cair com mais violência ainda e o vento fustigava com tanta fúria o robusto chalezinho que Mary receava que a casa pudesse vir abaixo. Pensou em si a viver sozinha na velha e degradada quinta; seria terrível. Estremecendo, afastou-se da janela e aproximou-se da lareira.
Se calhar, teria sido diferente se ela tivesse sido capaz de lhe dar filhos. Afastou esse pensamento da cabeça; tinha-se punido por demasiado tempo, desnecessariamente. Era inútil desenterrar coisas em
relação às quais não podia fazer nada. Sean era quem era e já não havia nada que ela pudesse fazer para o mudar.
Mary pensou: Sean, em que é que tu te transformaste?
As pancadas na porta assustaram Mary, fazendo-a derramar o chá no avental. Sean não costumava ficar lá fora sem forma de entrar. Pousou a caneca no peitoril da janela e foi a correr para a porta. Estava preparada para lhe dar um berro por ter saído sem levar as chaves de casa. Em vez disso, quando abriu a porta, viu a figura de Jenny Colville, uma rapariga que vivia do outro lado da aldeia. Estava ali à chuva, com um oleado brilhante pendurado nos ombros magros. Não trazia chapéu e tinha o cabelo que usava até aos ombros colado à cabeça, enquadrando um rosto estranho que um dia poderia vir a ser muito bonito.
Mary percebeu que ela estivera a chorar.
- O que aconteceu, Jenny? O teu pai bateu-te outra vez? Anda a beber?
Jenny assentiu com a cabeça e desatou a chorar.
- Entra, sai dessa chuva - disse Mary. - Vais morrer de frio aí fora, numa noite destas.
Quando Jenny entrou, Mary procurou com os olhos a bicicleta dela no jardim da frente. Não estava lá; ela tinha vindo a pé desde o chalé dos Colville, a mais de um quilómetro e meio dali.
Mary fechou a porta.
- Tira essas roupas. Estão encharcadas. vou buscar-te um roupão para vestires até secarem.
Mary desapareceu dentro do quarto. Jenny fez o que lhe mandaram. Exausta, despiu o oleado, deixando-o deslizar dos ombros para o chão. A seguir, tirou a pesada camisola de lã grossa e largou-a no chão junto ao oleado.
Mary voltou com o roupão.
- Tira o resto da roupa, minha menina - atirou ela numa voz suave, fingindo-se zangada.
- Mas então e o Sean?
Mary mentiu:
- Está lá fora a remendar um buraco numa das suas queridas cercas.
- com este tempo? - cantarolou Jenny com o seu forte sotaque de Norfolk, recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. Mary ficava espantada com a resistência dela. - Ele está maluco, Mary?
- Sempre soube que eras uma criança perspicaz. Agora, vamos lá a tirar o resto dessa roupa molhada.
Jenny despiu as calças e a camisola interior. Costumava vestir-se como um rapaz, ainda mais do que as outras raparigas do campo. A pele era de um branco leitoso e estava toda arrepiada. Teria muita sorte se não apanhasse uma bela constipação. Mary ajudou Jenny a vestir o roupão e envolveu-a nele, apertando-o bem.
- Então, não estás melhor?
- Sim, obrigada, Mary - respondeu Jenny, recomeçando a chorar. - Não sei o que faria sem ti.
Mary puxou Jenny para junto de si.
- Nunca vais ficar sem mim, Jenny. Prometo.
Jenny sentou-se numa cadeira antiga junto da lareira e cobriu-se com uma manta bafienta. Colocou os pés por baixo de si e, passado um momento, parou de tremer e sentiu-se quente e em segurança. Mary estava ao fogão, cantarolando suavemente para si mesma.
Passados poucos momentos, o ensopado já estava a borbulhar, enchendo a casa de um cheiro maravilhoso. Jenny fechou os olhos, com a cabeça cansada a saltar de uma sensação agradável para outra
- o cheiro quente do ensopado de borrego, o calor da lareira, a comovente suavidade da voz de Mary. O vento e a chuva fustigavam a janela junto da cabeça de Jenny. A tempestade fê-la sentir como era maravilhoso estar segura dentro de uma casa tranquila. Desejava que a sua vida fosse sempre assim.
Passados poucos momentos, Mary trouxe um tabuleiro com uma tigela de ensopado, um pão duro e uma caneca de chá a escaldar.
- Endireita-te, Jenny - disse ela, mas não obteve resposta.
Mary pousou o tabuleiro, tapou a rapariga com outra manta e deixou-a dormir.
Mary estava a ler junto da lareira quando Dogherty entrou em casa. Olhou para o marido em silêncio quando ele entrou na sala. Sean apontou para a cadeira onde Jenny estava a dormir e perguntou:
- Porque é que ela está aqui? O pai bateu-lhe outra vez?
- Chiu! - sibilou Mary. - Vais acordá-la.
Mary levantou-se e levou-o para a cozinha. Preparou-lhe um lugar na mesa. Dogherty encheu uma caneca de chá e sentou-se.
- Sabes, o que Martin Colville precisa é de alguém que lhe dê a provar do mesmo remédio. E eu sou o homem indicado para lho dar.
- Por favor, Sean, ele tem metade da tua idade e duas vezes o teu tamanho.
- E o que é que isso quer dizer, Mary?
- Quer dizer que te podias magoar. É a última coisa de que precisamos é que atraias a atenção da polícia com uma luta estúpida. Agora, acaba de jantar e cala-te.
Vais acordar a miúda.
Dogherty fez o que lhe ordenaram e recomeçou a comer. Enfiou uma colherada do ensopado na boca e fez uma careta.
- Jesus, esta comida está mesmo gelada.
- Se tivesses chegado a casa a horas decentes, não estava. Onde é que andaste, Sean?
Sem levantar a cabeça do prato, Dogherty lançou um olhar gelado a Mary.
- Estive no celeiro - disse ele friamente.
- Estiveste com o rádio ligado, à espera de instruções de Berlim? - perguntou Mary num sussurro sarcástico.
- Mais tarde, mulher - resmungou Sean.
- Não percebes que estás a desperdiçar o teu tempo lá, Sean? E a arriscar também os nossos pescoços?
- Eu disse mais tarde, mulher!
- Seu bode velho e estúpido!
- Já chega, Mary!
- Talvez os rapazes de Berlim te dêem um dia uma tarefa de verdade, Sean. Depois vais poder libertar todo o ódio que tens dentro de ti e vamos poder continuar com o que resta das nossas vidas
- desabafou ela, levantando-se, olhando para ele e abanando a cabeça. - Estou cansada, Sean. vou para a cama. Põe mais um bocado de lenha na lareira para a Jenny ficar quente. E não faças nada que a acorde. Ela passou um mau bocado hoje à noite.
Maty subiu as escadas para o quarto e sem fazer barulho fechou a porta depois de entrar. Dogherty foi ao guarda-louça buscar uma garrafa de Bushmills. O uísque valia ouro por esses dias, mas era uma noite especial, por isso serviu-se de uma quantidade generosa.
- Talvez os rapazes de Berlim façam isso mesmo, Mary Dogherty
- disse ele, erguendo o copo num brinde silencioso. - De facto, talvez até já tenham feito.
NOVE LONDRES
Para conseguir entrar para os serviços secretos militares durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred Vicary tinha, na verdade, recorrido ao logro. com vinte e um anos, estava à beira de terminar os estudos em Cambridge e convencido de que a Inglaterra se estava a afundar e, como tal, precisava de todos os homens capazes de
que pudesse dispor. Não queria ter nada que ver com a infantaria. Sabia história suficiente para ter noção de que não havia aí qualquer espécie de glória, mas apenas
tédio, sofrimento e, muito provavelmente, a morte ou um ferimento grave.
O seu melhor amigo, um brilhante estudante de filosofia chamado Brendan Evans, encontrou a solução perfeita. Brendan tinha ouvido dizer que o exército estava a formar algo chamado Corpo dos Serviços Secretos. As únicas qualificações requeridas eram fluência no alemão e no francês, considerável experiência de viagens pela Europa, capacidade de guiar e reparar uma mota e visão perfeita. Brendan contactou o Ministério da Guerra e marcou entrevistas para ambos na manhã seguinte.
Vicary ficou desanimado; não reunia as qualificações necessárias. Falava alemão, ainda que de forma pouco inspirada, um francês aceitável e viajara consideravelmente
pela Europa, incluindo dentro da Alemanha. Mas não sabia guiar uma mota - aliás, era uma geringonça que o assustava de morte - e via horrivelmente mal.
Brendan Evans era o oposto de Vicary: alto, loiro, incrivelmente bonito, possuidor de um juvenil desejo de aventura e sem mãos a medir no
que tocava a mulheres. Mas tinham uma característica em comum: uma memória perfeita.
Vicary concebeu o seu plano.
Ao final dessa tarde, na penumbra fresca de agosto, Brendan ensinou-o a andar de mota num trecho deserto de estrada, na região das Fens. Vicary quase os matou aos
dois por diversas vezes, mas, quando a noite chegou, já avançava em grande velocidade pelos trilhos, desfrutando de uma mistura de excitação e imprudência que nunca
tinha sentido. Na manhã seguinte, durante a viagem de comboio de Cambridge para Londres, Brendan instruiu-o sem parar acerca da anatomia das motas.
Quando chegaram a Londres, Brendan entrou no Ministério da Guerra e Vicary ficou à espera à entrada, sob a luz quente do sol. Brendan reapareceu ao fim de uma hora,
com um sorriso largo. Fui admitido, disse Brendan. Agora é a tua vez. Ouve com atenção. Foi então que lhe disse de memória o gráfico inteiro utilizado no teste
de visão, até as letras irremediavelmente pequenas da última linha.
Vicary tirou os óculos, entregou-os a Brendan e entrou como um cego no edifício escuro e ameaçador. Passou facilmente no exame cometeu apenas um erro, confundindo
um B com um D, mas isso por culpa de Brendan. Vicary entrou de imediato ao serviço, como segundo tenente na unidade de motocicletas do Corpo dos Serviços Secretos,
passaram-lhe uma guia para levantar o uniforme e o equipamento e ordenaram-lhe que cortasse o cabelo, que tinha ficado comprido e encaracolado durante o verão. No dia seguinte, mandaram-no ir à estação de Euston recolher a mota, uma Rudge novinha em folha, embalada num caixote de madeira. Uma semana mais tarde, Brendan e Vicary embarcaram num navio de transporte de tropas rumo a França, acompanhados das motas.
Era tudo tão simples nesse tempo. Os agentes penetravam nas linhas inimigas, contavam o número de tropas, vigiavam as linhas de caminho de ferro. Até utilizavam pombos-correio para entregarem mensagens secretas. Agora, as coisas eram bem mais complexas, um duelo de inteligência através das ondas rádio, que requeria imensa
concentração e atenção aos pormenores.
A Operação Double Cross.
Karl Becker era um exemplo paradigmático. Tinha sido enviado para Inglaterra por Canaris durante os tempos tumultuosos de 1940, quando a invasão parecia uma certeza.
Fazendo passar-se por um homem de negócios suíço, Becker estabeleceu-se, com estilo correspondente, em Kensington e começou a amealhar todos os segredos suspeitos
a que conseguia deitar mão. O que levou Vicary até Becker foi a sua utilização de libras falsas e, no espaço de poucas semanas, o alemão estava já enredado na teia
do MI5. Vicary, com a ajuda dos vigias, ia onde quer que Becker fosse: às festas onde trocava mexericos e emborcava champanhe do mercado negro, aos encontros com
outros agentes de carne e osso, às entregas clandestinas em sítios predeterminados e ao quarto dele, para onde Becker levava mulheres, homens, crianças e sabe Deus
que mais. Ao fim de um mês, Vicary desferiu o golpe. Prendeu Becker - arrancando-o dos braços de uma jovem que mantinha trancada e embriagada com champanhe - e acabou
com uma rede inteira de agentes alemães.
A seguir, veio a parte complicada. Em vez de enforcar Becker, fê-lo mudar de lado e convenceu-o a trabalhar para o MI5 como agente duplo. Na noite seguinte, Becker,
na cela da prisão, ligou o rádio e transmitiu um sinal de identificação codificado ao operador em Hamburgo. O operador pediu que Becker se mantivesse no ar para
receber as instruções do agente da Abwehr que o controlava a partir de Berlim. Foi pedido a Becker que averiguasse a localização e o tamanho exatos de uma base de
caças da RAF em Kent. Becker confirmou a mensagem e terminou a comunicação.
Foi Vicary quem se dirigiu ao aeródromo no dia seguinte. Podia ter telefonado à RAF, obtido as coordenadas da base e enviado a informação para a Abwehr. Mas não seria assim tão fácil para um espião. Para que a mensagem parecesse autêntica, Vicary foi fazer o reconhecimento da base, exatamente como um espião faria. Apanhou o comboio em Londres e, devido aos atrasos, não chegou antes do anoitecer. Um polícia militar abordou-o numa colina junto à base e pediu-lhe que se identificasse. Vicary conseguia ver a base lá em baixo, na planície, com a mesma perspetiva de um espião. Viu um conjunto de hangares semicilíndricos e alguns aviões espalhados pela pista coberta de vegetação. Na viagem de regresso a Londres, Vicary
redigiu um relatório curto acerca do que tinha visto. Salientou que a luz já não era muita, por o comboio se ter atrasado, e que um polícia militar o tinha impedido de se aproximar mais. Nessa noite, Vicary obrigou Becker a enviar ele mesmo o relatório, já que cada espião tinha o seu estilo próprio de digitar, o chamado punho, que os operadores de rádio alemães eram capazes de reconhecer. Hamburgo deu-lhe os parabéns e terminou a comunicação.
Vicary contactou a RAF e explicou a situação. Os verdadeiros caças Spitfire foram transferidos para outro aeródromo, o pessoal foi evacuado e vários caças extremamente
danificados foram abastecidos e colocados na pista. A Luftwaffe veio nessa noite. Os aviões falsos explodiram numa bola de chamas; a tripulação dos bombardeiros
Heinkel pensou sem dúvida que tinha desferido um golpe preciso. No dia seguinte, a Abwehr pediu a Becker que regressasse a Kent e avaliasse os danos. Uma vez mais,
foi Vicary quem lá foi, escrevendo um relatório acerca do que tinha conseguido ver e obrigando Becker a enviá-lo.
A Abwehr ficou em êxtase. Becker tornou-se uma estrela, um superespião, e tudo isso tinha apenas custado à RAF um dia a reparar a pista e a remover os esqueletos
carbonizados dos Spitfires.
Os agentes que controlavam Becker estavam de tal forma impressionados que lhe pediram para recrutar mais agentes, coisa que ele fez - que, na realidade, Vicary fez. No final de 1940, Karl Becker já tinha um círculo de uma dúzia de agentes a trabalhar para si, sendo que alguns o informavam do que descobriam e outros informavam diretamente Hamburgo. Eram todos fictícios, produto da imaginação de Vicary. Este tinha em atenção todos os aspetos da vida deles; apaixonavam-se, tinham casos amorosos,
queixavam-se da falta de dinheiro, perdiam casas e amigos na Blitz.
Vicary deu-se até ao luxo de prender um ou outro; nenhuma rede a atuar em solo inimigo era infalível
e a Abwehr nunca acreditaria na possibilidade de não perder nenhum agente. Era um trabalho extenuante e fastidioso, que exigia atenção ao mais ínfimo pormenor; Vicary
achava-o estimulante e adorava cada minuto.
O elevador estava outra vez avariado e, por isso, Vicary teve de descer as escadas do covil de Boothby para a divisão dos Registos.
Ao abrir a porta, foi invadido pelo cheiro daquele lugar: papel a deteriorar-se, pó, um bafio penetrante devido à humidade que se infiltrava pelas paredes da cave. Lembrava-lhe a biblioteca da universidade. Havia dossiês em prateleiras abertas, dossiês em arquivos, dossiês amontoados no chão de pedra gelado, pilhas de documentos à espera de se transformarem em dossiês. Um trio de raparigas bonitas o pessoal da noite, que dormia em camas improvisadas - andava discretamente de um lado para o outro, falando uma linguagem de inventário que Vicary não conseguia perceber. As raparigas - conhecidas como rainhas da divisão dos Registos, no léxico daquele sítio - pareciam estranhamente deslocadas ali, no meio dos papéis e da escuridão. De certa forma, Vicary esperava virar uma esquina e deparar com um par de monges a ler um manuscrito à luz da vela.
Arrepiou-se. Céus, aquele sítio era frio como uma cripta. Arrependeu-se de não ter trazido uma camisola ou qualquer coisa quente para beber. Estava ali tudo - toda a história secreta do serviço. Enquanto vagueava entre as pilhas de documentos, ocorreu-lhe que, muito tempo depois de abandonar o MI5, também ali estaria um registo eterno de todas as suas ações. Se isso era reconfortante ou repugnante, não tinha a certeza.
Vicary pensou nas observações depreciativas que Boothby tecera sobre ele e a raiva que sentiu causou-lhe um calafrio. Vicary era um extraordinário agente da Operação Double Cross e nem mesmo Boothby o podia negar. Estava plenamente convencido de que era a sua formação como historiador que o tornava tão capaz para o trabalho. Um historiador tem muitas vezes de se ocupar de conjeturas
- pegando numa série de pequenas pistas inconclusivas e, a partir delas, chegar a uma conclusão razoável. A Operação Double Cross era muito semelhante a essa elaboração de conjeturas, só que ao contrário. O trabalho de um agente desse tipo consistia em fornecer aos alemães pequenas pistas inconclusivas para que pudessem chegar às conclusões desejadas. O agente precisava de ser cuidadoso e meticuloso nas pistas que revelava. Tinham de corresponder a uma cuidadosa mistura de realidade e ficção, de verdade e de mentiras meticulosamente disfarçadas. Os espiões falsos de Vicary tinham de trabalhar arduamente para conseguirem as suas informações. E estas tinham de ser ministradas aos alemães em doses pequenas e por vezes insignificantes.
Precisavam de ser consistentes com o disfarce do espião. Por exemplo, não se poderia esperar que um motorista de camiões de Bristol estivesse na posse de documentos roubados em Londres. E as informações nunca deveriam parecer boas demais para serem verdade, pois as informações obtidas com demasiada facilidade são facilmente descartadas.
Os dossiês sobre o pessoal da Abwehr estavam armazenados em prateleiras abertas que se estendiam do chão ao teto, numa pequena divisão no extremo desse piso. Os Vs começavam numa das prateleiras de baixo e depois saltavam para uma no topo. Vicary teve de se pôr de gatas e inclinar a cabeça de lado como se estivesse à procura de um objeto valioso debaixo de uma mobília. Raios! O dossiê estava na prateleira de cima, claro. com esforço, levantou-se e, esticando o pescoço, espreitou para os ficheiros por cima dos óculos em meia-lua. Não valia a pena. Os dossiês estavam quase a dois metros de distância, demasiado longe para conseguir ler os nomes - era a vingança de Boothby contra todos os que não atingiam a altura estipulada para o departamento.
Uma das rainhas da divisão dos Registos deparou com ele a olhar fixamente para cima e disse que lhe ia trazer uma escada de biblioteca.
- A semana passada, Claymore tentou usar uma cadeira e quase partiu o pescoço - trauteou ela.
Regressou pouco depois a arrastar a escada. Deu uma nova olhadela a Vicary, sorriu-lhe como se este fosse um tio maluco e ofereceu-se para lhe ir buscar o dossiê. Vicary assegurou-lhe que conseguia tratar do assunto.
Subiu à escada e, usando o indicador como se fosse uma sonda, percorreu os dossiês. Descobriu uma pasta de arquivo de manilha com um separador vermelho: VOGEL, KURT - ABWHER BERLIM. Tirou-a da prateleira, abriu-a e olhou.
O dossiê de Vogel estava vazio.
Um mês depois de chegar ao MI5, Vicary ficou surpreendido por encontrar Nicholas Jago a trabalhar lá. Jago tinha sido arquivista principal no University College
e fora recrutado pelo MI5 na mesma
semana em que Vicary. Tinha sido colocado na divisão dos Registos e fora-lhe ordenado que impusesse um pouco de disciplina na memória, por vezes volúvel, do departamento.
Jago, tal como a própria divisão dos Registos, era empoeirado, irascível e de trato difícil. Mas, uma vez ultrapassada essa couraça exterior, era capaz de ser gentil
e generoso, transbordando de informações valiosas. Jago tinha ainda outro talento precioso: sabia perder e encontrar dossiês.
Apesar da hora tardia, Vicary encontrou Jago a trabalhar, sentado à secretária do seu exíguo gabinete envidraçado. Ao contrário das salas dos arquivos, era um santuário de limpeza e ordem. Quando Vicary bateu à porta envidraçada, Jago levantou os olhos, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Vicary apercebeu-se de que os olhos de Jago não acompanhavam o sorriso dele. Parecia exausto; Jago vivia naquele sítio. Mas havia outra coisa: em 1940, a sua mulher tinha sido morta durante a Blitz. A morte dela deixara-o destroçado. Tinha jurado a si mesmo derrotar os nazis - não com armas, mas com organização e precisão.
Vicary sentou-se e recusou a esbaforida oferta de chá por parte de Jago - material genuíno que acumulei antes da guerra. Nada parecido com o tabaco atroz, próprio da guerra, com que estava a encher o fornilho do cachimbo antes de o acender com um fósforo. O fumo repugnante cheirava a folhas a arder e ficou a pairar entre eles, numa cortina, enquanto trocavam banalidades acerca do regresso à universidade quando o trabalho ali estivesse terminado.
Aclarando a garganta delicadamente, Vicary indicou que queria passar ao assunto que o trouxera ali.
- Estou à procura de um dossiê acerca de um agente algo obscuro da Abwehr - revelou Vicary. - Fiquei surpreendido quando vi que tinha desaparecido. A capa está na prateleira, mas o que devia estar lá dentro desapareceu.
- E qual é o nome? - perguntou Jago.
- Kurt Vogel.
O rosto de Jago ensombrou-se.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos. Espera aqui, Alfred. É só um momento.
- Eu vou contigo - disse Vicary. - Talvez possa ajudar.
- Não, não - insistiu Jago. - Nem quero ouvir falar disso. Eu não te ajudo a encontrar espiões e tu não me ajudas a encontrar dossiês - atirou, rindo-se da sua própria
piada. - Fica aqui e põe-te à vontade. É só um momento.
É a segunda vez que dizes isso, pensou Vicary. É só um momento... Vicary sabia que Jago era obcecado com os seus dossiês, mas a falta de um dossiê sobre um agente
da Abwehr não era caso para uma emergência no departamento. Constantemente, colocavam-se dossiês no sítio errado ou deitavam-se fora por engano. Uma vez, Boothby
fez soar o alerta vermelho depois de ter perdido uma pasta cheia de documentos importantes. Segundo rezava a lenda do departamento, tinha sido encontrada uma semana mais tarde no apartamento da amante dele.
Passado um momento, Jago regressou apressadamente ao gabinete, com uma nuvem do fumo repugnante do cachimbo a flutuar atrás dele como o vapor de uma locomotiva. Entregou o dossiê a Vicary e sentou-se à secretária.
- Tal como eu suspeitava - anunciou Jago, absurdamente orgulhoso de si mesmo. - Estava ali mesmo na prateleira. Uma das raparigas deve tê-lo guardado na pasta errada. Está sempre a acontecer.
Vicary ouviu a desculpa duvidosa e franziu o sobrolho.
- Interessante... nunca me aconteceu tal coisa.
- Bem, talvez tenhas tido sorte. Nós aqui lidamos com milhares de dossiês por semana. Dava-nos jeito mais pessoal. Já discuti o assunto com o diretor-geral, mas ele disse-me que já atingimos a nossa quota e que não podemos ter mais pessoal.
O cachimbo de Jago tinha-se apagado e ele estava a reacendê-lo com toda a pompa e circunstância. Os olhos de Vicary lacrimejaram à medida que o pequeno gabinete se enchia novamente de fumo. Nicholas Jago era um homem perfeitamente bom e honesto, mas Vicary não acreditava numa só palavra da história que tinha contado. Estava convicto de que alguém tinha retirado o dossiê não há muito tempo e que este não tinha voltado para a prateleira. E esse alguém devia ser alguém bem importante, a julgar pela cara que Jago fez quando Vicary lho pediu.
Vicary serviu-se do dossiê para abrir uma clareira no meio da nuvem de fumo.
- Quem foi a última pessoa a mexer no dossiê de Vogel?
- Alfred, vá lá, sabes que não te posso dizer isso.
Era verdade. Comuns mortais como Vicary tinham de assinar um registo cada vez que retiravam um dossiê. Havia registos que indicavam quem retirava que dossiês e quando. Apenas o pessoal da divisão dos Registos e os chefes do departamento tinham acesso a esses registos. Só um grupo restrito de pessoas com cargos de grande relevo podia aceder aos dossiês sem ter de lavrar registo. Vicary suspeitava que o dossiê de Vogel tinha sido retirado por uma dessas pessoas.
- Tudo o que tenho de fazer é pedir a Boothby uma autorização para ver a lista de acessos e ele dá-ma - disse Vicary. - Porque não me poupas tempo e me deixas ver isso já?
- Pode dar-ta ou não.
- O que queres dizer com isso, Nicholas?
- Ouve, meu velho, a última coisa que eu quero é intrometer-me outra vez entre ti e Boothby.
Jago estava novamente às voltas com o cachimbo, enchendo o fornilho e tirando um fósforo da caixa. Segurava o cachimbo entre os dentes, fazendo com que o fornilho baloiçasse enquanto falava.
- Fala com o Boothby. Se ele disser que podes ver a lista de acessos, é toda tua.
Vicary deixou-o sentado no gabinete fumarento, a tentar acender o seu tabaco barato, com o fósforo a flamejar a cada puxadela do cachimbo. Ao afastar-se com o dossiê de Vogel, Vicary deitou uma última olhadela a Jago e achou que ele parecia um farol num local brumoso.
Ao voltar para o gabinete, Vicary parou na cantina. Não se conseguia lembrar da última vez que tinha comido. A sensação de fome não passava de uma moinha. Já não suspirava por comida boa. Comer tinha-se tornado uma tarefa prática, algo que tinha de se fazer por necessidade, não por prazer. Era como andar em Londres à noite: rapidamente e tentando não sair ferido. Lembrou-se da tarde de maio de 1940 em que o tinham contactado. O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas de cordeiro em sua casa. Que tamanha perda de tempo precioso.
Já era tarde e a seleção era pior do que o habitual: um naco de pão escuro, um pedaço de queijo suspeito, um caldeirão borbulhante
de líquido castanho. Alguém tinha riscado da ementa as palavras caldo de carne e escrito em seu lugar sopa de pedra. Vicary dispensou o queijo e cheirou o caldo.
Parecia suficientemente inócuo. Cuidadosamente, serviu-se de uma concha. O pão era duro como a tábua da cozinha. Vicary cortou um pedaço com a faca romba. Utilizando o dossiê de Vogel como tabuleiro, avançou com cautela por entre as mesas e cadeiras. Numa mesa, estava John Masterman, debruçado sobre um livro de latim. Dois advogados famosos estavam sentados numa mesa a um canto, reeditando um antigo duelo no tribunal. Um popular escritor de livros policiais escrevinhava num caderno desgastado. Vicary abanou a cabeça. O MI5 tinha recrutado um conjunto formidável de talentos.
Subiu as escadas cuidadosamente, com a tigela de sopa a balançar precariamente em cima do dossiê. O que mais lhe faltava era sujar o dossiê. Jago tinha escrito inúmeros memorandos enfurecidos, implorando aos agentes que tivessem mais cuidado com os dossiês.
- E qual é o nome?
- Kurt Vogel.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos.
Vicary tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali que não batia certo. Mas era melhor não forçar as coisas. Era preferível não pensar nisso e deixar o subconsciente juntar as peças.
Pousou o dossiê e a tigela de sopa na secretária e ligou a luz. Leu o dossiê de uma ponta a outra enquanto ia comendo a sopa em pequenos tragos. Sabia a bota de couro cozida. O sal era dos poucos condimentos que os cozinheiros possuíam em abundância e tinham-no usado generosamente. Quando acabou de ler o dossiê pela segunda vez, estava com uma sede digna do deserto e tinha os dedos a começarem a inchar.
Vicary ergueu os olhos e disse:
- Harry, acho que temos aqui um problema.
Harry Dalton, que se deixara adormecer à secretária, na área comum à porta do gabinete de Vicary, levantou-se e entrou. Formavam uma parceria insólita, conhecida humoristicamente no departamento como Músculos & Cérebro, Lda. Harry era alto e atlético, elegante, de cabelo negro densamente coberto de brilhantina, olhos azuis vivos
e um sorriso sempre pronto. Antes da guerra, era o inspetor Harry Dalton, do principal departamento de homicídios da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha nascido e crescido em Battersea e ostentava ainda na voz suave e agradável traços da pronúncia da classe operária do sul de Londres.
- Ele é inteligente, isso é certo - disse Vicary. - Olhe para isto: doutoramento em Direito na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Heller e de Rosenberg.
Não me parece o nazi típico. Os nazis perverteram as leis da Alemanha. Uma pessoa com uma educação destas não poderia estar muito entusiasmado com eles. E depois,
em 1935, decide abandonar de repente o direito e passar a trabalhar para o Canaris, como advogado dele, uma espécie de conselheiro interno da Abwehr? Não acredito
nisso. Acho que ele é um espião e esta história de ser o conselheiro legal de Canaris é só mais uma camada do disfarce.
Vicary estava a folhear o ficheiro outra vez.
- Tem alguma teoria? - perguntou Harry.
- Três teorias, na verdade.
- Então, vamos ouvi-las.
- Teoria número um, Canaris perdeu a confiança nas redes britânicas e encarregou Vogel de levar a cabo uma investigação. Um homem com a experiência e formação de Vogel é o oficial perfeito para examinar minuciosamente os dossiês e todos os relatórios de agentes em busca de inconsistências. Temos sido extremamente cuidadosos, Harry, mas manter a Operação Double Cross é uma tarefa muito complexa. Aposto que lá pelo meio já cometemos um erro ou outro. E se a pessoa certa andasse à procura deles - um homem inteligente como Kurt Vogel, por exemplo -, talvez fosse capaz de os descobrir.
- Teoria número dois?
- Teoria número dois, Canaris encarregou Vogel da criação de uma nova rede. Nesta altura do campeonato, já é um pouco tarde para isso. Era preciso descobrir, recrutar e treinar agentes, além de os infiltrar no país. Isso, por norma, leva meses a ser feito em condições. Duvido que seja isso que andam a fazer, mas não podemos descartar essa ideia.
- Teoria número três?
- A teoria número três é que Kurt Vogel é responsável por uma rede de que ainda não temos conhecimento.
- Uma rede completa de agentes que ainda não desmascarámos? E isso é possível?
- Temos de presumir que sim.
- Então todos os nossos agentes duplos estariam em risco.
- É um castelo de cartas, Harry. Basta só um bom agente para se desmoronar tudo.
Vicary acendeu um cigarro. O tabaco tirou-lhe da boca o sabor do caldo.
- Canaris deve estar debaixo de enorme pressão para apresentar resultados. com certeza que iria querer que fosse o melhor homem dele a dirigir a operação.
- Então isso quer dizer que é como se Kurt Vogel fosse uma panela de pressão.
- Certo.
- E isso pode torná-lo perigoso.
- Mas também pode torná-lo descuidado. Tem de arriscar. Tem de usar o rádio ou enviar um agente para Inglaterra. E, quando o fizer, vamos estar em cima dele.
Ficaram sentados em silêncio durante um momento. Vicary estava a fumar e Harry ia folheando o dossiê de Vogel. Foi então que Vicary lhe contou o que tinha acontecido na divisão dos Registos.
- Estão sempre a desaparecer imensos dossiês, Alfred.
- Sim, mas porquê este dossiê? E, mais importante, porquê agora?
- Boas perguntas, mas desconfio que as respostas sejam muito simples. Quando estamos no meio de uma investigação, o melhor é mantermo-nos concentrados e não nos
desviarmos do assunto.
- Eu sei, Harry - respondeu Vicary, franzindo o sobrolho. Mas isto está a pôr-me louco.
Harry disse:
- Eu conheço uma ou duas rainhas da divisão dos Registos. Vicary olhou para ele.
- Tenho a certeza que sim.
- vou meter o nariz por lá e fazer umas perguntas.
- Faça isso discretamente.
- Não há outra forma de o fazer, Alfred.
- Jago está a mentir, está a esconder qualquer coisa.
- E porque havia ele de mentir?
- Não sei - respondeu Vicary, esmagando o cigarro -, mas sou pago para ter pensamentos desagradáveis.

DEZ
BLETCHLEY PARK, INGLATERRA
Oficialmente, chamava-se Escola Governamental de Códigos e Criptografia. No entanto, não era escola nenhuma. Podia parecer ser uma escola qualquer - uma grande e
feia mansão vitoriana, rodeada por uma cerca alta -, mas a maior parte das pessoas daquela terra de ruas estreitas que crescera ao longo da linha de caminho de ferro
percebia que algo mais importante se passava ali. Os grandes relvados estavam cheios de dezenas de cabanas temporárias. O espaço remanescente inha sido pisado, transformando-se
em carreiros de lama congelada. Os jardins estavam em mau estado e por aparar, assemelhando-se a pequenas selvas. O staff era uma mistura excêntrica, os matemáticos
mais brilhantes do país, campeões de xadrez, magos das palavras cruzadas, todos reunidos para o mesmo objetivo: decifrar os códigos alemães.
Mesmo no mundo notoriamente extravagante de Bletchley Park, Denholm Saunders era considerado um excêntrico. Antes da guerra, era um matemático de topo em Cambridge.
Naquele momento, estava entre os melhores criptólogos do mundo. Vivia numa aldeola nos arredores de Bletchley com a mãe e os gatos siameses, Platão e S. Tomás de Aquino.
Era o final da tarde. Saunders estava na mansão, sentado à secretária, ocupado com duas mensagens enviadas pela Abwehr, de Hamburgo, para agentes alemães no Reino Unido. As mensagens tinham sido intercetadas pelo Radio Security Service, assinaladas como suspeitas e encaminhadas para Bletchley Park para descodificação.
Saunders estava a assobiar fora de tom enquanto raspava com o lápis no bloco de notas, um hábito que irritava solenemente os colegas. Trabalhava na secção de descodificação manual de mensagens cifradas. Era uma área de trabalho exígua e estava a abarrotar, mas era relativamente quente. Era melhor estar ali do que lá fora, numa das cabanas onde os criptólogos se esforçavam arduamente por descodificar as mensagens cifradas do exército e da marinha alemães, como esquimós num iglu.
Ao fim de duas horas, Saunders parou de raspar e de assobiar. A única coisa que se ouvia era o som da neve a derreter, gorgolejando nas goteiras da velha casa. O trabalho dessa tarde tinha sido pouco estimulante: as mensagens tinham sido transmitidas numa variante de um código que o próprio Saunders tinha decifrado em 1940.
- Meu Deus, eles estão a tornar-se um pouco aborrecidos, não estão? - comentou Saunders para ninguém em particular.
O seu superior era um escocês chamado Richardson. Saunders bateu à porta, entrou e pousou as duas mensagens descodificadas em cima da secretária. Richardson leu-as
e franziu o sobrolho. Ainda na véspera, um agente do MI5 chamado Alfred Vicary os tinha posto de sobreaviso para esse tipo de coisas.
Richardson mandou chamar um estafeta motorizado.
- Só há um problema - disse Saunders.
- Qual é?
- Na primeira mensagem, o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Na realidade, até pediu a quem estava a digitar a mensagem que a enviasse uma
segunda vez. Eles irritam-se com esse tipo de coisas. Pode não ser nada. Pode ter havido uma interferência qualquer. Mas talvez seja boa ideia contar isto à rapaziada do MI5.
Richardson pensou: Boa ideia, de facto.
Assim que Saunders saiu, Richardson datilografou uma breve nota descrevendo como o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Cinco minutos mais
tarde, as mensagens descodificadas e a nota de Richardson já estavam numa pasta de couro, prontas para a viagem de sessenta e sete quilómetros até Londres.


CONTINUA

"Em tempo de guerra", escreveu Winston Churchill, "a verdade é tão preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras." No caso das operações de contraespionagem britânicas, isto implicava encontrar um agente o mais improvável possível: um professor de História chamado Alfred Vicary, escolhido pessoalmente por Churchill para expor um traidor extremamente perigoso, mas desconhecido. Contudo, os nazis também escolheram um agente improvável: Catherine Blake, a bela viúva de um herói de guerra, voluntária num hospital e espia naxi sob as ordens diretas de Hitler, incumbida de desvendar os planos dos Aliados para o Dia D...

 

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PRIMEIRA PARTE

UM
SUFFOLK, INGLATERRA: NOVEMBRO DE 1938
Beatrice Pymm morreu porque perdeu o último autocarro para Ipswich.
Vinte minutos antes de morrer, encontrava-se na sombria paragem de autocarros e consultava o horário à luz mortiça do único candeeiro de rua da povoação. Daí a poucos
meses, o candeeiro seria desligado, de acordo com o regulamento do blackout. Beatrice Pymm nunca viria a saber do blackout.
Por agora, o candeeiro brilhava apenas o suficiente para que Beatrice conseguisse ler o horário mergulhado nas sombras. Para o ver melhor, pôs-se em bicos de pés
e seguiu os números com a ponta do indicador, manchado de tinta. A sua mãe, já falecida, queixava-se sempre da tinta com amargura. Considerava impróprio de uma senhora
ter as mãos sempre manchadas. Tinha desejado que Beatrice se tivesse dedicado a um passatempo mais asseado - música, voluntariado, até mesmo a escrita, embora a
mãe de Beatrice não tivesse os escritores em grande conta.
- Raios! - resmungou Beatrice, com a ponta do dedo ainda colada ao horário.
Normalmente, era extremamente pontual. Numa vida sem responsabilidades financeiras, sem amigos, sem família, tinha delineado um plano pessoal rigoroso. Naquele dia, tinha-se desviado dele pintara demasiado tempo e regressara demasiado tarde.
Retirou a mão do horário e levou-a ao rosto, fazendo um esgar de preocupação. A cara do teu pai, dizia a mãe com uma ponta
desespero - uma testa larga e plana, um grande nariz nobre, um queixo recuado. com apenas trinta anos, tinha o cabelo prematuramente raiado de grisalho.
Perguntou-se o que fazer. A sua casa em Ipswich ficava a pelo menos oito quilómetros, demasiado para ir a pé. Ao início da noite, haveria ainda a luz do trânsito na estrada. Talvez alguém lhe desse boleia.
Deixou escapar um longo suspiro de frustração. A sua respiração gelou, pairou diante do seu rosto e depois afastou-se ao sabor do vento frio vindo do pântano. As nuvens dispersaram-se e uma Lua luminosa brilhou através delas. Beattice olhou para cima e viu um halo de gelo em redor dela. Arrepiou-se, sentindo o frio pela primeira vez.
Pegou nas suas coisas: uma mochila de couro, uma tela, um cavalete gasto. Tinha passado o dia a pintar ao longo do estuário do Orwell. A pintura era o seu único
amor e a paisagem da East Anglia o seu único tema. Isso levava-a de facto a uma certa repetição no trabalho. A mãe gostava de ver pessoas nos quadros - cenas de
rua, cafés cheios. Uma vez, até sugeriu a Beatrice que passasse algum tempo em França, de modo a prosseguir a carreira. Beatrice recusou. Adorava os pântanos e os
diques, os estuários e as lagoas, os terrenos pantanosos a norte de Cambridge, as pastagens ondulantes de Suffolk.
com relutância, começou a dirigir-se para casa, caminhando a bom ritmo ao longo da beira da estrada, apesar do peso que transportava. Vestia uma camisa de homem
de algodão, manchada de tinta tal como os seus dedos, uma pesada camisola de lã grossa que a fazia sentir-se como um urso de peluche, um casacão demasiado comprido
nas mangas e calças enfiadas dentro das botas de borracha. Afastou-se do alcance da esfera amarela do candeeiro; a escuridão engoliu-a. Não sentiu qualquer apreensão
por caminhar na escuridão do campo. A mãe, assustada com as suas longas caminhadas solitárias, avisava-a constantemente para ter cuidado com os violadores. Beatrice
descartava sempre a ameaça, considerando-a improvável.
Arrepiou-se com o frio. Pensou na sua casa, um grande chalé nos arredores de Ipswich, que lhe fora deixado pela mãe. Por trás da casa,
no extremo da alameda do jardim, tinha construído um estúdio banhado de luz, onde passava a maior parte do tempo. Para ela, não era invulgar passar dias sem falar
com outro ser humano.
Tudo isto, e ainda mais, era do conhecimento do seu assassino.
Após cinco minutos de caminhada, ouviu o barulho de um motor atrás de si. Um veículo comercial, pensou. Antigo, a julgar pelo ruído irregular do motor. Beatrice
observou o brilho dos faróis espalhar-se como o nascer do Sol através da erva, de ambos os lados da estrada. Ouviu o motor perder potência e o carro começar a avançar
em ponto morto. Sentiu uma rajada de vento quando o veículo a ultrapassou. Sufocou com o fedor do escape.
De seguida, viu-o encostar à berma da estrada e parar.
A mão, visível sob o intenso luar, impressionou Beatrice pela sua estranheza. Saiu pela janela do condutor segundos depois de a carrinha ter parado e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Uma grossa luva de pele, reparou Beatrice, do género das utilizadas pelos trabalhadores que transportam coisas pesadas. Um fato-macaco azul-escuro, talvez.
A mão acenou-lhe uma vez mais. Lá estava outra vez - havia qualquer coisa no modo como se movia que não batia certo. Ela era artista e os artistas conhecem o movimento e o fluir. E havia mais qualquer coisa. Quando a mão se movia, expunha a pele entre a ponta da manga e a base da luva. Mesmo sob a luz fraca, Beatrice conseguia ver que a pele era clara e sem pelos - não parecia o pulso de nenhum trabalhador que já tivesse visto, invulgarmente delgado.
Contudo, não se sentiu alarmada. Acelerou o ritmo e alcançou a porta do passageiro com alguns passos. Abriu-a e colocou as coisas no espaço em frente ao banco. De seguida, ergueu os olhos pela primeira vez para o interior da carrinha e apercebeu-se de que o condutor tinha desaparecido.
Nos últimos segundos conscientes da sua vida, Beatrice Pymm interrogou-se por que razão utilizaria alguém uma carrinha para
transportar uma moto. Ali estava ela, deitada de lado na parte de trás, com dois recipientes de gasolina junto dela.
Ainda de pé junto da carrinha, fechou a porta e chamou. Não houve resposta.
Segundos mais tarde, ouviu o som de uma bota de couro no cascalho.
Ouviu de novo o som, mais perto.
Virou a cabeça e viu o condutor ali parado. Olhou para a cara dele e viu apenas uma máscara de lã preta. Dois poços de um azul-pálido fixavam-na friamente por detrás dos buracos para os olhos. Lábios de aspeto feminino, ligeiramente entreabertos, brilhavam por detrás da abertura para a boca.
Beatrice abriu a boca para gritar. Só conseguiu soltar um breve suspiro antes de o condutor lhe enfiar a mão enluvada na boca. Os dedos penetraram-lhe na carne macia da garganta. A luva sabia horrivelmente a poeira, gasolina e óleo de motor. Beatrice começou a vomitar os restos do almoço do seu piquenique - frango assado, queijo Stilton e vinho tinto.
Depois sentiu a outra mão a tatear-lhe o seio esquerdo. Por um instante, Beatrice pensou que os receios da mãe em relação a violações tinham sido finalmente comprovados. Mas a mão que lhe tocava no peito não era a mão de um molestador ou de um violador. A mão era hábil, como a de um médico, e curiosamente delicada. Moveu-se do peito para as costelas, pressionando com força. Beatrice estremeceu, arquejou e mordeu com força. O condutor pareceu não sentir nada através da luva grossa.
A mão alcançou o fundo das costelas e sondou a carne macia ao cimo do abdómen. Não foi mais além. Um dedo continuou a apertar essa zona. Beatrice ouviu um estalido
agudo.
Um instante de dor insuportável, uma explosão de luz branca e brilhante.
A seguir, uma escuridão benévola.
O assassino tinha treinado vezes sem conta para aquela noite, mas era a primeira vez. O assassino retirou a mão enluvada da boca
da vítima, virou-se e vomitou violentamente. Não havia tempo para sentimentalismos. O assassino era um soldado - major dos serviços secretos - e Beatrice Pymm em
breve seria a inimiga. A sua morte, embora lamentável, era necessária.
O assassino limpou o vómito dos bordos da máscara e meteu mãos à obra. O assassino agarrou na faca de ponta e mola e puxou-a. A ferida reteve-a com força, mas o
assassino puxou com mais força e a lâmina deslizou para fora.
Um assassínio excelente, limpo, com muito pouco sangue.
Vogelficaria orgulhoso.
O assassino limpou o sangue da navalha, voltando a fechar a lâmina, e guardou-a no bolso do fato-macaco. Depois, o assassino agarrou o corpo por baixo dos braços,
arrastou-o para a parte de trás da carrinha e deixou-o cair na berma de alcatrão esboroada.
O assassino abriu as portas traseiras. O corpo entrou em convulsões.
Foi uma luta levantar o corpo e colocá-lo na parte de trás da carrinha, mas um momento depois estava feito. O motor hesitou, depois pegou. A seguir, a carrinha estava de novo a caminho, com os faróis a brilharem através da povoação às escuras, virando para a estrada deserta.
O assassino, tranquilo apesar da presença do corpo, cantou calmamente uma canção da infância para ajudar a passar o tempo. Era uma viagem longa, quatro horas pelo menos. Durante os preparativos, o assassino tinha percorrido a estrada de moto, a mesma que agora se encontrava ao lado de Beatrice Pymm. A viagem levaria muito mais tempo na carrinha. O motor tinha pouca potência, os travões eram maus e fugia bastante para a direita.
O assassino prometeu a si mesmo roubar uma melhor na vez seguinte.
As facadas no coração, por regra, não matam instantaneamente. Mesmo que a arma penetre numa cavidade, o coração continua a bater durante algum tempo até a vítima se esvair em sangue.
Enquanto a carrinha avançava ruidosamente pela estrada, a cavidade torácica de Beatrice Pymm encheu-se rapidamente de sangue.
A sua mente ficou num estado próximo do coma. Teve a sensação de estar prestes a morrer.
Recordou-se dos avisos que a mãe lhe fazia por andar sozinha à noite. Sentiu a viscosidade húmida do seu próprio sangue a escoar-se do corpo para a blusa. Interrogou-se se o seu quadro teria sido danificado.
Depois ouviu o canto. Um belo canto. Levou algum tempo, mas percebeu por fim que o condutor não estava a cantar em inglês. A canção era alemã e a voz a de uma mulher.
Foi então que Beatrice Pymm morreu.
Primeira paragem, dez minutos depois, na margem do rio Orwell, o mesmo lugar onde Beatrice Pymm tinha estado a pintar naquele dia. A assassina deixou o motor da carrinha ligado e saiu. Dirigiu-se ao lugar do passageiro, abriu a porta e tirou o cavalete, a tela e a mochila.
O cavalete foi montado muito próximo da água, que corria lentamente, e a tela colocada nele. A assassina abriu a mochila, retirou de lá as tintas e a palete e pousou-as no solo molhado. Lançou um olhar ao quadro inacabado e achou que era bastante bom. Fora uma pena que não tivesse podido matar alguém com menos talento.
De seguida, retirou a garrafa meio cheia de vinho tinto, derramou o que restava no rio e atirou-a para junto das pernas do cavalete. Pobre Beatrice. Demasiado vinho, um passo descuidado, um mergulho na água gelada, uma lenta viagem até ao mar alto.
Causa da morte: presumivelmente afogada, presumivelmente acidental.
Caso encerrado.
Seis horas mais tarde, a carrinha atravessou a aldeia de Whitchurch, nas West Midlands, e virou para um caminho de terra batida que contornava um campo de cevada. A vala tinha sido cavada na noite anterior - suficientemente profunda para esconder um cadáver, mas não tão profunda que ele não pudesse vir a ser descoberto.
Ela arrastou o corpo de Beatrice Pymm para fora da carrinha e despiu-lhe a roupa ensanguentada. Agarrou o cadáver nu pelos pés e arrastou-o até junto da vala. A seguir, a assassina voltou à carrinha e tirou de lá três artigos - um malho em ferro, um tijolo vermelho e uma pequena pá.
Esta era a parte que ela mais temia; por algum motivo, pior do que o assassínio em si. Largou os três artigos junto ao cadáver e acalmou-se. Lutando contra outra onda de náusea, segurou o malho na mão enluvada, ergueu-o e esmagou o nariz de Beatrice Pymm.
Quando terminou, mal conseguia olhar para o que restava do rosto de Beatrice Pymm. Utilizando primeiro o malho e depois o tijolo, tinha-o esmagado numa massa de sangue, tecido, ossos quebrados e dentes esmigalhados.
Conseguira o efeito pretendido - as feições tinham sido apagadas, o rosto tornara-se irreconhecível.
Fizera tudo o que lhe tinham mandado fazer. Era para ser diferente. Tinha sido treinada num campo especial durante muitos meses, muito mais tempo do que os outros agentes. Iria ser infiltrada mais fundo. Fora por isso que tivera de matar Beatrice Pymm. Não iria desperdiçar o seu tempo a fazer o que outros, agentes menos dotados, poderiam fazer - contar tropas, monitorizar caminhos de ferro, avaliar danos causados por bombas. Isso era fácil. Seria reservada para maiores e melhores coisas. Seria como uma bomba-relógio em contagem decrescente no interior de Inglaterra, à espera de ser ativada, à espera de explodir.
Encostou a bota às costelas e empurrou. O cadáver caiu na vala. Cobriu o corpo com terra. Recolheu as roupas manchadas de sangue e atirou-as para as traseiras da carrinha. Do banco da frente, retirou uma pequena bolsa contendo um passaporte holandês e uma carteira. A carteira tinha documentos de identificação, uma carta de condução de Amesterdão e fotografias de uma família holandesa, gorda e sorridente.
Tudo isto tinha sido forjado pela Abwehr em Berlim.
Atirou a bolsa para as árvores na orla do campo de cevada, a alguns metros da vala. Se tudo corresse conforme planeado, o corpo, já em avançado estado de decomposição e mutilado, seria encontrado daí a alguns meses, juntamente com a bolsa. A polícia iria julgar que a mulher morta era Christa Kunst, uma turista holandesa que entrara no país em outubro de 1938 e cujas férias tinham terminado de modo lamentável e violento.
Antes de partir, deu uma última olhadela à vala. Sentiu uma ponta de tristeza por Beatrice Pymm. Na morte, tinham-lhe sido roubados
o rosto e o nome.
Outra coisa: a assassina tinha agora perdido a sua própria identidade. Durante seis meses, tinha vivido na Holanda, visto que o holandês era uma das suas línguas. Tinha construído cuidadosamente um passado, votado numa eleição local em Amesterdão, permitindo-se mesmo arranjar um jovem amante, um rapaz de dezanove anos com um imenso apetite e disposição para aprender coisas novas. Agora, Christa Kunst jazia numa vala rasa, na orla de um campo de cevada inglês.
A assassina assumiria uma nova identidade pela manhã.
Mas naquela noite não era ninguém.
Voltou a encher o depósito da carrinha e conduziu durante vinte minutos. A povoação de Alderton, assim como Beatrice Pymm, tinha sido cuidadosamente escolhida -
um local onde uma carrinha a arder na berma da estrada, a meio da noite, não seria imediatamente notada.
Tirou a mota da carrinha, apoiando-a numa pesada prancha de madeira, uma tarefa difícil até para um homem forte. Debateu-se com a mota e desistiu quando esta se
encontrava a um metro da estrada. A mota caiu no chão com grande estrondo, o único erro que cometeu durante toda a noite.
Pegou na mota e fê-la deslizar, em ponto morto, até ficar a cerca de cinquenta metros da carrinha. Depois regressou à carrinha. Um dos recipientes ainda continha
alguma gasolina. Espalhou-a no interior da carrinha, despejando a maioria do combustível na roupa de Beatrice Pymm, manchada de sangue.

Quando a carrinha se transformou numa bola de fogo, já ela tinha ligado a mota. Observou a carrinha a arder durante alguns segundos, com a luz alaranjada a dançar
no campo árido e a linha das árvores um pouco mais longe.
A seguir, virou a mota para sul e dirigiu-se para Londres.
DOIS
OYSTER BAY, NOVA IORQUE: AGOSTO DE 1939
Dorothy Lauterbach considerava a sua imponente mansão de pedra a mais bela da North Shore. A maioria dos seus amigos concordava, porque ela era mais rica e eles
queriam convites para as duas festas que os Lauterbach davam todos os verões - um encontro turbulento e ébrio, em junho, e uma ocasião mais meditativa, no final
de agosto, quando a temporada de verão findava num desenlace melancólico.
As traseiras da casa tinham vista para o estuário do Sound. Havia uma agradável praia de areia branca trazida de camião do Massachusetts. Da praia, partia um relvado
bem fertilizado que corria em direção às traseiras da casa, interrompido aqui e ali para orlar os requintados jardins, o campo de ténis em terra vermelha, a piscina
em azul-real.
Os empregados tinham-se levantado cedo para prepararem o bem merecido dia de inatividade da família, montando o equipamento do croquet e a rede de badminton em que
ninguém tocaria, retirando a lona protetora do barco a motor com casco de madeira, que nunca seria desamarrado da doca. Um dia, um empregado apontara corajosamente
à senhora Lauterbach a insensatez desse ritual quotidiano. A senhora Lauterbach tinha-lhe dado uma áspera reprimenda e esse hábito nunca mais fora questionado. Os
brinquedos eram colocados nos seus lugares em cada manhã, ficando abandonados com a mesma tristeza das decorações de Natal em maio, até serem cerimoniosamente retirados
ao pôr do Sol e passarem a noite outra vez guardados.
O piso térreo da casa estendia-se ao longo da água desde o jardim de inverno até à sala de estar, à sala de jantar e, finalmente, à sala Florida embora nenhum dos
outros Lauterbach compreendesse por que razão Dorothy insistia em chamá-la sala Florida quando o sol de verão na North Shore também podia ser tão quente.
A casa tinha sido comprada trinta anos antes, quando os jovens Lauterbach supunham que iriam produzir um pequeno exército como prole. Em vez disso, tiveram apenas
duas filhas que não gostavam muito da companhia uma da outra - Margaret, uma frequentadora dojef-sef bela e muito popular, e Jane. Por isso, a casa tornou-se um
lugar pacífico, de sol quente e cores suaves, onde a maioria do ruído era produzida pelo roçagar de cortinas brancas ao sabor de ligeiras brisas e a incansável busca
da perfeição em todas as coisas de Dorothy Lauterbach.
Naquela manhã - a manhã após a última festa dos Lauterbach -, as cortinas pendiam imóveis nas janelas abertas, à espera de uma brisa que nunca viria. O sol resplandecia
e uma neblina difusa pairava sobre a baía. O ar estava tenso e compacto.
No andar de cima, no seu quarto, Margaret Lauterbach-Jordan tirou a camisa de dormir e sentou-se em frente do toucador. Penteou
o cabelo rapidamente. Era de um louro quase cinza, aclarado pelo sol e curto, fora de moda. Mas era confortável e fácil de cuidar. Além disso, gostava do modo como lhe enquadrava o rosto e realçava a longa e graciosa linha do pescoço.
Olhou para o seu corpo no espelho. Tinha finalmente perdido os últimos e renitentes quilos que tinha ganho quando ficara grávida do seu primeiro filho. As estrias tinham desaparecido e o ventre ostentava um bronzeado intenso. A barriga à mostra estava na moda naquele verão e ela gostava do modo como toda a gente na North Shore tinha ficado surpreendida com a sua forma física. Apenas os seios estavam diferentes - estavam maiores, o que não a apoquentava, porque Margaret sempre se sentira pouco à vontade em relação ao tamanho deles. Os novos sutiãs daquele verão eram mais pequenos e mais rígidos, concebidos para elevar os seios. Margaret gostava deles porque Peter gostava do aspeto que lhe davam.
Vestiu um par de calças de algodão, uma blusa sem mangas, atada com um nó abaixo dos seios, e umas sandálias rasas. Olhou para a sua imagem refletida no espelho
uma última vez. Era linda - sabia disso -, mas não de um modo ousado, que fizesse virar cabeças nas ruas de Manhattan. A beleza de Margaret era intemporal e subtil, perfeita para a camada social em que tinha nascido.
Pensou: E não tarda nada vais ficar outra vez uma vaca gorda!
Afastou-se do espelho e abriu as cortinas. A luz erma do sol derramou-se pelo quarto. O relvado estava um caos. A tenda era desmontada, os fornecedores embalavam as mesas e as cadeiras, a pista de dança era levantada peça por peça e retirada. A relva, anteriormente verde e exuberante, tinha ficado toda pisada. Abriu as janelas
e aspirou o aroma adocicado a champanhe derramado. Algo nisso a deixou deprimida. Hitlerpode estar a preparar-se para conquistar a Polónia, mas foi reservado um
momento esplendoroso a todos os que assistiram este sábado à noite à gala anual de agosto dada por Bratton e Dorothy Lauterbach. Margaret já quase podia escrever
ela própria as colunas sociais.
Ligou o rádio na mesinha de cabeceira e sintonizou a WNYC. "Til Never Smile Again" tocava com suavidade. Peter agitou-se, ainda a dormir. À luz brilhante do sol,
mal se conseguia distinguir a sua pele de porcelana dos lençóis brancos de cetim. Outrora, ela pensava que os engenheiros eram homens com o cabelo cortado rente,
óculos pretos com lentes grossas e um monte de lápis nos bolsos das camisas. Peter não era assim - maçãs do rosto pronunciadas, uma fina linha do maxilar, suaves
olhos verdes, cabelo quase preto. Nesse momento, deitado na cama, com a parte superior do corpo exposta, tinha o aspeto, pensava Margaret, de um Miguel Angelo tombado.
Destacava-se na North Shore, destacava-se dos rapazes de cabelos claros que tinham nascido no meio de fortunas extraordinárias e planeavam viver a vida em espreguiçadeiras.
Peter era perspicaz, ambicioso e vivo. Mostrava-se muito superior a todos os outros. Margaret gostava disso.
Lançou um olhar ao céu nublado e franziu a testa. Peter detestava dias assim em agosto. Ficaria irritável e rabugento durante todo o dia. Haveria provavelmente uma
tempestade para arruinar a viagem de regresso à cidade.
Pensou: Talvez eu devesse esperar para lhe contar as novidades.
- Levanta-te, Peter, ou vamos ouvir das boas - disse Margaret, empurrando-o com o dedo grande do pé.
- Só mais cinco minutos.
- Não temos cinco minutos, querido. Peter não se mexeu.
- Café - suplicou.
As empregadas tinham deixado café à porta do quarto. Era um hábito que Dorothy Lauterbach detestava; achava que isso fazia o corredor do andar de cima parecer o
Plaza Hotel. Mas permitia-o, se isso significasse que as crianças cumpririam a única regra dos fins de semana - que desceriam para tomar o pequeno-almoço às nove horas em ponto.
Margaret encheu uma chávena de café e entregou-a a Peter. Este deslizou sobre o cotovelo e bebeu um pouco. De seguida, sentou-se na cama e observou Margaret.
- Como é que consegues ficar tão linda dois minutos depois de saíres da cama?
Margaret sentiu-se aliviada.
- Não há dúvida de que estás de bom humor. Temi que estivesses de ressaca e fosses andar perfeitamente insuportável o dia inteiro.
- E estou mesmo de ressaca. Benny Goodman está a tocar na minha cabeça e a minha língua parece que precisa de ser barbeada. Mas não tenho nenhuma intenção de me comportar de maneira...
Fez uma pausa.
- Qual foi a palavra que utilizaste?
- Insuportável.
Ela sentou-se na borda da cama.
- Há uma coisa de que temos de falar e esta parece ser uma altura tão boa como qualquer outra.
- Hum. Parece-me sério, Margaret.
- Depende - respondeu ela, olhando-o com o seu ar brincalhão e depois fingindo-se irritada. - Mas levanta-te e veste-te. Ou não és capaz de te vestir e ouvir ao mesmo tempo?
- Sou um engenheiro altamente preparado e altamente conceituado - retorquiu Peter, obrigando-se a sair da cama, gemendo com o esforço. - Talvez consiga.
- É sobre o telefonema de ontem à tarde.
- Aquele de que não quiseste falar?
- Sim, esse. Era o doutor Shipman. Peter parou de se vestir.
- Estou grávida outra vez. Vamos ter outro filho. - Margaret baixou os olhos e pôs-se a mexer no nó da blusa. - Não planeei nada disto. Limitou-se a acontecer. O meu corpo finalmente recuperou de ter tido o Billy e, bem, a natureza tomou o seu caminho - explicou ela, voltando a olhar para ele. - Suspeitava há algum tempo, mas tinha medo de to dizer.
- E por que raio é que haverias de ter medo de mo dizer?
Mas Peter sabia a resposta à sua própria pergunta. Tinha dito a Margaret que não queria ter mais filhos até ter realizado o sonho da sua vida: abrir a sua própria empresa de engenharia. com apenas trinta e três anos, tinha granjeado a reputação de ser um dos melhores engenheiros do país. Depois de se formar em primeiro lugar no seu ano, no prestigiado Rensselaer Polytechnic Institute, foi trabalhar para a Northeast Bridge Company, a maior empresa de construção da Costa Leste. Cinco anos mais tarde, foi nomeado engenheiro-chefe, tornou-se sócio e foi-lhe atribuída uma equipa de cem pessoas. A American Society of Civil Engineering nomeou-o engenheiro do ano, em
1938, pelo seu trabalho inovador numa ponte sobre o rio Hudson, no norte do estado de Nova Iorque. A Sdentific American publicou um perfil de Peter descrevendo-o como a mente da engenharia mais promissora da sua geração. Mas ele queria mais - queria a sua própria empresa. Bratton Lauterbach tinha prometido financiar a empresa de Peter quando chegasse a altura ideal, possivelmente no ano seguinte. Mas a ameaça de guerra tinha posto um travão a tudo isso. Se os Estados Unidos fossem arrastados para a guerra, deixaria de haver dinheiro, da noite para o dia, para obras públicas de grande envergadura. A nova empresa de Peter afundar-se-ia antes de ter uma hipótese de levantar voo.
- De quanto tempo estás? - perguntou ele.
- Quase dois meses.
O rosto de Peter abriu-se num sorriso.
- Não estás aborrecido comigo? - perguntou Margaret.
- Claro que não!
- E a tua empresa e tudo aquilo que disseste sobre termos de esperar para ter mais filhos?
Beijou-a.
- Isso não importa. Nada disso importa.
- A ambição é uma coisa maravilhosa, mas não demasiada ambição. Às vezes, tens de relaxar e divertir-te, Peter. A vida não é um ensaio geral.
Peter pôs-se de pé e acabou de se vestir.
- E quando é que tencionas dizer à tua mãe?
- No momento certo. Lembras-te da reação dela quando eu fiquei grávida do Billy. Pôs-me maluca. Tenho muito tempo para lhe dizer.
Peter sentou-se junto dela, na cama.
- Vamos fazer amor antes do pequeno-almoço.
- Não podemos, Peter. A mãe vai matar-nos se não descermos. Ele beijou-lhe o pescoço.
- O que foi que disseste sobre a vida não ser um ensaio geral? Ela fechou os olhos e a sua cabeça deslizou para trás.
- Isso não é justo. Estás a deturpar as minhas palavras.
- Não, não estou, estou a beijar-te.
- Sim...
- Margaret!
A voz de Dorothy Lauterbach ecoou pelas escadas acima.
- Estamos a ir, mãe.
- Quem me dera - murmurou Peter, seguindo-a depois para o andar de baixo a fim de tomar o pequeno-almoço.
Walker Hardegen juntou-se-lhes para o almoço junto à piscina. Sentaram-se debaixo do guarda-sol: Bratton e Dorothy, Margaret e Peter, Jane e Hardegen. Uma brisa
húmida e inconstante soprava do Sound. Hardegen era o braço direito de Bratton Lauterbach no banco. Era alto e largo de peito e ombros, e a maioria das mulheres
achava que ele se parecia com Tyrone Power. Era um homem de Harvard e durante o seu último ano tinha marcado um touchdown no jogo com Yale. Os seus tempos de futebol americano tinham-no deixado
com um joelho arruinado e ligeiramente coxo, o que de certo modo o tornava ainda mais atraente. Tinha o sotaque indolente de New England e sorria facilmente.
Pouco tempo depois de Hardegen ter chegado ao banco, convidou Margaret para sair e tiveram vários encontros. Hardegen queria que a relação continuasse, mas Margaret não quis. Terminou tudo discretamente, mas ainda via Walker com regularidade em festas e continuaram amigos. Seis meses mais tarde, conheceu Peter e apaixonou-se. Hardegen ficou fora de si. Uma noite no Copacabana, um pouco bêbado e com muitos ciúmes, acercou-se de Margaret e implorou-lhe que voltasse a andar com ele. Quando ela recusou, agarrou-a bruscamente pelo ombro e abanou-a. Pela expressão gelada no seu rosto, Margaret tornou claro que lhe destruiria a carreira se ele não acabasse com o seu comportamento infantil.
O incidente ficou entre eles. Nem mesmo Peter sabia. Hardegen rapidamente ascendeu nas fileiras do banco e tornou-se o executivo de elevada posição em quem Bratton depositava mais confiança. Margaret notava que existia uma tensão silenciosa entre Hardegen e Peter, uma competitividade natural. Ambos eram jovens, bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. A situação tinha piorado um pouco antes do verão, quando Peter descobriu que Hardegen se opunha ao empréstimo para a sua empresa de engenharia.
- Eu não sou grande adepto de Wagner, especialmente no clima atual - disse Hardegen, fazendo uma pausa para dar um gole no vinho branco gelado, enquanto toda a gente ria do seu comentário. Mas tem mesmo de ir ao Metropolitan ver o Herbert Janssen no Tannhàuser. É maravilhoso.
- Tenho ouvido falar muitíssimo bem dessa ópera - respondeu Dorothy.
Ela adorava falar de ópera, teatro, livros e filmes novos. Hardegen, que conseguia ver e ler tudo apesar de uma imensa carga de trabalho no banco, fazia-lhe a vontade. As artes eram um tema seguro, ao contrário de assuntos familiares e de mexericos, que Dorothy deplorava.
- Vimos a Ethel Merman no novo musical do Cole Porter disse Dorothy, enquanto o primeiro prato, uma salada fria de camarão, era servido. - Não me lembro agora do título.
- Dubany Was a Laãy - interveio Hardegen. - Adorei. Hardegen continuou a falar. Na véspera, tinha ido a Forest Hills
à tarde e visto Bobby Riggs ganhar o jogo que estava a disputar. Achava que Riggs seria garantidamente o vencedor do Open desse ano. Margaret observou a mãe, que observava Hardegen. Dorothy adorava Hardegen, tratando-o praticamente como um membro da família. Tinha tornado claro que preferia Hardegen a Peter. Hardegen era oriundo de uma família rica e conservadora do Maine, não tão rica quanto os Lauterbach, mas que andava lá perto, o que era reconfortante. Peter viera de uma família irlandesa da classe média baixa e crescera na zona ocidental de Manhattan. Podia ser um engenheiro brilhante, mas nunca seria um dos nossos. A disputa ameaçou destruir a relação de Margaret com a mãe. Foi terminada por Bratton, que não iria tolerar objeções ao marido que a filha tinha escolhido. Margaret tinha casado com Peter, numa cerimónia de conto de fadas na St. James' Episcopal Church, em junho de 1935. Hardegen foi um dos seiscentos convidados. Dançara com Margaret durante a receção e comportara-se como um cavalheiro. Até ficou para se despedir do casal antes da lua de mel de dois meses pela Europa. Foi como se o incidente no Copa nunca tivesse acontecido.
Os empregados trouxeram o almoço - um prato frio de salmão estufado - e a conversa mudou inevitavelmente para a guerra iminente na Europa.
Bratton perguntou:
- Há alguma maneira de conseguir parar Hitler neste momento ou a Polónia vai tornar-se a província mais a leste do Terceiro Reich?
Hardegen, advogado e um sagaz investidor, tinha tomado a responsabilidade de desembaraçar o banco dos seus investimentos arriscados na Alemanha e na Europa. Dentro do banco, era tratado carinhosamente por "o nosso nazi" devido ao nome, ao seu alemão perfeito e às viagens frequentes a Berlim. Mantinha igualmente uma rede de excelentes contactos em Washington e funcionava como o principal agente dos serviços de informação do banco.
- Falei com um amigo esta manhã. Ele faz parte da equipa do Henry Stimson, no Ministério da Guerra -- disse Hardegen. - Quando Roosevelt regressou a Washington depois do cruzeiro a bordo do
Tuscaloosa, Stimson encontrou-se com ele na Union Station e foram juntos para a Casa Branca. Quando Roosevelt o questionou acerca da situação na Europa, Stimson respondeu que os dias de paz podiam agora ser contados pelos dedos das mãos.
- Roosevelt regressou a Washington há uma semana - disse Margaret.
- É verdade. Faz as contas. E penso que Stimson estava a ser otimista. Acho que a guerra deve estar por horas.
- Mas então e a comunicação a que o Times se refere na edição de hoje? - perguntou Peter.
Hitler tinha enviado uma mensagem ao Reino Unido na noite anterior e o Times sugeria que isso poderia abrir caminho a uma solução negociada para a crise polaca.
- Ele está a protelar - respondeu Hardegen. - Os alemães têm dezasseis divisões ao longo da fronteira polaca à espera da ordem para avançar.
- Então de que é que Hitler está à espera? - estranhou Margaret.
- De uma desculpa.
- com certeza que os polacos não lhe vão dar uma desculpa para invadir.
- Não, claro que não. Mas isso não vai parar Hitler.
- O que é que está a sugerir, Walker? - indagou Bratton.
- Hitler vai inventar um motivo para atacar, uma provocação que lhe permita invadir sem uma declaração de guerra.
- E os britânicos e os franceses? - perguntou Peter. - Vão fazer jus aos seus compromissos e declarar guerra à Alemanha se a Polónia for atacada?
- Creio que sim.
- Não conseguiram deter Hitler na Renânia, na Áustria ou na Checoslováquia - afirmou Peter.
- Sim, mas com a Polónia é diferente. Agora, o Reino Unido e a França compreendem que é preciso tomar medidas em relação a Hitler.
- E quanto a nós? - interveio Margaret. - Podemos ficar de fora?
- Roosevelt continua a afirmar que se quer manter à margem
- respondeu Bratton -, mas não acredito nele. Se a Europa inteira
for arrastada para a guerra, duvido que sejamos capazes de ficar de fora por muito tempo.
- E o banco? - continuou Margaret.
- Estamos a cessar todos os nossos negócios com parceiros alemães - respondeu Hardegen. - Se houver uma guerra, haverá muitas outras oportunidades de investimento. Esta guerra pode ser exatamente do que nós precisamos para arrancar o país da Depressão de uma vez por todas.
- Ah, não há nada melhor do que retirar lucro da morte e da destruição - disse Jane.
Margaret olhou com severidade para a irmã mais nova e pensou: típico da Jane. Gostava de se apresentar como uma iconoclasta; uma intelectual sombria e taciturna, crítica da sua classe e de tudo o que ela representava. Ao mesmo tempo, frequentava festas sem parar e gastava o dinheiro do pai como se o poço estivesse a ponto de secar. com trinta anos, não tinha meios de subsistência e nenhumas perspetivas de casamento.
- Oh, Jane, andaste a ler Marx outra vez? - perguntou Margaret em tom de brincadeira.
- Margaret, por favor - disse Dorothy.
- Jane passou algum tempo em Inglaterra, há uns anos - continuou Margaret, como se não tivesse ouvido o apelo da mãe para que houvesse paz. - Tornou-se uma grande comunista nessa altura, não foi, Jane?
- Tenho direito a ter uma opinião, Margaret - disparou Jane. Hitler não manda nesta casa.
- Acho que também gostaria de me tornar comunista - disse Margaret. - O verão tem sido bastante aborrecido, com toda esta conversa acerca da guerra. Converter-me ao comunismo seria uma maneira agradável de mudar de rotina. Os Hutton vão dar um baile de máscaras no próximo fim de semana. Podíamos ir disfarçadas de Lenine e Estaline. Depois da festa, podemos ir para North Fork coletivizar todas as quintas. Vai ser muito divertido.
Bratton, Peter e Hardegen desataram a rir às gargalhadas.
- Obrigado, Margaret - disse Dorothy com severidade. - Entretiveste-nos a todos o suficiente para o resto do dia.
A conversa acerca da guerra tinha ido longe demais. Dorothy esticou a mão e tocou no braço de Hardegen.
- Walker, tenho tanta pena que não tenha podido vir à nossa festa ontem à noite. Foi maravilhosa. Deixe-me contar-lhe tudo.
O luxuoso apartamento na Quinta Avenida com vista para o Central Park tinha sido uma prenda de casamento de Bratton Lauterbach. Às sete da noite, Peter Jordan estava à janela. Uma tempestade tinha-se estendido por toda a cidade. No parque, brilhavam relâmpagos sobre as copas das árvores de um verde-profundo. O vento impelia a chuva contra o vidro. Peter tinha regressado sozinho à cidade porque Dorothy insistira para que Margaret comparecesse a uma festa em casa de Edith Blakemore. Margaret estava naquele momento a voltar para a cidade, trazida por Wiggins, o motorista dos Lauterbach. E agora iriam ser apanhados pelo mau tempo.
Peter esticou o braço e lançou uma olhadela ao relógio pela quinta vez em cinco minutos. Tinha ficado de se encontrar com o chefe da comissão responsável pelas estradas e pontes da Pennsylvania, no Stork Club, para um jantar às sete e meia. A Pennsylvania estava a receber propostas e projetos para uma nova ponte sobre o rio Allegheny. O patrão de Peter queria que ele fechasse o negócio nessa noite. Era muitas vezes convocado para receber clientes. Era jovem e esperto, e a sua bela mulher era filha de um dos mais poderosos banqueiros do país. Formavam um par esplêndido.
Pensou: Onde é que ela estará, raios?
Ligou para a casa de Oyster Bay e falou com Dorothy.
- Não sei o que lhe dizer, Peter. Ela já saiu há muito tempo. Porventura, o Wiggins está a demorar mais por causa do mau tempo. Sabe como é o Wiggins... basta um sinal de chuva e quase que para.
- Dou-lhe mais quinze minutos. Depois, tenho de sair.
Peter sabia que Dorothy não faria conversa de circunstância, por isso desligou antes de se instalar um silêncio incómodo. Preparou um gim tónico e bebeu-o rapidamente enquanto esperava. Às 19h15, desceu no elevador e aguardou no vestíbulo enquanto o porteiro saía para enfrentar a chuva e chamava um táxi.
Quando a minha mulher chegar, peça-lhe para ir diretamente
para o Stork Club.
- Sim, senhor Jordan.
O jantar correu bem, apesar de Peter se ter levantado três vezes para telefonar para o apartamento e para a casa de Oyster Bay. Às
20h30, já não estava aborrecido, estava preocupadíssimo.
Às 20h45, Paul Delano, o chefe de mesa, dirigiu-se a Peter.
- O senhor tem uma chamada no bar.
- Obrigado, Paul.
Peter pediu licença. No bar, teve de levantar a voz acima do tinir dos copos e do ruído das conversas.
- Peter, é a Jane.
Peter ouviu a voz dela tremer.
- O que se passa?
- Temo que tenha havido um acidente.
- Onde estás?
- Estou na esquadra de polícia do condado de Nassau.
- O que aconteceu?
- Um carro meteu-se à frente deles, na autoestrada. Wiggins não conseguiu vê-lo com a chuva. Quando se apercebeu, já era demasiado tarde.
- Oh, meu Deus!
- Wiggins está em muito mau estado. Os médicos não têm muita esperança que ele sobreviva.
- E a Margaret, raios?
Os Lauterbach não choravam em funerais; o luto era feito em privado. A cerimónia foi realizada na St. James' Episcopal Church, a mesma igreja em que Peter e Margaret se tinham casado quatro anos antes. O presidente Roosevelt enviou uma nota de condolências e expressou o seu pesar por não poder estar presente. Mas a maioria da alta sociedade de Nova Iorque compareceu. Bem como a maioria do mundo das finanças, ainda que os mercados estivessem em tumulto. A Alemanha tinha invadido a Polónia e o mundo estava à espera da eclosão da guerra na Europa.
Billy permaneceu junto de Peter durante as exéquias. Vestia calças curtas, um pequeno blaer e gravata. Quando a família começou a sair da igreja em fila, estendeu a mão e puxou a bainha do vestido preto da tia Jane.
- A mamã vai voltar algum dia a casa?
- Não, Billy, não vai voltar. Ela deixou-nos.
Edith Blakemore ouviu por acaso a pergunta da criança e começou a chorar.
- Que tragédia - lamentou ela. - Que tragédia sem sentido!
Margaret foi enterrada sob um céu brilhante na campa de família, em Long Island. Durante as últimas palavras do reverendo Pugh, um murmúrio atravessou os enlutados em redor da campa e depois dissipou-se.
Quando terminou, Peter regressou à limusina com o seu melhor amigo, Shepherd Ramsey. Shepherd tinha apresentado Peter a Margaret. Mesmo com o seu fato escuro sombrio, tinha o aspeto de ter acabado de sair do convés do seu veleiro.
- De que estava toda a gente a falar? - perguntou Peter. Foi bastante grosseiro.
- Houve pessoas que chegaram atrasadas e que tinham estado a ouvir as notícias no rádio do carro - disse Shepherd. - O Reino Unido e a França acabaram de declarar guerra à Alemanha.
TRÊS
LONDRES: MAIO DE 1940
O professor Alfred Vicary desapareceu sem explicação do University College London, na terceira sexta-feira de maio de 1940. Uma secretária chamada Lillian Walford
foi o último membro do staffa. ver Vicary antes do seu abrupto desaparecimento. Numa rara indiscrição, revelou aos outros professores que a última chamada telefónica
que Vicary recebera tinha sido do novo primeiro-ministro. Na verdade, ela até tinha falado pessoalmente com o senhor Churchill.
- Aconteceu a mesma coisa com Masterman e Cheney em Oxford - disse tom Perrington, um egiptólogo, enquanto dava uma vista de olhos à entrada no livro de registos
telefónicos. - Chamadas misteriosas, homens de fatos escuros. Suspeito que o nosso caro amigo Alfred tenha passado para trás do véu.
Depois acrescentou sotto você:
- Para o interior da Acrópole secreta.
O sorriso lânguido de Perrington não conseguia esconder a sua desilusão, comentaria posteriormente Miss Walford. Era uma pena que o Reino Unido não estivesse em guerra com os antigos egípcios
- talvez Perrington também tivesse sido escolhido.
Vicary passou as suas últimas horas no seu gabinete abarrotado e desorganizado, com vista para Gordon Square, dando os últimos retoques num artigo para o Sundoy Times. A atual crise poderia ter
sido evitada, sugeria o texto, se o Reino Unido e a França tivessem atacado a Alemanha em 1939, quando Hitler ainda estava absorto com a Polónia. Sabia que seria severamente criticado devido ao atual clima; o último artigo que escrevera tinha sido condenado como chunhilliano e belicista por uma publicação da extrema-direita
pró-nazi. Vicary esperava no seu íntimo que o novo artigo fosse recebido de um modo semelhante.
Era um glorioso dia de fim de primavera - sol brilhante, mas tempo dececionantemente fresco. Vicary, um jogador de xadrez talentoso, ainda que relutante, apreciava
o logro. Levantou-se, vestiu um casaco de malha e depois retomou o trabalho.
O clima agradável dava uma imagem falsa da realidade. O Reino Unido era uma nação sitiada - sem defesas, assustada, titubeando em total confusão. Foram elaborados planos para evacuar a família real para o Canadá. O governo pediu que o outro tesouro nacional do Reino Unido, as suas crianças, fosse enviado para o campo, onde estariam a salvo dos bombardeiros da Luftwaffe.
Através da utilização de hábil propaganda, o governo tinha tornado a população extremamente consciente da ameaça colocada por espiões e quinta-colunistas. Estava agora a sofrer as consequências. Os regimentos de polícia estavam a ser soterrados por relatórios sobre estranhos, indivíduos de ar esquisito ou cavalheiros com aspeto de alemães. Os cidadãos escutavam conversas empabs, ouvindo o que queriam e comunicando depois à polícia. Relatavam sinais de fumo, luzes a piscarem na costa e espiões paraquedistas. Um rumor atravessou o país, segundo o qual agentes alemães se tinham feito passar por freiras durante a invasão dos Países Baixos; de repente, as freiras tornaram-se suspeitas. A maioria só saía do santuário murado dos seus conventos quando era absolutamente necessário.
Um milhão de homens demasiado novos, demasiado velhos ou demasiado débeis para ingressar nas forças armadas apressou-se a alistar-se na Guarda Territorial. Não havia espingardas para a guarda, por isso armavam-se com o que podiam - caçadeiras, espadas, cabos de vassoura, clavas medievais, facas nepalesas, até tacos de golfe. Aqueles que por algum motivo não conseguiam encontrar a arma adequada recebiam ordens para andar com pimenta para lançar aos olhos dos soldados alemães saqueadores.
Vicary, um reputado historiador, observou a agitação dos preparativos da sua nação para a guerra com um misto de enorme orgulho e silencioso desânimo. Ao longo dos anos trinta, os seus artigos de jornal e conferências tinham avisado que Hitler representava uma séria ameaça à Inglaterra e ao resto do mundo. Mas o Reino Unido, esgotado pela última guerra com os alemães, não tinha estado com disposição para ouvir falar de outra. Mas, naquele preciso momento, o exército alemão avançava pela França com a tranquilidade de um passeio automobilístico de fim de semana. Em breve, Adolf Hitler estaria no topo de um império que se estenderia do Círculo Polar Ártico até ao Mediterrâneo. E o Reino Unido, insuficientemente armado e mal preparado, encontrava-se sozinho contra ele.
Vicary terminou o artigo, pousou o lápis e leu-o desde o início. Lá fora, o Sol estava a pôr-se num mar alaranjado sobre Londres. O cheiro de flores primaveris que floresciam nos jardins da Gordon Square entrava pela janela. A tarde tinha arrefecido; era provável que as flores dessem início a uma crise de espirros. Mas a brisa sabia-lhe maravilhosamente no rosto e, por alguma razão, fazia o chá saber melhor. Deixou a janela aberta e desfrutou.
A guerra estava a fazê-lo pensar e agir de um modo diferente. Estava a fazê-lo olhar mais afetuosamente para os seus compatriotas, que normalmente observava com uma atitude próxima do desespero. Espantava-se com o facto de serem capazes de dizer piadas enquanto entravam em fila indiana no abrigo da estação de metro e com o modo como cantavam nos pubs para esconderem o medo. Levou algum tempo até que Vicary reconhecesse os seus sentimentos pelo que eles eram - patriotismo. Ao longo de uma vida de estudo, tinha concluído que aquela era a força mais destrutiva do planeta. Mas, naquele momento, sentia a agitação do patriotismo no seu próprio peito e não estava envergonhado. Nós somos bons e eles são maus. O nosso nacionalismo é justificado.
Vicary tinha decidido que queria contribuir. Queria fazer algo em vez de observar o mundo através da sua janela bem protegida.
Às seis da tarde, Lillian Walford entrou sem bater. Era alta, com pernas de lançador de pesos e óculos redondos que ampliavam um olhar inabalável. Começou a pôr papéis em ordem e a fechar livros com a tranquila eficiência de uma enfermeira noturna.
Nominalmente, Miss Walford trabalhava para todos os professores do departamento. Mas ela acreditava que Deus, na sua infinita sabedoria, confiava a cada pessoa uma alma para dela cuidar. E se havia uma pobre alma a precisar de que cuidassem dela, era o professor Vicary. Durante dez anos, tinha orientado os pormenores da vida simples de Vicary com uma precisão militar. Certificava-se de que havia comida na casa dele em Draycott Place, em Chelsea. Assegurava-se de que as camisas lhe eram entregues e continham a quantidade exata de goma - não em demasia, pois isso irritar-lhe-ia a pele suave do pescoço. Tratava-lhe das contas e censurava-o regularmente sobre o estado da sua conta bancária mal gerida. Contratava novas empregadas com uma regularidade sazonal porque os ataques de mau feitio dele afugentavam as anteriores. Apesar da proximidade das suas relações profissionais, nunca se tratavam pelos nomes de batismo. Ela era Miss Walford e ele, o professor Vicary. Ela preferia ser vista como uma assistente pessoal e, de maneira pouco característica, Vicary fazia-lhe a vontade.
Miss Walford tocou de raspão em Vicary, ao passar, e fechou a janela, lançando-lhe um olhar de censura.
- Se não se importa, professor Vicary, vou-me embora para casa.
- Claro, Miss Walford.
Ele olhou para ela. Era um homem pequeno, inquieto e com ar de estudioso, careca no cimo da cabeça, à exceção de alguns fios de cabelo grisalho despenteados. Os seus maltratados óculos em meia-lua repousavam-lhe na ponta do nariz. Estavam manchados com dedadas por causa do hábito de os retirar e voltar a pôr sempre que se sentia nervoso. Usava um casaco de tweed fustigado pelas intempéries e uma gravata manchada de chá, escolhida com desleixo. O seu modo de andar era objeto de piadas na universidade e, sem que tivesse conhecimento, alguns dos seus alunos tinham aprendido a imitá-lo na perfeição. Um joelho destruído durante a guerra anterior tinha-o deixado com um coxear mecanizado e as articulações presas - um soldado de brincar que já não funcionava em condições, pensava Miss Walford. A cabeça tinha tendência a inclinar-se para baixo a fim de lhe permitir ver por cima dos óculos e ele parecia estar sempre a correr para algum lugar onde preferiria não estar.
O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas
de cordeiro em sua casa - disse Miss Walford, franzindo o sobrolho a uma confusa pilha de papéis como se se tratasse de uma criança desobediente. - Disse que poderia ser o último cordeiro que se conseguiria arranjar nos próximos tempos.
- Creio bem que sim - respondeu Vicary. - Há várias semanas que já não aparece carne na ementa do Connaught.
- Isto está a tornar-se um pouco absurdo, não acha, professor Vicary? Hoje, o governo decretou que os tejadilhos dos autocarros londrinos fossem pintados do cinzento dos couraçados - revelou Miss Walford. -- Acham que será mais difícil para a Luftwaffe bombardeá-los.
- Os alemães são implacáveis, Miss Walford, mas mesmo assim não vão perder tempo a bombardear autocarros de passageiros.
- E também decretaram que não devíamos abater pombos-correios. Fazia o favor de me explicar como é que eu sou capaz de distinguir um pombo-comw de um pombo normal?
- Nem lhe consigo dizer quantas vezes me sinto tentado a abater pombos - atirou Vicary.
- Já agora, também tomei a liberdade de lhe encomendar molho de hortelã - anunciou Miss Walford. - Sei que comer uma costeleta de cordeiro sem molho de hortelã lhe pode dar cabo da semana.
- Obrigado, Miss Walford.
- O seu editor ligou para dizer que as provas do novo livro estão prontas para revisão.
- E com apenas quatro semanas de atraso. Um recorde para Cagley. Lembre-me de procurar um novo editor, Miss Walford.
- Sim, professor Vicary. Miss Simpson ligou para dizer que não estará disponível para jantar consigo esta noite. A mãe adoeceu. Pediu-me para lhe dizer que não é nada de grave.
- Raios - murmurou Vicary.
Andava ansioso por se encontrar com Alice Simpson. Era a relação mais séria que tinha com uma mulher em muito tempo.
- É tudo?
- Não, o primeiro-ministro telefonou.
- O quê? Por que raio não me avisou?
- O senhor deixou instruções rigorosas para não ser incomodado. Quando lhe expliquei isso, o senhor Churchill foi bastante compreensivo. Diz que nada o transtorna mais do que ser interrompido quando está a escrever.
Vicary franziu o sobrolho.
- A partir deste momento, Miss Walford, tem a minha explícita permissão para me interromper quando o senhor Churchill telefonar.
- Sim, professor Vicary - respondeu ela, ainda com a plena convicção de que tinha agido corretamente.
- O que disse o primeiro-ministro?
- Que conta consigo para o almoço de amanhã em Chartwell.
Vicary variava de percurso quando regressava a casa, de acordo com a sua disposição. Por vezes, preferia abrir caminho por uma rua comercial movimentada ou passar
pelo meio do rebuliço da multidão no Soho. Noutras noites, deixava as vias principais e percorria as tranquilas ruas residenciais, ora detendo-se a contemplar um
exemplar de arquitetura georgiana esplendidamente iluminado, ora retardando o passo para ouvir os sons de música, risos e tinir dos copos provenientes de uma festa
divertida.
Naquela noite, ia andando indolentemente por uma rua sossegada durante os últimos resquícios do crepúsculo.
Antes da guerra, passara a maioria das noites a fazer investigação na biblioteca, percorrendo os corredores entre as estantes como um fantasma até altas horas da
noite. Numa ou noutra noite, adormecia. Miss Walford deu instruções aos porteiros noturnos - quando o encontrassem deveriam acordá-lo, enfiar-lhe o impermeável e enviá-lo para casa.
O blackout tinha modificado essa situação. Todas as noites, a cidade mergulhava numa profunda escuridão. Os londrinos de gema perdiam-se nas ruas em que andavam
há anos. Para Vicary, que sofria de cegueira noturna, o blackout tornava a navegação próxima do impossível. Imaginava que as coisas deveriam ter sido assim dois milénios antes, quando Londres era um aglomerado de cabanas em madeira ao longo das margens pantanosas do rio Tamisa. O tempo tinha-se
dissipado, os séculos, recuado, e o progresso inegável da humanidade fora interrompido pela ameaça dos bombardeiros de Góring. Todas as tardes, Vicary fugia da universidade
e apressava-se em direção a casa antes que ficasse encalhado nas ruas secundárias de Chelsea. Uma vez seguro dentro de casa, bebia os dois copos de Borgonha da praxe e devorava o prato de costeletas e ervilhas que a empregada lhe deixava num fogão quente. Se não lhe preparassem as refeições, passaria fome, já que ainda se debatia com as complexidades da moderna cozinha inglesa.
Depois do jantar, um pouco de música, uma peça de teatro na telefonia, ou mesmo um romance policial, uma obsessão privada que não revelava a ninguém. Vicary gostava de mistérios; gostava de enigmas. Gostava de utilizar as suas capacidades de raciocínio e dedução para resolver os casos muito antes de o autor fazer isso por ele. Também gostava dos estudos de personagem nos mistérios e muitas vezes encontrava paralelos no seu próprio trabalho - a razão pela qual, por vezes, pessoas boas faziam coisas más.
Adormecer era um processo gradual. Começava na sua cadeira preferida, com o candeeiro de leitura ainda aceso. Depois, mudava-se para o sofá. De seguida, normalmente nas últimas horas antes do amanhecer, subia para o quarto, no andar de cima. Por vezes, a concentração necessária para despir a roupa deixava-o demasiado desperto para voltar a adormecer e, por isso, ficava acordado a pensar, à espera do amanhecer cinzento e do riso malicioso da velha pega que chapinhava todas as manhãs na fonte do jardim, lá fora.
Tinha dúvidas se iria conseguir dormir grande coisa nessa noite
- ainda por cima, depois da convocatória de Churchill.
Não era invulgar Churchill ligar-lhe para o gabinete, era mais o timing. Vicary e Churchill eram amigos desde o outono de 1935, quando Vicary assistira a uma conferência dada por Churchill em Londres. Churchill, confinado à desolação dos lugares de trás do parlamento britânico, era uma das poucas vozes no Reino Unido a alertar para a ameaça colocada pelos nazis. Nessa noite, afirmara que a Alemanha se estava a rearmar a um ritmo frenético, que Hitler pretendia combater assim que fosse capaz. A Inglaterra tinha de se rearmar imediatamente, defendeu ele, ou enfrentar ser escravizada pelos nazis.
O público pensou que Churchill tinha perdido a cabeça e apupou-o sem misericórdia. Churchill interrompera abruptamente as suas observações e regressara a Chartwell, mortificado.
Naquela noite, Vicary tinha-se deixado ficar ao fundo do auditório a assistir ao espetáculo. Também ele andava a observar a Alemanha cuidadosamente desde que Hitler ascendera ao poder. Tinha previsto discretamente perante os colegas que a Inglaterra e a Alemanha entrariam em guerra dentro de pouco tempo, talvez ainda antes do final da década. Ninguém prestara atenção. Havia muita gente que pensava que Hitler era um bom contrapeso à União Soviética e que devia ser apoiado. Vicary achava que isso era um absurdo total. À semelhança do resto do país, considerava Churchill um pouco aventureiro, um tanto belicoso. Mas em se tratando dos nazis, Vicary achava que Churchill tinha toda a razão.
Quando regressou a casa, Vicary sentou-se à secretária e escreveu-lhe rapidamente um bilhete, com uma única frase: Assisti à sua conferência em Londres e concordo com cada palavra que proferiu. Cinco dias mais tarde, chegou um bilhete de Churchill a casa de Vicary: Meu Deus, afinal não estou sozinho. O grande Vicary está ao meu lado! Por favor, conceda-me a honra de vir almoçar a Chartwell este domingo.
O primeiro encontro entre ambos foi um sucesso. Vicary foi imediatamente incorporado no círculo de académicos, jornalistas, funcionários públicos e oficiais que iria aconselhar e fornecer informações a Churchill acerca da Alemanha durante o resto da década. Winston forçava Vicary a ouvi-lo enquanto percorria o antigo piso de madeira da sua biblioteca e explicava as suas teorias acerca das intenções alemãs. Por vezes, Vicary discordava, forçando Churchill a clarificar os seus pontos de vista. Por vezes, Churchill perdia a calma e recusava voltar atrás. Vicary mantinha-se firme. A amizade entre ambos foi cimentada desse modo.
Naquele preciso momento, caminhando através da escuridão crescente, Vicary pensou na convocatória de Churchill para ir até Chartwell. Não era certamente apenas para uma conversa amistosa.
Vicary virou para uma rua de casas brancas geminadas, de estilo georgiano, pintadas de rosa pelos últimos minutos do crepúsculo primaveril. Caminhou lentamente, como se estivesse perdido, com uma
mão a agarrar a mala, pesada como chumbo, e a outra enfiada no bolso do impermeável. Uma mulher atraente, aproximadamente da sua idade, emergiu da soleira de uma
porta. Um homem elegante e de ar aborrecido seguia-a. Mesmo ao longe - mesmo com a sua terrível visão -, conseguiu perceber que era Helen. Reconhecê-la-ia em qualquer
lugar - a postura ereta, o pescoço alto, o caminhar desdenhoso, como se estivesse sempre prestes a pisar qualquer coisa desagradável. Vicary viu-os entrar para o
banco de trás de um carro conduzido por um motorista. O carro arrancou, afastando-se do passeio, e avançou na sua direção. Dá meia-volta, meu grande parvo! Não olhes
para ela! Mas foi incapaz de seguir o seu próprio conselho. Quando o carro passou por ele, virou a cabeça e olhou para o banco de trás. Ela viu-o - por um instante,
apenas -, mas foi o suficiente. Embaraçada, baixou imediatamente os olhos. Vicary, através do vidro traseiro do carro, observou-a a virar-se e a sussurrar alguma
coisa ao marido que o fez soltar uma gargalhada, atirando a cabeça para trás.
Idiota! Idiota dum raio!
Vicary recomeçou a andar. Olhou em frente e observou o carro a desaparecer ao virar da esquina. Interrogou-se para onde iriam a outra festa, talvez ao teatro. Porque
não a esqueço simplesmente? já passaram vinte e cinco anos, por amor de Deus! E depois pensou:
- E porque é que o teu coração está a bater como se fosse a primeira
vez que a visses?
Continuou a andar o mais rapidamente que pôde até ficar cansado e sem fôlego. Pensou em qualquer coisa que lhe viesse à mente - tudo menos ela. Chegou a um parque infantil e ficou parado junto ao portão de ferro, a olhar fixamente para as crianças através das grades. Tinham roupa a mais para maio e andavam aos encontrões umas
às outras, como minúsculos pinguins roliços. Um qualquer espião alemão que estivesse à espreita iria certamente aperceber-se de que muitos londrinos tinham ignorado
o aviso do governo e mantido os filhos junto de si, na cidade. Vicary, normalmente indiferente a crianças, manteve-se ao portão, a ouvir, hipnotizado, pensando que
não havia nada tão reconfortante como o som dos pequeninos a brincar.
O carro de Churchill esperava-o na estação. Acelerou, com a capota descida, através dos campos verdes e ondulados do sudeste de Inglaterra. Estava fresco, corria uma brisa e parecia que tudo estava em flor. Vicary ia sentado no banco de trás, com uma mão a manter o casaco fechado e a outra a segurar o chapéu na cabeça. O
vento soprava por cima do descapotável como o temporal sobre a proa de um navio. Pensou se haveria de pedir ao condutor para parar o carro e subir a capota. Foi
então que começou o inevitável ataque de espirros, primeiro como se fossem disparos esporádicos de um atirador furtivo, depois progredindo para uma autêntica barragem de artilharia. Vicary não conseguia decidir que mão libertar para cobrir a boca. Virava a cabeça repetidamente ao espirrar, fazendo com que as pequenas rajadas de humidade e germes fossem levadas pelo vento.
O condutor viu os constantes movimentos de Vicary pelo retrovisor e ficou alarmado.
- Quer que pare o carro, professor Vicary? - perguntou, levantando o pé do acelerador.
O ataque de espirros acalmou e por fim Vicary foi capaz de apreciar a viagem. Em regra, não se interessava pelo campo. Era um londrino. Gostava das multidões, do ruído e do trânsito e tendia a ficar desorientado em espaços abertos. Também detestava a tranquilidade das noites. A sua mente vagueava e ele ficava convencido de que havia assaltantes deambulando na escuridão. Mas, naquele momento, recostou-se no banco do carro, maravilhado com a beleza natural de Inglaterra.
O carro virou para o caminho de entrada de Chartwell. A pulsação de Vicary aumentou quando saiu do carro. Ao aproximar-se da porta, esta abriu-se e lá estava o homem de Churchill, Inches, para o cumprimentar.
- bom dia, professor Vicary. O senhor primeiro-ministro tem estado a aguardar a sua chegada com muitíssima ansiedade.
Vicary entregou o casaco e o chapéu e entrou. Cerca de uma dúzia de homens e um par de raparigas estavam a trabalhar na sala de estar, alguns de uniforme, outros,
como Vicary, à civil. Falavam num tom abafado e confessional, como se todas as notícias fossem mas.
Um telefone tocou, depois outro. Todos eram atendidos ao primeiro toque.
- Espero que tenha tido uma viagem agradável - estava a dizer Inches.
- Maravilhosa - respondeu Vicary, mentindo educadamente.
- Como é hábito, o senhor Churchill está atrasado esta manhã
- disse Inches. De seguida, acrescentou em tom de confidência: Ele estabelece uma agenda impossível de cumprir e todos nós passamos o resto do dia a tentar respeitá-la.
- Compreendo, Inches. Onde quer que eu espere?
- Na verdade, o senhor primeiro-ministro está muito ansioso por vê-lo esta manhã. Pediu para o levar ao andar de cima assim que o senhor chegasse.
- Ao andar de cima?
Inches bateu suavemente e abriu a porta da casa de banho. Churchill estava estendido na banheira, com um charuto na mão e o segundo copo de uísque do dia pousado numa pequena mesa de fácil acesso. Inches anunciou Vicary e retirou-se.
- Vicary, meu caro amigo - disse ele, colocando de seguida a boca ao nível da água e fazendo bolhas. - Que bom ter vindo.
Vicary achou opressiva a temperatura quente da casa de banho. E também achou difícil não se rir perante o enorme homem rosado a chapinhar na banheira como uma criança.
Despiu o casaco de tweed e, com relutância, sentou-se na sanita.
- Queria trocar umas palavras consigo em privado... foi por isso que o convidei a vir aqui à minha toca. - Churchill franziu os lábios.
- Vicary, devo admitir desde já que estou aborrecido consigo.
Vicary endireitou-se.
Churchill abriu a boca para continuar, mas deteve-se. Um olhar perplexo e derrotado despontou-lhe no rosto.
- Inches! - berrou Churchill.
Inches entrou.
- Sim, senhor Churchill?
- Inches, creio que a água da minha banheira baixou dos 40 graus. É capaz de verificar o termómetro?
Arregaçando a manga, Inches retirou o termómetro da água. Estudou-o como um arqueólogo a examinar um fragmento de osso antigo.
- Ah, tem razão, senhor. A temperatura da água caiu para os 39 graus. Devo aquecê-la?
- Claro.
Inches abriu a torneira da água quente e deixou-a correr por instantes. Churchill sorriu quando a água da banheira atingiu a temperatura adequada.
- Muito melhor, Inches.
Churchill virou-se de lado. A água caiu em cascata por cima do bordo da banheira, molhando a perna das calças de Vicary.
- O senhor primeiro-ministro estava a dizer?
- Ah, sim, estava a dizer, Vicary, que estou aborrecido consigo. Nunca me tinha dito que quando era novo era bastante bom a jogar xadrez. Batia todos os jovens promissores em Cambridge, segundo me disseram.
Vicary, absolutamente confuso, respondeu:
- Peço desculpa, senhor primeiro-ministro, mas o xadrez nunca foi tema que surgisse em nenhuma das nossas conversas.
- Brilhante, implacável, arriscado: foi como as pessoas me descreveram o seu jogo. - Churchill calou-se por uns instantes e, a seguir, disse: - E também fez parte do Corpo dos Serviços Secretos durante a Primeira Guerra Mundial.
- Estive apenas na Unidade de Motocicletas. Fazia de correio, nada mais.
Churchill desviou o olhar de Vicary para o teto, fitando-o.
- Em 1250 a.C., o Senhor disse a Moisés que enviasse agentes para espiar a terra de Canaã. O Senhor teve a amabilidade de dar alguns conselhos a Moisés sobre como recrutar os espiões. Apenas os melhores e mais brilhantes homens eram capazes de uma tarefa tão importante, disse o Senhor, e Moisés cumpriu as instruções à risca.
- Isso é verdade, senhor primeiro-ministro - disse Vicary. Mas também é verdade que a informação recolhida pelos espiões de Moisés foi mal utilizada. Em resultado disso, os israelitas passaram mais quarenta anos a percorrer o deserto.
Churchill sorriu.
- Já devia ter aprendido há muito a nunca discutir consigo. O Alfred tem uma mente ágil. Sempre admirei isso.
- O que quer o senhor que eu faça?
- Quero que aceite um lugar nos serviços secretos militares.
- Mas, senhor primeiro-ministro, eu não estou qualificado para esse tipo de...
- Não há ninguém que saiba o que anda a fazer por aquelas bandas - disse Churchill, interrompendo Vicary. - Especialmente os agentes profissionais.
- Mas e os meus alunos? A minha investigação?
- Os seus alunos entrarão em breve no serviço militar, para lutar pela vida. E quanto à sua investigação, ela pode esperar. - Churchill fez uma pausa. - Conhece John Masterman e Christopher Cheney, de Oxford?
- Não me diga que eles foram convocados?
- com efeito, e não espere encontrar nenhum matemático digno desse nome em qualquer universidade - retorquiu Churchill. Foram todos abocanhados e empacotados para Bletchley Park.
- E que raio andam eles a fazer por lá?
- A tentar descobrir os códigos alemães.
Por breves instantes, Vicary fez questão de mostrar que estava a ponderar o assunto.
- Julgo que aceito.
- Otimo! - exclamou Churchill, batendo com o punho no rebordo da banheira. - Na segunda-feira, deve apresentar-se logo pela manhãzinha a Sir Basil Boothby. Ele é o chefe da divisão para a qual vai ser destacado. E também é o perfeito imbecil inglês. Opor-se-ia a mim, se pudesse, mas é demasiado estúpido para isso. Um idiota
de primeira apanha.
- Parece encantador.
- Ele sabe que eu e o Alfred somos amigos e por isso vai fazer-lhe frente. Não deixe que ele o intimide. Entendido?
- Sim, senhor primeiro-ministro.
- Preciso de alguém em quem possa confiar dentro daquele departamento. Está na altura de voltar a colocar a inteligência nos
serviços secretos militares1. Além do mais, isto será bom para si, Alfred. Está na altura de sair da sua biblioteca empoeirada e regressar ao mundo dos vivos.
Vicary foi apanhado desprevenido pela repentina intimidade de Churchill. Pensou na noite anterior, no passeio até casa, no olhar lançado ao carro de Helen.
- Sim, senhor primeiro-ministro, creio que está na altura. E o que irei fazer exatamente pelos serviços secretos militares?
Mas Churchill tinha mergulhado debaixo da linha da água e desaparecido.
1 No original, Military Intelligence; trocadilho com a palavra intettigence, que pode significar, entre outras coisas, inteligência e serviços secretos. (N. do T.)
QUATRO
RASTENBURG, ALEMANHA: JANEIRO DE 1944
O contra-almirante Wilhelm Franz Canaris era um homem pequeno e nervoso que falava com um ligeiro ceceio e possuía um humor sarcástico nas raras ocasiões em que
decidia exibi-lo. De cabelo branco e olhos azuis penetrantes, estava sentado no banco de trás de um Mercedes oficial, que se deslocava ruidosamente do aeródromo
de Rastenburg até ao búnquer secreto de Hitler, a cerca de 15 quilómetros de distância. Normalmente, Canaris evitava uniformes e aparatos militares de todo o género,
preferindo um fato escuro de homem de negócios. Mas visto que se ia encontrar com Adolf Hitler e com os mais importantes oficiais da Alemanha, envergava o seu uniforme
da Kriegsmarine por baixo do sobretudo formal.
Conhecido como a Velha Raposa tanto pelos amigos como pelos seus detratores, a personalidade distante e reservada de Canaris adequava-se na perfeição ao mundo impiedoso da espionagem. Preocupava-se mais com os seus dois dachshunds, que dormiam nesse momento aos seus pés, do que com qualquer outra pessoa, exceto a mulher, Erika, e as filhas. Quando o trabalho obrigava a viagens noturnas, reservava um segundo quarto, com camas duplas, de modo que os cães pudessem dormir confortavelmente. Quando era necessário deixá-los em Berlim, Canaris contactava constantemente os seus assessores para se certificar de que os animais tinham comido e defecado apropriadamente. Os membros da Abwehr que ousassem falar mal dos cães enfrentavam a ameaça bem real de ficarem com as carreiras destruídas
se uma palavra da sua maledicência alcançasse os ouvidos de Canaris. Educado numa villa murada em Aplerbeck, nos subúrbios de Dortmund, Wilhelm Canaris fazia parte da elite tão detestada por Adolf Hitler - filho de um barão das chaminés e descendente de italianos
emigrados para a Alemanha no século xvi. Falava as línguas dos amigos da Alemanha, bem como as dos seus inimigos - italiano, espanhol, inglês, francês e russo -, e presidia regularmente a recitais de música de câmara no salão da sua imponente casa de Berlim. Em
1933, tinha o posto de comandante de um entreposto naval no mar Báltico, em Swinemúnde, quando Hitler o escolheu inesperadamente para dirigir a Abwehr, os serviços de informação e contraespionagem do estado-maior alemão. Hitler deu instruções ao seu novo mestre espião para criar uns serviços secretos que seguissem o modelo britânico - uma ordem, afazer o seu trabalho com paixão - e Canaris assumiu formalmente o comando da agência de espionagem no dia de Ano Novo de 1934, a data do seu quadragésimo sétimo aniversário.
Esta decisão iria revelar-se uma das piores de Hitler. Desde que assumira o comando da Abwehr, Wilhelm Canaris andava embrenhado numa ação altamente arriscada - garantir ao estado-maior as informações de que necessitava para conquistar grande parte da Europa, ao mesmo tempo que utilizava os serviços como uma ferramenta para livrar a Alemanha de Hitler. Era o líder do movimento de resistência apelidado de Orquestra Negra - Schwarçe Kapelle - pela Gestapo. Um grupo muito unido de oficiais alemães, membros do governo e líderes civis, a Orquestra Negra tinha tentado, sem sucesso, derrubar o Fúhrer e negociar um acordo de paz com os Aliados. Canaris também tinha estado envolvido noutras atividades de traição. Em 1939, depois de saber dos planos de Hitler para invadir a Polónia, avisou os britânicos numa vã tentativa de os induzir à ação. Fez o mesmo em 1940, quando Hitler anunciou os seus planos para a invasão dos Países Baixos e da França.
Canaris virou-se e olhou pela janela, observando a floresta de Gõrlitz a passar diante de si - negra, silenciosa, densamente arborizada, como um cenário de conto de fadas dos irmãos Grimm. Canaris, perdido na tranquilidade das árvores cobertas de neve, pensava no
recente atentado à vida do Fúhrer. Dois meses antes, em novembro, um jovem capitão de nome Axel von dem Bussche tinha-se voluntariado para assassinar Hitler durante a inspeção de um novo sobretudo para a Wehrmacht. Bussche planeou esconder algumas granadas debaixo do casaco e, a seguir, detoná-las durante a demonstração, matando-se
e ao Fúhrer. Mas, um dia antes da tentativa de assassínio, os bombardeiros aliados destruíram o edifício onde os casacos estavam armazenados. A demonstração foi
cancelada e nunca chegou a ser reagendada.
Canaris sabia que haveria mais tentativas - mais alemães corajosos prontos a sacrificar a própria vida a fim de derrubar Hitler -, mas também sabia que o tempo fugia.
A invasão anglo-americana da Europa era uma certeza. Roosevelt tinha tornado claro que não aceitaria nada menos do que uma rendição incondicional. A Alemanha seria
destruída, tal como Canaris temera em 1933, quando as ambições messiânicas de Hitler se tinham tornado claras para ele. Também se apercebeu de que o seu ténue controlo sobre a Abwehr enfraquecia de dia para dia. Vários membros da equipa executiva de Canaris, no quartel-general da Abwehr, em Berlim, tinham sido presos pela Gestapo e acusados de traição. Os seus inimigos andavam a conspirar para se apoderarem do comando da agência de espionagem e colocar-lhe o pescoço num nó de corda de piano. Percebeu que tinha os dias contados - que a sua longa, perigosa e arriscada ação estava a chegar ao fim.
O carro oficial passou pela miríade de portões e postos de controlo, depois virou para o complexo no Wolfschanze1 de Hitler a Toca do Lobo. Os dachshunds acordaram,
ganindo nervosamente, e saltaram para o colo de Canaris. A conferência iria ter lugar na sala de mapas glacial e abafada, no búnquer subterrâneo. Canaris saiu do
carro e atravessou, com ar sombrio, o complexo. Ao fundo das escadas, encontrava-se um guarda-costas corpulento das SS, pronto para aliviar Canaris de quaisquer
armas que pudesse levar. Canaris, que evitava armas e detestava violência, abanou a cabeça e passou por ele.
1 Quartel-general de Hitler na Prússia Oriental. (N. do T.)
- Em novembro, emiti a Diretiva Número Cinquenta e Um do Fúhrer - começou a dizer Hitler sem preâmbulos, caminhando furiosamente pela sala com as mãos cruzadas atrás
das costas.
Envergava uma túnica cinzento-clara, calças pretas e botas de cano alto resplandecentes. No bolso do peito do lado esquerdo usava a Cruz de Ferro que tinha conquistado
em Ypres enquanto soldado de infantaria no Regimento List, durante a Primeira Guerra Mundial.
- A Diretiva Número Cinquenta e Um exprimia a minha convicção de que os anglo-saxões tentarão invadir o noroeste da França o mais tardar na primavera, talvez antes.
Durante os dois últimos meses, não vi nada que me fizesse mudar de opinião.
Sentado à mesa da conferência, Canaris observou o Fúhrer a pavonear-se ao redor da sala. A inclinação pronunciada de Hitler, causada pela cifose da coluna, parecia
ter piorado. Canaris interrogou-se se ele estaria finalmente a sentir a pressão. Tinha razões para isso. O que tinha dito Frederico, o Grande?Quem defende tudo, não defende nada. Hitler deveria ter prestado atenção ao conselho do seu guia espiritual, já que a Alemanha estava na mesma posição em que se encontrara durante a Primeira Guerra Mundial. Tinha conseguido conquistar mais território do que o que podia defender.
A culpa era exclusivamente de Hitler - o raio do louco Canaris lançou uma olhadela ao mapa. A leste, as tropas alemãs combatiam ao longo de uma frente de 2000 quilómetros.
Qualquer esperança de uma vitória militar contra os russos tinha sido esmagada em julho, em Kursk, onde o Exército Vermelho tinha dizimado uma ofensiva da Wehrmacht e infligido baixas vertiginosas. Naquele preciso momento, o exército alemão tentava manter uma linha que se estendia desde Leninegrado até ao mar Negro. Ao longo do Mediterrâneo, a Alemanha defendia 3000 quilómetros de costa. E a ocidente Meu Deus!, pensou Canaris -, 6000 quilómetros de território que se estendia desde a Holanda até à extremidade sul da baía de Biscaia. A Festung Europa de Hitler - a Fortaleza Europa - estava dispersa e vulnerável por todos os lados.
Canaris olhou em redor para os homens sentados ao seu lado. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, comandante supremo de todas as forças alemãs a ocidente; o marechal de campo Erwin Rommel, comandante do Grupo B do Exército, no noroeste da França; o Reichsfúhrer Heinrich Himmler, líder das SS e chefe da polícia alemã. Meia dúzia dos homens mais cruéis e leais a Himmler estava de vigia, apenas no caso de algum dos membros da cúpula do Terceiro Reich decidir fazer um atentado contra a vida do Fúhrer.
Hitler parou e disse:
- A Diretiva Cinquenta e Um também mencionava a minha convicção de que já não podemos justificar a redução do nosso número de tropas a ocidente de modo a apoiar as forças que combatem os bolcheviques. No leste, a vastidão da área vai permitir-nos, como último recurso, abdicar de grandes áreas de território antes de o inimigo ameaçar a pátria alemã. Não é assim a ocidente. Se a invasão anglo-saxónica tiver êxito, as consequências serão desastrosas. Portanto, é aqui, no noroeste da França, que a batalha mais decisiva da guerra terá lugar.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- A invasão enfrentará todo o nosso poderio e será destruída no mar alto. Se tal não for possível, e se os anglo-saxões conseguirem assegurar temporariamente uma cabeça de praia, devemos estar preparados para reposicionar rapidamente as nossas forças, organizar um contra-ataque gigantesco e obrigar os invasores a retroceder para o mar - afirmou Hitler, cruzando os braços. - Mas para alcançar esse objetivo, temos de conhecer a ordem de batalha do inimigo. Temos de saber quando é que pretende atacar. E, o mais importante, onde. Herr Generalfeldmarshal?
O marechal de campo Gerd von Rundstedt levantou-se e deslocou-se num andar cansado até ao mapa, segurando com a mão direita o bastão incrustado de jóias de marechal de campo com que andava sempre. Conhecido como o último dos cavaleiros alemães, Rundstedt tinha sido demitido e chamado de novo ao serviço por Adolf Hitler mais vezes do que Canaris, ou mesmo o seu próprio staff, se conseguia lembrar. Detestava o mundo fanático dos nazis e tinha sido
Rundstedt quem apelidara escarninhamente Hitler de caboinho da boémia. A tensão de cinco longos anos de guerra começava a notar-se nas finas feições aristocráticas
do seu rosto. Os rígidos e precisos maneirismos que caracterizavam os oficiais do Estado-Maior do tempo do Império tinham desaparecido. Canaris sabia que Rundstedt
bebia mais champanhe do que devia e precisava de grandes quantidades de uísque para dormir à noite. Levantava-se com regularidade às dez da manhã, uma hora muito
pouco militar; o staffào seu quartel-general, em St. Germain-en-Laye, raramente agendava reuniões para antes do meio-dia.
Apesar da idade avançada e do declínio moral, Rundstedt continuava a ser o melhor soldado da Alemanha - um estratega e planeador brilhante, como tinha demonstrado aos polacos, em 1939, e aos franceses e britânicos, em 1940. Canaris não invejava a situação de Rundstedt. No papel, dirigia a força mais poderosa do Ocidente um milhão e meio de homens, incluindo 350 000 tropas de choque Waffen-SS, dez divisões Panzer e duas divisões de paraquedistas de elite Fallschirmjager. Se fossem posicionadas rápida e corretamente, as tropas de Rundstedt ainda seriam capazes de impor aos Aliados uma derrota devastadora. Mas se o velho cavaleiro teutónico tivesse um palpite errado - se mobilizasse as suas forças incorretamente ou cometesse erros táticos uma vez começada a batalha - os Aliados estabeleceriam a sua preciosa base de operações no continente e a guerra no Ocidente estaria perdida.
- Na minha opinião, a equação é simples - começou a dizer Rundstedt. - A leste do Sena, no Pas-de-Calais, ou a oeste do Sena, na Normandia. Cada um tem as suas vantagens e desvantagens.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal. Rundstedt prosseguiu num tom monótono:
- Calais é o fulcro da costa no canal da Mancha. Se o inimigo assegurar uma cabeça de praia em Calais, pode virar-se para leste e ficar a poucos dias de marcha do Ruhrgebiet, o nosso coração industrial. Os americanos querem que a guerra termine por altura do Natal. Se conseguirem desembarcar em Calais, talvez sejam capazes de concretizar esse desejo.
Rundstedt fez uma pausa para permitir que o seu aviso fosse assimilado e, a seguir, retomou o relatório.
- Há outra razão por que Calais faz sentido militarmente: é o ponto onde o canal da Mancha é mais estreito. O inimigo será capaz de despejar homens e equipamento em Calais quatro vezes mais depressa do que na Normandia ou na Bretanha. Não se esqueçam, o relógio começa a contar para o inimigo no momento em que a invasão se iniciar. Tem de acumular tropas, armas e material a um ritmo extremamente rápido. Há três portos de águas profundas na região do Pas-de-Calais - explicou Rundstedt, indicando cada um com a ponta do bastão, subindo pela costa. - Bolonha, Calais e Dunquerque.
O inimigo precisa de portos. É minha convicção que o primeiro objetivo dos invasores será capturar e reabrir um porto importante e reabri-lo o mais rapidamente possível, porque sem um porto importante o inimigo não pode abastecer as
tropas. Se não conseguir abastecer as tropas, está acabado.
- Impressionante, Herr Generalfeldmarshal - disse Hitler. Mas porque não a Normandia?
- A Normandia apresenta muitos problemas ao inimigo. A distância pelo canal da Mancha é muito maior. Em alguns pontos, encontram-se falésias elevadas entre as praias e o continente. O porto mais próximo é Cherburgo, na ponta de uma península altamente defendida. O inimigo poderia levar vários dias para nos conseguir tirar Cherburgo. E mesmo que o conseguisse, sabe que preferiríamos inutilizá-lo a abdicar dele. Mas o argumento mais lógico contra o ataque na Normandia, na minha opinião, é a sua localização geográfica. Fica demasiado a ocidente. Mesmo que o inimigo consiga desembarcar na Normandia, corre o risco de ficar preso e estrategicamente isolado. Tem de nos combater em toda a extensão da França antes de atingir sequer solo alemão.
- Qual é a sua opinião, Herr Generalfeldmarshal? - disparou Hitler.
- Talvez os Aliados tentem alguma trapaça - respondeu Rundstedt cautelosamente, com os dedos a agitarem-se sobre o bastão. - Talvez um desembarque a servir de manobra de diversão, como o senhor mesmo sugeriu, meu Fúhrer. Mas o verdadeiro ataque vai dar-se aqui - afirmou, batendo no mapa. - Em Calais.
- Almirante Canaris? - exclamou Hitler. - De que informações dispõe para apoiar esta teoria?
Pouco propenso a exibições formais diante do mapa, Canaris continuou sentado. Enfiou a mão no bolso direito interior do casaco, onde tinha um pacote de cigarros. Os homens das SS estremeceram nervosamente. Abanando a cabeça, Canaris tirou lentamente os cigarros
e mostrou-os. Acendeu um com toda a calma e lançou uma baforada
de fumo na direção de Himmler, sabendo muito bem da especial irritação que o Reichsfúhrer nutria pelo tabaco. Himmler olhou fixamente para ele, através da cortina
de fumo azul em espiral, não revelando qualquer emoção no olhar e com a face a contrair-se nervosamente.
Canaris explicou que a Abwehr estava a recolher e a analisar três tipos de informação relacionada com os preparativos para a invasão - fotografias aéreas das tropas
inimigas, no sul de Inglaterra, comunicações do inimigo via rádio, monitorizadas pela Funkabwehr, o serviço de escutas da agência, e relatórios de agentes a atuarem
no interior do Reino Unido.
- E o que lhe dizem essas informações, Herr Admirai? - vociferou Hitler.
- A nossa recolha inicial de informações tende a apoiar a avaliação do marechal de campo: que os Aliados pretendem atacar em Calais. De acordo com os nossos agentes,
tem havido um aumento da atividade do inimigo no sudeste de Inglaterra, do outro lado do canal da Mancha, em frente ao Pas-de-Calais. Nós monitorizámos as transmissões telegráficas referentes a uma nova força denominada First United States Army Group. Também temos vindo a analisar a atividade aérea do inimigo no noroeste da França. Está a passar muito mais tempo a sobrevoar Calais, com o propósito de bombardeamento e de reconhecimento, do que a Normandia ou a Bretanha. E tenho ainda mais uma nova informação a relatar, meu Fúhrer. Um dos nossos agentes em Inglaterra tem uma fonte dentro do alto comando aliado. Na noite passada, o agente transmitiu um relatório. O general Eisenhower chegou a Londres. Os americanos e os britânicos pretendem manter a sua presença em segredo por enquanto.
Hitler pareceu impressionado com o relatório do agente. Canaris pensou: se ao menos Hitler soubesse a verdade - que, neste momento, apenas a poucos meses da batalha mais importante da guerra,
as redes de informação da Abwehr em Inglaterra estão muito provavelmente em frangalhos. Canaris culpava Hitler. Durante os preparativos para a operação Seelõwe -
a invasão abortada do Reino Unido -, Canaris e a sua equipa enviaram temerariamente uma torrente de espiões para Inglaterra. Toda a cautela foi mandada às malvas,
por causa da necessidade urgente de informações sobre as defesas costeiras e o posicionamento das tropas britânicas. Os agentes foram recrutados à pressa, mal treinados
e equipados de forma ainda pior. Canaris suspeitava que a maioria tivesse ido parar diretamente às mãos do MI5, infligindo danos permanentes em redes que tinham
sido construídos ao longo de vários anos de trabalho meticuloso. Naquele momento, não o podia admitir; fazê-lo seria assinar a sua própria sentença de morte.
Adolf Hitler começou de novo a dar voltas pela sala. Canaris sabia que Hitler não temia a futura invasão. Muito pelo contrário, acolhia-a com pra2er. Tinha dez milhões de alemães mobilizados e uma indústria de armamento que, apesar do bombardeamento implacável dos Aliados e da escassez de mão de obra e matéria-prima, continuava a produzir quantidades colossais de armas e material. Mantinha-se confiante na sua capacidade de repelir a invasão e infligir aos Aliados uma derrota cataclísmica. À semelhança de Rundstedt, acreditava que um desembarque no Pas-de-Calais fazia sentido estratégico e era aí que a sua Atlantikwall mais se parecia com a visão de uma fortaleza inexpugnável. com efeito, tinha tentado forçar os Aliados a invadir em Calais, ordenando que as plataformas de lançamento das bombas V-1 e V-2 fossem aí colocadas. No entanto, Hitler também estava ciente de que os britânicos e os americanos tinham recorrido ao logro durante a guerra e de que o voltariam a fazer antes de invadirem a França.
- Vamos inverter os papéis - disse Hitler por fim. - Se eu fosse invadir a França a partir de Inglaterra, o que faria? Viria pelo caminho mais óbvio? O caminho que o meu inimigo espera que eu siga? Organizaria um ataque frontal à parte da costa mais protegida? Ou seguiria outro caminho e tentaria surpreender o inimigo? Transmitiria mensagens falsas via rádio e enviaria relatórios falsos através dos espiões? Faria declarações enganadoras à imprensa? A resposta
a todas estas questões é sim. Temos de contar que os britânicos recorram ao logro e até a um grande desembarque como manobra de diversão. Por mais que eu gostasse que eles tentassem desembarcar em Calais, devemos estar preparados para a possibilidade de uma invasão na Normandia ou na Bretanha. Para isso, os nossos Panzers devem manter-se bem afastados da costa até que as intenções do inimigo fiquem claras. De seguida, concentraremos a nossa base militar no ponto principal da invasão e obrigá-los-emos a retroceder para
o mar.
- Há outra coisa a ter em conta e que pode fundamentar a sua argumentação - disse o marechal de campo Erwin Rommel.
Hitler rodou nos calcanhares e encarou-o.
- Continue, Herr Generalfeldmarshal.
Rommel apontou para o enorme mapa, que se estendia do chão até ao teto, atrás de Hitler.
- Se me der licença que faça uma demonstração, meu Fúhrer.
- Claro.
Rommel enfiou a mão na pasta, tirou um compasso de calibre e, a seguir, levantou-se e dirigiu-se para o mapa. Em dezembro, Hitler tinha-lhe atribuído o comando do
Grupo B do exército ao longo da costa do canal da Mancha. O Grupo B do exército incluía o 7.º Exército na região da Normandia, o 15.º Exército entre o estuário do
Sena e o golfo Zuiderzee, e o Exército da Holanda. Física e psicologicamente recuperado das desastrosas derrotas no Norte de África, a famosa Raposa do Deserto tinha-se
atirado à sua nova missão com uma incrível demonstração de energia, lançando-se a toda a hora pela costa francesa no seu Mercedes 230 cabriolei, inspecionando as defesas costeiras e o posicionamento das tropas e bases militares. Tinha prometido transformar o litoral francês num jardim do Diabo - um cenário de artilharia, campos de minas, fortificações em cimento e arame farpado do qual o inimigo nunca conseguiria sair. No entanto, em privado, Rommel defendia que qualquer fortificação concebida pelo ser humano podia também ser destruída por ele.
De pé, junto ao mapa, abriu o compasso e disse:
- Isto representa o raio de ação dos caças Spitfm e Mustang do inimigo. E estas são as posições das principais bases dos caças no sul de Inglaterra.
Rommel colocou as pontas do compasso em cada um dos locais e desenhou uma série de arcos no mapa.
- Como pode ver, meu Fúhrer, tanto a Normandia como Calais se encontram bem dentro do raio de ação dos caças do inimigo. Por esse motivo, devemos considerar ambas as áreas como possíveis locais para a invasão.
Hitler assentiu com a cabeça, impressionado com a demonstração de Rommel.
- Agora, coloque-se na posição do inimigo por um momento, Herr Generalfeldmarshal. Se estivesse a tentar invadir a França a partir de Inglaterra, onde é que atacaria?
Por breves instantes, Rommel fez questão de mostrar que estava a ponderar bem a questão e, a seguir, respondeu:
- Devo admitir, meu Fúhrer, que todos os indícios apontam para uma invasão no Pas-de-Calais. Mas não consigo livrar-me da convicção de que o inimigo nunca iria tentar um ataque frontal à nossa maior concentração de forças. E também me sinto influenciado pela experiência em África, meu Fúhrer. Os britânicos recorreram ao logro antes da Batalha de Alamein e vão voltar a fazê-lo antes de invadirem a França.
- E a Westwall, Herr Generalfeldmarshal? Como é que têm avançado os trabalhos?
- Ainda há muito a fazer, meu Fúhrer. Mas estamos a avançar bem.
- E vai estar tudo terminado antes da primavera?
- Creio que sim. Mas as fortificações costeiras não chegam para deter o inimigo. Temos de ter as nossas bases militares devidamente dispostas. E para isso receio bem que tenhamos de saber onde é que eles planeiam atacar. Só isso nos servirá de alguma coisa. Se o inimigo for bem-sucedido, a guerra pode estar perdida.
- Isso é um absurdo - lançou Heinrich Himmler. - Sob o comando do Fúhrer, a vitória final da Alemanha é ponto assente. As praias da França vão ser um cemitério para os britânicos e os americanos.
- Não - interveio Hitler, gesticulando. - O marechal de campo Rommel tem razão. Se o inimigo conseguir assegurar uma cabeça
de praia, então a guerra estará perdida. Mas, se aniquilarmos a invasão antes de ter sequer começado - prosseguiu Hitler, com a cabeça inclinada para trás e os olhos a chamejarem -, seriam necessários vários meses para organizar outra tentativa. O inimigo nunca voltaria a tentar! Roosevelt nunca seria reeleito. Até poderia acabar preso num sítio qualquer! O moral dos britânicos iria desabar da noite para o dia. Churchill, aquele velho gordo e doente, seria destruído! com os americanos e os britânicos paralisados, a lamberem as feridas, podemos deslocar homens e matériel do Ocidente e despejá-los no Leste. Estaline vai ficar à nossa mercê. Vai tentar negociar um acordo de paz. Tenho a certeza disso.
Hitler fez uma pausa, permitindo que as suas palavras fossem assimiladas.
- Mas, se queremos deter o inimigo, temos de saber o local da invasão - afirmou. - Os meus generais pensam que será em Calais. Eu estou cético - confessou, rodando nos calcanhares e olhando fixamente para Canaris. - Herr Admirai, quero que resolva o impasse.
- Isso pode não ser possível - disse Canaris cautelosamente.
- A missão da Abwehr não é fornecer informações militares?
- E claro que sim, meu Fúhrer.
- Dispõe de espiões a atuarem dentro do Reino Unido, este relatório acerca da chegada do general Eisenhower a Londres é prova disso.
- Obviamente, meu Fúhrer.
- Então, sugiro que comece a trabalhar, Herr Admirai. Quero provas das intenções dos inimigos. Quero que me traga o segredo da invasão. E rapidamente, Herr Admirai. Deixe-me assegurar-lhe: não dispõe de muito tempo.
Hitler empalideceu visivelmente e pareceu subitamente exausto.
- Agora, a menos que os senhores tenham mais alguma má notícia para me dar, vou retirar-me para dormir umas horas. Foi uma noite muito longa.
Levantaram-se todos enquanto Hitler subia as escadas.
CINCO
NORTE DE ESPANHA: AGOSTO DE 1936
Ele encontra-se diante das portas abertas para a noite cálida, segurando uma garrafa de vinho branco gelado. Serve-se de outro copo sem se oferecer para encher novamente o dela. Ela está deitada na cama, a fumar e a ouvir a vo dele. Escutando o vento quente que agita as árvores lá fora, junto à varanda. Relâmpagos tremelum silenciosamente sobre o vale. O seu vale, como ele está sempre a dier. A porra do meu vale. E se os filhos da puta dos lealistas alguma ve mo tentarem tirar, corto-lhes a merda dos tomates e atiro-os aos cães.
-Quem te ensinou a disparar assim?-pergunta ele.
Tinham ido à caça de manhã e ela tinha capturado quatro faisÕes contra um dele.
- O meu pai.
- Disparas melhor do que eu. -Já reparei.
Uma vez mais, os relâmpagos surgem silenciosamente na sala e ela consegue ver Emílio com clareza durante alguns segundos. É trinta anos mais velho e, no entanto,
ela acha-o lindo. Tem cabelo louro-grisalho e o sol pôs-lhe a cara da cor do couro polido de uma sela. O nariz é longo e afilado, como a lâmina de um machado. Queria
ser beijada pelos lábios dele, mas desde a primeira vez ele queria-a muito depressa e de modo rude e o Emilio consegue sempre toda a merda que quer, querida.
- Falas inglês muito bem - informa-a ele, como se ela estivesse a ouvir isso pela primeira
vez - O teu sotaque é perfeito. Nunca consegui perder o meu, por mais
que tentasse.
- A minha mãe era inglesa.
- Onde está ela agora?
- Morreu há muito tempo.
- Também falas francês?
- Sim - responde ela.
- Italiano.
- Sim, falo italiano.
- O teu espanhol é que não é assim tão bom.
- Chega para o que é preciso - di ela.
Ele está a tocar no pénis enquanto fala. Adora-o tal como adora o seu dinheiro e a sua terra. Fala dele como se fosse um dos seus melhores cavalos. Na cama, é como
uma terceira pessoa.
- Deitas-te com a Maria ao pé da ribeira, mas depois à noite deixas que eu entre na tua cama efoda contigo - diz ele.
- É uma maneira de pôr as coisas - responde ela. -Queres que eu pare com a Maria?
- Tu fazes a maria feliz - responde ele, como se a felicidade justificasse alguma coisa.
- Ela faze-me feliz.
- Nunca conheci uma mulher como tu - disse ele, pondo um cigarro no canto da boca e acendendo-o, com as mãos em concha para o proteger da brisa noturna. - Fodes comigo
e com a minha filha no mesmo dia, sem pestanejar.
- Não acredito nisso de criar afetos. Ele ri-se, no seu riso calmo e controlado.
- Isso é maravilhoso - responde ele, sorrindo outra vez calmamente. Não acreditas nisso de criar afetos. Isso é magnífico. Tenho pena do pobre canalha que cometa
o erro de se apaixonar por ti.
- Também eu.
- E tens alguns sentimentos?
- Não, nem por isso.
- Amas alguém ou alguma coisa?
- Amo o meu pai - responde ela. - E amo estar deitada ao pé da ribeira com a Maria.
Maria é a única mulher que conheceu até hoje cuja beleza a ameaça.
Neutralaria essa ameaça pilhando a beleza de Maria para si mesma. A sua juba de
cabelos castanhos encaracolados. A imaculada pele cor de azeitona. Os seios perfeitos que são como pêras no verão na sua boca. Os lábios que são a coisa mais suave em que já tocou. "Vem passar o verão a Espanha comigo, na estancia da minha família",
diz Maria numa tarde chuvosa em Paris, onde ambas se encontram a estudar, na
Sorbonne. O pai vai ficar desiludido, mas a ideia de passar um verão na Alemanha a observar a merda dos nais a desfilar pelas ruas não significa nada para ela. Mas
não sabia que a alternativa seria enfiar-se bem no meio de uma guerra civil.
Mas a guerra não perturba o insolente enclave paradisíaco de Emílio, no sopé dos Pirenéus. É o verão mais maravilhoso da vida dela. De manhã, os três caçam ou passeiam
os cães e, à tarde, ela e Maria vão até à ribeira, nadam nos lagos profundos e gélidos e
bronzeiam-se nas rochas cálidas. Maria gosta mais quando estão lá fora. Gosta
da sensação do sol nos seios e de Anna entre as pernas. "O meu pai também te quer, sabes?", anuncia Maria uma tarde em que estão deitadas à sombra de um eucalipto.
"Podes tê-lo. Só não te apaixones por ele. Toda a gente está apaixonada por ele."
Emílio está outra vez a falar:
-Quando voltares para Paris, no próximo mês, quero que te encontres com uma pessoa.
Faz isso por mim?
- Depende.
- De quê?
- De quem for.
- Ele vai entrar em contacto contigo. Quando lhe falar de ti, vai ficar muito interessado.
- Não vou dormir com ele.
- Ele não vai estar interessado em dormir contigo. É um homem de família. Tal como eu - acrescenta, rindo-se com o seu riso mais uma vez.
- E qual é o nome dele?
- Os nomes não são importantes para ele.
- Dime o nome dele.
- Não tenho a certeza do nome que ele usa atualmente.
- E o que é que o teu amigo faz?
- Trabalha com informação.
Ele regressa à cama. A. conversa excitou-o. Tem o pénis novamente duro e deseja-a outra
vez de imediato. Está a afastar-lhe as pernas e a tentar penetrá-la. Ela
pega-lhe nas mãos para o ajudar e a seguir crava as unhas nele.
- Ahhhh! Meu Deus, Anna! com tanta força, não!
- Diz-me o nome dele.
- É contra as regras... não posso.
- Diz-me - insiste ela, cravando-lhe as unhas com mais força.
- Vogel- murmura ele. - O nome dele é Kurt Vogel. Jesus!
BERLIM: JANEIRO DE 1944
A Abwehr tinha dois tipos básicos de espiões em ação contra o Reino Unido. A Corrente-S consistia em agentes que entravam no país, se instalavam com identidades
falsas e desenvolviam atividades de espionagem. Os agentes da Corrente-R eram maioritariamente cidadãos de outros países que entravam periodicamente no Reino Unido,
de forma legal, recolhiam informações e enviavam relatórios aos seus superiores em Berlim. Havia uma terceira rede de espiões mais pequena e altamente secreta referida
como a Corrente-V- um punhado de agentes adormecidos, excecionalmente treinados, que se infiltravam de forma profunda na sociedade inglesa e esperavam, por vezes
durante anos, até serem ativados. Foi assim chamada devido ao seu criador e único agente que a comandava, Kurt Vogel.
O modesto império de Vogel consistia em duas salas no quarto piso do quartel-general da Abwehr, localizado num par de austeros prédios geminados, em pedra cinzenta,
nos números 74 e 76 da Tirpitz Ufer. As janelas davam para o Tiergarten, o parque com 255 hectares no coração de Berlim. Em tempos, tinha tido uma vista espetacular. Mas meses de bombardeamentos por parte dos Aliados tinham deixado crateras do tamanho de Panzers nos caminhos equestres e reduzido a maioria dos castanheiros e das tílias a tocos carbonizados. Grande parte do gabinete de Vogel estava ocupada por uma fila de armários de aço trancados e um pesado cofre. Vogel suspeitava que os empregados do registo central da Abwehr tinham passado a trabalhar para a Gestapo e recusava-se a guardar lá os dossiês. O seu único assistente - um tenente condecorado da Wehrmacht chamado
Werner Ulbricht, que tinha ficado estropiado a lutar contra os russos . trabalhava na antessala. Guardava um par de pistolas Luger na gaveta de cima da secretária
e Vogel tinha-lhe ordenado que disparasse contra qualquer pessoa que entrasse sem autorização. Ulbricht sofria de pesadelos em que matava Wilhelm Canaris por engano.
Oficialmente, Vogel detinha o posto de capitão na Kriegsmarine, mas era apenas uma formalidade concebida para lhe permitir o acesso necessário para atuar junto de
determinados grupos. Tal como o seu mentor, Canaris, raramente envergava o uniforme. O seu guarda-roupa variava pouco - um fato cinzento-escuro a lembrar o de um
cangalheiro, uma camisa branca, uma gravata negra. Tinha cabelo grisalho-escuro, que parecia ter sido ele a cortar, e o olhar intenso de um revolucionário de café.
A voz era como uma dobradiça enferrujada e, depois de quase uma década de conversas clandestinas em cafés, salas de hotel e escritórios sob escuta, raramente se
elevava acima de um murmúrio de capela. Ulbricht, surdo de um ouvido, esforçava-se constantemente por o ouvir.
A paixão de Vogel pelo anonimato raiava o absurdo. No gabinete havia apenas um objeto pessoal, um retrato da mulher, Gertrude, e das filhas gémeas. Enviara-as para
a casa da mãe de Gertrude, na Baviera, quando os bombardeamentos começaram e via-as com pouca frequência. Sempre que saía do gabinete, mesmo por curtos momentos,
retirava o retrato de cima da secretária e fechava-o na gaveta. Até mesmo o seu distintivo de identificação era um enigma. Não tinha fotografia - Vogel recusava
ser fotografado há anos - e o nome era falso. Possuía um pequeno apartamento perto do gabinete, a que se chegava depois de um agradável passeio ao longo das frondosas
margens do Landwehr Kanal, para aquelas raras noites em que se permitia escapar. A senhoria achava que ele era um professor universitário com uma série de namoradas.
Mesmo dentro da Abwehr, pouco mais se sabia dele.
Kurt Vogel tinha nascido em Dusseldorf. O pai era o diretor de um Gymnasium local, a mãe uma professora de música em part-time que tinha abandonado uma carreira
promissora como pianista para casar e criar uma família. Vogel tinha feito um doutoramento em Direito, na Universidade de Leipzig, onde estudara Direito Civil e
Político com duas das maiores mentes jurídicas da Alemanha, Herman
Heller e Leo Rosenberg. Era um aluno brilhante, o melhor da sua turma, e os professores previram discretamente que Vogel se sentaria um dia no Reichsgericht, o Supremo
Tribunal da Alemanha.
Hitler alterou tudo isso. Hitler acreditava no poder dos homens, não no poder do Direito. Poucos meses após ter tomado o poder, já tinha virado do avesso todo o sistema judicial da Alemanha. O Fíihrergewalt - o poder do Fúhrer - tornou-se a única lei do país e todos os caprichos de Hitler eram imediatamente traduzidos em códigos e regulamentos. Vogel lembrava-se de algumas máximas ridículas cunhadas pelos arquitetos da revisão legal da Alemanha imposta por Hitler. A lei é o que é útil ao povo alemão! A lei deve ser interpretada através de saudáveis emoções populares! Quando o poder judiciário ordinário se interpôs, os nazis estabeleceram os seus próprios tribunais, os Volksgerichtshof, os Tribunais do Povo. Na opinião de Vogel, o dia mais negro na história da jurisprudência alemã ocorreu em outubro de 1933, quando dez mil advogados, nos degraus do Reichsgericht, em Leipzig, ergueram os braços na saudação nazi e juraram seguir o rumo do Ftihrer até ao fim dos nossos dias. Vogel tinha sido um deles. Naquela noite, regressou ao pequeno apartamento que partilhava com Gertrude, queimou os livros de Direito no fogão e bebeu até não poder mais.
Vários meses mais tarde, no inverno de 1934, foi abordado por um homem pequeno e austero, com um par de dachshunds - Wilhelm Canaris, o novo chefe dos serviços secretos militares alemães. Canaris perguntou a Vogel se estaria disposto a trabalhar para a Abwehr. Vogel aceitou, com uma condição - que não fosse obrigado a filiar-se no partido nazi e, na semana seguinte, desapareceu no mundo dos serviços secretos militares alemães. Oficialmente, estava ao serviço como conselheiro legal interno de Canaris. Extraoficialmente, foi-lhe atribuída a tarefa de preparar a guerra contra os britânicos que Canaris considerava inevitável.
Naquele preciso momento, Vogel estava sentado à secretária debruçado sobre um memorando, com os nós dos dedos a pressionar as têmporas. Esforçava-se por se concentrar no meio do ruído o chocalhar do velho elevador à medida que se arrastava para cima e para baixo no poço mesmo por trás da parede, o respingar da chuva gelada nas janelas, a cacofonia das buzinas dos automóveis que
acompanhava a hora de ponta no entardecer de Berlim. Tirou as mãos das têmporas e tapou os ouvidos, apertando até fazer silêncio. O memorando tinha-lhe sido dado por Canaris naquele dia, algumas horas depois de a Velha Raposa ter regressado de uma reunião com Hitler, em Rastenburg. Canaris achava que parecia promissor e Vogel não podia deixar de concordar.
- Hitler quer resultados, Kurt - tinha dito Canaris, sentando-se atrás da antiga secretária desgastada, como um velho fidalgo impenetrável, com os olhos a percorrerem as prateleiras transbordantes de livros como se estivesse à procura de um volume precioso há muito perdido. - Ele quer provas de que é em Calais ou na Normandia. Talvez seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Vogel tinha lido o memorando uma vez, rapidamente. Naquele instante, estava a lê-lo uma segunda vez, mais cuidadosamente. Na verdade, era mais do que prometedor - era perfeito, a oportunidade de que estava à espera. Quando terminou, ergueu o olhar e sussurrou o nome de Ulbricht várias vezes, como se estivesse a falar diretamente ao ouvido dele. Por fim, não recebendo resposta, levantou-se e dirigiu-se à antessala. Ulbricht estava a limpar as Lugers.
- Werner, estou a chamá-lo há cinco minutos - disse Vogel, com uma voz quase inaudível.
- Peço desculpa, capitão. Não o ouvi.
- Quero ver o Míiller logo pela manhãzinha. Marque-me uma reunião para amanhã.
- Sim, senhor.
- E, Werner, faça qualquer coisa ao raio dos ouvidos. Tive de gritar a plenos pulmões ali dentro.
Os bombardeiros chegaram à meia-noite quando Vogel dormia uma sesta intermitente no gabinete numa dura cama de campanha. Pôs os pés no chão, levantou-se e dirigiu-se para a janela enquanto os aviões zumbiam lá em cima. Berlim estremecia à medida que os primeiros fogos deflagravam nos bairros de Pankow e Weissensee. Vogel
interrogou-se quanto mais poderia a cidade aguentar. Vastas secções da capital do Reich de mil anos já tinham sido reduzidas a destroços. Muitos dos mais famosos bairros da cidade pareciam desfiladeiros de tijolo pulverizado e aço retorcido. As tílias do Unter den Linden tinham sido queimadas, tal como grande parte dos bancos e lojas, outrora resplandecentes, que se estendiam pela ampla avenida. O famoso relógio da Igreja Memorial Kaiser Wilhelm tinha-se imobilizado nas 7h30 desde novembro, quando os bombardeiros aliados tinham devastado quatrocentos hectares de Berlim numa única noite.
O memorando girava na sua cabeça enquanto ele observava o ataque noturno.
ABWEHR/BERLIM XFU0465848261
PARA: CANARIS
DE: MULLER
DATA: 2 NOV43
A 21 DE OUTUBRO, O CAPITÃO DIETRICH DA BASE DE ASUNCION INTERROGOU O
OPERACIONAL AMERICANO SCORPIO NA CIDADE DO PANAMÁ. COMO SABE, SCORPIO É UM DOS NOSSOS AGENTES MAIS IMPORTANTES NA AMÉRICA. OCUPA UMA POSIÇÃO IMPORTANTE NOS CÍRCULOS FINANCEIROS DE NOVA IORQUE E TEM BOAS RELAÇÕES EM WASHINGTON. É AMIGO PESSOAL DE MUITOS QUADROS SUPERIORES DO MINISTÉRIO DA
GUERRA E DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS . ENCONTROU-SE PESSOAL-
MENTE com ROOSEVELT. AO LONGO DA GUERRA, AS SUAS INFORMAÇÕES TÊM SIDO ATEMPADAS E ALTAMENTE PRECISAS. RECORDO-LHE A INFORMAÇÃO QUE NOS FORNECEU
ACERCA DAS REMESSAS DE ARMAS AMERICANAS PARA OS BRITÂNICOS .
DE ACORDO com SCORPIO, UM REPUTADO ENGENHEIRO AMERICANO CHAMADO PETER
JORDAN FOI RECRUTADO PELA MARINHA AMERICANA NO MÊS PASSADO E ENVIADO PARA
LONDRES PARA TRABALHAR NUM PROJETO DE CONSTRUÇÃO ALTAMENTE SECRETO. JORDAN NÃO POSSUI NENHUMA EXPERIÊNCIA MILITAR ANTERIOR. SCORPIO CONHECE
JORDAN PESSOALMENTE E FALOU com ELE ANTES DA SUA PARTIDA PARA LONDRES.
SCORPIO AFIRMA QUE O PROJETO ESTÁ SEM DÚVIDA RELACIONADO com O PLANO DO
INIMIGO PARA INVADIR A FRANÇA.
JORDAN É RESPEITADO PELO TRABALHO DESENVOLVIDO EM VÁRIOS PROJETOS IMPORTANTES
DE PONTES AMERICANOS. JORDAN É VIÚVO. A MULHER, FILHA DO BANQUEIRO
AMERICANO BRATTON LAUTERBACH, MORREU NUM ACIDENTE DE AUTOMÓVEL EM AGOSTO DE 1939 . SCORPIO ACHA QUE JORDAN É BASTANTE VULNERÁVEL A UMA ABORDAGEM
DE UM ELEMENTO FEMININO.
JORDAN VIVE ATUALMENTE SOZINHO, NA ZONA DE LONDRES CONHECIDA COMO KENSINGTON
. SCORPIO FORNECEU A MORADA DA CASA, BEM COMO A COMBINAÇÃO DO COFRE QUE SE ENCONTRA NO ESTÚDIO .
SUGIRA AÇÃO.
Vogel reparou num feixe de luz na soleira da porta e ouviu o arrastar da perna de pau de Ulbricht contra o chão. Os bombardeamentos perturbavam Ulbricht de um modo que ele não conseguia pôr em palavras e que Vogel nunca seria capaz de compreender. Retirou o porta-chaves da gaveta da secretária e dirigiu-se a um dos armários de aço. O ficheiro encontrava-se dentro de uma pasta negra sem identificação. Vogel voltou para a secretária, serviu-se de um grande copo de conhaque e abriu o dossiê. Estava lá tudo, as fotografias, o material relativo aos antecedentes, os relatórios de execução. Mas não precisava de o ler. Tinha sido ele a escrevê-lo e, tal como a pessoa em questão, era amaldiçoado com uma memória perfeita.
Virou mais algumas páginas e encontrou as notas que tinha redigido depois do primeiro encontro entre ambos, em Paris. Por baixo delas, estava uma cópia do telegrama que lhe fora enviado pelo homem que a tinha descoberto, Emilio Romero, um rico proprietário rural espanhol, um fascista, um caçador de talentos para a Abwehr.
Ela é tudo aquilo de que andas à procura. Gostava de ficar com ela para mim, mas, como sou amigo, vou dar-ta. A um preço razoável, é claro.
Na sala, fez-se de repente um frio de gelar os ossos. Vogel deitou-se na cama de campanha e tapou-se com um cobertor.
Hitler quer resultados, Kurt. Talve seja altura de trazermos para o jogo o teu velho ninho de espiões.
Por vezes, imaginava-se a deixá-la infiltrada até tudo ter terminado e, a seguir, a encontrar algum modo de a tirar de lá. Mas ela era perfeita para aquilo, claro. Era linda, era inteligente e o seu inglês e o conhecimento que tinha da sociedade britânica eram irrepreensíveis. Virou-se e viu a fotografia de Gertrude e das filhas. Pensar que tinha fantasiado abandoná-las por ela. Tinha sido tão tolo. Desligou as luzes. O ataque aéreo tinha terminado. A noite era uma sinfonia de sirenes. Tentou dormir, mas era escusado. Não a conseguia tirar da cabeça.
Pobre Vogel, pus-te o coração de pernas para o ar, não foi?
Os olhos da fotografia perfuravam-no. Era obsceno olhar para eles, recordá-la. Levantou-se, dirigiu-se para a secretária e guardou a foto na gaveta.
- Por amor de Deus, Kurt! - exclamou Múller quando Vogel entrou no seu gabinete, na manhã seguinte. - Quem é que te tem cortado o cabelo, meu amigo? Deixa-me dar-te o nome da mulher que tem cortado o meu, talvez ela te possa ajudar.
Vogel, exausto depois de uma noite de pouco sono, sentou-se e contemplou em silêncio a figura diante dele. Paul Múller era responsável pela rede dos serviços de informações da Abwehr nos Estados Unidos. Era baixo, atarracado e estava impecavelmente vestido com um fato francês lustroso. Tinha o cabelo liso com brilhantina penteado para trás, deixando a descoberto o rosto de querubim. A boca pequena era generosa e vermelha, como a de uma criança que acabou de comer doce de cereja.
- Vejam só, o grande Kurt Vogel aqui, no meu gabinete - exclamou Múller, com um sorriso afetado. - A que devo o privilégio?
Vogel retirou a cópia do memorando de Múller do bolso do casaco e abanou-a diante dele.
- Fala-me de Scorpio - disse.
- Então, o Velho lá fez circular finalmente o meu memorando. Olha para a data dessa maldita coisa. Dei-lhe isso há um mês e meio. Tem estado a apanhar pó na secretária dele. Essa informação é ouro. Mas vai para a Toca do Lobo e não volta mais - queixou-se Múller, fazendo depois uma pausa, acendendo um cigarro e lançando o fumo para o teto. - Sabes, Kurt, às vezes, pergunto-rne de que lado estará Canaris.
A observação não era invulgar naqueles tempos. Desde a prisão de vários membros do comando da Abwehr sob a acusação de traição, o moral em Tirpitz Ufer tinha caído para níveis até aí inauditos. Vogel pressentiu que a agência de serviços secretos militares da Alemanha se encontrava perigosamente à deriva. Tinha ouvido rumores de que Canaris deixara de agradar a Hitler. Havia até rumores entre
o staffde que Himmler estava a conspirar para fazer cair Canaris e colocar a Abwehr sob o controlo das SS.
- Fala-me de Scorpio - repetiu Vogel.
- Jantei com ele em casa de um diplomata americano - revelou Miiller, atirando a cabeça redonda para trás e contemplando o teto. - Antes da guerra, em 1937, creio
eu. vou verificar no dossiê dele para ter a certeza. O alemão do tipo era melhor do que o meu. Achava que os nazis eram um maravilhoso bando de companheiros a fazer
grandes coisas pela Alemanha. A única coisa que ele odiava mais do que os judeus eram os bolcheviques. Foi como uma audição. Recrutei-o eu mesmo no dia seguinte.
A presa mais fácil da minha carreira.
- Quais são os antecedentes dele? Múller sorriu:
- Investimento bancário. Ivy League, bons contactos com a indústria, amizades com meia Washington. As informações dele sobre a produção de armamento têm sido excelentes.
Vogel estava a dobrar o memorando e a guardá-lo outra vez no bolso.
- E o nome dele?
- Vá lá, Kurt. É um dos meus melhores agentes.
- Quero o nome dele.
- Este sítio é como uma peneira, sabes disso. Se eu te disser, toda a gente fica a saber.
- Quero uma cópia do dossiê dele na minha secretária daqui a uma hora - ordenou Vogel, com a voz baixa pouco mais do que um sussurro. - E quero tudo o que tenhas sobre o engenheiro.
- Posso dar-te as informações relacionadas com o Jordan.
- Quero tudo, e, se tiver de ir falar com o Canaris, faço isso.
- Oh, por amor de Deus, Kurt, não vais a correr ter com o tio Willy, pois não?
Vogel levantou-se e abotoou o casaco.
- Quero o nome dele e quero o dossiê dele. Vogel virou-se e saiu do gabinete.
- Kurt, volta aqui - gritou Múller. - Vamos resolver isto, por amor de Deus.
- Se quiseres falar, estou no gabinete do Velho - atirou Vogel afastando-se pelo corredor estreito.
- Muito bem, ganhaste - lançou Múller, com as mãos bem tratadas a vasculharem num arquivo. - Aqui está a merda do dossiê. Não tens de ir a correr ter com o tio Willy outra vez. Meu Deus, às vezes, és pior do que os cabrões dos nazis.
Vogel passou o resto da manhã a ler o dossiê sobre Peter Jordan. Quando terminou, retirou um par de ficheiros de um dos arquivos, voltou para a secretária e leu-os cuidadosamente.
O primeiro ficheiro continha informações sobre um irlandês que tinha trabalhado como espião durante um curto período de tempo, mas que deixara de o fazer porque as informações que recolhia eram consideradas fracas. Vogel ficara com o dossiê dele e colocara-o na folha de salários da Corrente-V. Vogel não estava preocupado com a péssima avaliação que o espião tinha recebido no passado - não andava à procura de um espião. Havia outras qualidades no agente que Vogel considerava interessantes. Era dono de uma pequena quinta, numa região isolada na costa de Norfolk, no Reino Unido. Era uma casa segura perfeita - suficientemente perto de Londres para se fazer a viagem de comboio em três horas, suficientemente longe para não estar cheia de agentes do MI5 à sua volta.
O segundo ficheiro continha o dossiê de um antigo paraquedista da Wehrmacht que fora impedido de continuar a saltar por causa de um ferimento na cabeça. O homem possuía todas as qualidades de que Vogel gostava - um inglês perfeito, bom olho para o pormenor, inteligência fria. Ulbricht tinha-o encontrado num posto de escuta de comunicações da Abwehr, no norte da França. Vogel colocou-o na folha de salários da Corrente-V e guardou-o para missões adequadas.
Vogel afastou os ficheiros e redigiu duas mensagens. Acrescentou os códigos a serem utilizados, as frequências em que as mensagens seriam enviadas e o horário de transmissão. De seguida, olhou para cima e chamou Ulbricht.
- Sim, Herr Kapitàn - disse Ulbricht ao entrar no escritório, coxeando pesadamente com a perna de pau.
Vogel olhou para Ulbricht durante um instante antes de falar, interrogando-se se o homem estaria à altura das exigências de uma operação como a que queria empreender. Ulbricht tinha vinte e sete anos, mas parecia ter, no mínimo, quarenta. Tinha o cabelo preto, cortado rente, salpicado de cinzento. Rugas de dor corriam como afluentes desde o canto do olho bom. Perdera o outro olho na explosão; a órbita vazia estava escondida por uma elegante pala negra. Uma Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro balançava-lhe ao pescoço. O botão de cima da túnica de Ulbricht estava desapertado porque o esforço que significava o mais simples movimento o punha a transpirar. Durante todo o tempo em que tinham trabalhado juntos, Vogel nunca ouvira Ulbricht queixar-se uma única vez.
- Quero que vá a Hamburgo amanhã à noite - informou Vogel, entregando a Ulbricht as transcrições das mensagens. - Mantenha-se ao pé do operador de rádio enquanto ele as estiver a enviar. Assegure-se de que não há nenhum engano. Certifique-se de que as confirmações dos agentes estão corretas. Se houver alguma coisa de invulgar,
quero ser informado. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Antes de ir, quero que me localize Horst Neumann. - Está em Berlim, creio eu.
- E onde é que está hospedado?
- Não tenho a certeza - disse Ulbricht. - Mas acho que há uma mulher envolvida.
- Normalmente há - disse Vogel, indo até à janela e olhando para baixo. - Contacte o staffàa quinta Dahlem. Diga-lhes que contem connosco hoje à noite. Quero que
vá lá ter amanhã, quando regressar de Hamburgo. Diga-lhes que vamos ficar uma semana. Temos muita coisa a estudar. E diga-lhes para preparar a plataforma de salto
no celeiro. Neumann já não salta de um avião há muito tempo. Vai precisar de treinar.
- Sim, senhor.
Ulbricht saiu, deixando Vogel sozinho no gabinete. Este ficou à janela durante bastante tempo, a pensar naquilo mais uma vez. Era o segredo mais bem guardado da guerra e planeava roubá-lo com uma mulher, um aleijado, um paraquedista que não podia saltar e um
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traidor britânico. Que grande equipa que tu reuniste, Kurt, meu velho. Se a sua pele não estivesse em jogo, teria achado tudo aquilo engraçado. Em vez disso, limitou-se a ficar ali, como uma estátua, observando a neve a acumular-se silenciosamente sobre o Tiergarten, roendo-se de preocupação.
SEIS LONDRES
Os Serviços Secretos e de Segurança do Império Britânico mais conhecidos pela sua designação enquanto serviços secretos militares, MI5 - tinham a sua sede num pequeno
e exíguo prédio de escritórios, no número 58 da St. James's Street. A ocupação do MI5 era a contraespionagem. No léxico da espionagem, contraespionagem significa
proteger segredos; e, quando necessário, capturar espiões. Durante grande parte dos seus quarenta anos de existência, os Serviços de Segurança labutaram à sombra do seu primo mais charmoso, os Serviços Secretos, ou MI6. Essas rivalidades internas não preocupavam muito o professor Vicary. Foi no MÍ5 que Vicary ingressou, .em maio de 1940, e era aí que, numa noite sombria e chuvosa cinco dias depois da conferência secreta de Hitler em Rastenburg, continuava a poder ser encontrado.
O último andar era a reserva particular dos quadros superiores o gabinete do diretor-geral, o seu secretariado, os diretores-adjuntos e os chefes de divisão. Era lá que ficava o gabinete do brigadeiro Sir Basil Boothby, escondido por trás de um par de intimidantes portas de carvalho. Um par de luzes brilhava por cima das portas: uma vermelha, que significava que a sala estava demasiado exposta para se permitir o acesso, e outra verde, cujo significado era: entre por sua própria conta e risco. Vicary, como sempre, hesitou antes de carregar na campainha.
Vicary tinha sido convocado às nove horas, enquanto estava a fechar as suas coisas à chave no armário cinzento-escuro e a arrumar
a cabana, o nome que dava ao seu pequeno gabinete. Quando o MI5 explodiu em tamanho, no início da guerra, o espaço tornou-se um bem precioso. Vicary foi relegado para um cubículo sem janelas, do tamanho de um armário de vassouras, com uma burocrática e desgastada carpete verde e uma pequena e robusta secretária de diretor de escola. O parceiro de Vicary, um antigo agente da Polícia Metropolitana chamado Harry Dalton, sentava-se com os outros membros menos importantes numa área comum,
no centro do piso. Em torno desse sítio, havia uma azáfama própria de uma sala de redação, e Vicary apenas se aventurava até lá quando era absolutamente necessário.
Oficialmente, Vicary ocupava o posto de major no Corpo dos Serviços Secretos, embora os postos militares não significassem quase nada dentro do departamento. A maioria do staff referia-se habitualmente a ele como Professor, e Vicary apenas tinha vestido o uniforme duas vezes. No entanto, a maneira de vestir de Vicary mudara. Abandonara os fatos de tweed da universidade, vestindo em vez disso fatos de um cinzento-escuro que tinha comprado antes de a roupa, tal como tudo o resto, ter sido racionada. Por vezes, deparava com um conhecido ou com um velho colega do University College. Apesar dos incessantes avisos do governo sobre os perigos de conversas imprudentes, perguntavam inevitavelmente a Vicary o que estava a fazer ao certo. Normalmente, ele sorria com ar cansado, encolhia os ombros e dava a resposta prescrita: estava a trabalhar num departamento muito aborrecido do Ministério da Guerra.
Por vezes, era aborrecido, mas não acontecia frequentemente. Churchill tinha razão - era tempo de regressar ao mundo dos vivos. A chegada ao MI5, em maio de 1940, tinha sido um renascimento. Desabrochou na atmosfera dos serviços secretos em tempo de guerra: as longas horas, as crises, até mesmo o chá horrível da cantina. Até tinha voltado a fumar cigarros, a que tinha renunciado no último ano em Cambridge. Adorava ser ator no teatro da realidade. Duvidava seriamente se conseguiria voltar a sentir-se satisfeito no santuário do mundo académico.
Era evidente que as horas e a tensão estavam a produzir os seus efeitos, mas nunca se sentira tão bem. Conseguia trabalhar mais tempo e precisava de dormir menos. Quando acabava por ir para a cama,
adormecia imediatamente. À semelhança dos outros agentes, passava muitas noites na sede do MI5, dormindo na pequena cama de campanha que conservava fechada junto à secretária.
Apenas os maus-tratos infligidos aos óculos em meia-lua sobreviveram à catarse de Vicary - continuavam manchados e ameigados e eram uma espécie de piada dentro do departamento. Em momentos de aflição, ainda os procurava batendo nos bolsos distraidamente e punha-os para se reconfortar.
Era o que fazia naquele momento, quando a luz por cima da porta do gabinete de Boothby ficou de repente verde. Vicary carregou na campainha, com o ar pensativo de um homem prestes a assistir ao funeral de um amigo de infância. A campainha tocou suavemente, a porta abriu-se e Vicary entrou.
O gabinete de Boothby era grande e largo, com belas pinturas, uma lareira a gás, valiosos tapetes persas e uma vista magnífica fornecida pelas janelas altas. Sir Basil deixou Vicary à espera os dez minutos da praxe e entrou por fim na sala, por uma segunda porta, que ligava o gabinete ao secretariado do diretor-geral.
O brigadeiro Sir Basil Boothby tinha o tamanho e a escala típicos de um inglês - alto, magro, exibindo ainda sinais da agilidade física que tinha feito dele um atleta
famoso nos tempos de estudante. Via-se isso no modo fácil como o braço forte segurava a bebida, nos ombros quadrados e no pescoço grosso, nos quadris estreitos onde calças, colete e casaco convergiam numa perfeição graciosa. Tinha a beleza vigorosa que um certo tipo de mulheres mais novas acha atraente. O cabelo e as sobrancelhas de um louro-acinzentado eram tão exuberantes que os espirituosos do departamento se referiam a ele como o escovilhão do quinto andar.
Oficialmente, pouco se sabia acerca da carreira de Boothby apenas que tinha feito parte das organizações de serviços secretos e contraterrorismo britânicas ao longo de toda a sua vida profissional. Vicary achava que a má-língua e os rumores que envolviam um homem diziam mais sobre ele do que o seu currículum vitae. As especulações acerca de Boothby tinham dado origem a uma atividade verdadeiramente próspera dentro do departamento. Segundo o que se
dizia, Boothby tinha dirigido uma rede de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial, que se infiltrara no estado-maior alemão. Em Deli, executou ele próprio um indiano acusado do assassínio de um cidadão britânico. Na Irlanda, espancou um homem até à morte com a coronha da pistola por se recusar a divulgar a localização de um esconderijo de armas. Era especializado em artes marciais e utilizava o tempo livre para manter a sua perícia. Era ambidestro e conseguia escrever, fumar, beber o gim e a cerveja amarga ou partir um pescoço com qualquer uma das mãos. Jogava ténis tão bem que poderia ter ganho o torneio de Wimbledon. Enganadora era a palavra utilizada mais frequentemente para descrever a forma como jogava e a capacidade para mudar de mão a meio de um jogo continuava a desconcertar os adversários. A sua vida sexual era muito discutida e debatida
- um mulherengo implacável que tinha levado para a cama metade das datilógrafas e das raparigas da divisão dos Registos e, simultaneamente, homossexual.
Na opinião de Vicary, Sir Basil Boothby simbolizava tudo o que havia de errado nos serviços secretos britânicos entre as duas guerras mundiais - o inglês de boas famílias, educado em Eton e Oxford, que achava que o exercício secreto do poder era um direito adquirido por nascimento, tal como a fortuna da família e a mansão secular em Hampshire. Inflexível, indolente, ortodoxo, um polícia de sapatos feitos à mão e fato da Savile Row. Boothby tinha sido eclipsado intelectualmente pelos novos recrutas atraídos para o MI5 desde o início da guerra - os melhores cérebros das universidades, os melhores advogados dos escritórios mais prestigiados de Londres. Naquele momento, encontrava-se numa posição nada invejável - a supervisionar homens que eram mais espertos do que ele, ao mesmo tempo que tentava ficar com os louros burocráticos pelas façanhas deles.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Alfred. Tive uma reunião nas Salas de Guerra Subterrâneas com Churchill, o diretor-geral, Menzies e Ismay. Receio bem que tenhamos uma grave crise nas nossas mãos. vou beber brandy com soda. O que vai tomar?
- Uísque - respondeu Vicary, observando Boothby.
Apesar de ser um dos agentes mais importantes do MI5, Boothby ainda tinha um orgulho infantil em pronunciar os nomes das pessoas poderosas com quem se encontrava regularmente. O grupo de
homens que se tinha acabado de reunir na fortaleza subterrânea do primeiro-ministro era a elite da comunidade dos serviços secretos britânica durante o período da guerra - o diretor-geral do MI5, Sir David Petrie; o diretor-geral do MI6, Sir Stewart Menzies; e o chefe da equipa pessoal de Churchill, o general Sir Hastings Ismay. Boothby carregou num botão na mesa e pediu à secretária para trazer a bebida de Vicary. Foi até à janela, levantou a cortina opaca e olhou lá para fora.
- Peço a Deus que não venham outra vez hoje à noite, a maldita Luftwaffe. Era diferente em 1940. Era tudo novo e excitante, de um modo estranho. Transportar o próprio capacete de aço debaixo do braço para ir jantar. Correr para os abrigos. Assistir ao fogo nos telhados. Mas não acho que Londres consiga suportar outro inverno com uma Blitz em plena força. As pessoas estão todas tão cansadas. Cansadas, esfomeadas, esfarrapadas e fartas das humilhações mesquinhas que acompanham uma guerra. Não sei bem quanto mais é que este país consegue aguentar.
A secretária de Boothby trouxe a bebida de Vicary. Vinha no centro de uma bandeja de prata, em cima de um guardanapo de papel branco. Boothby tinha uma obsessão com as manchas de água na mobília do escritório. Sentou-se numa cadeira ao lado de Vicary e cruzou as pernas compridas, com a biqueira do sapato engraxado a apontar para a rótula de Vicary como uma arma carregada.
- Temos uma nova missão para si, Alfred. E de modo que possa compreender verdadeiramente a sua importância, decidimos que é necessário levantar um pouco o véu e mostrar-lhe um bocadinho mais do que lhe foi permitido ver até agora. Compreende o que lhe estou a dizer?
- Creio que sim, Sir Basil.
- O Alfred é que é o historiador. Sabe muito acerca de Sun-Tzu?
- A China do século iv a.C. não é propriamente a minha área, Sir Basil. Mas já o li.
- E sabe o que é que Sun-Tzu escreveu sobre o logro militar, Alfred?
- Sun-Tzu escreveu que toda a guerra tem por base o logro. Pregava que todas as batalhas eram ganhas ou perdidas antes de sequer serem travadas. O conselho era simples...
ataca o inimigo quando ele está desprevenido e surge onde não és esperado. Disse que era vital minar o inimigo, subvertê-lo e corrompê-lo, semear a discórdia interna entre os seus líderes e destruí-lo sem o combater.
- Muito bem, Alfred - exclamou Boothby, visivelmente impressionado. - Infelizmente, nunca seremos capazes de destruir Hitler sem o combatermos. E para termos alguma hipótese de o derrotar num combate, temos de o enganar primeiro. Temos de prestar atenção a essas palavras sábias de Sun-Tzu. Temos de surgir onde não somos esperados.
Boothby levantou-se, dirigiu-se à secretária e trouxe uma pasta segura. Era de metal - da cor da prata polida - e tinha algemas presas à pega.
- Está prestes a ser Bigoted- disse Boothby, abrindo a pasta.
- Peço desculpa?
- Bigoted- é uma classificação ultrassecreta desenvolvida especialmente para ocultar a invasão. O nome vem de um selo que colocámos em documentos transportados por agentes britânicos para Gibraltar para a invasão do Norte de África. To Gib - para Gibraltar. Apenas pusemos as letras ao contrário. To Gib tornou-se BIGOT.
- Estou a perceber - disse Vicary.
Quatro anos depois de ter chegado ao MI5, Vicary ainda considerava ridículos muitos dos nomes de código e classificações de segurança.
- BIGOT refere-se agora a quem conheça o segredo mais importante da Operação Overlord... o momento e o local da invasão da França. Se souber o segredo, é um BIGOT. Todos os documentos relacionados com a invasão levam um selo BIGOT.
Boothby abriu a pasta, meteu a mão lá dentro e tirou um dossiê bege. Pousou-o cuidadosamente na mesa de café. Vicary olhou para a capa e de seguida para Boothby. Estava identificada com a espada e o escudo do SHAEF - o Comando Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas - e carimbada com um selo BIGOT. Por baixo, estavam as palavras Plano Bodyguard [Escolta], seguidas pelo nome de Boothby e um número de distribuição.
- É uma irmandade muito pequena aquela em que está prestes a entrar... apenas algumas centenas de agentes - retomou Boothby. E há quem ache que isso já é demasiado. E também o devo informar de que os seus antecedentes pessoais e profissionais foram amplamente investigados. Nenhuma pedra ficou por virar, como se costuma dizer. Fico feliz por lhe transmitir que não é membro conhecido de nenhuma organização fascista ou comunista, que não bebe em excesso, pelo menos em público, que não anda com mulheres dissolutas e que não é homossexual nem qualquer outro tipo de depravado sexual.
- É bom saber.
- E também o devo informar de que pode ser alvo de verificações de segurança e vigilância adicionais em qualquer altura. Nenhum de nós foi isentado disso. Nem mesmo o general Eisenhower.
- Compreendo, Sir Basil.
- Muito bem. Primeiro, gostava de lhe fazer uma pergunta ou duas. O seu trabalho tem-se debruçado sobre a invasão. O número de casos que tratou tem-lhe dado uma ideia sobre alguns dos preparativos. Onde acha que planeamos atacar?
- Baseado no pouco que sei, diria que os vamos atacar na Normandia.
- E como é que avalia as possibilidades de sucesso de um desembarque na Normandia?
- As invasões anfíbias são, por natureza, a mais complexa de todas as operações militares - respondeu Vicary. - Especialmente quando envolvem o canal da Mancha. Júlio César e Guilherme, o Conquistador, conseguiram fazê-lo. Napoleão e os espanhóis falharam. Hitler acabou por desistir em 1940. Eu diria que as probabilidades de uma invasão bem-sucedida não ultrapassam os cinquenta por cento.
Boothby resmungou:
- Se tanto, Alfred, se tanto.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete.
- Até agora, conseguimos levar a bom porto três operações anfíbias... Norte de África, Sicília e Salerno. Mas nenhum desses desembarques envolveu uma costa fortificada.
Boothby parou de caminhar e olhou para Vicary.
- Tem razão, já agora. É na Normandia. E está agendado para o final da primavera. E para termos sequer essas suas probabilidades de sucesso de cinquenta por cento,
Hitler e os generais deles têm de pensar que vamos atacar noutro lugar - revelou Boothby, sentando-se e pegando no dossiê. -
É por isso que desenvolvemos isto: chama-se
Plano Bodyguard. Sendo historiador, acho que terá uma estima especial pelo Plano Bodyguard. É uma ruse deguerre de uma amplitude e ambição nunca antes tentadas.
O nome de código não significava nada para Vicary. Boothby prosseguiu com a sua palestra de doutrinação:
-Já agora, o Plano Bodyguard chamava-se Plano Jael. Recebeu o seu novo nome por respeito a uma observação bastante eloquente que o primeiro-ministro fez a Estaline,
em Teerão. Churchill disse: Em tempo de guerra, a verdade é Ião preciosa que deve ser sempre acompanhada por uma escolta de mentiras. O Velho tem um certo jeito
para as palavras, reconheço-lhe. O Plano Bodyguard não é apenas uma operação.
É o nome de código para todas as operações estratégicas de cobertura e logro que serão
levadas a cabo numa escala global, com o intuito de enganar Hitler e o seu cstado-maior em relação às nossas intenções no Dia D.
Boothby pegou no dossiê e folheou-o furiosamente.
- A componente mais importante do Plano Bodyguard é a Operação Fortitude [Fortaleza]. O objetivo da Fortitude é atrasar ao máximo a reação da Wehrmacht à invasão,
levando-os a acreditar que outras partes do noroeste da Europa também estão sob ameaça direta de ataque, especificamente a Noruega e o Pas-de-Calais.
"O nome de código do logro norueguês é Fortitude Norte. O objetivo é forçar Hitler a deixar vinte e sete divisões na Escandinávia, convencendo-o de que planeamos atacar a Noruega, antes ou mesmo depois do Dia D. A Fortitude Su] é a mais crucial e, atrevo-me a dizer, a mais perigosa das duas operações.
Boothby passou para outra página do dossiê e suspirou profundamente.
- O objetivo da Fortitude Sul é convencer lentamente Hitler, os generais e os agentes secretos dele de que pretendemos organizar não
uma invasão da França, mas duas. O primeiro ataque, de acordo com a Fortitude Sul, deverá ser uma manobra de diversão na baía do Sena, na Normandia. O segundo ataque,
o golpe principal, terá lugar três dias mais tarde, do outro lado do estreito de Dover, em Calais. A partir de Calais, os nossos exércitos invasores podem seguir
diretamente para leste e entrar na Alemanha em poucas semanas - explicou Boothby, fazendo uma pausa para dar um gole no brandy com soda e permitir que as suas palavras
fossem assimiladas. - Segundo a Operação Fortitude, o objetivo do primeiro assalto é forçar Rommel e Von Rundstedt a lançarem as unidades Panzer de elite do Décimo
Quinto Exército Alemão na Normandia, deixando assim Calais desprotegida quando a verdadeira invasão ocorrer. Obviamente, nós queremos que aconteça o contrário. Queremos que os Panzers do Décimo Quinto Exército se mantenham em Calais, à espera da verdadeira invasão, paralisados pela indecisão, enquanto desembarcamos na Normandia.
- De uma simplicidade brilhante.
- Absolutamente - retorquiu Boothby. - Mas com uma fraqueza flagrante. Não dispomos de homens suficientes para a levar a cabo. No final da primavera, haverá apenas trinta e sete divisões no Reino Unido, americanas, britânicas e canadianas, o que mal chega para organizar um ataque contra a França, muito menos dois. Para que a Operação Fortitude tenha alguma possibilidade de sucesso, temos de convencer Hitler e os seus generais de que temos as divisões necessárias para organizar duas invasões.
- E como raio vamos fazer isso?
- Ora, vamos criar simplesmente um exército de um milhão de homens. Vamos fazê-lo aparecer como que por encanto, a partir, receio bem, do nada.
Vicary deu um gole na bebida e olhou fixamente para Boothby, de rosto incrédulo.
- Não podem estar a falar a sério.
- Podemos, sim, Alfred, estamos a falar muito a sério. Para que a invasão tenha a tal hipótese em duas de ser bem-sucedida, temos de convencer Hitler, Rommel e Von Rundstedt de que dispomos de uma força gigantesca e poderosa dissimulada nas falésias de Dover,
à espera para atacar em força o outro lado do canal da Mancha, em Calais. Não a teremos, como é óbvio. Mas, quando terminarmos, os alemães vão acreditar que se encontram face a uma força viva e verdadeira, com umas trinta divisões. Se não acreditarem que essa força existe, se falharmos e perceberem o nosso logro, há uma grande probabilidade de o regresso à Europa, como Churchill lhe chama, acabar num fracasso sangrento e cataclísmico.
- E esse exército fantasma tem nome? - perguntou Vicary.
- Naturalmente: o First United States Army Group. FUSAG, para abreviar. Até tem um comandante, o próprio Patton. À sua disposição, Patton terá à volta de um milhão de homens. Correspondendo maioritariamente a nove divisões do Terceiro Exército dos Estados Unidos e a duas divisões do Primeiro Exército Canadiano. O FUSAG até tem um quartel-general em Londres, em Bryanston Square.
Vicary pestanejou rapidamente, tentando digerir as informações extraordinárias que estava a receber. Imagine-se, criar um exército de um milhão de homens a partir do nada. Boothby tinha razão: era uma rase de guerre de proporções inimagináveis. Fazia o cavalo de Tróia de Ulisses parecer uma brincadeira de crianças.
- Hitler não é nenhum tolo, nem os generais dele. Aprenderam bem as lições de Clausewitz e Clausewitz deu alguns conselhos muito valiosos sobre a espionagem em tempo de guerra: Grande parte das informações obtidas na guerra é contraditória, uma parte ainda considerável é falsa
e, de longe, a maior parte é duvidosa. Os alemães não vão acreditar que existe um exército de um milhão de homens acampado na zona rural de Kent só porque nós lhes dizemos que assim é.
Boothby sorriu, voltou a meter a mão na pasta e tirou outro dossiê.
- É verdade, Vicary. E foi por isso que inventámos isto: a Operação Mercury. O objetivo da Operação Mercury é dar carne e ossos ao nosso pequeno exército de fantasmas. Nas próximas semanas, à medida que as forças fantasma do FUSAG começarem a chegar ao Reino Unido, vamos inundar as ondas rádio de tráfego, com algumas comunicações enviadas em códigos que sabemos que os alemães já quebraram e outras en clair. Tudo tem de ser perfeito, exatamente como aconteceria se fôssemos colocar um verdadeiro exército de um milhão de homens em Kent. Quartéis-mestres a queixarem-se da falta
de tendas. Messes insurgindo-se contra a escassez de comida e de talheres. Conversas via rádio durante os exercícios. A partir deste momento e até à invasão, vamos bombardear os postos de escuta deles no norte da França com perto de um milhão de mensagens. E algumas dessas mensagens darão aos alemães uma pequena pista, ínfimas informações sobre a localização das forças ou o seu posicionamento. Obviamente, queremos que os alemães descubram essas pistas e se agarrem a elas.
- Um milhão de mensagens via rádio? Como é isso possível?
- com o US 3103 Signals Service Battalion. Vão trazer uma equipa formidável - atores da Broadway, estrelas da rádio, especialistas em vozes. Homens que conseguem imitar o sotaque de um judeu de Brooklyn num minuto e o horrível tom arrastado de um trabalhador agrícola do Texas no outro. Vão gravar as mensagens falsas num estúdio, em discos de dezasseis polegadas, e depois emiti-las em camiões a circular pela zona rural de Kent.
- Inacreditável - exclamou Vicary baixinho.
- Sim, completamente. E isso é só uma parte. A Operação Mercury é responsável pelo que os alemães vão ouvir através do ar. Mas também temos de ter em conta o que eles vão ver a partir ao ar. Temos de fazer com que pareça que um gigantesco exército se está a reunir lenta e metodicamente no canto sudeste do país. Tendas que cheguem para albergar um milhão de homens, uma gigantesca armada de aviões, tanques e barcos de desembarque. Até vamos construir o raio de um depósito de gasolina em Dover.
Vicary disse:
- Mas, Sir Basil, de certeza que não dispomos de aviões, tanques e lanchas de desembarque suficientes para desperdiçar num logro.
- Claro que não. Vamos ser nós próprios a construí-los, com contraplacado e lona. Vistos do solo, vão parecer exatamente o que são: falsificações toscas e preparadas à pressa. Mas vistos do ar, pelas objetivas das câmaras de vigilância da Luftwaffe, vão parecer verdadeiros.
- E como podemos ter a certeza de que os aviões de vigilância vão conseguir penetrar nas nossas defesas?
Boothby fez um grande sorriso, terminou a bebida e acendeu um cigarro calmamente.
- Agora está a compreender, Alfred. Nós temos a certeza de que eles vão conseguir penetrar nas nossas defesas porque vamos deixar. Nem todos, claro. Eram capazes de perceber que havia marosca se fizéssemos isso. A RAF e os aviões americanos vão patrulhar constantemente os céus sobre o nosso FUSAG. E vão perseguir alguns dos invasores. Mas a alguns deles, apenas àqueles que estiverem a voar acima dos trinta mil pés, devo acrescentar, será permitido penetrar. Se tudo correr de acordo com o guião, os analistas de vigilância aérea de Hitler vão dizer-lhe a mesma coisa que os agentes responsáveis pelas escutas no norte da França lhe estão a dizer, que existe uma gigantesca força aliada a postos no Pas-de-Calais.
Vicary estava a abanar a cabeça.
- Comunicações via rádio e fotografias aéreas, duas das formas que os alemães têm para recolher informações acerca das nossas intenções. A terceira forma é, claro, através de espiões.
Mas sobravam realmente alguns espiões? Em setembro de 1939, no dia em que a guerra rebentou, o MI5 e a Scotland Yard empreenderam uma gigantesca rusga, reunindo todos aqueles de que desconfiavam. Foram todos presos, transformados em agentes duplos ou enforcados. Em maio de 1940, quando Vicary chegou, o MI5 estava prestes a capturar os novos espiões que Canaris enviava para Inglaterra para recolherem informações sobre a futura invasão. Esses novos espiões sofreram o mesmo destino que a vaga anterior.
Caçador de espiões não era a expressão apropriada para descrever o que Vicary fazia no MI5. Era tecnicamente um agente da Operação Double Cross [Dupla Traição]. Tinha a missão de garantir que a Abwehr continuava a acreditar que os seus espiões ainda se encontravam infiltrados, a recolher informações e a enviá-las para os agentes que os controlavam a partir de Berlim. Manter os agentes vivos, para a Abwehr, trazia vantagens óbvias. O MI5 tinha sido capaz de manipular os alemães desde o início da guerra, controlando o fluxo de informações saído das Ilhas Britânicas. Isso também fez com que a Abwehr não enviasse novos agentes para Reino Unido, já que Canaris e os agentes de controlo julgavam que a maioria dos espiões ainda se encontrava ativa.
- Exato, Alfred. A terceira fonte de informações de Hitler sobre a invasão são os espiões dele. Os espiões de Canaris, melhor dizendo.
E nós sabemos como eles são eficazes. Os agentes alemães sob o nosso controlo vão dar um contributo vital ao Plano Bodyguard, confirmando a Hitler muito do que ele consegue ver a partir dos céus e ouvir através das ondas rádio. De facto, um dos nossos agentes duplos, Tate, já foi posto em jogo.
Tate ficou com esse nome de código por causa de uma extraordinária parecença com o popular comediante de music hall Harry Tate. O seu nome verdadeiro era Wulf Schmidt, um agente da Abwehr que saltou de paraquedas de um Heinkel 111 para a zona rural de Cambridgeshire, na noite de 19 de setembro de 1940. Vicary, embora não lhe tivessem atribuído o caso Tate, sabia o essencial. Tendo passado a noite ao relento, enterrou o paraquedas e o rádio e, a seguir, dirigiu-se à povoação mais próxima. O primeiro sítio em que parou foi a barbearia de Wilfred Searle, onde comprou um relógio de bolso para substituir o relógio de pulso que tinha esmagado ao saltar do Heinkel. Depois, comprou um exemplar do Times à senhora Field, a vendedora de jornais, lavou o tornozelo inchado na bomba da povoação e tomou o pequeno-almoço num pequeno café. Por fim, às dez da manhã, foi preso pelo soldado tom Cousins, da reserva territorial da zona. No dia seguinte, levaram-no de carro para as instalações de interrogatório do MI5, em Ham Common, no condado de Surrey, e foi aí que, após treze dias de interrogatório, Tate concordou em trabalhar como agente duplo e enviar mensagens da Operação Double Cross para Hamburgo através do rádio.
- A propósito, Eisenhower está em Londres. Do nosso lado, só um número muito restrito é que sabe disso. No entanto, Canaris sabe disso. E agora Hitler também o sabe. Na verdade, os alemães sabiam que Eisenhower estava cá antes de ele se instalar para passar a primeira noite em Hayes Lodge. E sabiam que ele estava cá porque Tate lhes disse que ele estava cá. Foi perfeito, claro, uma informação aparentemente importante, mas no entanto completamente inofensiva. Agora, a Abwehr acha que Tate tem uma fonte importante e credível dentro do SHAEF. Essa fonte será crucial à medida que a invasão se aproximar. Vão dar uma mentira importante a Tate para ele transmitir. E, com alguma sorte, a Abwehr também vai acreditar nela.
"Nas próximas semanas, os espiões de Canaris vão começar a ver sinais de um grande aumento de homens e material no sudeste de Inglaterra. Vão ver tropas canadianas e americanas. Vão ver acampamentos e áreas de reagrupamento. Vão ouvir histórias do povo britânico acerca dos terríveis inconvenientes de ter tantos soldados amontoados num lugar tão pequeno. Vão ver o general Patton a andar pelas povoações da East Anglia com as suas botas engraxadas e o seu revólver com a coronha de marfim. Os que forem bons até vão ficar a saber os nomes dos comandantes de topo deste exército e enviar esses nomes para Berlim. A sua própria rede da Operação Double Cross vai desempenhar um papel decisivo, Alfred.
Boothby parou por uns instantes, esmagou o cigarro e acendeu outro logo de imediato.
- Mas o Alfred está a abanar a cabeça. Suspeito que tenha descoberto o calcanhar de Aquiles de todo este plano de logro.
Os lábios de Vicary curvaram-se num sorriso cuidadoso. Porventura, Boothby, sabendo do amor de Vicary pela história e tradições gregas, percebera que ele iria pensar automaticamente na Guerra de Tróia ao ser informado dos pormenores da Operação Fortitude.
- Posso? - perguntou Vicary, apontando para o maço de cigarros Player's. - Acho que deixei os meus lá em baixo.
- Claro - respondeu Boothby, passando o maço a Vicary e oferecendo-lhe a chama do seu isqueiro.
- Aquiles morreu depois de ser atingido por uma seta no seu único ponto vulnerável, o calcanhar - disse Vicary. - O calcanhar de Aquiles da Operação Fortitude é o facto de poder ir por água abaixo com um relatório genuíno de uma fonte em que Hitler confie. Será necessário manipular por completo todas as fontes de informação que Hitler e os seus agentes secretos possuam. Têm todas de ser envenenadas para que a Operação Fortitude funcione. Hitler tem de ser apanhado numa rede completa de mentiras. Se uma nesga de verdade conseguir passar, todo o estratagema poderá ir por água abaixo.
Parando para fumar o seu Player's, Vicary não pôde resistir a estabelecer um paralelo histórico.
- Quando acabaram com Aquiles, a armadura dele foi dada a Ulisses. A nossa armadura, receio bem, vai ser dada a Hitler.
Boothby pegou no copo vazio e girou-o conscientemente na sua larga palma da mão.
- Esse é o perigo inerente a todos os logros militares, não é, Alfred? Indicam quase sempre o caminho para a verdade. O general Morgan, o autor do plano da invasão,
disse-o melhor. Bastaria um espião decente alemão percorrer a costa sul de Inglaterra, da Cornualha a Kent. Se isso acontecesse, tudo isto desabaria. E, ao mesmo tempo, as esperanças da Europa. E foi por isso que estivemos a noite toda enfiados numa sala com o primeiro-ministro e é por isso que o Alfred está aqui agora.
Boothby levantou-se e recomeçou a andar lentamente de um lado para o outro do gabinete.
- A partir deste momento, estamos a agir partindo do pressuposto de que envenenámos de facto todas as fontes de informação de Hitler. E também estamos a agir partindo do pressuposto de que temos todos os espiões de Canaris no Reino Unido contabilizados e de que nenhum está a atuar fora do nosso controlo. Não nos estaríamos a lançar num estratagema como a Operação Fortitude se não fosse esse o caso.
Boothby afastou-se da fraca luz do candeeiro e desapareceu num canto escuro do gabinete.
- Na semana passada, Hitler organizou uma conferência em Rastenburg. Estiveram lá os pesos pesados todos, Rommel, Von Rundstedt, Canaris e Himmler. O assunto foi a invasão. Especificamente, o momento e o local da invasão. Hitler encostou uma arma à cabeça de Canaris - figurativamente, não literalmente - e ordenou-lhe que descobrisse a verdade ou teria de enfrentar consequências bastante penosas. Canaris, por sua vez, atribuiu essa tarefa a um homem da sua equipa chamado Vogel, Kurt Vogel. Até agora, sempre acreditámos que Kurt Vogel era o conselheiro legal de Canaris. Como é óbvio, estávamos enganados. A sua missão, Alfred, é garantir que Kurt Vogel não descobre a verdade. Não tive oportunidade de ler o dossiê dele. Suspeito que a divisão dos Registos possa ter alguma coisa sobre ele.
- Certo - exclamou Vicary.
Boothby estava outra vez iluminado pela ténue luz. Franziu o sobrolho ligeiramente, como se tivesse ouvido por acaso alguma coisa
desagradável na sala ao lado, e depois mergulhou num longo silêncio especulativo.
- Alfred, quero que uma coisa fique completamente clara desde o início deste caso. O
primeiro-ministro insistiu para que a missão lhe fosse atribuída a si, perante
as enérgicas objeções do diretor-geral e as minhas.
Vicary fitou Boothby olhos nos olhos por um momento e, a seguir, sentindo-se embaraçado com o comentário, desviou o olhar. Deixou que os olhos divagassem pelas paredes.
Pelas dezenas de fotografias de Sir Basil com pessoas famosas. Pelo painel de carvalho muito bem polido. Pelo velho remo pendurado na parede, estranhamente desenquadrado naquele cenário formal. Talvez fosse uma recordação de tempos mais felizes e menos complicados, pensou Vicary. De um rio gelado ao nascer do Sol. De Oxford contra Cambridge. De viagens de comboio para casa em tardes frescas de outono.
- Permita-me que lhe explique o comentário. O Alfred tem feito um ótimo trabalho. A sua rede Becker tem-se revelado um sucesso assombroso. Mas tanto o diretor-geral
como eu achamos que um homem mais experiente se poderia adequar melhor a um caso como este.
- Compreendo - retorquiu Vicary.
Um homem mais experiente significava um oficial de carreira e não um desses novos recrutas de que Boothby desconfiava tanto.
- Mas, obviamente - retomou Boothby -, não fomos capazes de convencer o primeiro-ministro de que o Alfred não era o melhor homem para este caso. Por isso, é seu. Vá-me atualizando regularmente sobre os desenvolvimentos. E boa sorte, Alfred. Suspeito que vá precisar.
SETE LONDRES
Em janeiro de 1944, o clima tinha reocupado o seu lugar enquanto obsessão principal do povo britânico. O verão e outono tinham sido invulgarmente secos e quentes;
o inverno, quando chegou, invulgarmente frio. Nevoeiros gelados subiam do rio, assolavam Westminster e Belgravia, pairavam como o fumo de um revólver sobre as ruínas de Battersea e Southwark. A Blitz era pouco mais do que uma recordação longínqua. As crianças tinham regressado. Enchiam as lojas de brinquedos e os grandes armazéns, com as mães a reboque, trocando prendas de Natal que não queriam por artigos mais convenientes. Na noite de Ano Novo, grandes multidões atolaram Piccadilly Circus. Tudo poderia até ter parecido normal, não fosse a celebração ter tido lugar na escuridão do blackout. Mas, passados alguns dias, a Luftwaffe, depois de uma longa e agradável ausência, regressou aos céus de Londres.
Às oito horas dessa noite, Catherine Blake correu pela ponte de Westminster. Havia incêndios ao longo do East End e das docas, projéteis luminosos e holofotes cruzavam o céu noturno. Catherine conseguia ouvir o baque surdo do fogo proveniente das baterias antiaéreas em Hyde Park e ao longo do Embankment e sentir o sabor acre do fumo vindo dos céus. Sabia que a aguardava uma noite longa e atarefada.
Virou para a Lambeth Palace Road e ocorreu-lhe um pensamento absurdo - estava absolutamente esfomeada. Nunca houvera tão
pouca comida disponível. O outono seco e o frio implacável do inverno tinham-se aliado para eliminar quase todas as verduras do país. As batatas e as couves-de-bruxelas eram iguarias. Os nabos e as rutabagas eram os únicos alimentos abundantes. Pensou: Se eu tiver de comer mais um nabo, dou um tiro na cabeça. Ainda assim, suspeitava que as coisas estariam muito piores em Berlim.
Um polícia - um homem baixo e gordo que parecia demasiado velho para entrar no exército - vigiava a entrada da Lambeth Palace Road. Levantou a mão e, gritando acima dos uivos das sirenes de ataque aéreo, pediu-lhe a identificação.
Como sempre, o coração de Catherine pareceu parar.
Mostrou-lhe um distintivo que a identificava como membro do Serviço de Voluntariado Feminino. O polícia deu uma olhadela ao distintivo e depois à cara dela. Catherine tocou no ombro do polícia e inclinou-se para ele de modo que quando falasse ele sentisse a respiração dela no ouvido. Era uma técnica que utilizava há vários anos para neutralizar os homens.
Catherine disse:
- Sou enfermeira voluntária no Hospital St. Thomas.
O polícia levantou os olhos. Pela expressão que tinha no rosto, Catherine percebeu que ele já não era uma ameaça. Estava a sorrir estupidamente, contemplando-a como se tivesse acabado de se apaixonar. A reação não era nenhuma novidade para Catherine. Ela era extraordinariamente bonita e tinha utilizado essa beleza como uma arma durante toda a vida.
O polícia devolveu-lhe a sua identificação.
- As coisas estão muito más?
- Bastante: tenha cuidado e mantenha a cabeça baixa.
A necessidade de ambulâncias em Londres excedia de longe a oferta. As autoridades deitavam a mão a tudo o que pudesse servir, carrinhas de entrega, camiões do leite, qualquer coisa com quatro rodas, um motor e espaço na parte de trás para um ferido e um médico. Catherine reparou numa cruz vermelha pintada sobre o nome desbotado de uma popular padaria local, numa das ambulâncias que seguiam em catadupa para a entrada das urgências do hospital.
Catherine começou a andar mais depressa, seguindo a ambulância, e entrou no hospital. A confusão era total. As urgências estavam
cheias de feridos. Pareciam estar por todo o lado: no chão, nos corredores, até mesmo no posto das enfermeiras. Alguns gritavam. Outros estavam sentados a olhar espantados, demasiado aturdidos para compreenderem o que lhes tinha acontecido. Dezenas de doentes ainda não tinham sido vistos por um médico ou uma enfermeira. E a cada minuto chegavam mais.
Catherine sentiu uma mão no ombro.
- Não há tempo para ficar aí especada, Miss Blake. Catherine virou-se e viu o rosto severo de Enid Pritt. Antes da
guerra, Enid era uma mulher simpática, por vezes confusa, acostumada a lidar com casos de gripe e, de vez em quando, com quem fosse derrotado numa luta de navalhas à porta de um pub, num sábado à noite. Tudo isso tinha mudado com a guerra. Andava direita como uma estaca e falava numa voz clara de parada militar, nunca utilizando mais do que as palavras necessárias para se referir a um assunto. Dirigia uma das enfermarias mais movimentadas de toda a cidade de Londres sem qualquer dificuldade. Um ano antes, o marido, de vinte e oito anos, morrera na Blitz. Enid Pritt não tinha feito luto. Isso podia esperar até que os alemães fossem derrotados.
- Não os deixe perceberem aquilo em que está a pensar, Miss Blake - disse Enid Pritt rispidamente. - Assusta-os ainda mais. Tire o casaco e mãos à obra. Há pelo menos cento e cinquenta feridos só neste hospital e as morgues estão a encher-se rapidamente. Disseram-me para esperar ainda mais gente.
- Já não via isto assim desde setembro de 1940.
- É por isso que eles precisam de si. Agora, mãos à obra, minha menina, o mais depressa que puder.
Enid Pritt atravessou as urgências como um comandante num campo de batalha. Catherine observou-a a repreender outra jovem enfermeira por causa de um curativo desajeitado. Enid Pritt não tinha favoritas, era dura com todas as enfermeiras e voluntárias. Catherine pendurou o casaco e avançou por um corredor cheio de feridos. Começou por uma rapariguinha que estava a apertar um urso de peluche esfarrapado e chamuscado.
- Onde te dói, pequenina?
- No braço.
Catherine enrolou a manga da camisola da rapariga, deixando ver um braço que se encontrava obviamente partido. A criança estava em choque e não tinha consciência da dor. Catherine manteve-a a falar, tentando com que não pensasse na ferida.
- Como te chamas, querida? -;
- Ellen.
- E onde moras?
- Em Stepney, mas a nossa casa já não está lá. A voz dela estava calma e não revelava emoção.
- E onde estão os teus pais? Estão aqui contigo?
- O bombeiro disse-me que agora estão com Deus. Catherine não disse nada, apenas segurou a mão da menina.
- O médico já vem ver-te. Fica só quietinha e não tentes mexer o braço. Está bem, Ellen?
- Sim - respondeu ela. - És muito bonita. Catherine sorriu.
- Obrigada. Queres saber uma coisa?
- O quê?
- Tu também.
Catherine avançou novamente pelo corredor. Um homem de idade, com uma contusão no cimo da careca, olhou para ela enquanto Catherine examinava a ferida.
- Estou ótimo, menina. Há muita gente pior do que eu. Olhe por eles primeiro.
Ela alisou-lhe o parco e desgrenhado cabelo grisalho e fez o que ele pediu. Era uma qualidade que ela tinha visto nos ingleses uma e outra vez. Era um disparate
Berlim retomar a Blitz. Quem lhe dera que lhe fosse permitido dizer-lhes isso.
Catherine continuou a avançar pelo corredor, cuidando dos feridos, ouvindo as histórias deles enquanto trabalhava.
- Eu estava na cozinha a servir-me da porra de uma chávena de chá quando BOOM! Uma bomba de quatrocentos e cinquenta quilos rebenta-me mesmo à porra da porta de
casa. Quando dei por mim, estou estatelado de costas no meio do que dantes era o meu jardim, a olhar para uma pilha de destroços que dantes era a porra da minha
casa.
- Tem cuidado com a língua, George. Estás a ser mal-educado. Além disso, há crianças aqui.
Isso não foi assim tão mau, companheiro. A casa em frente
à minha, do outro lado da rua, apanhou com uma bomba mesmo em cima. Uma família de quatro pessoas, gente boa, exterminada.
Uma bomba caiu ali perto; o hospital estremeceu.
Uma freira, gravemente ferida, abençoou-se e começou a dizer um pai-nosso para que as outras pessoas a acompanhassem.
- Vai ser preciso mais do que uma oração para expulsar a Luftwaffe dos céus hoje à noite, irmã.
- ... venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade...
- Perdi a minha mulher na Blitz de 1940. Acho que também devo ter perdido a minha única filha esta noite.
- ... assim na Terra como no Céu...
- Que guerra, irmã, que porra de guerra.
- ... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
- Sabes, Mervin, tenho a impressão de que Hitler não gosta muito de nós.
- Também reparei nisso.
Nas urgências irromperam gargalhadas.
Dez minutos mais tarde, quando a freira decidiu que a oração tinha chegado ao fim, começou a inevitável cantoria.
- ... Atira capara fora o barril... Catherine abanou a cabeça.
- ... Vamos ter um barril de alegria...
Mas, passado um momento, deu por si a cantar com o resto das pessoas.
Na manhã seguinte, eram oito horas quando entrou no seu apartamento. O correio da manhã tinha chegado. A senhoria, a senhora Hodges, enfiava-lho sempre por baixo da porta. Catherine curvou-se, apanhou o correio e lançou de imediato três dos envelopes no caixote do lixo da cozinha. Não precisava de os ler porque ela mesma os tinha escrito e enviado de diferentes locais de Londres. Em circunstâncias normais, Catherine não receberia cartas pessoais, já que não
tinha amigos nem família no Reino Unido. Mas seria estranho que uma rapariga atraente e educada nunca se correspondesse com ninguém - e a senhora Hodges era um pouco bisbilhoteira - e, por isso, Catherine lançou-se num intricado estratagema para garantir que recebia um fluxo constante de postais e cartas pessoais.
Foi à casa de banho e abriu as torneiras por cima da banheira. A pressão era baixa, a água gotejava da torneira num fio, mas pelo menos estava quente. Havia pouca água por causa do verão e outono secos e o governo ameaçava racioná-la também. Encher a banheira demoraria alguns minutos.
Quando foi recrutada, Catherine Blake não estava em posição de fazer exigências, mas tinha feito uma - dinheiro que lhe permitisse viver confortavelmente. Tinha
sido educada em grandes casas geminadas e em vastas propriedades rurais - os pais eram da classe alta, e passar a guerra numa pensão qualquer parecida com um casebre, partilhando uma casa de banho com seis outras pessoas, estava fora de questão. Segundo o seu disfarce, era uma viúva de guerra, de uma família da classe média de respeitáveis recursos, e o apartamento assentava na perfeição - um conjunto de divisões, modesto mas confortável, numa casa vitoriana em Earl's Court.
A sala de estar era acolhedora, parcamente mobilada, embora um estranho pudesse ficar impressionado com a completa ausência de artigos pessoais. Não havia fotografias nem lembranças. Tinha um quarto com uma cama de casal confortável, uma cozinha com todos os eletrodomésticos modernos e a sua própria casa de banho, com uma grande banheira.
O apartamento tinha outras características que uma inglesa comum a viver sozinha poderia não exigir. Ficava no último piso, onde a mala rádio AFU podia receber transmissões de Hamburgo com pouca interferência, e a janela de sacada vitoriana, na sala de estar, tinha uma vista desimpedida da rua lá em baixo.
Dirigiu-se para a cozinha e colocou uma chaleira de água ao lume. O trabalho de voluntariado consumia-lhe tempo e deixava-a exausta, mas era essencial para o disfarce. Toda a gente estava a fazer alguma coisa para ajudar. Não iria parecer bem uma rapariga saudável
e sem família não fazer nada em prol do esforço de guerra. Ir trabalhar para uma fábrica de munições era arriscado - o disfarce poderia não resistir a uma verificação de antecedentes minuciosa - e alistar-se no ramo feminino da Marinha Real Britânica estava fora de questão. O Serviço de Voluntariado Feminino era a solução de compromisso perfeita. Precisavam desesperadamente de pessoas. Quando Catherine se candidatou, em setembro de 1940, foi colocada ao serviço nessa mesma noite. Tratava de feridos no Hospital St. Thomas e distribuía livros e biscoitos no metropolitano durante os ataques aéreos noturnos. A julgar pelas aparências, era a rapariga inglesa modelo a cumprir o seu dever.
Por vezes, não podia deixar de se rir.
A chaleira apitou. Voltou para a cozinha e fez chá. Como todos os londrinos, tinha ficado viciada em chá e cigarros; parecia que o país inteiro vivia de tanino e tabaco e Catherine não era exceção. Tinha esgotado a ração de leite em pó e de açúcar e, por isso, bebeu o chá sem mais nada. Em momentos como aquele, sentia saudades do café forte e amargo de casa e de um pedaço de bolo de Berlim.
Terminou a primeira chávena de chá e encheu a segunda. Queria tomar banho, enfiar-se na cama e dormir sem parar, mas tinha trabalho a fazer e precisava de se manter acordada. Teria chegado a casa uma hora mais cedo se se deslocasse por Londres como uma mulher comum. Teria atravessado Londres de metro até EarPs Court. Mas Catherine não se deslocava por Londres como uma mulher comum. Tinha apanhado um comboio, depois um autocarro, a seguir um táxi e depois outro autocarro. Tinha saído do autocarro antes da paragem indicada e feito os últimos quatrocentos metros até ao apartamento a pé, verificando constantemente se não estava a ser seguida. Quando chegou por fim a casa, estava ensopada da chuva, mas tinha a certeza de que estava só. Passados mais de cinco anos, alguns agentes poderiam ficar tentados a tornarem-se complacentes. Era uma das razões que explicavam que ela tivesse sobrevivido quando outros tinham sido presos e enforcados.
Entrou na casa de banho e despiu-se à frente do espelho. Era alta e estava em forma; vários anos de duras cavalgadas e caçadas tinham-na tornado muito mais forte do que a maioria das mulheres e muitos
homens. Era larga de ombros e tinha braços macios e firmes como uma estátua. Os seios eram redondos e pesados, muitíssimo bem feitos, e a barriga firme e lisa. Como quase toda a gente, estava mais magra do que era antes da guerra. Retirou o gancho que lhe prendia o cabelo num discreto carrapito de enfermeira, deixando-o cair para o pescoço e ombros, enquadrando-lhe o rosto. Os olhos eram de um azul muito claro - da cor de um lago prussiano, dizia-lhe o pai sempre - e as maçãs do rosto largas e proeminentes, mais alemãs do que inglesas. O nariz era comprido e delicado, a boca generosa e com lábios sensuais.
Pensou: Bem vistas as coisas, ainda és uma mulher muito atraente, Catherine Blake.
Entrou na banheira, sentindo-se de repente muito só. Vogel tinha-a advertido em relação à solidão. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão intensa. Por vezes, conseguia ser até pior do que o medo. Achava que seria preferível estar completamente só - isolada numa ilha deserta ou no cimo de uma montanha - em vez de rodeada de pessoas em que não podia tocar.
Não tinha permitido a si própria ter um amante desde o rapaz na Holanda. Sentia falta dos homens e sentia falta do sexo, mas conseguia viver sem ambos. O desejo, tal como todas as suas emoções, era algo que conseguia ligar e desligar como um interruptor. Além disso, ter um homem era difícil com o seu tipo de trabalho. Os homens tinham tendência a ficar obcecados com ela. A última coisa de que precisava era de um homem perdido de amores a investigar o seu passado.
Catherine acabou de tomar banho e saiu da banheira. Penteou o cabelo molhado rapidamente e vestiu o roupão. Foi à cozinha e abriu a porta da despensa. As prateleiras estavam vazias. A mala rádio estava na prateleira de cima. Tirou-a de lá e levou-a para a sala de estar, junto à janela, onde a receção era melhor. Abriu a tampa e ligou o rádio.
Havia outra razão que explicava que nunca tivesse sido apanhada
- Catherine não fazia transmissões. Todas as semanas, ligava o rádio por um período de dez minutos. Se Berlim tivesse ordens para ela, enviar-lhas-ia.
Durante cinco anos, não tinha havido nada, apenas o assobiar da atmosfera.
Tinha comunicado com Berlim apenas uma vez, na noite a seguir a ter assassinado a mulher em Suffolk e assumido a identidade dela. Eeatríce Pymm... Nesse momento, pensou na mulher sem sentir remorsos. Catherine era um soldado e durante a guerra os soldados eram obrigados a matar. Além disso, o crime não tinha sido gratuito - era absolutamente necessário.
Havia duas maneiras de um agente se introduzir no Reino Unido: clandestinamente, de paraquedas ou num pequeno barco, ou abertamente, como passageiro de um barco ou avião. Cada um dos métodos tinha os seus inconvenientes. Tentar introduzir-se no país sem ser detetado a partir do ar ou de um pequeno barco era arriscado. O agente poderia ser localizado ou ferir-se na queda; aprender simplesmente a saltar de paraquedas teria acrescentado meses ao treino já interminável de Catherine. O segundo método, entrar por meios legais, também acarretava os seus perigos. O agente teria de passar pela zona de controlo de passaportes. A data e o porto de entrada ficariam registados. Quando a guerra rebentasse, o MI5 iria certamente contar com esses registos para localizar os espiões. Se um estrangeiro entrasse no país e nunca mais saísse, o MI5 poderia assumir com segurança que essa pessoa era um agente alemão. Vogel engendrou uma solução - entrar no Reino Unido de barco, em segurança, e a seguir eliminar o registo da entrada eliminando a pessoa em causa. Simples, tirando uma coisa - era necessário um cadáver. Beatrice Pymm, ao morrer, tornou-se Christa Kunst. O MI5 nunca descobrira Catherine porque nunca a tinha procurado. A entrada e a saída dela do país estavam ambas justificadas. Não faziam ideia de que ela existisse sequer.
Catherine encheu outra chávena de chá, colocou rapidamente os auscultadores e aguardou.
Quase entornou o chá em cima de si quando, cinco minutos mais tarde, o rádio começou a fazer barulho.
O operador em Hamburgo premiu ritmadamente uma sucessão de sinais em código.
Os operadores de rádio alemães tinham a reputação de serem os mais precisos do mundo. E também os mais rápidos. Catherine esforçou-se por acompanhá-lo. Quando o operador em Hamburgo terminou, ela pediu-lhe que repetisse a mensagem.
Ele fê-lo, mais lentamente. ;
Catherine agradeceu e desligou.
Levou alguns minutos a encontrar o livro de códigos e mais outros tantos para descodificar a mensagem. Quando terminou, olhou pasmada para ela, incrédula.
Executar rendezvous alfa...
Kurt Vogel queria finalmente que ela se encontrasse com outro agente.
OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
A chuva varria a costa de Norfolk enquanto Sean Dogherty, entorpecido por cinco canecas de cerveja aguada, tentava montar a bicicleta à porta do Hampton Arms. Conseguiu,
à terceira tentativa, e dirigiu-se para casa. Dogherty, pedalando com firmeza, mal reparou na aldeia. Era de facto um lugar desolador, um aglomerado de chalés ao longo de uma única rua, a loja da aldeia, o pub Hampton Arms. A tabuleta já não era pintada desde 1938; a tinta, como quase tudo o resto, tinha sido racionada. A St. John's Church elevava-se na extremidade leste. O cemitério ficava à saída da aldeia. Dogherty benzeu-se inconscientemente ao passar pelo portão e, a seguir, atravessou a ponte de madeira que se estendia sobre a enseada. Passado um momento, a aldeia já tinha desaparecido atrás dele.
Caía a noite; Dogherty esforçou-se por manter a bicicleta direita no trilho cheio de buracos. Era um homem baixo, com cinquenta anos, olhos verdes muito enterrados na cara e uma barba grisalha desmazelada. O nariz, arrebitado e torto, tinha sido partido mais vezes do que se queria lembrar durante uma breve carreira como pugilista de peso meio-médio, em Dublin, e mais umas quantas em lutas de rua, bêbado. Usava um oleado e um gorro de lã. O ar frio cortava-Ihe a pele exposta do rosto: o ar do mar do Norte, parecido com uma lâmina, com o perfume dos campos de gelo do Ártico e dos fiordes noruegueses por onde tinha passado antes de assolar a costa de Norfolk.
A cortina de chuva afastou-se e o terreno tornou-se visível: extensos campos cor de esmeralda, planícies de lama cinzenta sem fim, pântanos de água salgada cheios de juncos e vegetação. À esquerda, uma praia vasta, aparentemente infinita, estendia-se até ao mar. À direita, não muito longe, colinas verdes erguiam-se suavemente até atingirem uma nuvem baixa. Dois gansos-de-brent, vindos da Sibéria para passarem o inverno, levantaram voo dos pântanos e depois pousaram sobre a água, com as asas a baterem delicadamente. Um habitat perfeito para muitas espécies de pássaros, a costa de Norfolk tinha sido em tempos um destino turístico popular. Mas a guerra tinha tornado a observação de aves praticamente impossível. Grande parte de Norfolk estava transformada numa zona militar restrita e o racionamento de gasolina tinha deixado poucos cidadãos com meios para viajarem para um canto tão isolado do país. E quando os tinham, era difícil encontrar o caminho para lá. Na primavera de 1940, com a febre provocada pelo receio de uma invasão a aumentar, o governo tinha retirado todos os sinais de trânsito.
Mais do que outros residentes da costa de Norfolk, Sean Dogherty reparava nessas coisas com especial atenção. Em 1940, tinha sido recrutado para espiar ao serviço da Abwehr e tinha-lhe sido atribuído o nome de código de Esmeralda.
O chalé surgiu ao longe, com o fumo a elevar-se suavemente da chaminé para logo depois ser cortado pelo vento e estender-se pelo prado extenso. Era uma pequena propriedade num terreno arrendado, mas proporcionava uma subsistência modesta - um pequeno rebanho de ovelhas que lhes dava lã e carne, galinhas, uma pequena colheita de tubérculos que, por esses dias, obtinha bons preços no mercado. Dogherty possuía inclusivamente uma velha carrinha em mau estado e transportava géneros das quintas vizinhas para o mercado de King's Lynn. Em resultado disso, foi-lhe atribuída uma ração de gasolina para a agricultura, mais do que a ração civil normal.
Virou para o caminho de entrada do chalé, saiu da bicicleta e empurrou-a pelo trilho cheio de buracos, em direção ao celeiro. Por cima da cabeça, ouvia o rumor dos bombardeiros Lancaster a levantarem voo das bases em Norfolk. Recordava-se de uma época em que
os aviões vinham da direção contrária - os pesados Heinkels da Luftwaffe, espalhando-se sobre o mar do Norte, em direção aos centros industriais de Birmingham e Manchester. Mas os Aliados tinham estabelecido o seu domínio dos céus e os Heinkels raramente se aventuravam sobre Norfolk. Claramente, Dogherty tinha apostado no cavalo errado.
Ergueu o olhar e viu as cortinas da janela da cozinha abrirem-se ligeiramente, viu a imagem desfocada do rosto de Mary através do vidro salpicado de chuva. Hoje
à noite, não, Mary, pensou, desviando conscientemente os olhos. Por favor, outra vez hoje à noite, não.
Não tinha sido difícil à Abwehr convencer Sean Dogherty a trair a Inglaterra e passar a trabalhar para a Alemanha nazi. Em 1921, o irmão mais velho, Daniel, foi preso e enforcado pelos britânicos por liderar uma unidade terrestre do Exército Republicano Irlandês.
Dentro do celeiro, Dogherty abriu um armário de ferramentas e tirou o transmissor-recetor fornecido pela Abwehr, o bloco de códigos, um bloco de notas e um lápis. Ligou o rádio e fumou um cigarro enquanto aguardava. As instruções eram simples - ligar o rádio uma vez por semana e aguardar instruções de Hamburgo. Já tinham passado mais de três anos desde que a Abwehr lhe tinha pedido para fazer alguma coisa. Apesar disso, ligava o rádio zelosamente, à hora indicada, e aguardava dez minutos.
Quando faltavam ainda dois minutos, Dogherty guardou novamente o bloco de códigos e o bloco de notas no armário. Já no último minuto, esticou a mão na direção do cabo de alimentação. Estava prestes a desligar o rádio quando este deu subitamente sinais de vida. Agarrou-se ao bloco de notas e pôs-se a escrever furiosamente até que o rádio se calou. Rapidamente, confirmou a receção da mensagem e terminou a comunicação.
Dogherty demorou vários minutos até descodificar a mensagem.
Quando acabou, não acreditou no que estava a ver.
Executar procedimento de receção número um...
Os alemães queriam que ele acolhesse um agente.
Tinham passado quinze minutos desde que Mary Dogherty, à janela da cozinha, vira o marido entrar no celeiro. Perguntou-se por que razão estaria a demorar tanto
tempo. O jantar de Sean ia arrefecer se ele não viesse para dentro depressa. Limpou as mãos ao avental e levou uma caneca de chá a escaldar para a janela da frente.
A chuva caía com mais violência e o vento chicoteava a costa, vindo do mar do Norte.
Pensou: Que noite horrível para andar lá fora, Sean Dogherty.
Pôs as mãos à volta da caneca de esmalte lascada e deixou que o vapor que de lá saía lhe aquecesse o rosto. Sabia o que Sean estava a fazer no celeiro - estava a
comunicar com os alemães pelo rádio.
Mary tinha de admitir que espiar para os nazis tinha rejuvenescido Sean. Na primavera de 1940, ele fez o reconhecimento de vastas partes da zona rural de Norfolk. Mary assistiu com espanto, à medida que ele foi parecendo despertar para a vida com a atribuição dessa tarefa, pedalando vários quilómetros por dia, à procura de sinais de atividade militar, tirando fotografias às defesas costeiras. As informações eram passadas a um contacto da Abwehr em Londres, que por sua vez a passava a Berlim. Sean achava que era tudo muito perigoso e adorava cada momento.
Mas Mary detestava. Temia que Sean fosse apanhado. Toda a gente estava atenta, à procura de espiões; era uma obsessão nacional. Um deslize, um erro, e Sean seria preso. O Treachery Act de
1940 decretava apenas uma pena por espionagem: a execução. Mary tinha lido sobre execuções de espiões nos jornais, os enforcamentos em Wandsworth e Pentonville, e isso provocava-lhe sempre calafrios. Um dia, temia ela, iria ler que Sean tinha sido executado.
A chuva continuava a cair com mais violência ainda e o vento fustigava com tanta fúria o robusto chalezinho que Mary receava que a casa pudesse vir abaixo. Pensou em si a viver sozinha na velha e degradada quinta; seria terrível. Estremecendo, afastou-se da janela e aproximou-se da lareira.
Se calhar, teria sido diferente se ela tivesse sido capaz de lhe dar filhos. Afastou esse pensamento da cabeça; tinha-se punido por demasiado tempo, desnecessariamente. Era inútil desenterrar coisas em
relação às quais não podia fazer nada. Sean era quem era e já não havia nada que ela pudesse fazer para o mudar.
Mary pensou: Sean, em que é que tu te transformaste?
As pancadas na porta assustaram Mary, fazendo-a derramar o chá no avental. Sean não costumava ficar lá fora sem forma de entrar. Pousou a caneca no peitoril da janela e foi a correr para a porta. Estava preparada para lhe dar um berro por ter saído sem levar as chaves de casa. Em vez disso, quando abriu a porta, viu a figura de Jenny Colville, uma rapariga que vivia do outro lado da aldeia. Estava ali à chuva, com um oleado brilhante pendurado nos ombros magros. Não trazia chapéu e tinha o cabelo que usava até aos ombros colado à cabeça, enquadrando um rosto estranho que um dia poderia vir a ser muito bonito.
Mary percebeu que ela estivera a chorar.
- O que aconteceu, Jenny? O teu pai bateu-te outra vez? Anda a beber?
Jenny assentiu com a cabeça e desatou a chorar.
- Entra, sai dessa chuva - disse Mary. - Vais morrer de frio aí fora, numa noite destas.
Quando Jenny entrou, Mary procurou com os olhos a bicicleta dela no jardim da frente. Não estava lá; ela tinha vindo a pé desde o chalé dos Colville, a mais de um quilómetro e meio dali.
Mary fechou a porta.
- Tira essas roupas. Estão encharcadas. vou buscar-te um roupão para vestires até secarem.
Mary desapareceu dentro do quarto. Jenny fez o que lhe mandaram. Exausta, despiu o oleado, deixando-o deslizar dos ombros para o chão. A seguir, tirou a pesada camisola de lã grossa e largou-a no chão junto ao oleado.
Mary voltou com o roupão.
- Tira o resto da roupa, minha menina - atirou ela numa voz suave, fingindo-se zangada.
- Mas então e o Sean?
Mary mentiu:
- Está lá fora a remendar um buraco numa das suas queridas cercas.
- com este tempo? - cantarolou Jenny com o seu forte sotaque de Norfolk, recuperando um pouco da sua habitual boa disposição. Mary ficava espantada com a resistência dela. - Ele está maluco, Mary?
- Sempre soube que eras uma criança perspicaz. Agora, vamos lá a tirar o resto dessa roupa molhada.
Jenny despiu as calças e a camisola interior. Costumava vestir-se como um rapaz, ainda mais do que as outras raparigas do campo. A pele era de um branco leitoso e estava toda arrepiada. Teria muita sorte se não apanhasse uma bela constipação. Mary ajudou Jenny a vestir o roupão e envolveu-a nele, apertando-o bem.
- Então, não estás melhor?
- Sim, obrigada, Mary - respondeu Jenny, recomeçando a chorar. - Não sei o que faria sem ti.
Mary puxou Jenny para junto de si.
- Nunca vais ficar sem mim, Jenny. Prometo.
Jenny sentou-se numa cadeira antiga junto da lareira e cobriu-se com uma manta bafienta. Colocou os pés por baixo de si e, passado um momento, parou de tremer e sentiu-se quente e em segurança. Mary estava ao fogão, cantarolando suavemente para si mesma.
Passados poucos momentos, o ensopado já estava a borbulhar, enchendo a casa de um cheiro maravilhoso. Jenny fechou os olhos, com a cabeça cansada a saltar de uma sensação agradável para outra
- o cheiro quente do ensopado de borrego, o calor da lareira, a comovente suavidade da voz de Mary. O vento e a chuva fustigavam a janela junto da cabeça de Jenny. A tempestade fê-la sentir como era maravilhoso estar segura dentro de uma casa tranquila. Desejava que a sua vida fosse sempre assim.
Passados poucos momentos, Mary trouxe um tabuleiro com uma tigela de ensopado, um pão duro e uma caneca de chá a escaldar.
- Endireita-te, Jenny - disse ela, mas não obteve resposta.
Mary pousou o tabuleiro, tapou a rapariga com outra manta e deixou-a dormir.
Mary estava a ler junto da lareira quando Dogherty entrou em casa. Olhou para o marido em silêncio quando ele entrou na sala. Sean apontou para a cadeira onde Jenny estava a dormir e perguntou:
- Porque é que ela está aqui? O pai bateu-lhe outra vez?
- Chiu! - sibilou Mary. - Vais acordá-la.
Mary levantou-se e levou-o para a cozinha. Preparou-lhe um lugar na mesa. Dogherty encheu uma caneca de chá e sentou-se.
- Sabes, o que Martin Colville precisa é de alguém que lhe dê a provar do mesmo remédio. E eu sou o homem indicado para lho dar.
- Por favor, Sean, ele tem metade da tua idade e duas vezes o teu tamanho.
- E o que é que isso quer dizer, Mary?
- Quer dizer que te podias magoar. É a última coisa de que precisamos é que atraias a atenção da polícia com uma luta estúpida. Agora, acaba de jantar e cala-te.
Vais acordar a miúda.
Dogherty fez o que lhe ordenaram e recomeçou a comer. Enfiou uma colherada do ensopado na boca e fez uma careta.
- Jesus, esta comida está mesmo gelada.
- Se tivesses chegado a casa a horas decentes, não estava. Onde é que andaste, Sean?
Sem levantar a cabeça do prato, Dogherty lançou um olhar gelado a Mary.
- Estive no celeiro - disse ele friamente.
- Estiveste com o rádio ligado, à espera de instruções de Berlim? - perguntou Mary num sussurro sarcástico.
- Mais tarde, mulher - resmungou Sean.
- Não percebes que estás a desperdiçar o teu tempo lá, Sean? E a arriscar também os nossos pescoços?
- Eu disse mais tarde, mulher!
- Seu bode velho e estúpido!
- Já chega, Mary!
- Talvez os rapazes de Berlim te dêem um dia uma tarefa de verdade, Sean. Depois vais poder libertar todo o ódio que tens dentro de ti e vamos poder continuar com o que resta das nossas vidas
- desabafou ela, levantando-se, olhando para ele e abanando a cabeça. - Estou cansada, Sean. vou para a cama. Põe mais um bocado de lenha na lareira para a Jenny ficar quente. E não faças nada que a acorde. Ela passou um mau bocado hoje à noite.
Maty subiu as escadas para o quarto e sem fazer barulho fechou a porta depois de entrar. Dogherty foi ao guarda-louça buscar uma garrafa de Bushmills. O uísque valia ouro por esses dias, mas era uma noite especial, por isso serviu-se de uma quantidade generosa.
- Talvez os rapazes de Berlim façam isso mesmo, Mary Dogherty
- disse ele, erguendo o copo num brinde silencioso. - De facto, talvez até já tenham feito.
NOVE LONDRES
Para conseguir entrar para os serviços secretos militares durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred Vicary tinha, na verdade, recorrido ao logro. com vinte e um anos, estava à beira de terminar os estudos em Cambridge e convencido de que a Inglaterra se estava a afundar e, como tal, precisava de todos os homens capazes de
que pudesse dispor. Não queria ter nada que ver com a infantaria. Sabia história suficiente para ter noção de que não havia aí qualquer espécie de glória, mas apenas
tédio, sofrimento e, muito provavelmente, a morte ou um ferimento grave.
O seu melhor amigo, um brilhante estudante de filosofia chamado Brendan Evans, encontrou a solução perfeita. Brendan tinha ouvido dizer que o exército estava a formar algo chamado Corpo dos Serviços Secretos. As únicas qualificações requeridas eram fluência no alemão e no francês, considerável experiência de viagens pela Europa, capacidade de guiar e reparar uma mota e visão perfeita. Brendan contactou o Ministério da Guerra e marcou entrevistas para ambos na manhã seguinte.
Vicary ficou desanimado; não reunia as qualificações necessárias. Falava alemão, ainda que de forma pouco inspirada, um francês aceitável e viajara consideravelmente
pela Europa, incluindo dentro da Alemanha. Mas não sabia guiar uma mota - aliás, era uma geringonça que o assustava de morte - e via horrivelmente mal.
Brendan Evans era o oposto de Vicary: alto, loiro, incrivelmente bonito, possuidor de um juvenil desejo de aventura e sem mãos a medir no
que tocava a mulheres. Mas tinham uma característica em comum: uma memória perfeita.
Vicary concebeu o seu plano.
Ao final dessa tarde, na penumbra fresca de agosto, Brendan ensinou-o a andar de mota num trecho deserto de estrada, na região das Fens. Vicary quase os matou aos
dois por diversas vezes, mas, quando a noite chegou, já avançava em grande velocidade pelos trilhos, desfrutando de uma mistura de excitação e imprudência que nunca
tinha sentido. Na manhã seguinte, durante a viagem de comboio de Cambridge para Londres, Brendan instruiu-o sem parar acerca da anatomia das motas.
Quando chegaram a Londres, Brendan entrou no Ministério da Guerra e Vicary ficou à espera à entrada, sob a luz quente do sol. Brendan reapareceu ao fim de uma hora,
com um sorriso largo. Fui admitido, disse Brendan. Agora é a tua vez. Ouve com atenção. Foi então que lhe disse de memória o gráfico inteiro utilizado no teste
de visão, até as letras irremediavelmente pequenas da última linha.
Vicary tirou os óculos, entregou-os a Brendan e entrou como um cego no edifício escuro e ameaçador. Passou facilmente no exame cometeu apenas um erro, confundindo
um B com um D, mas isso por culpa de Brendan. Vicary entrou de imediato ao serviço, como segundo tenente na unidade de motocicletas do Corpo dos Serviços Secretos,
passaram-lhe uma guia para levantar o uniforme e o equipamento e ordenaram-lhe que cortasse o cabelo, que tinha ficado comprido e encaracolado durante o verão. No dia seguinte, mandaram-no ir à estação de Euston recolher a mota, uma Rudge novinha em folha, embalada num caixote de madeira. Uma semana mais tarde, Brendan e Vicary embarcaram num navio de transporte de tropas rumo a França, acompanhados das motas.
Era tudo tão simples nesse tempo. Os agentes penetravam nas linhas inimigas, contavam o número de tropas, vigiavam as linhas de caminho de ferro. Até utilizavam pombos-correio para entregarem mensagens secretas. Agora, as coisas eram bem mais complexas, um duelo de inteligência através das ondas rádio, que requeria imensa
concentração e atenção aos pormenores.
A Operação Double Cross.
Karl Becker era um exemplo paradigmático. Tinha sido enviado para Inglaterra por Canaris durante os tempos tumultuosos de 1940, quando a invasão parecia uma certeza.
Fazendo passar-se por um homem de negócios suíço, Becker estabeleceu-se, com estilo correspondente, em Kensington e começou a amealhar todos os segredos suspeitos
a que conseguia deitar mão. O que levou Vicary até Becker foi a sua utilização de libras falsas e, no espaço de poucas semanas, o alemão estava já enredado na teia
do MI5. Vicary, com a ajuda dos vigias, ia onde quer que Becker fosse: às festas onde trocava mexericos e emborcava champanhe do mercado negro, aos encontros com
outros agentes de carne e osso, às entregas clandestinas em sítios predeterminados e ao quarto dele, para onde Becker levava mulheres, homens, crianças e sabe Deus
que mais. Ao fim de um mês, Vicary desferiu o golpe. Prendeu Becker - arrancando-o dos braços de uma jovem que mantinha trancada e embriagada com champanhe - e acabou
com uma rede inteira de agentes alemães.
A seguir, veio a parte complicada. Em vez de enforcar Becker, fê-lo mudar de lado e convenceu-o a trabalhar para o MI5 como agente duplo. Na noite seguinte, Becker,
na cela da prisão, ligou o rádio e transmitiu um sinal de identificação codificado ao operador em Hamburgo. O operador pediu que Becker se mantivesse no ar para
receber as instruções do agente da Abwehr que o controlava a partir de Berlim. Foi pedido a Becker que averiguasse a localização e o tamanho exatos de uma base de
caças da RAF em Kent. Becker confirmou a mensagem e terminou a comunicação.
Foi Vicary quem se dirigiu ao aeródromo no dia seguinte. Podia ter telefonado à RAF, obtido as coordenadas da base e enviado a informação para a Abwehr. Mas não seria assim tão fácil para um espião. Para que a mensagem parecesse autêntica, Vicary foi fazer o reconhecimento da base, exatamente como um espião faria. Apanhou o comboio em Londres e, devido aos atrasos, não chegou antes do anoitecer. Um polícia militar abordou-o numa colina junto à base e pediu-lhe que se identificasse. Vicary conseguia ver a base lá em baixo, na planície, com a mesma perspetiva de um espião. Viu um conjunto de hangares semicilíndricos e alguns aviões espalhados pela pista coberta de vegetação. Na viagem de regresso a Londres, Vicary
redigiu um relatório curto acerca do que tinha visto. Salientou que a luz já não era muita, por o comboio se ter atrasado, e que um polícia militar o tinha impedido de se aproximar mais. Nessa noite, Vicary obrigou Becker a enviar ele mesmo o relatório, já que cada espião tinha o seu estilo próprio de digitar, o chamado punho, que os operadores de rádio alemães eram capazes de reconhecer. Hamburgo deu-lhe os parabéns e terminou a comunicação.
Vicary contactou a RAF e explicou a situação. Os verdadeiros caças Spitfire foram transferidos para outro aeródromo, o pessoal foi evacuado e vários caças extremamente
danificados foram abastecidos e colocados na pista. A Luftwaffe veio nessa noite. Os aviões falsos explodiram numa bola de chamas; a tripulação dos bombardeiros
Heinkel pensou sem dúvida que tinha desferido um golpe preciso. No dia seguinte, a Abwehr pediu a Becker que regressasse a Kent e avaliasse os danos. Uma vez mais,
foi Vicary quem lá foi, escrevendo um relatório acerca do que tinha conseguido ver e obrigando Becker a enviá-lo.
A Abwehr ficou em êxtase. Becker tornou-se uma estrela, um superespião, e tudo isso tinha apenas custado à RAF um dia a reparar a pista e a remover os esqueletos
carbonizados dos Spitfires.
Os agentes que controlavam Becker estavam de tal forma impressionados que lhe pediram para recrutar mais agentes, coisa que ele fez - que, na realidade, Vicary fez. No final de 1940, Karl Becker já tinha um círculo de uma dúzia de agentes a trabalhar para si, sendo que alguns o informavam do que descobriam e outros informavam diretamente Hamburgo. Eram todos fictícios, produto da imaginação de Vicary. Este tinha em atenção todos os aspetos da vida deles; apaixonavam-se, tinham casos amorosos,
queixavam-se da falta de dinheiro, perdiam casas e amigos na Blitz.
Vicary deu-se até ao luxo de prender um ou outro; nenhuma rede a atuar em solo inimigo era infalível
e a Abwehr nunca acreditaria na possibilidade de não perder nenhum agente. Era um trabalho extenuante e fastidioso, que exigia atenção ao mais ínfimo pormenor; Vicary
achava-o estimulante e adorava cada minuto.
O elevador estava outra vez avariado e, por isso, Vicary teve de descer as escadas do covil de Boothby para a divisão dos Registos.
Ao abrir a porta, foi invadido pelo cheiro daquele lugar: papel a deteriorar-se, pó, um bafio penetrante devido à humidade que se infiltrava pelas paredes da cave. Lembrava-lhe a biblioteca da universidade. Havia dossiês em prateleiras abertas, dossiês em arquivos, dossiês amontoados no chão de pedra gelado, pilhas de documentos à espera de se transformarem em dossiês. Um trio de raparigas bonitas o pessoal da noite, que dormia em camas improvisadas - andava discretamente de um lado para o outro, falando uma linguagem de inventário que Vicary não conseguia perceber. As raparigas - conhecidas como rainhas da divisão dos Registos, no léxico daquele sítio - pareciam estranhamente deslocadas ali, no meio dos papéis e da escuridão. De certa forma, Vicary esperava virar uma esquina e deparar com um par de monges a ler um manuscrito à luz da vela.
Arrepiou-se. Céus, aquele sítio era frio como uma cripta. Arrependeu-se de não ter trazido uma camisola ou qualquer coisa quente para beber. Estava ali tudo - toda a história secreta do serviço. Enquanto vagueava entre as pilhas de documentos, ocorreu-lhe que, muito tempo depois de abandonar o MI5, também ali estaria um registo eterno de todas as suas ações. Se isso era reconfortante ou repugnante, não tinha a certeza.
Vicary pensou nas observações depreciativas que Boothby tecera sobre ele e a raiva que sentiu causou-lhe um calafrio. Vicary era um extraordinário agente da Operação Double Cross e nem mesmo Boothby o podia negar. Estava plenamente convencido de que era a sua formação como historiador que o tornava tão capaz para o trabalho. Um historiador tem muitas vezes de se ocupar de conjeturas
- pegando numa série de pequenas pistas inconclusivas e, a partir delas, chegar a uma conclusão razoável. A Operação Double Cross era muito semelhante a essa elaboração de conjeturas, só que ao contrário. O trabalho de um agente desse tipo consistia em fornecer aos alemães pequenas pistas inconclusivas para que pudessem chegar às conclusões desejadas. O agente precisava de ser cuidadoso e meticuloso nas pistas que revelava. Tinham de corresponder a uma cuidadosa mistura de realidade e ficção, de verdade e de mentiras meticulosamente disfarçadas. Os espiões falsos de Vicary tinham de trabalhar arduamente para conseguirem as suas informações. E estas tinham de ser ministradas aos alemães em doses pequenas e por vezes insignificantes.
Precisavam de ser consistentes com o disfarce do espião. Por exemplo, não se poderia esperar que um motorista de camiões de Bristol estivesse na posse de documentos roubados em Londres. E as informações nunca deveriam parecer boas demais para serem verdade, pois as informações obtidas com demasiada facilidade são facilmente descartadas.
Os dossiês sobre o pessoal da Abwehr estavam armazenados em prateleiras abertas que se estendiam do chão ao teto, numa pequena divisão no extremo desse piso. Os Vs começavam numa das prateleiras de baixo e depois saltavam para uma no topo. Vicary teve de se pôr de gatas e inclinar a cabeça de lado como se estivesse à procura de um objeto valioso debaixo de uma mobília. Raios! O dossiê estava na prateleira de cima, claro. com esforço, levantou-se e, esticando o pescoço, espreitou para os ficheiros por cima dos óculos em meia-lua. Não valia a pena. Os dossiês estavam quase a dois metros de distância, demasiado longe para conseguir ler os nomes - era a vingança de Boothby contra todos os que não atingiam a altura estipulada para o departamento.
Uma das rainhas da divisão dos Registos deparou com ele a olhar fixamente para cima e disse que lhe ia trazer uma escada de biblioteca.
- A semana passada, Claymore tentou usar uma cadeira e quase partiu o pescoço - trauteou ela.
Regressou pouco depois a arrastar a escada. Deu uma nova olhadela a Vicary, sorriu-lhe como se este fosse um tio maluco e ofereceu-se para lhe ir buscar o dossiê. Vicary assegurou-lhe que conseguia tratar do assunto.
Subiu à escada e, usando o indicador como se fosse uma sonda, percorreu os dossiês. Descobriu uma pasta de arquivo de manilha com um separador vermelho: VOGEL, KURT - ABWHER BERLIM. Tirou-a da prateleira, abriu-a e olhou.
O dossiê de Vogel estava vazio.
Um mês depois de chegar ao MI5, Vicary ficou surpreendido por encontrar Nicholas Jago a trabalhar lá. Jago tinha sido arquivista principal no University College
e fora recrutado pelo MI5 na mesma
semana em que Vicary. Tinha sido colocado na divisão dos Registos e fora-lhe ordenado que impusesse um pouco de disciplina na memória, por vezes volúvel, do departamento.
Jago, tal como a própria divisão dos Registos, era empoeirado, irascível e de trato difícil. Mas, uma vez ultrapassada essa couraça exterior, era capaz de ser gentil
e generoso, transbordando de informações valiosas. Jago tinha ainda outro talento precioso: sabia perder e encontrar dossiês.
Apesar da hora tardia, Vicary encontrou Jago a trabalhar, sentado à secretária do seu exíguo gabinete envidraçado. Ao contrário das salas dos arquivos, era um santuário de limpeza e ordem. Quando Vicary bateu à porta envidraçada, Jago levantou os olhos, sorriu e fez-lhe sinal para entrar. Vicary apercebeu-se de que os olhos de Jago não acompanhavam o sorriso dele. Parecia exausto; Jago vivia naquele sítio. Mas havia outra coisa: em 1940, a sua mulher tinha sido morta durante a Blitz. A morte dela deixara-o destroçado. Tinha jurado a si mesmo derrotar os nazis - não com armas, mas com organização e precisão.
Vicary sentou-se e recusou a esbaforida oferta de chá por parte de Jago - material genuíno que acumulei antes da guerra. Nada parecido com o tabaco atroz, próprio da guerra, com que estava a encher o fornilho do cachimbo antes de o acender com um fósforo. O fumo repugnante cheirava a folhas a arder e ficou a pairar entre eles, numa cortina, enquanto trocavam banalidades acerca do regresso à universidade quando o trabalho ali estivesse terminado.
Aclarando a garganta delicadamente, Vicary indicou que queria passar ao assunto que o trouxera ali.
- Estou à procura de um dossiê acerca de um agente algo obscuro da Abwehr - revelou Vicary. - Fiquei surpreendido quando vi que tinha desaparecido. A capa está na prateleira, mas o que devia estar lá dentro desapareceu.
- E qual é o nome? - perguntou Jago.
- Kurt Vogel.
O rosto de Jago ensombrou-se.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos. Espera aqui, Alfred. É só um momento.
- Eu vou contigo - disse Vicary. - Talvez possa ajudar.
- Não, não - insistiu Jago. - Nem quero ouvir falar disso. Eu não te ajudo a encontrar espiões e tu não me ajudas a encontrar dossiês - atirou, rindo-se da sua própria
piada. - Fica aqui e põe-te à vontade. É só um momento.
É a segunda vez que dizes isso, pensou Vicary. É só um momento... Vicary sabia que Jago era obcecado com os seus dossiês, mas a falta de um dossiê sobre um agente
da Abwehr não era caso para uma emergência no departamento. Constantemente, colocavam-se dossiês no sítio errado ou deitavam-se fora por engano. Uma vez, Boothby
fez soar o alerta vermelho depois de ter perdido uma pasta cheia de documentos importantes. Segundo rezava a lenda do departamento, tinha sido encontrada uma semana mais tarde no apartamento da amante dele.
Passado um momento, Jago regressou apressadamente ao gabinete, com uma nuvem do fumo repugnante do cachimbo a flutuar atrás dele como o vapor de uma locomotiva. Entregou o dossiê a Vicary e sentou-se à secretária.
- Tal como eu suspeitava - anunciou Jago, absurdamente orgulhoso de si mesmo. - Estava ali mesmo na prateleira. Uma das raparigas deve tê-lo guardado na pasta errada. Está sempre a acontecer.
Vicary ouviu a desculpa duvidosa e franziu o sobrolho.
- Interessante... nunca me aconteceu tal coisa.
- Bem, talvez tenhas tido sorte. Nós aqui lidamos com milhares de dossiês por semana. Dava-nos jeito mais pessoal. Já discuti o assunto com o diretor-geral, mas ele disse-me que já atingimos a nossa quota e que não podemos ter mais pessoal.
O cachimbo de Jago tinha-se apagado e ele estava a reacendê-lo com toda a pompa e circunstância. Os olhos de Vicary lacrimejaram à medida que o pequeno gabinete se enchia novamente de fumo. Nicholas Jago era um homem perfeitamente bom e honesto, mas Vicary não acreditava numa só palavra da história que tinha contado. Estava convicto de que alguém tinha retirado o dossiê não há muito tempo e que este não tinha voltado para a prateleira. E esse alguém devia ser alguém bem importante, a julgar pela cara que Jago fez quando Vicary lho pediu.
Vicary serviu-se do dossiê para abrir uma clareira no meio da nuvem de fumo.
- Quem foi a última pessoa a mexer no dossiê de Vogel?
- Alfred, vá lá, sabes que não te posso dizer isso.
Era verdade. Comuns mortais como Vicary tinham de assinar um registo cada vez que retiravam um dossiê. Havia registos que indicavam quem retirava que dossiês e quando. Apenas o pessoal da divisão dos Registos e os chefes do departamento tinham acesso a esses registos. Só um grupo restrito de pessoas com cargos de grande relevo podia aceder aos dossiês sem ter de lavrar registo. Vicary suspeitava que o dossiê de Vogel tinha sido retirado por uma dessas pessoas.
- Tudo o que tenho de fazer é pedir a Boothby uma autorização para ver a lista de acessos e ele dá-ma - disse Vicary. - Porque não me poupas tempo e me deixas ver isso já?
- Pode dar-ta ou não.
- O que queres dizer com isso, Nicholas?
- Ouve, meu velho, a última coisa que eu quero é intrometer-me outra vez entre ti e Boothby.
Jago estava novamente às voltas com o cachimbo, enchendo o fornilho e tirando um fósforo da caixa. Segurava o cachimbo entre os dentes, fazendo com que o fornilho baloiçasse enquanto falava.
- Fala com o Boothby. Se ele disser que podes ver a lista de acessos, é toda tua.
Vicary deixou-o sentado no gabinete fumarento, a tentar acender o seu tabaco barato, com o fósforo a flamejar a cada puxadela do cachimbo. Ao afastar-se com o dossiê de Vogel, Vicary deitou uma última olhadela a Jago e achou que ele parecia um farol num local brumoso.
Ao voltar para o gabinete, Vicary parou na cantina. Não se conseguia lembrar da última vez que tinha comido. A sensação de fome não passava de uma moinha. Já não suspirava por comida boa. Comer tinha-se tornado uma tarefa prática, algo que tinha de se fazer por necessidade, não por prazer. Era como andar em Londres à noite: rapidamente e tentando não sair ferido. Lembrou-se da tarde de maio de 1940 em que o tinham contactado. O senhor Ashworth entregou há pouco duas belas costeletas de cordeiro em sua casa. Que tamanha perda de tempo precioso.
Já era tarde e a seleção era pior do que o habitual: um naco de pão escuro, um pedaço de queijo suspeito, um caldeirão borbulhante
de líquido castanho. Alguém tinha riscado da ementa as palavras caldo de carne e escrito em seu lugar sopa de pedra. Vicary dispensou o queijo e cheirou o caldo.
Parecia suficientemente inócuo. Cuidadosamente, serviu-se de uma concha. O pão era duro como a tábua da cozinha. Vicary cortou um pedaço com a faca romba. Utilizando o dossiê de Vogel como tabuleiro, avançou com cautela por entre as mesas e cadeiras. Numa mesa, estava John Masterman, debruçado sobre um livro de latim. Dois advogados famosos estavam sentados numa mesa a um canto, reeditando um antigo duelo no tribunal. Um popular escritor de livros policiais escrevinhava num caderno desgastado. Vicary abanou a cabeça. O MI5 tinha recrutado um conjunto formidável de talentos.
Subiu as escadas cuidadosamente, com a tigela de sopa a balançar precariamente em cima do dossiê. O que mais lhe faltava era sujar o dossiê. Jago tinha escrito inúmeros memorandos enfurecidos, implorando aos agentes que tivessem mais cuidado com os dossiês.
- E qual é o nome?
- Kurt Vogel.
- Céus! Deixa-me dar uma vista de olhos.
Vicary tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali que não batia certo. Mas era melhor não forçar as coisas. Era preferível não pensar nisso e deixar o subconsciente juntar as peças.
Pousou o dossiê e a tigela de sopa na secretária e ligou a luz. Leu o dossiê de uma ponta a outra enquanto ia comendo a sopa em pequenos tragos. Sabia a bota de couro cozida. O sal era dos poucos condimentos que os cozinheiros possuíam em abundância e tinham-no usado generosamente. Quando acabou de ler o dossiê pela segunda vez, estava com uma sede digna do deserto e tinha os dedos a começarem a inchar.
Vicary ergueu os olhos e disse:
- Harry, acho que temos aqui um problema.
Harry Dalton, que se deixara adormecer à secretária, na área comum à porta do gabinete de Vicary, levantou-se e entrou. Formavam uma parceria insólita, conhecida humoristicamente no departamento como Músculos & Cérebro, Lda. Harry era alto e atlético, elegante, de cabelo negro densamente coberto de brilhantina, olhos azuis vivos
e um sorriso sempre pronto. Antes da guerra, era o inspetor Harry Dalton, do principal departamento de homicídios da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha nascido e crescido em Battersea e ostentava ainda na voz suave e agradável traços da pronúncia da classe operária do sul de Londres.
- Ele é inteligente, isso é certo - disse Vicary. - Olhe para isto: doutoramento em Direito na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Heller e de Rosenberg.
Não me parece o nazi típico. Os nazis perverteram as leis da Alemanha. Uma pessoa com uma educação destas não poderia estar muito entusiasmado com eles. E depois,
em 1935, decide abandonar de repente o direito e passar a trabalhar para o Canaris, como advogado dele, uma espécie de conselheiro interno da Abwehr? Não acredito
nisso. Acho que ele é um espião e esta história de ser o conselheiro legal de Canaris é só mais uma camada do disfarce.
Vicary estava a folhear o ficheiro outra vez.
- Tem alguma teoria? - perguntou Harry.
- Três teorias, na verdade.
- Então, vamos ouvi-las.
- Teoria número um, Canaris perdeu a confiança nas redes britânicas e encarregou Vogel de levar a cabo uma investigação. Um homem com a experiência e formação de Vogel é o oficial perfeito para examinar minuciosamente os dossiês e todos os relatórios de agentes em busca de inconsistências. Temos sido extremamente cuidadosos, Harry, mas manter a Operação Double Cross é uma tarefa muito complexa. Aposto que lá pelo meio já cometemos um erro ou outro. E se a pessoa certa andasse à procura deles - um homem inteligente como Kurt Vogel, por exemplo -, talvez fosse capaz de os descobrir.
- Teoria número dois?
- Teoria número dois, Canaris encarregou Vogel da criação de uma nova rede. Nesta altura do campeonato, já é um pouco tarde para isso. Era preciso descobrir, recrutar e treinar agentes, além de os infiltrar no país. Isso, por norma, leva meses a ser feito em condições. Duvido que seja isso que andam a fazer, mas não podemos descartar essa ideia.
- Teoria número três?
- A teoria número três é que Kurt Vogel é responsável por uma rede de que ainda não temos conhecimento.
- Uma rede completa de agentes que ainda não desmascarámos? E isso é possível?
- Temos de presumir que sim.
- Então todos os nossos agentes duplos estariam em risco.
- É um castelo de cartas, Harry. Basta só um bom agente para se desmoronar tudo.
Vicary acendeu um cigarro. O tabaco tirou-lhe da boca o sabor do caldo.
- Canaris deve estar debaixo de enorme pressão para apresentar resultados. com certeza que iria querer que fosse o melhor homem dele a dirigir a operação.
- Então isso quer dizer que é como se Kurt Vogel fosse uma panela de pressão.
- Certo.
- E isso pode torná-lo perigoso.
- Mas também pode torná-lo descuidado. Tem de arriscar. Tem de usar o rádio ou enviar um agente para Inglaterra. E, quando o fizer, vamos estar em cima dele.
Ficaram sentados em silêncio durante um momento. Vicary estava a fumar e Harry ia folheando o dossiê de Vogel. Foi então que Vicary lhe contou o que tinha acontecido na divisão dos Registos.
- Estão sempre a desaparecer imensos dossiês, Alfred.
- Sim, mas porquê este dossiê? E, mais importante, porquê agora?
- Boas perguntas, mas desconfio que as respostas sejam muito simples. Quando estamos no meio de uma investigação, o melhor é mantermo-nos concentrados e não nos
desviarmos do assunto.
- Eu sei, Harry - respondeu Vicary, franzindo o sobrolho. Mas isto está a pôr-me louco.
Harry disse:
- Eu conheço uma ou duas rainhas da divisão dos Registos. Vicary olhou para ele.
- Tenho a certeza que sim.
- vou meter o nariz por lá e fazer umas perguntas.
- Faça isso discretamente.
- Não há outra forma de o fazer, Alfred.
- Jago está a mentir, está a esconder qualquer coisa.
- E porque havia ele de mentir?
- Não sei - respondeu Vicary, esmagando o cigarro -, mas sou pago para ter pensamentos desagradáveis.

DEZ
BLETCHLEY PARK, INGLATERRA
Oficialmente, chamava-se Escola Governamental de Códigos e Criptografia. No entanto, não era escola nenhuma. Podia parecer ser uma escola qualquer - uma grande e
feia mansão vitoriana, rodeada por uma cerca alta -, mas a maior parte das pessoas daquela terra de ruas estreitas que crescera ao longo da linha de caminho de ferro
percebia que algo mais importante se passava ali. Os grandes relvados estavam cheios de dezenas de cabanas temporárias. O espaço remanescente inha sido pisado, transformando-se
em carreiros de lama congelada. Os jardins estavam em mau estado e por aparar, assemelhando-se a pequenas selvas. O staff era uma mistura excêntrica, os matemáticos
mais brilhantes do país, campeões de xadrez, magos das palavras cruzadas, todos reunidos para o mesmo objetivo: decifrar os códigos alemães.
Mesmo no mundo notoriamente extravagante de Bletchley Park, Denholm Saunders era considerado um excêntrico. Antes da guerra, era um matemático de topo em Cambridge.
Naquele momento, estava entre os melhores criptólogos do mundo. Vivia numa aldeola nos arredores de Bletchley com a mãe e os gatos siameses, Platão e S. Tomás de Aquino.
Era o final da tarde. Saunders estava na mansão, sentado à secretária, ocupado com duas mensagens enviadas pela Abwehr, de Hamburgo, para agentes alemães no Reino Unido. As mensagens tinham sido intercetadas pelo Radio Security Service, assinaladas como suspeitas e encaminhadas para Bletchley Park para descodificação.
Saunders estava a assobiar fora de tom enquanto raspava com o lápis no bloco de notas, um hábito que irritava solenemente os colegas. Trabalhava na secção de descodificação manual de mensagens cifradas. Era uma área de trabalho exígua e estava a abarrotar, mas era relativamente quente. Era melhor estar ali do que lá fora, numa das cabanas onde os criptólogos se esforçavam arduamente por descodificar as mensagens cifradas do exército e da marinha alemães, como esquimós num iglu.
Ao fim de duas horas, Saunders parou de raspar e de assobiar. A única coisa que se ouvia era o som da neve a derreter, gorgolejando nas goteiras da velha casa. O trabalho dessa tarde tinha sido pouco estimulante: as mensagens tinham sido transmitidas numa variante de um código que o próprio Saunders tinha decifrado em 1940.
- Meu Deus, eles estão a tornar-se um pouco aborrecidos, não estão? - comentou Saunders para ninguém em particular.
O seu superior era um escocês chamado Richardson. Saunders bateu à porta, entrou e pousou as duas mensagens descodificadas em cima da secretária. Richardson leu-as
e franziu o sobrolho. Ainda na véspera, um agente do MI5 chamado Alfred Vicary os tinha posto de sobreaviso para esse tipo de coisas.
Richardson mandou chamar um estafeta motorizado.
- Só há um problema - disse Saunders.
- Qual é?
- Na primeira mensagem, o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Na realidade, até pediu a quem estava a digitar a mensagem que a enviasse uma
segunda vez. Eles irritam-se com esse tipo de coisas. Pode não ser nada. Pode ter havido uma interferência qualquer. Mas talvez seja boa ideia contar isto à rapaziada do MI5.
Richardson pensou: Boa ideia, de facto.
Assim que Saunders saiu, Richardson datilografou uma breve nota descrevendo como o agente pareceu ter algumas dificuldades com o código Morse. Cinco minutos mais
tarde, as mensagens descodificadas e a nota de Richardson já estavam numa pasta de couro, prontas para a viagem de sessenta e sete quilómetros até Londres.

 

 

 


CONTINUA