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25

BAIRRO ALTO, LISBOA

ELES NÃO A VIRAM de novo até as oito e meia da manhã seguinte, quando ela apareceu na sacada usando apenas um roupão — o roupão de banho de Quinn, pensou Gabriel, porque era grande demais para ela. Ela estava pensativa enquanto fumava um cigarro e inspencionava a rua sob a luz dura da manhã. Seus olhos estavam descobertos, e como Gabriel suspeitou, eram azuis. Azuis como o céu. Azul estilo Vermeer. Ele tirou várias fotografias e enviou para o Boulevard Rei Saul. Ficou olhando a mulher sair da varanda e desaparecer atrás das portas francesas.

Por outros vinte minutos as luzes iluminaram sua janela. Então a luz se apagou e um momento depois ela apareceu na entrada do prédio. A bolsa, pendurada no ombro direito e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Era um casaco de estilo escolar, não o casaco de couro que tinha usado na noite anterior. Seu passo era rápido; as botas faziam barulho contra os paralelepípedos. O som aumentou quando ela passou por baixo da janela do posto de observação e depois diminuiu quando cruzou o restaurante fechado, e desapareceu.

O Citroën que Gabriel tinha recebido em Paris estava estacionado na esquina do posto de observação, em uma rua ampla o suficiente para acomodar carros. Keller foi pegá-lo enquanto Gabriel seguiu a mulher a pé por outra ladeira de paralelepípedos cheia de lojas e cafés. No final da rua havia um amplo boulevard que descia a colina como um afluente do Tejo. A mulher entrou em um café, fez um pedido e se sentou no balcão perto da janela. Gabriel entrou no café pelo lado oposto do boulevard e fez o mesmo. Keller esperou dentro do carro na calçada até um policial mandar que saísse.

Por 15 minutos suas posições continuaram iguais: a mulher no café dela, Gabriel no dele, Keller atrás do volante do Citroën. A mulher olhava para o celular enquanto bebia o café e parecia ter feito pelo menos uma ligação. Então, às nove e meia, ela enfiou o celular na bolsa e saiu de novo para a rua. Caminhou para o sul em direção ao rio por vários metros antes de parar abruptamente e fazer sinal a um táxi que ia na direção contrária. Gabriel rapidamente deixou o café e sentou no banco do passageiro do Citroën. Keller fez uma curva fechada e acelerou.

Trinta segundos se passaram antes que conseguissem restabelecer contato com o táxi. Ele seguia para o norte através do trânsito da manhã, desviando dos caminhões, dos ônibus, dos brilhantes sedans alemães dos novos ricos e os velhos carros dos menos afortunados de Lisboa. Gabriel tinha trabalhado de vez em quando em Lisboa e seu conhecimento da geografia da cidade era rudimentar. Mesmo assim, ele fazia uma ideia de onde ia o táxi. A rota que estava seguindo apontava para o aeroporto de Lisboa como a agulha de uma bússola.

Eles entraram na parte moderna da cidade e seguiram um rio de trânsito até um grande círculo na ponta de um parque verde. Dali, viraram ao norte até outro círculo, que os levou à Avenida da República. Perto do fim da avenida começaram a ver os primeiros sinais do aeroporto. O táxi seguiu as placas e, finalmente, parou em frente à área de embarque do Terminal 1. A mulher desceu e caminhou rapidamente até a entrada, como se estivesse atrasada para o voo. Gabriel mandou Keller colocar o Citroën rapidamente no estacionamento com a arma no porta-malas e as chaves no carregador magnético em cima da roda traseira esquerda. Então, desceu e seguiu a mulher até o terminal.

Ela parou brevemente depois da porta e viu para onde tinha de ir. Olhou o enorme quadro de embarque pendurado no alto do moderno hall. Foi direto para o balcão da British Airways e entrou na curta fila da primeira classe. Foi muita sorte; a British Airways voava para um único destino de Lisboa. O voo 501 partia em uma hora. O voo seguinte seria apenas às sete da noite.

Gabriel tirou o BlackBerry do bolso do casaco e enviou uma mensagem para o departamento de viagens no Boulevard Rei Saul pedindo duas passagens de primeira classe no Voo BA 501 — uma passagem para Johannes Klemp e outra para Adrien LeBlanc. Viagens rapidamente confirmou a recepção da mensagem e pediu para Gabriel esperar. Dois minutos depois apareceram os números da reserva. Só havia um assento disponível na primeira classe; o departamento, em sua sabedoria infinita, reservou para Gabriel. Monsieur LeBlanc precisou ir para um dos poucos assentos disponíveis na classe econômica. Era no final do avião, na zona de crianças chorando e banheiros malcheirosos.

Gabriel mandou outra mensagem para o Boulevard Rei Saul, pedindo um carro no Heathrow. Guardou o BlackBerry de novo no bolso e ficou olhando a mulher indo com a passagem na mão em direção à segurança. Keller esperou até ela desaparecer antes de parar ao lado de Gabriel.

— Aonde estamos indo? — ele perguntou.

Gabriel sorriu e disse:

— Para casa.

Eles fizeram o check-in separados: sem bagagem para despachar. Um policial português carimbou seus passaportes falsos; um agente de segurança do aeroporto mandou que passassem pelo raio-X. Tinham de esperar 45 minutos antes do voo, então ficaram andando pelos corredores perfumados do duty free e compraram algumas revistas na banca, assim não entrariam no avião de mãos vazias. A mulher estava no portão quando eles chegaram, os olhos azuis fixos na tela do celular. Gabriel se sentou atrás dela e esperou que o voo fosse chamado. O primeiro anúncio foi em português, o segundo em inglês. A mulher esperou pelo segundo antes de se levantar. Ela colocou o celular na bolsa e foi para a fila da primeira classe. Gabriel fez o mesmo um momento depois. Enquanto entregava seu cartão de embarque para a atendente, olhou para Keller, que parecia sofrer no meio da massa de gente. Keller coçou o nariz com o dedo médio e fez uma careta para a criança toda enrolada em um cobertor que logo seria seu tormento.

Quando Gabriel entrou no avião, a mulher já tinha se sentado e recebido uma taça de champanhe. Estava perto da janela na segunda fileira, do lado esquerdo da fuselagem. A bolsa estava a seus pés, de uma forma desleixada. Tinha uma revista da empresa aérea no colo. Ainda estava fechada.

Não prestou atenção em Gabriel, que se espremeu para passar por um aposentado obeso e cair em seu assento: quarta fileira, corredor, lado direito do avião. Uma aeromoça exageradamente maquiada colocou uma taça de champanhe na mão de Gabriel. Havia um motivo para ser grátis; tinha gosto de aguarrás espumante. Ele colocou a taça cuidadosamente na mesinha e cumprimentou seu vizinho, um empresário britânico com um sotaque de Yorkshire que estava gritando ao celular algo sobre uma encomenda perdida.

Gabriel pegou o BlackBerry e enviou outra mensagem ao Boulevard Rei Saul, dessa vez pedindo a verificação de identidade de uma mulher de talvez trinta anos que estava no momento ocupando o assento 2A do voo 501 da British Airways. A resposta chegou cinco minutos depois, quando Keller passou por Gabriel como um prisioneiro marchando para uma sessão de trabalhos forçados. A passageira em questão era Anna Huber, 32 anos, cidadã alemã, último endereço conhecido, Lessingstrasse, 11, Frankfurt.

Gabriel desligou o celular e estudou a mulher do outro lado do corredor. Quem é você?, ele pensou. E o que está fazendo neste avião?


26

AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

O VOO DUROU DUAS HORAS e quarenta e seis minutos. A mulher chamada Anna Huber passou a viagem sem comer e sem beber nada além do champanhe. Trinta minutos antes de aterrissarem, ela levou a bolsa para o banheiro e trancou a porta. Gabriel pensou na visita de Quinn ao Iêmen, onde trabalhou com a Al-Qaeda em uma bomba capaz de derrubar um avião. Talvez assim seria o fim, ele pensou. Ele iria mergulhar para a morte em um campo verde da Inglaterra, preso em um assento com um empresário de Yorkshire. Então, de repente, a porta do banheiro se abriu e a mulher reapareceu. Ela tinha penteado os cabelos escuros e colocado um pouco de cor no rosto pálido. Os olhos azuis passaram por Gabriel sem traço de reconhecimento ao voltar ao seu assento.

O avião saiu do meio de uma nuvem e desceu na pista com um golpe forte que abriu alguns dos compartimentos de bagagens. Era pouco depois da uma da tarde, mas do lado de fora parecia noite. O empresário logo estava gritando no celular; parecia que a crise em seus negócios não tinha se resolvido sozinha. Gabriel ligou o BlackBerry e descobriu que um Volkswagen Passat prateado estaria esperando no Terminal três. Enviou uma mensagem de confirmação e, quando a luz de apertar o cinto apagou, ele se levantou lentamente e entrou na fila de passageiros esperando para sair. A mulher chamada Anna Huber estava presa contra a janela, encurvada, segurando a bolsa. Quando as portas da cabine se abriram, Gabriel esperou que ela saísse ao corredor. Ela agradeceu com um movimento de cabeça — novamente não havia nenhuma indicação de reconhecimento — e saiu.

Seu passaporte alemão permitia que entrasse no Reino Unido através da fila da União Europeia. Gabriel estava parado bem atrás dela quando o agente de imigração britânico perguntou qual o motivo da visita dela. Gabriel não conseguiu ouvir a resposta, apesar de ter agradado o agente de imigração, que deu um sorriso. Gabriel não recebeu o mesmo sorriso de boas-vindas. O agente carimbou o passaporte com uma violência pouco disfarçada e devolveu sem fazer contato visual.

— Desfrute sua estada — falou.

— Obrigado — respondeu Gabriel e partiu atrás da mulher.

Ele a viu nos corredores que levavam os passageiros até o portão de desembarque. Um agente de baixo nível da Estação Londres do Escritório estava parado, encostado no corrimão, ao lado de duas mulheres com véus pretos. Ele estava segurando um papel onde estava escrito Ashton e tinha uma expressão de profundo tédio. Enfiou o papel no bolso e começou a caminhar ao lado de Gabriel enquanto se enfiava no meio de um encontro choroso de uma família.

— Onde está o carro?

O agente apontou para a porta mais esquerda.

— Volte e mostre seu cartaz. Outro homem vai aparecer em alguns minutos.

O agente voltou. Do lado de fora, uma fileira de táxis e ônibus do aeroporto esperava sob o céu do começo da tarde. A mulher foi caminhando para o estacionamento. Era um cenário que Gabriel não tinha imaginado. Tirou o BlackBerry e ligou para Keller.

— Onde você está?

— Controle de passaporte.

— Tem um homem no salão de desembarque segurando um cartaz escrito Ashton. Diga que o leve até o carro.

Gabriel desligou sem falar mais nada e seguiu a mulher até o estacionamento. O carro dela estava no segundo nível, um BMW azul, registro britânico. Ela tirou a chave da bolsa, destravou com o controle remoto e sentou atrás do volante. Gabriel ligou uma segunda vez para Keller.

— Onde você está agora?

— Atrás do volante de um Passat prateado.

— Encontre-me na saída do estacionamento.

— Mais fácil falar do que fazer.

— Se não estiver lá em dois minutos, vamos perdê-la.

Gabriel desligou e se escondeu atrás de um pilar de concreto quando o BMW passou. Então desceu a rampa correndo e voltou ao nível de desembarque do terminal. O BMW estava saindo; passou por Gabriel e desapareceu de vista. Gabriel começou a ligar para Keller pela terceira vez, mas parou quando viu o farol piscando de um Volkswagen se aproximando rapidamente. Sentou-se no banco de passageiro e acenou para Keller seguir em frente. Eles alcançaram o BMW quando estava entrando na A4, em direção ao oeste de Londres. Keller diminuiu a velocidade e acendeu um cigarro. Gabriel abaixou o vidro e ligou para Graham Seymour.

A ligação chegou durante um breve intervalo entre uma reunião com a equipe e uma visita do chefe da inteligência jordaniana, um homem que Seymour detestava secretamente. Seymour anotou os detalhes principais. Mais tarde, teria preferido não ter feito isso. Uma mulher chamada Anna Huber, passaporte alemão, endereço de Frankfurt, tinha acabado de chegar em Londres via Lisboa, onde tinha passado uma única noite em um apartamento ligado a Eamon Quinn. No aeroporto de Heathrow, pegou um BMW azul, placa britânica AG62 VDR, do estacionamento de curta permanência. O carro agora ia para Londres, seguido pelo futuro chefe da inteligência israelense e um desertor da SAS transformado em assassino profissional.

Seymour tinha atendido a ligação em um aparelho reservado para suas comunicações particulares. Ao lado estava sua linha direta com Amanda Wallace, na Thames House. Ele hesitou por uns segundos; depois, levou o aparelho ao ouvido. Nem precisou digitar nenhum número. A voz de Amanda surgiu instantaneamente na linha.

— Graham — ela falou cordialmente. — O que posso fazer por você?

— Infelizmente, aquela minha operação tocou o solo britânico.

— De que forma?

— Um carro indo para o centro de Londres.

Depois de desligar, Amanda Wallace entrou em seu elevador privado e se dirigiu ao centro de operações. Ela se sentou na cadeira de sempre, no balcão alto, e pegou um telefone que a reconectou com Graham Seymour.

— Onde eles estão? — ela perguntou.

Passaram-se dez segundos tensos antes de Seymour responder. O BMW estava se aproximando do elevado de Hammersmith. Amanda Wallace mandou que um dos técnicos colocasse a imagem da CCTV na tela do centro. Vinte segundos depois ela viu o BMW azul passando rapidamente no borrão do trânsito.

— Em que carro está Allon?

Seymour respondeu quando o Passat cruzou na frente da câmera, três carros atrás do BMW. Amanda mandou que os técnicos do centro de operações seguissem os movimentos dos dois veículos. Ligou para o chefe do A4, o braço operacional e de vigilância encoberta do MI5, e mandou que colocasse os carros sob vigilância física.

Outros membros da equipe estavam agora correndo para o centro de operações, incluindo Miles Kent, o vice-diretor. Amanda pediu que fizesse uma verificação no registro do BMW. Em menos de um minuto, Kent tinha a resposta. Não havia registro do AG62 VDR no banco de dados. As placas eram falsas.

— Descubra se algum BMW azul foi roubado recentemente — gritou Amanda.

Essa busca demorou mais do que a primeira, quase três minutos. Um BMW de modelo igual tinha sido roubado quatro dias antes na cidade litorânea de Margate. Mas era cinza, não azul.

— Eles devem ter pintado — disse Amanda. — Descubra quando foi deixado em Heathrow e consiga o vídeo.

Ela olhava para o centro da tela. O BMW estava passando pela interseção de West Cromwell Road e Earl’s Court Road. O Passat estava três carros atrás. Gabriel Allon, com quem Amanda tinha se encontrado só uma vez, estava bem visível no lado do passageiro, assim como o homem atrás do volante.

— Quem é o motorista do carro? — ela perguntou a Graham Seymour.

— É uma longa história.

— Tenho certeza que sim.

O BMW estava se aproximando do Museu de História Natural. As calçadas ao redor estavam cheias de estudantes. Amanda apertou o telefone tão forte que suas articulações ficaram brancas. Quando ela falou, no entanto, conseguiu parecer calma e segura.

— Não estou preparada para permitir que isso continue muito mais tempo, Graham.

— Vou apoiar qualquer decisão que você tomar.

— Agradeço por isso. — Sua voz continha uma ponta de desdém. Ainda estava olhando o centro da tela. — Mande Allon recuar. Nós assumimos a partir daqui.

Ela ouviu Seymour retransmitir a mensagem. Pegou o aparelho de uma linha conectada ao comissário do Serviço de Polícia Metropolitana. O comissário atendeu instantaneamente.

— Há um BMW azul-escuro a caminho de Cromwell Road. A placa é AG62 VDR. Sabemos que as placas são falsas, o carro quase certamente foi roubado, e a mulher dirigindo está conectada a um terrorista conhecido.

— O que você recomenda?

Amanda Wallace olhou para a tela. O BMW estava na Brompton Road indo para a Hyde Park Corner. Três carros atrás, andando na mesma velocidade, estava o Passat prateado.

Na ponta da Brompton Square, um policial estava sentado em sua motocicleta. Ele não prestou atenção no BMW. Nem virou a cabeça com a aproximação do Passat prateado. Gabriel colocou o BlackBerry no ouvido.

— O que está acontecendo? — perguntou a Graham Seymour.

— Amanda mandou que a Polícia Metropolitana interviesse e prendesse a mulher.

— Onde eles estão?

— Uma equipe está vindo pela Park Lane. Outra está se aproximando da Hyde Park Corner de Piccadilly.

Uma fileira de lojas exclusivas aparecia através da janela molhada pela chuva de Gabriel. Uma galeria de arte, uma loja de móveis, uma imobiliária, um café ao ar livre onde turistas tomavam suas bebidas sob o abrigo de um toldo verde. Ao longe, se ouvia uma sirene. Para Gabriel, parecia uma criança chamando a mãe.

Keller pisou de repente no freio. À frente, um farol vermelho tinha parado o trânsito. Dois carros — um táxi e um veículo particular — separavam Gabriel e Keller do BMW. Na frente deles estava a Brompton Road. Do lado direito da rua estavam as torres escuras da loja de departamentos Harrods. As sirenes iam ficando mais altas, mas a polícia ainda não estava à vista.

O farol mudou para verde, o trânsito começou a andar. Eles passaram pela rua Montpelier e por outra fileira de lojas e cafés. O BMW entrou na faixa reservada a ônibus e parou em frente a uma agência do HSBC. A porta da frente se abriu; a mulher desceu do carro e saiu caminhando calmamente. Em um instante, ela desapareceu no meio de guarda-chuvas que pareciam um conjunto de cogumelos na calçada.

Gabriel olhou para o carro azul estacionado no meio-fio e o conjunto de turistas e pedestres correndo debaixo da chuva; a bela fachada da famosa loja de departamentos do outro lado da rua. Então, finalmente, ele olhou para o BlackBerry, que estava vibrando silenciosamente na sua mão. Era uma mensagem de texto sem identificação do remetente, cinco palavras.

OS TIJOLOS ESTÃO NA PAREDE...


27

BROMPTON ROAD, LONDRES

ELES DESCERAM DO CARRO correndo, agitando os braços como loucos, gritando a mesma palavra sobre o barulho das sirenes que se aproximavam. Por alguns segundos ninguém reagiu. Então, Gabriel tirou a Beretta do porta-luvas do carro e os pedestres recuaram com medo. Esse sentimento provou ser uma ferramenta eficiente. Ele afastou a multidão do BMW, ajudando as pessoas caídas a se levantarem, enquanto Keller desesperadamente tentava evacuar um ônibus de dois andares. Passageiros aterrorizados corriam para as portas. Keller puxava-os para a rua como se fossem bonecos de pano.

Motoristas andando nas duas direções da Brompton Road tinham parado para ver o caos. Gabriel batia os punhos nos vidros dos carros e acenava para os motoristas continuarem, mas era impossível. O trânsito estava irremediavelmente travado. No assento de trás de um Ford branco, um menino de dois anos, cabelos encaracolados, estava preso em sua cadeirinha. Gabriel tentou abrir, mas a porta estava travada e a aterrorizada mãe da criança, aparentemente pensando que ele era um louco, se recusava a abrir.

— Tem uma bomba! — ele gritava pelo vidro. — Saia daqui! — Mas a mulher só olhava para trás, sem compreender e muda, quando a criança começou a chorar.

Keller tinha completado a evacuação do ônibus e estava batendo selvagemente nas portas de vidro do HSBC. Gabriel tirou os olhos da criança e olhou sobre os tetos dos carros parados, na direção da outra calçada. Uma multidão de transeuntes tinha se juntado na porta da Harrods. Gabriel correu para eles, gritando, mostrando sua arma e a multidão se dispersou horrorizada. Com o estampido, uma mulher grávida caiu no chão. Gabriel correu até ela e a ajudou a se levantar.

— Consegue andar?

— Acho que sim.

— Corra! — ele gritou para ela. — Por seu filho.

Ele a acompanhou até um lugar seguro e, em seus pensamentos, começou a calcular quanto tempo tinha passado desde que a mensagem de texto tinha aparecido em seu BlackBerry. Vinte segundos, pensou, trinta, no máximo. Nesse intervalo de tempo, eles tinham conseguido tirar mais de cem pessoas do que logo seria a zona de explosão imediata, mas ainda se juntavam carros na rua, inclusive o Ford branco.

Compradores agora estavam saindo da entrada da Harrods. Com a arma na mão, Gabriel mandava que voltassem ao prédio, gritando para se protegerem dentro do lugar. Voltando para a rua, ele viu que o trânsito não tinha se movido. O Ford branco parecia acenar para ele como uma bandeira de rendição. A mulher ainda estava atrás do volante, paralisada pela indecisão, sem saber o que estava a ponto de acontecer. No banco de trás, a criança gritava, inconsolável.

A Beretta caiu de sua mão e, de repente, ele estava correndo, abrindo o ar com as mãos, como se tentasse usá-las para ir mais rápido. Quando chegou na porta do carro, uma explosão de luz brilhante o cegou, como a luz de mil sóis. Ele foi levantado por um vento abrasador e jogado para trás no meio de uma tempestade de vidro e sangue. A mão de uma criança tentou agarrá-lo; ele a segurou brevemente, mas ela escorregou entre seus dedos. Então, caiu uma escuridão sobre ele, silenciosa e calma, e não havia mais nada.


PARTE DOIS

MORTE DE UM ESPIÃO

 

 

28

LONDRES

MAIS TARDE, A POLÍCIA Metropolitana determinaria que foram 47 — 47 desde que a mulher abandonou o carro na Brompton Road até o momento em que a bomba dentro do porta-malas detonou. Pesava 225 quilos e tinha sido muito bem construída. Não esperavam nada menos vindo de Quinn.

Inicialmente, no entanto, a Polícia Metropolitana não sabia que tinha sido Quinn. Tudo isso foi descoberto mais tarde, depois dos gritos, das ameaças de demissão e represália, e da inevitável sangria. A polícia só sabia o que Amanda Wallace, chefe do MI5, tinha contado, nos minutos antes do desastre. Uma mulher de 32 anos com um passaporte alemão tinha retirado um BMW último modelo roubado do estacionamento de curta permanência no Terminal três do Heathrow e dirigiu sozinha até o centro de Londres. O MI6 tinha sido avisado por um agente sênior de inteligência estrangeira — o agente não tinha sido identificado — que a mulher estava ligada a um conhecido terrorista e fabricante de bombas. Amanda Wallace recomendou ao comissário da Polícia Metropolitana que tomasse todas as medidas apropriadas para impedir o progresso do carro e prendesse a mulher. O comissário tinha respondido enviando unidades da SCO19, a divisão tática da polícia. O primeiro carro de resposta tinha chegado à cena no momento da detonação. Os dois policiais estavam entre os mortos.

Nada sobrou do BMW azul, só uma cratera, vinte metros de largura e dez metros de profundidade, no lugar onde estava estacionado. Uma parte do teto foi depois encontrada flutuando no lago Serpentine, a uma distância de mais de meio quilômetro. Carros e ônibus queimados como brasas na rua; um gêiser esguichava de um cano de água que havia sido rompido, limpando os membros cortados dos mortos e feridos. Curiosamente, os prédios do lado norte da rua, o lado mais perto do carro, sofreram apenas danos estruturais moderados. Foi a Harrods que recebeu o impacto da raiva da bomba. A explosão destruiu a fachada do prédio, expondo seu interior como se fosse uma casa de boneca — cama e banho, móveis e acessórios para o lar, joias finas e perfumes, roupa feminina. Por muito tempo, frequentadores do restaurante Georgian ficaram olhando a rua destruída embaixo deles. A famosa casa de chá era popular entre as mulheres ricas dos emirados cheios petróleo do Golfo. Cobertas com seus véus pretos, elas pareciam corvos empoleirados em um fio.

O número de vítimas foi difícil de calcular. À noite, os mortos chegavam a 52, com mais de quatrocentos feridos, muitos críticos. Vários especialistas na televisão demonstravam alívio — até choque — que o número não tivesse sido maior. Sobreviventes falavam de dois homens que tinham feito uma tentativa desesperada de colocar os transeuntes em segurança segundos antes de a bomba explodir. Seus esforços eram claramente visíveis em um vídeo que chegou à BBC. Um homem, armado, tirava os pedestres da calçada, enquanto o outro arrancava passageiros de um ônibus de Londres. Havia confusão sobre a identidade deles. O carro em que estavam, como o da bomba, tinha sido destruído e nenhum dos homens apareceu, pelo menos não em público. A Polícia Metropolitana negou que os conhecesse; o MI5 e o Serviço de Inteligência preferiram não comentar. O vídeo da CCTV mostrava um dos homens se protegendo segundos antes da explosão da bomba, mas o segundo homem foi visto pela última vez correndo para um Ford Fiesta preso no trânsito da Brompton Road. Os ocupantes do carro, uma mãe e seu filhinho, foram incinerados pela bola de fogo. O homem supostamente estava entre os mortos também, apesar de seu corpo não ter sido encontrado.

O choque inicial e a repugnância rapidamente deram lugar à raiva e uma busca intensa aos criminosas. No alto da lista de possíveis suspeitos estava o Estado Islâmico, o grupo jihadista extremista que tinha aberto caminho entre terror e decapitações a um califado islâmico que ia de Aleppo até perto das portas de Bagdá. O grupo tinha jurado atacar o ocidente, e suas fileiras incluíam várias centenas de residentes do Reino Unido que tinham mantido seus preciosos passaportes britânicos. Claramente, declararam os especialistas na televisão, o EI tinha o motivo e a capacidade para atacar o coração de Londres. Mas um porta-voz do EI negou que o grupo estivesse envolvido, assim como vários outros elementos no conglomerado islâmico global da morte conhecido como Al-Qaeda. Uma remota facção palestina assumiu a responsabilidade, assim como algo chamado Mártires das Duas Mesquitas Sagradas. Nenhuma das duas foi levada a sério.

A pessoa que poderia responder à pergunta da responsabilidade era a mulher que tinha levado a bomba a seu alvo: Anna Huber, 32 anos, cidadã alemã, último endereço conhecido Lessingstrasse, 11, Frankfurt. Mas 48 horas depois do ataque, sua localização continuava sendo um mistério. Tentativas de seguir seus movimentos eletronicamente foram inúteis. A CCTV mostrou-a brevemente caminhando pela Brompton Road até Knightsbridge. Mas depois da detonação, com fumaça, escombros e as multidões em pânico espalhadas pela rua, as câmeras perderam a mulher. Ninguém chamado Anna Huber tinha deixado o país de avião ou trem; ninguém chamado Anna Huber tinha cruzado outra fronteira europeia. Unidades da Bundespolizei alemã invadiram o apartamento dela e encontraram quartos vazios, sem traços da pessoa que poderia ter vivido ali. Os vizinhos a descreveram como quieta e introspectiva. Um falou que ela era voluntária internacional que passava boa parte do tempo na África. Outro disse que fazia algo na indústria de viagens. Ou era jornalismo?

A responsabilidade por proteger o solo britânico de um ataque terrorista era principalmente do MI5 e do Centro de Análise Conjunto de Terrorismo. Como resultado, a raiva pública e política pela bomba de Brompton Road foi dirigida principalmente a Amanda Wallace. A palavra problemas começou a aparecer perto do nome dela nos jornais ou sempre que era mencionada no rádio ou na televisão. Fontes anônimas na Polícia Metropolitana reclamaram que o Serviço de Segurança tinha sido “menos do que comunicativo” com a inteligência relacionada com o ataque. Um investigador sênior comparou o fluxo de informação da Thames House com a Scotland Yard ao avanço de uma geleira. Mais tarde, ele esclareceu sua declaração, dizendo que a cooperação entre as duas organizações era “inexistente”.

Em seguida, apareceram na imprensa histórias pouco lisonjeiras do estilo de chefia de Amanda. Diziam que os subalternos tinham medo dela; que vários agentes seniores estavam procurando pastos mais verdes em outros lugares em um momento em que a Grã-Bretanha não podia perder agentes com experiência. Disseram que Amanda tinha um relacionamento difícil com Graham Seymour, seu colega no MI6. Havia boatos de que os dois quase não se falavam, que durante uma reunião de crise no Número Dez eles tinham se recusado até a se cumprimentar. Um conhecido ex-espião disse que as relações entre os dois serviços de inteligência britânicos estavam no pior ponto dos últimos anos. Um respeitado jornalista que cobria questões de segurança para o The Guardian escreveu que “a inteligência britânica estava no meio de uma crise de magnitude dez”, e nesse momento o jornalista estava correto.

Nesse ponto começou uma vigília em frente à Thames House, com Amanda Wallace como alvo. Não durou muito — dois dias, três, no máximo. Então Amanda acabou com aquilo. A arma escolhida foi o mesmo estimado correspondente do The Guardian, um homem que ela conhecia há anos. A história dele começou não com a bomba em Brompton Road, mas com a morte da princesa, e foi piorando a partir daí. O nome de Quinn apareceu de forma proeminente. Assim, também, o de Graham Seymour. Foi, disse um comentarista político, o melhor exemplo de assassinato por vazamento da imprensa que ele já tinha visto.

No meio da manhã tinha começado uma nova vigília. Dessa vez, o alvo era o chefe o Serviço Secreto de Sua Majestade. Ele não fez nenhuma declaração e manteve sua agenda como sempre até onze e meia, quando seu Jaguar oficial, com os vidros escuros, foi visto entrando nos portões da Downing Street. Ele ficou dentro do Número Dez por menos de uma hora. Mais tarde, Simon Hewitt, o diretor de comunicação do primeiro-ministro, se recusou a confirmar que o chefe de espionagem tinha estado ali. Pouco depois das duas horas, seu Jaguar foi visto entrando na garagem subterrânea de Vauxhall Cross, mas Graham Seymour não estava lá. Ele estava sentado no banco traseiro de uma van sem nenhuma marca, e nesse momento a van estava longe de Londres.


29

DARTMOOR, DEVON

A ESTRADA NÃO TINHA NOME e não aparecia em nenhum mapa. Vista do espaço, parecia um risco no pântano, talvez remanescente de um riacho que tinha corrido pela terra nos dias em que os homens erigiam círculos de pedra. Na entrada havia um sinal, apagado e enferrujado, avisando que a estrada era particular. No final, havia um portão que sussurrava uma silenciosa autoridade.

A terra depois do portão era vazia e escura, nada convidativa. O homem que tinha construído a casa havia ganhado dinheiro com transporte. Deixou o lugar para seu único filho e este, que não teve herdeiros, tinha doado ao Serviço Secreto, onde havia trabalhado quase meio século. Ele havia trabalhado em vários cantos do império, sob diversos nomes, mas era mais conhecido como Wormwood. O serviço tinha dado o nome dele à propriedade, como uma homenagem. Aqueles que ficavam ali achavam o nome apropriado.

Estava em uma parte alta da terra e era feita de pedra de Devon que tinha escurecido com o tempo e a negligência. Atrás dela, cruzando um pátio, havia um celeiro convertido em escritórios e quartos para a equipe. Quando Wormwood Cottage estava vazio, um único zelador chamado Parish vigiava o lugar. Mas quando havia um convidado presente — eram sempre chamados de “acompanhantes” — a equipe podia chegar a dez. Dependia muito da natureza do convidado e de quem ele estava se escondendo. Um “amigo” com poucos inimigos poderia andar livre pelo lugar. Um desertor do Irã ou da Rússia seria tratado quase como prisioneiro.

Os dois homens que chegaram na noite da bomba de Brompton Road ficavam no meio. Eles tinham aparecido com pouco aviso, acompanhados por um assistente dos chefes que usava o nome de Davies e um médico que tratava as feridas. O médico tinha passado o resto da noite cuidando do mais velho dos dois. O mais jovem tinha acompanhado todos os movimentos do médico.

Era inglês, o mais jovem, um expatriado, um homem que tinha vivido em outra terra, falado outra língua. O mais velho era a lenda. Dois membros da equipe tinham cuidado dele uma vez antes, depois de um incidente no Hyde Park envolvendo a filha do embaixador norte-americano. Era um cavalheiro, natureza de artista, um pouco quieto, um toque temperamental, mas muitos eram assim. Eles cuidaram dele, trataram suas feridas e o curaram. E não falaram nunca seu nome, pois até onde eles sabiam, ele não existia. Era um homem sem passado ou futuro. Era uma página em branco. Estava morto.

Nas primeiras 48 horas de sua estada, estava mais quieto que o normal. Falava só com seu médico e com o inglês. Com a equipe ele não falou nada, só um fraco “obrigado” sempre que traziam refeição ou roupas limpas. Ele ficava em seu pequeno quarto de frente para o pântano vazio, apenas com a televisão e os jornais de Londres como companhia. Ele só fez um pedido; queria seu BlackBerry. Parish, o cuidador permanente, explicou pacientemente que os acompanhantes, até os de seu nível, não tinha a permissão de usar aparelhos de comunicação particulares em Wormwood Cottage e nos arredores.

— Preciso saber os nomes deles — disse o homem ferido na terceira manhã de sua estada, quando Parish trouxe pessoalmente o chá com torradas.

— Nome de quem, senhor?

— Da mulher e da criança. A polícia não divulgou o nome deles.

— Infelizmente, não sei nada sobre isso, senhor. Sou apenas o zelador do lugar.

— Consiga os nomes — ele falou de novo, e Parish, querendo sair do quarto, prometeu fazer o máximo.

— E meu BlackBerry?

— Desculpe — disse Parish. — Regras da casa.

No quarto dia ele estava forte o suficiente para sair do quarto. Estava sentado no jardim ao meio-dia quando o inglês saiu para caminhar ao redor do pântano e estava ali no pôr do sol quando o inglês voltou, arrastando um par de guarda-costas cansados atrás de si. O inglês caminhava toda tarde independentemente do clima — até no quinto dia, quando um vendaval caía pelo pântano. Naquele dia, ele insistiu em carregar uma mochila com algumas pedras que a equipe encontrasse. Os dois guarda-costas estavam meio mortos quando voltaram para a casa. Aquela noite, nos quartos do celeiro reformado, eles falaram com silenciosa reverência de um homem com força e resistência sobre-humana. Um dos guarda-costas era um agente da SAS e acho que tinha reconhecido a marca do Regimento. Estava na forma como caminhava e como seus olhos estudavam o contorno da terra. Às vezes parecia que ele a olhava pela primeira vez. Outras vezes parecia que estava se perguntando como pôde deixá-la. Os guarda-costas tinham cuidado de todo tipo de pessoas na casa — desertores, espiões, agentes infiltrados que foram descobertos, fraudadores buscando ganhar dinheiro dos contribuintes — mas esse era diferente. Ele era especial. Era perigoso. Tinha um passado sombrio. E, talvez, um futuro brilhante.

No sexto dia — o dia do artigo do The Guardian, o dia que mais tarde seria lembrado como o dia em que a inteligência britânica se dividiu —, o mais jovem dos dois homens saiu para o penhasco, uma caminhada de 16 quilômetros, 32 se o maldito insistisse em ir e voltar. Depois de oito quilômetros andando, enquanto cruzava uma colina tomada pelo vento, ele parou de repente, como se fosse alertado pela presença do perigo. Sua cabeça se levantou e virou para a esquerda com a rapidez de um animal. Então ele ficou parado, os olhos fixos no alvo.

Era uma van sem marca entrando pela estrada de Postbridge. Ele ficou olhando como ela entrava na estrada sem nome. Viu quando passava pela cerca viva como uma bola de ferro em um labirinto. Abaixou a cabeça e voltou a caminhar. Caminhava com uma mochila pesada nas costas e a um ritmo que os guarda-costas achavam difícil acompanhar. Ele caminhava como se estivesse fugindo de algo. Caminhava como se estivesse voltando para casa.

O portão foi aberto quando a van chegava ao final da estrada. Só Parish estava ali para recebê-lo. Uma visão horrível, ele pensou, a do chefe do Serviço Secreto de Sua Majestade se arrastando do fundo de uma van comum — se arrastando, ele contou aos outros aquela noite, como um jihadista qualquer que tinha sido arrancado do campo de batalha e sujeitado a sabe Deus o quê. Parish apertou respeitosamente a mão do chefe enquanto o vento brincava com o cabelo grisalho dele.

— Onde está ele? — perguntou.

— Qual deles, senhor?

— Nosso amigo de Israel.

— No quarto dele, senhor.

— E o outro?

— Por aí — disse Parish apontando para o pântano.

— Quando ele volta?

— Difícil dizer, senhor. Às vezes não tenho certeza se ele vai voltar. Ele parece o tipo de cara que poderia caminhar muito se quisesse.

O chefe deu um leve sorriso.

— Devo mandar a equipe de segurança trazê-lo de volta, senhor?

— Não — falou Graham Seymour quando entrou na casa. — Eu cuido disso.


30

WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR

AS PAREDES DE WORMWOOD Cottage continham um sistema sofisticado de vigilância de áudio e vídeo capaz de gravar cada palavra e ação de seus convidados. Graham Seymour mandou que Parish desligasse o sistema e retirasse toda a equipe, exceto a senhorita Coventry, a cozinheira, que serviu um bule de chá Earl Grey e bolinhos recém-feitos com creme de Devonshire. Eles se sentaram à pequena mesa na cozinha, que ficava em uma alcova confortável, com janelas ao redor. Espalhado em uma cadeira como um hóspede não convidado havia um exemplar do The Guardian. Seymour olhou para o jornal com uma expressão tão vazia quanto o pântano.

— Vejo que esteve se mantendo informado.

— Não tinha muito mais para fazer.

— Foi para o seu bem.

— O seu também.

Seymour bebeu o chá, mas não disse nada.

— Vai conseguir sobreviver?

— Acho que sim. Afinal, o primeiro-ministro e eu somos próximos.

— Ele deve a você a vida política dele, sem mencionar o casamento.

— Na verdade, foi você que salvou a carreira do Jonathan. Eu só fui o facilitador secreto. — Seymour pegou o jornal e franziu a testa ao ler a manchete.

— É bastante precisa — disse Gabriel.

— Deveria ser. Tinha uma boa fonte.

— Você parece estar aceitando isso bastante bem.

— Que escolha eu tenho? Além disso, não foi pessoal. Foi autodefesa. Amanda não ia aceitar cair.

— O resultado ainda é igual.

— É — disse Seymour, sombrio. — A inteligência britânica está uma bagunça. E até onde sabe o público, sou o culpado.

— Engraçado como tudo chegou a esse ponto.

Um silêncio caiu entre eles.

— Tem mais alguma surpresa? — perguntou Seymour.

— Um corpo no condado de Mayo.

— Liam Walsh?

Gabriel assentiu.

— Acho que ele mereceu.

— Mereceu.

Seymour, pensativo, pegou um bolinho.

— Desculpe metê-lo em tudo isso. Eu deveria ter deixado você em Roma para terminar seu Caravaggio.

— E eu deveria ter dito que uma mulher que tinha acabado de passar a noite no apartamento secreto de Eamon Quinn em Lisboa tinha embarcado em um avião para Londres.

— Teria feito alguma diferença?

— Poderia.

— Não somos policiais, Gabriel.

— O que quer dizer?

— Meus instintos teriam sido os mesmos que os seus. Não a teria detido em Heathrow. Teria deixado que ela saísse e esperado que me levasse ao prêmio maior.

Seymour colocou o jornal de novo na cadeira vazia.

— Devo admitir — ele falou depois de um momento — que você não parece tão mal para um homem que esteve cara a cara com uma bomba de duzentos quilos. Talvez seja realmente um arcanjo, afinal.

— Se eu fosse um arcanjo teria encontrado uma forma de salvá-los.

— Você salvou muitos, no entanto; pelo menos uma centena de pessoas, segundo nossa estimativa. E teria terminado sem um arranhão se tivesse o bom senso de se esconder dentro da Harrods.

Gabriel não falou nada.

— Por que você fez aquilo? — perguntou Seymour. — Por que voltou correndo para a rua?

— Eu vi os dois.

— Quem?

— A mulher e a criança que estavam no carro. Tentei avisá-la, mas ela não entendeu. Ela não...

— Não foi culpa sua — disse Seymour, cortando.

— Sabe os nomes deles?

Seymour olhou pela janela. O sol caindo parecia queimar o pântano.

— A mulher era Charlotte Harris. Ela era de Shepherd’s Bush.

— E o menino?

— Chamava-se Peter, em homenagem ao avô.

— Quantos anos ele tinha?

— Dois anos e quatro meses. — Seymour parou e olhou bem para Gabriel. — Mais ou menos a mesma idade que seu filho, não é?

— Não é importante.

— Claro que é.

— Dani era alguns meses mais velho.

— E estava na cadeirinha quando a bomba explodiu.

— Já terminou, Graham?

— Não — Seymour permitiu que um silêncio tomasse conta da cozinha. — Você vai ser pai de novo. Chefe, também. E pais e chefes não enfrentam cara a cara uma bomba de duzentos quilos.

Do lado de fora, o sol se equilibrava no alto de uma colina distante. O fogo estava drenando o pântano.

— O que eles sabem sobre meu serviço? — perguntou Gabriel.

— Eles sabem que você esteve perto da bomba quando ela explodiu.

— Como?

— Sua esposa reconheceu você no vídeo da CCTV. Como dá para imaginar, ela está bastante ansiosa para que você volte para casa. O Uzi também. Ele ameaçou voar a Londres e levá-lo de volta pessoalmente.

— Por que não veio?

— Shamron o convenceu a ficar lá. Ele achou que é melhor deixar a poeira baixar.

— Um movimento inteligente.

— Você teria esperado outra coisa?

— Não do Shamron.

Ari Shamron tinha sido duas vezes diretor-geral do Escritório, chefe dos chefes, o eterno. Tinha formado o Escritório à sua semelhança, escrito sua linguagem, criado seus mandamentos, transmitido sua alma. Mesmo agora, já idoso e com problemas de saúde, ele cuidava de sua criação. Foi por causa de Shamron que Gabriel logo sucederia seu amigo como chefe do Escritório. E era por causa de Shamron, também, que ele tinha se jogado como um louco em direção a um Ford branco com uma criança sentada em uma cadeirinha no banco traseiro.

— Onde está meu celular? — ele perguntou.

— Em nosso laboratório.

— Seus técnicos estão se divertindo hackeando nosso software?

— O nosso é melhor.

— Então, acho que conseguiram descobrir onde Quinn estava quando enviou aquele texto.

— O GCHQ acha que veio de um celular em Londres. A pergunta é — ele continuou —, como ele conseguiu seu número particular?

— Suponho que tenha conseguido com as mesmas pessoas que o contrataram para me matar.

— Suspeitos?

— Só um.


31

WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR

HAVIA JAQUETAS BARBOUR PENDURADAS no armário da entrada e botas Wellington alinhadas contra a parede do vestíbulo. A senhorita Coventry passou por cima delas para acender a lanterna — a noite caía de repente sobre o pântano, ela explicou, e mesmo caminhantes experientes às vezes ficavam desorientados com a paisagem sem muitos pontos de orientação. A lanterna era estilo militar e tinha uma viga como holofote. Se eles se perdessem, brincou Gabriel enquanto se vestia, poderiam usar aquilo para fazer sinais a um avião passando.

Quando saíram da casa, o sol era só uma lembrança. Faixas de luz laranja iluminavam o horizonte, mas uma lua fina flutuava no alto e uma boa quantidade de estrelas brilhava fria e dura no leste. Gabriel, fraco, o corpo dolorido com as mil feridas, movia-se hesitante pelo caminho, a lanterna apagada em sua mão. Seymour, mais alto, no momento em melhor forma, caminhava a seu lado, bastante concentrado enquanto ouvia Gabriel explicar o que tinha acontecido e, mais importante, por que aquilo tinha acontecido. A trama tinha sua gênese, ele falou, em uma casa em uma floresta, à beira de um lago congelado. Gabriel tinha cometido um ato imperdoável ali contra um homem como ele — um homem protegido por um serviço vingativo — e por isso tinha sido sentenciado à morte. Mas não apenas Gabriel; outro teria de morrer com ele. E um terceiro homem que tinha sido cúmplice na questão seria punido também. O homem seria desonrado, seu serviço enfraquecido pelo escândalo.

— Eu? — perguntou Seymour.

— Você — falou Gabriel.

Os homens por trás da trama, ele continuou, não tinham agido com pressa. Tinham planejado com grande cuidado, com o chefe político deles pensando em todos os detalhes no caminho. Quinn era a arma deles. Quinn era a isca perfeita. Os homens por trás da trama não tinham nenhuma ligação estabelecida com o fabricante de bombas, mas claramente seus caminhos tinham se cruzado. Eles levaram o terrorista até seu quartel-general, o tratado como um herói conquistador, deram-lhe brinquedos e dinheiro. E, então, tinham soltado Quinn pelo mundo para cometer um assassinato — um assassinato que iria chocar um país e colocar o resto da trama em movimento.

— A princesa?

Gabriel assentiu.

— Você não pode provar uma palavra disso.

— Não — falou Gabriel. — Ainda não.

Por vários dias depois do assassinato dela, ele continuou, a inteligência britânica não soube do envolvimento de Quinn. Então, Uzi Navot veio a Londres com uma prova de uma importante fonte iraniana. Seymour viajou a Roma; Gabriel, para Córsega. Com Keller como guia, ele fez um passeio pelo passado assassino de Quinn. Eles encontraram uma família secreta em Belfast ocidental e um pequeno apartamento nas colinas de Lisboa, onde uma mulher chamada Anna Huber passou uma única noite, vigiada por três homens. Dois deles entraram em um avião com ela, e começou o próximo ato da trama. Um BMW azul, roubado, repintado, com placa falsa, foi deixado no aeroporto de Heathrow. A mulher pegou o carro e o levou até a Brompton Road. Ela estacionou em frente a um símbolo de Londres, armou a bomba e desapareceu no meio da multidão enquanto os dois homens tentavam desesperadamente salvar o máximo de vidas possível. Eles sabiam que a bomba estava a ponto de explodir porque Quinn tinha dito. Com uma mensagem de texto misteriosa, Quinn tinha mostrado sua cara. E durante todo o tempo, os homens que o contrataram estavam olhando. Talvez, acrescentou Gabriel, ainda estivessem.

— Você acha que meu serviço está comprometido? — perguntou Seymour.

— Seu serviço está comprometido há muito tempo.

Seymour parou e olhou por cima do ombro para as luzes fracas de Wormwood Cottage.

— É seguro para você aqui?

— Diga-me você.

— Parish conhecia meu pai. Ele é totalmente leal. Mesmo assim — acrescentou —, provavelmente deveríamos levar você para outro lugar, só por segurança.

— Infelizmente, é muito tarde para isso, Graham.

— Por quê?

— Porque eu já estou morto.

Seymour olhou para Gabriel por um momento, espantado. E, então, entendeu.

— Quero que você contate Uzi pela conexão normal — disse Gabriel. — Diga que não aguentei as feridas. Expresse suas mais profundas condolências. Peça para ele mandar Shamron retirar o corpo. Não posso fazer isso sem o Shamron.

— Fazer o quê?

— Vou matar Eamon Quinn — disse Gabriel, frio. — E depois vou matar o homem que pagou pela bala.

— Deixe Quinn comigo.

— Não — falou Gabriel. — Quinn é meu.

— Você não está em condições de caçar ninguém, muito menos um dos terroristas mais perigosos do mundo.

— Então, acho que vou precisar de alguém para carregar minhas malas. Ele deveria provavelmente ser alguém do MI6 — Gabriel acrescentou rapidamente. — Alguém que cuide dos interesses britânicos.

— Tem alguém em mente?

— Tenho — respondeu Gabriel. — Mas tem um problema.

— Qual?

— Ele não é do MI6.

— Não — falou Seymour. — Ainda não.

Seymour seguiu o olhar de Gabriel para a paisagem escura. No começo não havia nada. Depois três figuras começaram a crescer lentamente na escuridão. Duas pareciam estar lutando contra a fadiga, mas a terceira estava caminhando como se ainda faltassem muitas milhas. Ele parou rapidamente e, olhando para cima, deu um único aceno com o braço duro. Então, de repente, ele estava parado na frente deles. Sorrindo, esticou a mão para Seymour.

— Graham — falou, amigável. — Faz muito tempo. Vai ficar para o jantar? Ouvi dizer que a senhorita Coventry está fazendo sua famosa torta.

Ele se virou e caminhou de volta para a escuridão. E, um instante depois, tinha desaparecido.


32

WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR

GRAHAM SEYMOUR REALMENTE FICOU para jantar no Wormwood Cottage aquela noite, e por várias outras também. A senhorita Coventry serviu a torta para eles com um vinho decente na mesa da cozinha e deixou-os se esquentando com o fogo da sala e do passado. Gabriel foi, na maior parte, um espectador dos acontecimentos, uma testemunha, tomando notas. Keller foi quem mais falou. Contou sobre seu trabalho secreto em Belfast, da morte de Elizabeth Conlin e de Quinn. E falou, também, da noite em janeiro de 1991, quando seu esquadrão Sabre foi atacado pela coalizão no oeste do Iraque, e de sua longa caminhada até os braços abertos de Dom Anton Orsati. Seymour ouviu bastante sem interromper e sem julgar, mesmo quando Keller descreveu alguns dos muitos assassinatos que ele realizou pelo Dom. Seymour não estava interessado em fazer nenhum julgamento. Estava só interessado em Keller.

Ele abriu uma garrafa do melhor uísque de Wormwood Cottage, acrescentou lenha à pilha de brasas na lareira, e propôs um acordo que resultaria na repatriação de Keller. Ele teria um emprego no MI6. Com isso, teria um novo nome e identidade. Christopher Keller continuaria morto para todo mundo, menos para sua família imediata e para o serviço. Ele lidaria com casos que estivessem mais próximos de suas habilidades. Sob nenhuma circunstância teria de cuidar da burocracia em uma mesa em Vauxhall Cross. MI6 tinha muitos analistas para fazer isso.

— E se eu encontrar um velho companheiro na rua?

— Diga ao velho companheiro que ele se equivocou e continue andando.

— Onde vou morar?

— Onde você quiser, desde que seja em Londres.

— E minha casa na Córsega?

— Depois vemos isso.

De sua posição perto do fogo, Gabriel deu um breve sorriso. Keller voltou com as perguntas.

— Para quem vou trabalhar?

— Para mim.

— Fazendo o quê?

— O que eu precisar.

— E quando você sair?

— Não vou a nenhum lugar.

— Não foi o que li nos jornais.

— Uma das coisas que você logo vai aprender trabalhando no MI6 é que os jornais quase sempre estão errados. — Seymour levantou o copo e examinou a cor do uísque à luz do fogo.

— O que vamos falar ao Pessoal? — perguntou Keller.

— O mínimo possível.

— Não teria como sobreviver a um exame tradicional.

— Acho que não.

— E meu dinheiro?

— Quanto é?

Keller respondeu com a verdade. Seymour levantou uma sobrancelha.

— Teremos de pensar em algo com os advogados.

— Não gosto de advogados.

— Bom, você não pode mantê-lo em contas bancárias secretas.

— Por que não?

— Porque, por razões óbvias, agentes do MI6 não podem ter contas assim.

— Não serei um agente do MI6 normal.

— Você ainda terá de seguir as regras.

— Nunca segui antes.

— É — disse Seymour. — E é por isso que você está aqui.

E assim continuou, bem depois da meia-noite, até que finalmente chegaram a um acordo e Seymour subiu com dificuldades ao fundo de sua van pouco digna. Ele deixou um notebook incapaz de fazer contato com o mundo exterior, e um dispositivo USB protegido com senha contendo dois vídeos. O primeiro era uma montagem editada das imagens da CCTV mostrando a entrega do BMW azul no aeroporto de Heathrow. O carro tinha aparecido na CCTV pela primeira vez perto de Bristol, várias horas antes da bomba. O motorista foi direto para Londres pela M4. Estava usando chapéu e óculos escuros, deixando seus traços invisíveis para as câmeras. Parou uma vez para encher o tanque, pagou em dinheiro e não disse nada para o atendente durante a operação. Nem falou com ninguém no estacionamento no Terminal três do Heathrow, onde deixou o BMW às onze e meia, meia hora depois que o voo 501 da British Airways saiu de Lisboa. Depois de tirar uma mala do banco traseiro, ele entrou no terminal e subiu no trem expresso do Heathrow para a estação Paddington, de Londres, onde havia uma motocicleta esperando. Uma hora depois a moto saiu da cobertura da CCTV em uma estrada de terra ao sul de Luton. A motocicleta não foi encontrada. O ponto de origem do carro no dia da bomba nunca foi determinado.

O segundo vídeo era dedicado inteiramente à mulher. Começou com sua passagem pelo aeroporto de Heathrow e terminou com sua desaparição na fumaça e no caos que tinha causado na Brompton Road. Gabriel adicionou vários minutos de filmagem de sua memória. Havia uma mulher sentada sozinha no restaurante ao lado da rua, uma mulher abruptamente tomando um táxi em um boulevard com muito trânsito, uma mulher em um avião olhando diretamente para o rosto dele sem um traço de reconhecimento. Ela era boa, ele pensou, uma oponente importante. Sabia que homens perigosos a seguiam, e mesmo assim, nunca tinha mostrado medo nem apreensão. Era possível que fosse alguém que Quinn tivesse conhecido durante suas viagens pelas regiões inferiores do terrorismo global, mas Gabriel duvidava. Ela era uma profissional, uma profissional da elite. Era de um calibre mais alto, de classe superior.

Gabriel assistiu ao vídeo novamente, do começo, viu o BMW entrar na faixa só para ônibus em frente ao banco HSBC, viu a mulher descer e se afastar calmamente. Então viu dois homens pularem do Passat prateado — um armado com um revólver, outro só com força bruta — e começarem a afastar as pessoas para um lugar seguro. Quarenta e cinco segundos depois, a rua ficou mortalmente quieta e silenciosa. Um homem podia ser visto correndo loucamente em direção a um Ford branco preso no trânsito. A bomba apagou a filmagem. Deveria ter apagado o homem, também. Talvez Graham Seymour estivesse certo. Talvez Gabriel fosse um arcanjo, afinal.

Era quase de manhã quando ele desligou o computador. Como instruído, devolveu a Parish, o zelador, no café da manhã, junto com um bilhete escrito a mão para ser entregue pessoalmente a Graham Seymour, em Vauxhall Cross. Nele, Gabriel pedia permissão para realizar duas reuniões — uma com a jornalista política mais conhecida de Londres, a outra com a desertora mais famosa do mundo. Seymour concordou com os dois pedidos e mandou uma van de serviço para Wormwood Cottage. No final daquela tarde, ela estava cruzando as colinas da península Lizard, no oeste da Cornualha. Keller, parecia, não estava sozinho. O falecido Gabriel Allon estava indo para casa também.


33

ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA

ELE TINHA VISTO PELA primeira vez do deque de um barco a vela a uns dois quilômetros no mar, a pequena casa na ponta mais ao sul da Enseada de Gunwalloe, no alto das colinas como o quadro La cabane des Douaniers a Pourville, de Monet. Embaixo havia uma pequena praia de areia onde um velho barco naufragado dormia debaixo da arrebentação traidora. Atrás dela, além das armérias roxas e da festuca vermelha do alto das colinas, havia um campo verde em declive cruzado por cercas vivas. Nesse momento, Gabriel não viu nada disso, pois estava encolhido como um refugiado no fundo de uma van. Ele sabia que estavam perto, no entanto; a estrada mostrava isso. Ele conhecia cada curva e cada reta, cada declive e cada buraco, o latido de cada cachorro, o doce aroma bovino de cada pasto. E, assim, quando a van fez a curva fechada à direita no pub Lamb and Flag, e começou a descida final em direção à praia, ele se levantou um pouco, ansioso. A van diminuiu, provavelmente para evitar um pescador subindo da enseada, e então fez outra curva fechada, à esquerda, na entrada da casa. De repente, a porta traseira da van estava se abrindo e um segurança do MI6 o saudou em sua casa, como se ele fosse um estranho pisando na Cornualha pela primeira vez.

— Sr. Carlyle — ele gritou por cima do vento. — Bem-vindo a Gunwalloe. Espero que tenha feito uma boa viagem. O trânsito pode ser muito pesado nessa hora do dia.

O ar estava frio e salgado, a luz do final da tarde era laranja brilhante, o mar estava em chamas e manchado com espuma. Gabriel ficou por um momento na entrada, sentindo-se tomado pela saudade, até o segurança o empurrar de forma polida para a entrada — porque o segurança tinha ordens estritas de não permitir que ele ficasse visível a um mundo que logo acreditaria que ele estava morto. Olhando para cima, imaginou Chiara brava na porta, parada, seu cabelo despenteado caindo sobre os ombros, os braços cruzados sobre a barriga antes de estar grávida. Mas quando subiu os três degraus da entrada, ela desapareceu. Automaticamente, ele pendurou o casaco impermeável no cabideiro do hall de entrada e passou a mão pelo velho chapéu de camurça que ele usava durante suas estadas nas colinas. Então, virando-se, viu Chiara pela segunda vez. Ela estava tirando uma pesada panela de barro do forno, e quando a levantou, o cheiro de vitela, vinho e sálvia encheu a casa. Fotografias de um Rembrandt perdido estavam espalhadas pela pia da cozinha onde ela trabalhava. Gabriel tinha acabado de concordar em encontrar o quadro para um comerciante de arte chamado Julian Isherwood, sem saber que sua busca levaria diretamente ao coração do programa nuclear iraniano. Ele tinha conseguido localizar e destruir quatro instalações secretas de enriquecimento de urânio, uma realização impressionante que diminuiu significativamente o avanço do Irã em direção a uma arma nuclear. Os iranianos claramente não viram a realização de Gabriel da mesma maneira. Na verdade, eles o queriam morto tanto quanto os homens que tinham contratado Eamon Quinn.

A visão de Chiara desapareceu. Ele abriu as portas francesas e por um instante imaginou que podia ouvir os sinos da igreja de Lyonesse, a mítica cidade submersa, tocando nas profundezas do mar. Havia só um pescador parado com a água até a cintura nas ondas; a praia estava deserta, exceto por uma mulher caminhando na beira da água, seguida alguns metros atrás por um homem em uma jaqueta de nylon. Ela ia para o norte, o que significava que estava de costas para Gabriel. Uma rajada fria de vento soprava do mar, fria o suficiente para Gabriel, e em seus pensamentos ele a via caminhando por uma rua congelada em São Petersburgo. Naquele momento, como agora, ele a via de cima; estava parado no parapeito da cúpula de uma igreja. A mulher sabia que ele estava ali, mas não tinha olhado. Ela era uma profissional, uma profissional da elite. Era de um calibre mais alto, de classe superior.

Nesse momento, ela havia chegado à ponta mais norte da praia. Ela fez uma pirueta e o homem de jaqueta de nylon virou com ela. O mar adicionava uma qualidade de sonho à imagem. Ela parou para olhar o pescador levantar um robalo que lutava das ondas e, rindo por algo que o homem disse, pegou uma pedra do chão e jogou no mar. Virando-se, ela parou de novo, aparentemente distraída por algo que não esperava ver. Talvez fosse o homem parado na grade do terraço, como o homem que estivera no parapeito de uma torre de igreja em São Petersburgo. Ela jogou outra pedra no mar turbulento, abaixou a cabeça e continuou caminhando. Agora, como naquele momento, Madeline Hart não olhou para cima.

Tinha começado como um caso entre o primeiro-ministro Jonathan Lancaster e uma jovem que trabalhava na sede de seu partido. Mas a mulher não era alguém qualquer — era uma agente russa dormente que tinha sido plantada na Inglaterra quando era criança — e o caso não era algo comum. Era parte de um elaborado plano russo criado para pressionar o primeiro-ministro a assinar um acordo lucrativo para exploração de petróleo no mar do Norte com uma empresa do Kremlin chamada Volgatek Oil & Gas. Gabriel tinha descoberto a verdade com o homem que dirigia a operação, um agente do SVR, o serviço de inteligência russo, chamado Pavel Zhirov. No final, Gabriel e sua equipe de agentes do Escritório tinham tirado Madeline Hart de São Petersburgo e do país. O escândalo que acompanhou sua deserção foi o pior na história britânica. Jonathan Lancaster, pessoalmente humilhado e politicamente ferido, respondeu cancelando o acordo no mar do Norte e congelando o dinheiro russo depositado em bancos britânicos. Uma estimativa dizia que o presidente russo tinha perdido pessoalmente vários bilhões de dólares. Francamente, pensou Gabriel, era incrível que ele tivesse esperado tanto para retaliar.

Era a intenção da KGB transformar Madeline Hart em uma garota inglesa e, através de anos de treinamento e manipulação, tinham conseguido. Seu domínio do idioma russo era limitado, e ela não sentia nenhuma lealdade pela terra que deixara ainda criança. Ela queria voltar à Inglaterra para retomar sua vida antiga, mas considerações políticas e de segurança tornaram isso impossível. Gabriel deixou que usasse sua adorada casa na Cornualha. Ele sabia que ela gostaria do lugar. Ela fora criada na pobreza, com a família ajudada pelo governo em uma casa em Basildon, Inglaterra. Ela só queria na vida um quarto com vista.

— Como você me encontrou? — ela perguntou enquanto subia a escada até o terraço. Então, sorriu. Era a mesma pergunta que tinha feito a Gabriel aquela tarde em São Petersburgo. Os olhos dela eram do mesmo azul-cinzento e estavam bem abertos pela animação. Agora se fecharam com preocupação quando ela viu os danos no rosto dele.

— Você está absolutamente horrível — ela disse com o sotaque inglês. Era uma combinação de Londres e Essex, mas sem nenhum traço de Moscou. — O que aconteceu?

— Foi um acidente de esqui.

— Você não me parece o tipo que gosta de esquiar.

— Foi a primeira vez.

Um momento meio estranho se seguiu quando ela o convidou a entrar na casa dele. Madeline pendurou o casaco no cabide ao lado do dele e foi para a cozinha fazer chá. Encheu a chaleira elétrica com água de uma garrafa e pegou uma caixa velha de Harney & Sons do armário. Gabriel tinha comprado centenas de anos antes na Morrisons em Marazion. Sentou-se em seu banco favorito e ficou olhando outra mulher usar o espaço normalmente ocupado por sua esposa. Os jornais de Londres estavam sobre o balcão e não tinham sido lidos. Todos mostravam uma cobertura sensacionalista da bomba na Brompton Road e a luta interna nos serviços de inteligência britânica. Ele olhou para Madeline. O ar marítimo frio tinha acrescentado cor a seu rosto pálido. Ela parecia contente, até feliz, nada parecida com a mulher quebrada que ele tinha encontrado em São Petersburgo. De repente, ele não teve coragem de contar que ela era a causa de tudo que tinha acontecido.

— Estava começando a pensar que nunca mais veria você — ela disse. — Já faz...

— Muito tempo — disse Gabriel, cortando.

— Quando foi a última vez que esteve no Reino Unido?

— Eu estive aqui nesse verão.

— Negócios ou prazer?

Ele hesitou antes de responder. Por muito tempo depois da deserção dela, ele tinha se recusado a até dizer seu nome para Madeline. Desertores têm a tendência a ficar com saudades de casa.

— Foi um empreendimento de negócios — ele falou finalmente.

— Bem-sucedido, espero.

Ele teve de pensar.

— Foi — falou depois de um momento. — Acho que foi.

Madeline tirou a chaleira do fogo e serviu a água fervendo em uma xícara grande e branca que Chiara tinha comprado em uma loja em Penzance. Olhando para ela, Gabriel perguntou:

— Você está feliz aqui, Madeline?

— Vivo com medo de que você me expulse.

— Por que acha que vou fazer uma coisa dessas?

— Nunca tive uma casa própria antes — ela falou. — Nem mãe, nem pai, só a KGB. Virei a pessoa que queria ser. E então eles tiraram isso de mim também.

— Você pode ficar aqui o tempo que quiser.

Ela abriu a geladeira, tirou uma garrafa de leite, e serviu um pouco no pequeno jarro de Chiara.

— Quente ou frio? — ela perguntou.

— Frio.

— Açúcar?

— De jeito nenhum.

— Pode ser que tenha um pacote de biscoito McVitie’s no armário.

— Já comi.

Gabriel serviu leite no fundo de sua xícara e colocou o chá por cima.

— Meus vizinhos estão se comportando?

— São um pouco barulhentos.

— Não me diga.

— Parece que você os impressionou muito.

— Não fui eu.

— Não — ela falou. — Foi Giovanni Rossi, o grande restaurador de arte italiano.

— Não tão grande.

— Não foi o que disse Vera Hobbs.

— Como estão os bolinhos dela hoje em dia?

— Quase tão bons quanto os bolinhos do café no alto de Lizard Point.

O sorriso dele deve ter traído o quanto ele sentia saudades.

— Não sei como você deixou esse lugar — ela falou.

— Nem eu.

Ela olhou pensativa para ele sobre sua xícara.

— Você já é o chefe do seu serviço?

— Ainda não.

— Quanto falta?

— Uns meses, talvez menos.

— Vou ler nos jornais?

— Agora divulgamos o nome de nosso chefe, como o MI6.

— Pobre Graham — ela falou olhando para os jornais.

— É — falou Gabriel, distante.

— Acha que Jonathan vai demiti-lo?

Era estranho ouvi-la se referir ao primeiro-ministro pelo seu primeiro nome. Ele ficou pensando como ela o chamava naquelas noites na Downing Street, quando Diana Lancaster estava fora.

— Não — falou depois de um momento. — Acho que não.

— Graham sabe muito.

— Tem isso?

— E Jonathan é muito leal.

— Com todo mundo, menos com a esposa.

Ela não gostou do comentário.

— Desculpe, Madeline. Não deveria...

— Tudo bem — ela falou, rapidamente. — Eu mereci.

Suas longas e fortes mãos ficaram quietas, de repente. Ela as acalmou tirando os saquinhos de chá do bule, adicionando um pouco de água quente e recolocando a tampa.

— Está tudo como você se lembra? — ela perguntou.

— A mulher atrás do balcão é diferente. Fora isso, tudo está igual.

Ela sorriu, desconfortável, mas não disse nada.

— Esteve espiando minhas coisas? — ele perguntou.

— O tempo todo.

— Encontrou algo interessante?

— Infelizmente, não. É quase como se o homem que vivia aqui não existisse.

— Assim como Madeline Hart.

Ele viu consternação em seus olhos. Eles se moveram lentamente ao redor da sala, o quarto com vista.

— Você vai me contar por que está com essa cara detonada?

— Eu estava na Brompton Road quando a bomba explodiu.

— Por quê?

Gabriel respondeu com a verdade.

— Então você é o agente de inteligência estrangeiro.

— Infelizmente.

— E foi você que tentou salvar as pessoas.

Ele não falou nada.

— Quem era o outro homem?

— Não é importante.

— Você sempre fala isso.

— Só quando realmente é verdade.

— E a mulher? — ela perguntou.

— Seu passaporte dizia que era...

— É — ela o interrompeu. — Eu li nos jornais.

— Viu o vídeo da CCTV?

— Não dá para ver muito, na verdade. Uma mulher sai do carro, uma mulher se afasta calmamente, uma rua explode.

— Muito profissional.

— Muito — ela concordou.

— Viu a foto dela tirada no Heathrow?

— Muito granulada.

— Acha que ela é alemã?

— Metade, eu diria.

— E a outra metade?

Madeline olhou para o mar.


34

ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA

HAVIA QUATRO FOTOGRAFIAS NO total: a foto que Gabriel tinha tirado da mulher sentada sozinha no restaurante e três mais que ele havia tirado quando ela apareceu na varanda enferrujada de Quinn. Ele as organizou no balcão, onde já tinha colocado as fotografias de um Rembrandt roubado para Chiara, e sentiu culpa quando Madeline se abaixou para observá-las.

— Quem tirou essas?

— Não é importante.

— Você tem um bom olho.

— Quase tão bom quanto o de Giovanni Rossi.

Ela pegou a primeira fotografia, uma mulher de óculos escuros sozinha em uma mesa na rua, sentada em uma direção que permitia ter uma visão inferior da cidade.

— Ela não fechou a bolsa.

— Você notou isso também.

— Uma turista normal fecharia a bolsa por causa de ladrões e batedores de carteira.

— Fecharia.

Ela colocou a foto de novo em seu lugar no balcão e levantou outra. Mostrava uma mulher sozinha na balaustrada de uma varanda, uma videira florida saindo de seus pés. A mulher estava levando um cigarro a seus lábios de uma maneira que expunha a parte de baixo de seu braço direito. Madeline se aproximou e levantou a sobrancelha pensativa.

— Está vendo isso? — ela perguntou.

— O quê?

Ela levantou a fotografia.

— Ela tem uma cicatriz.

— Pode ser um problema na imagem.

— Poderia ser, mas não é. É um problema na garota.

— Como pode ter certeza?

— Porque — disse Madeline — eu estava lá quando aconteceu.

— Você a conhece?

— Não — ela falou, olhando para a fotografia. — Mas eu conheci a garota que ela era antes.


35

ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA

GABRIEL TINHA OUVIDO A história pela primeira vez na beira de um lago russo congelado, da boca de um homem chamado Pavel Zhirov. Agora, em uma casa na praia, ele ouviu novamente da mulher que tinha se tornado Madeline Hart. Ela não sabia o nome verdadeiro da mulher; de seus pais biológicos sabia muito pouco. O pai dela tinha sido um general sênior na KGB, talvez o chefe do todo-poderoso Primeiro Diretório Central. Sua mãe, uma datilógrafa da KGB que não tinha nem vinte anos, não havia sobrevivido muito depois do parto. Uma overdose de pílulas para dormir e vodca tinham tirado sua vida, ou foi o que contaram a Madeline.

Ela tinha sido colocada em um orfanato. Não um orfanato real, mas um orfanato da KGB onde, como ela gostava de dizer, tinha sido criada por lobos. Em certo momento — ela não se lembrava quando — seus cuidadores tinham parado de falar com ela em russo. Por um tempo ela foi criada em completo silêncio, até que os últimos traços do idioma russo tinham desaparecido de sua memória. Então, ela foi colocada aos cuidados de uma unidade que só falava com ela em inglês. Ela assistia a vídeos de programas infantis britânicos e lia livros infantis britânicos. A limitada exposição à cultura britânica fez pouco por seu sotaque. Ela falava inglês, dizia, como um locutor da Rádio Moscou.

A instalação onde ela vivia ficava no subúrbio de Moscou, não muito longe da sede do Primeiro Diretório Central, em Yasenevo, que a KGB chamava de Moscou Center. Depois, foi transferida para um campo de treinamento da KGB no interior da Rússia, perto de uma cidade fechada que não tinha nome, só um número. O campo continha uma pequena cidade inglesa, com lojas, um parque, um ônibus com um motorista que falava inglês e um conjunto de casas de tijolos onde eles viviam juntos como famílias. Em uma parte separada do campo havia uma pequena cidade norte-americana com um cinema que passava filmes populares dos Estados Unidos. E, a pouca distância da cidade norte-americana, havia uma vila alemã. Era administrada junto com a Stasi da Alemanha Oriental. A comida era trazida semanalmente de Berlim Oriental: salsicha alemã, cerveja, presunto fresco. Todo mundo concordava que os aprendizes alemães estavam melhores que os outros.

Na maior parte do tempo, eles ficavam em seus falsos mundos separados. Madeline vivia com o homem e a mulher que iriam se mudar com ela para a Grã-Bretanha. Ela ia a uma rígida escola inglesa, tomava chá e muffins em uma loja pequena e brincava no parque inglês que estava sempre enterrado debaixo de vários centímetros de neve russa. Algumas vezes, no entanto, ela tinha permissão para assistir a um filme na cidade norte-americana, ou jantar no jardim de cerveja da vila alemã. Foi em uma dessas saídas que ela conheceu Katerina.

— Presumo que não estava morando na cidade norte-americana — disse Gabriel.

— Não — respondeu Madeline. — Katerina era uma garota alemã.

Ela era vários anos mais velha que Madeline, uma adolescente às portas do mundo adulto. Já era linda, mas não tão linda quanto ficaria depois. Falava um pouco de inglês — os aprendizes no programa alemão eram bilíngues — e ela gostava de treinar com Madeline, cujo inglês, apesar do sotaque estranho, era perfeito. Como regra, amizades entre aprendizes de diferentes escolas eram desencorajadas mas, no caso de Madeline e Katerina, os treinadores fizeram uma exceção. Katerina estava se sentido deprimida por algum tempo. Seus treinadores não estavam convencidos de que ela aguentaria a vida no ocidente como ilegal.

— Como ela terminou no programa de ilegais? — perguntou Gabriel.

— Da mesma forma que eu.

— O pai dela era da KGB?

— A mãe, na verdade.

— E o pai?

— Era um agente de inteligência alemão que tinha sido alvo de uma armadilha sexual. Katerina foi o resultado do relacionamento.

— Por que a mãe não abortou?

— Ela queria o bebê. Que foi tirado dela. E depois tiraram a vida dela.

— E a cicatriz?

Madeline não respondeu. Em vez disso, pegou a fotografia de novo — a fotografia da garota que ela tinha conhecido como Katerina parada em uma varanda em Lisboa.

— O que ela estava fazendo ali? — perguntou. — E por que deixou uma bomba na Brompton Road?

— Ela estava em Lisboa porque os controladores dela sabiam que estávamos espionando o apartamento.

— E a bomba?

— Era para mim.

Ela olhou para ele.

— Por que estavam tentando matar você?

Gabriel hesitou, depois falou:

— Por sua causa, Madeline.

Um silêncio instalou-se entre eles.

— O que você acha que iria acontecer — ela disse finalmente — depois de matar um oficial da KGB em solo russo e me ajudar a desertar para o ocidente?

— Achei que o presidente russo ficaria bravo. Mas não achei que ele colocaria uma bomba na Brompton Road.

— Você subestima o presidente russo.

— Nunca — respondeu Gabriel. — O presidente russo e eu temos uma longa história.

— Ele já tentou matar você antes?

— Já — falou Gabriel. — Mas essa é a primeira vez que conseguiu.

Os olhos azul-escuros dela se voltaram para ele, estranhando. E, então, ela entendeu.

— Quando você morreu? — ela perguntou.

— Há várias horas, em um hospital militar britânico. Eu lutei muito, mas não teve jeito. Minhas feridas foram muito severas.

— Quem mais sabe?

— Meu serviço, claro, e minha esposa foi notificada da minha morte.

— E o Moscou Center?

— Se, como eu suspeito, eles estão lendo o correio do MI6, já estão fazendo brindes com vodca pela minha morte. Mas só para garantir, vou deixar tudo muito claro.

— Tem algo mais que poderia fazer?

— Diga coisas bonitas sobre mim no meu funeral. E leve mais de um guarda-costas quando caminhar pela praia.

— Eram dois, na verdade.

— O pescador?

— Vamos ter robalo assado para o jantar.

Ela sorriu e perguntou:

— O que você vai fazer com todo o seu tempo livre agora que está morto?

— Vou encontrar os homens que me mataram.

Madeline pegou a fotografia de Katerina na varanda.

— E ela? — perguntou.

Gabriel ficou em silêncio por um momento. Então disse:

— Você não me contou sobre a cicatriz em seu braço.

— Aconteceu durante um exercício de treinamento.

— Que tipo de treinamento?

— Assassinato silencioso.

— Ela olhou para Gabriel e acrescentou, sombria:

— A KGB começa cedo.

— Você?

— Eu era muito jovem — ela disse, balançando a cabeça. — Mas Katerina era mais velha e eles tinham outros planos para ela. O instrutor dela entregou uma faca um dia e mandou que ela o matasse. Katerina obedeceu. Katerina sempre obedecia.

— Continue.

— Mesmo depois de ter sido desarmada, ela continuou atacando. No final, se cortou com a própria arma. Teve sorte de não sangrar até a morte. — Madeline olhou para a fotografia. — Onde você acha que ela está agora?

— Acho que está em algum lugar na Rússia.

— Em uma cidade sem nome. — Madeline devolveu a fotografia a Gabriel. — Vamos esperar que ela fique lá.

Quando Gabriel voltou a Wormwood Cottage, ele subiu as escadas até o quarto e caiu exausto na cama. Queria muito ligar para sua esposa, mas não ousava. Claro, seus inimigos estavam rondando a rede procurando traços de sua voz. Homens mortos não fazem ligações telefônicas.

Quando o sono finalmente o dominou, ele não conseguiu descansar pelos sonhos. Em um, estava cruzando a nave de uma catedral em Viena, carregando uma caixa de madeira cheia de suas ferramentas de restauração. Uma garota alemã esperava na porta para conversar com ele, como tinha feito aquela noite, mas em seu sonho ela era Katerina e o sangue fluía livremente de uma ferida profunda em seu braço. “Consegue consertar isso?”, ela perguntou, mostrando a ferida, mas ele passou sem uma palavra e foi caminhando por ruas vienenses silenciosas, até uma praça no velho Bairro Judeu. A praça estava branca pela neve e cheia de ônibus de Londres. Uma mulher estava tentando ligar uma Mercedes, mas o motor não funcionava porque a bomba estava tirando força da bateria. Seu filho estava na cadeirinha, no banco de trás, mas a mulher atrás do volante não era sua esposa. Era Madeline Hart. “Como você me encontrou?”, ela perguntou pelo vidro quebrado. E então a bomba explodiu.

Ele deve ter gritado dormindo porque Keller estava parado na entrada do quarto quando ele acordou. A senhorita Coventry serviu o café da manhã na cozinha e depois viu quando eles saíam para caminhar no pântano sob a fria neblina da manhã. As pernas de Gabriel estavam fracas pela inatividade, mas Keller teve misericórdia dele. Eles passaram o primeiro quilômetro em um ritmo moderado que foi aumentando gradualmente enquanto Gabriel contava sobre Madeline e o fruto de uma armadilha sexual da KGB chamada Katerina. Eles iam encontrá-la, disse Gabriel. E depois iam enviar uma mensagem ao Kremlin que não precisava de tradução.

— Não se esqueça do Quinn — disse Keller.

— Talvez não haja nenhum Quinn. Talvez o Quinn seja apenas um nome e um histórico. Talvez ele seja somente uma isca que jogaram na água para nos levar à superfície.

— Você não acredita realmente nisso, acredita?

— Isso cruzou minha mente.

— Quinn matou a princesa.

— De acordo com uma fonte dentro da inteligência iraniana — disse Gabriel enfaticamente.

— Quando vamos poder agir?

— Depois do meu enterro.

Voltando a Wormwood Cottage, ele encontrou uma muda de roupa dobrada aos pés de sua cama. Tomou um banho, se vestiu e subiu mais uma vez no fundo da van. Dessa vez, ela o levou para o leste até uma casa segura em Highgate. A casa era conhecida; ele tinha trabalhado ali antes. Ao entrar, jogou o casaco sobre o encosto de uma cadeira na sala de estar e subiu as escadas até um pequeno escritório no segundo andar. Tinha uma pequena janela que dava para uma rua sem saída. A chuva murmurava nas calhas, os pombos pareciam chorar nos beirais. Trinta minutos se passaram, tempo suficiente para a escuridão cair e uma fileira de postes de luz começarem a piscar, hesitantes. Um carro cinza veio subindo a colina, sendo dirigido de um jeito que parecia descuidado. Estacionou na frente da casa e o motorista, um jovem com jeito inocente, desceu. Uma mulher desceu também — a mulher que iria informar ao mundo sobre sua trágica morte. Ele olhou para o relógio e sorriu. Ela estava atrasada. Ela sempre estava.


36

HIGHGATE, LONDRES
– DE JEITO NENHUM — disse Samantha Cooke. — Nem agora, nem nunca. Nem em um milhão de anos.

— Por que não?

— Preciso enumerar as razões?

Ela estava parada no meio da sala, uma mão suspensa, a palma virada para cima, o inquisidor esperando sua resposta. Ao entrar, tinha largado a bolsa em uma cadeira de balanço, mas ainda não tinha tirado o casaco encharcado. Seu cabelo era loiro acinzentado na altura dos ombros, os olhos eram azuis e naturalmente inquisidores. No presente, eles estavam fixos no rosto de Gabriel, sem acreditar. Um ano antes ele tinha dado a Samantha Cooke e seu jornal, o The Telegraph, uma das maiores exclusivas do jornalismo britânico — uma entrevista com Madeline Hart, a espiã russa que tinha sido a amante secreta do primeiro-ministro. Agora ele estava pedindo um favor em retorno. Outra exclusiva: essa tinha a ver com sua morte.

— Para começar — ela estava dizendo — não seria ético. De jeito nenhum.

— Amo quando os jornalistas britânicos falam sobre ética.

— Não trabalho para um tabloide. Eu trabalho para um jornal de qualidade.

— E é por isso que preciso de você. Se a história aparece no The Telegraph, as pessoas vão pensar que é verdade. Se ele aparece no...

— Já entendi. — Ela tirou o casaco e jogou em cima da bolsa. — Acho que preciso de uma bebida.

Gabriel apontou para o carrinho.

— Quer uma também?

— É um pouco cedo para mim, Samantha.

— Para mim, também. Tenho uma história para escrever.

— Sobre o quê?

— O mais novo plano de Jonathan Lancaster para consertar o National Health Service. Algo realmente instigante.

— Tenho uma história melhor.

— Tenho certeza que sim. — Ela pegou a uma garrafa de Beefeater, hesitou, e preferiu Dewar’s: dois dedos em um copo para uísque, gelo, água suficiente para não perder a noção. — A quem pertence essa casa?

— Está na família há muitos anos.

— Nunca soube que você era um judeu inglês. — Ela levantou um vaso decorativo de uma mesa e virou.

— O que está procurando?

— Grampos.

— A senhora da limpeza passou ontem.

— Estava me referindo a aparelhos de escuta.

— Ah.

Ela olhou debaixo de um abajur.

— Não perca seu tempo.

Ela olhou para ele, mas não disse nada.

— Você nunca publicou uma história que acabou sendo falsa?

— Não intencionalmente.

— É mesmo?

— Não dessa magnitude — ela falou.

— Entendo.

— Em algumas ocasiões — ela disse, o copo pairando debaixo dos lábios —, achei necessário publicar uma história incompleta, assim, o alvo da matéria se sentiria obrigado a terminá-la.

— Interrogadores fazem a mesma coisa.

— Mas eu não afogo meus assuntos ou arranco as unhas deles.

— Deveria. Iria conseguir matérias melhores.

Ela sorriu, apesar de tudo.

— Por quê? — ela perguntou. — Por que você quer que eu mate você no jornal?

— Infelizmente não posso contar isso.

— Mas você precisa me contar. Ou não há história. — Ela estava certa e sabia disso. — Vamos começar com o básico, certo? Quando você morreu?

— Ontem à tarde.

— Onde?

— Um hospital militar britânico.

— Qual?

— Não posso falar.

— Longa doença?

— Na verdade, fui ferido gravemente em um atentado à bomba.

O sorriso dela desapareceu. Colocou a bebida cuidadosamente na mesinha.

— Onde terminam as mentiras e começa a verdade?

— Não são mentiras, Samantha. Enganos.

— Onde? — ela perguntou de novo.

— Eu era o agente que avisou a inteligência britânica sobre a bomba na Brompton Road. Fui um dos homens que tentou afastar os pedestres antes da explosão.

Ele parou, depois acrescentou:

— E era o alvo.

— Consegue provar?

— Olhe o vídeo da CCTV.

— Já vi. Poderia ser qualquer um.

— Mas não é qualquer um, Samantha. Era Gabriel Allon. E agora ele está morto.

Samantha terminou a bebida e preparou outra: mais Dewar’s, menos água.

— Tenho que contar ao meu editor.

— Impossível.

— Eu confiaria minha vida ao meu editor.

— Mas não é da sua vida que estamos falando. É da minha.

— Você não tem mais vida, lembra? Está morto.

Gabriel olhou para o teto e soltou o ar lentamente. Estava se cansando da luta de espadas.

— Desculpe trazê-la até aqui — ele falou depois de um momento. — O sr. Davies vai levá-la de volta à redação. Vamos fingir que isso nunca aconteceu.

— Mas eu não terminei minha bebida.

— Que tal sua matéria sobre o plano de Jonathan Lancaster para salvar a NHS?

— É lixo.

— O plano ou a matéria?

— Os dois. — Ela caminhou até o carrinho de bebidas e usou a pinça prateada para levantar um gelo do balde. — Você já me deu uma boa matéria, sabe disso.

— Confie em mim, Samantha. Há mais.

— Como você sabia que havia uma bomba naquele carro?

— Ainda não posso contar isso.

— Quem era a mulher?

— Não era Anna Huber. E não era da Alemanha.

— De onde ela era?

— Um pouco mais para o leste.

Samantha Cooke deixou o gelo cair na bebida e depois colocou a pinça de volta ao carrinho. Virou de costas para Gabriel. Mesmo assim, ele conseguia ver que ela estava em uma luta profunda com sua consciência jornalística.

— Ela é russa. É isso que está falando?

Gabriel não respondeu.

— Vou presumir como um sim. A pergunta é: por que uma russa deixaria um carro-bomba na Brompton Road?

— Diga você.

Ela ficou pensativa.

— Acho que queriam mandar uma mensagem a Jonathan Lancaster.

— E a natureza da mensagem?

— Não ferre com a gente — ela falou, fria. — Especialmente quando se trata de dinheiro. Aqueles direitos de perfuração no mar do Norte teriam representado bilhões para o Kremlin. E Lancaster conseguiu arrebatá-los.

— Na verdade, fui eu que os arrebatei. E é por isso que o presidente russo e seus seguidores me queriam morto.

— E agora você quer que eles pensem que conseguiram?

Ele assentiu.

— Por quê?

— Porque vai facilitar meu trabalho.

— Que trabalho?

Ele não falou nada.

— Entendo — ela disse, com a voz baixa. Samantha se sentou e deu um gole em seu uísque. — Se vier a público alguma vez que eu...

— Acho que você me conhece bem.

— Qual seria a fonte?

— Inteligência britânica.

— Outra mentira.

— Engano — ele a corrigiu gentilmente.

— E se eu chamar seu serviço?

— Eles não vão responder. Mas se você ligar para este número — ele falou, entregando um pedaço de papel — um cavalheiro um tanto quanto taciturno vai confirmar meu prematuro falecimento.

— Ele tem nome?

— Uzi Navot.

— O chefe do Escritório?

Gabriel assentiu.

— Ligue de uma linha aberta. E não importa o que, nunca mencione que falou recentemente com o morto. O Moscou Center estará ouvindo.

— Vou precisar de uma fonte britânica. Uma real.

Ele entregou outro pedaço de papel. Outro número de telefone.

— É uma linha privada. Não abuse do privilégio.

Samantha enfiou os dois números na bolsa.

— Quando consegue publicar?

— Se eu conseguir, posso colocar no jornal de amanhã.

— A que horas vai aparecer no website?

— À meia-noite, mais ou menos.

Os dois ficaram em silêncio. Ela levou o copo até os lábios, mas parou. Tinha uma longa noite pela frente.

— O que acontecerá quando o mundo descobrir que você não está morto? — ela perguntou.

— Quem disse que vai?

— Você não tem a intenção de ficar morto, tem?

— Há uma grande vantagem — ele disse.

— Qual?

— Ninguém vai tentar me matar de novo.

Ela colocou a bebida na mesinha e se levantou.

— Tem algo especial que você quer me contar sobre você?

— Diga que amei meu país e meu povo. E diga que eu gostava muito da Inglaterra também.

Gabriel ajudou-a com o casaco. Ela colocou a bolsa no ombro e esticou a mão.

— Foi um prazer quase conhecê-lo — ela disse. — Acho que vou sentir sua falta.

— Chega de lágrimas agora, Samantha.

— Não — ela falou. — Vamos pensar na vingança.


37

WORMWOOD COTTAGE, DARTMOOR

QUANDO GABRIEL VOLTOU A Wormwood Cottage aquela noite, encontrou um carro com aparência oficial estacionado na entrada. Na cozinha, a senhorita Coventry estava tirando o jantar da mesa e, no escritório, dois homens estavam encurvados sobre uma disputada partida de xadrez. Os dois combatentes estavam fumando. As peças pareciam soldados perdidos na fumaça da guerra.

— Quem está ganhando? — perguntou Gabriel.

— Quem você acha? — respondeu Ari Shamron. Ele olhou para Keller e perguntou: — Você vai fazer sua jogada em algum momento?

Keller fez. Shamron suspirou triste e acrescentou o segundo bispo de Keller em seu pequeno campo de prisioneiros de guerra. As peças estavam em duas fileiras arrumadas perto do cinzeiro. Shamron sempre impunha certa disciplina naqueles infelizes que caíam em suas mãos.

— Coma algo — ele falou para Gabriel. — Não vamos demorar.

A senhorita Coventry tinha deixado um prato de cordeiro com ervilha no forno. Ele comeu sozinho à mesa da cozinha enquanto ouvia o jogo que acontecia na sala ao lado. O barulho das peças de xadrez, o barulho do velho isqueiro Zippo de Shamron: era tudo estranhamente confortável. Do silêncio agonizante de Keller ele inferia que a batalha não ia bem. Lavou seu prato e os talheres, colocou-os para secar e voltou à sala. Shamron estava esquentando as mãos no fogo de carvão e madeira na lareira. Usava calça cáqui, uma camisa branca e uma velha jaqueta de couro com um rasgo no ombro esquerdo. A luz do fogo refletia nas lentes dos feios óculos de aço.

— E então? — perguntou Gabriel.

— Ele lutou muito, mas não teve jeito.

— Como ele joga?

— É corajoso, habilidoso, mas falta visão estratégica. Sente grande prazer em matar, mas não entende que às vezes é melhor deixar um inimigo viver do que destruí-lo com a espada. — Shamron olhou para Gabriel e sorriu. — Ele é um operador, não é um planejador.

Shamron voltou a olhar para o fogo.

— É assim que você imaginou que seria?

— O quê?

— Sua última noite na terra.

— É — falou Gabriel. — É assim que imaginei que seria.

— Preso em uma casa segura comigo. Uma casa segura britânica — Shamron acrescentou com desdém. Ele olhou para as paredes e o teto. — Estão ouvindo?

— Dizem que não.

— Confia neles?

— Confio.

— Não deveria. Na verdade — disse Shamron —, não deveria nem ter entrado nessa busca do Quinn. Para que fique registrado, eu fui contra. Uzi prevaleceu.

— Desde quando você ouve o Uzi?

Shamron deu de ombros, concedendo a derrota.

— Tive quadradinho vazio ao lado do nome de Eamon Quinn por um bom tempo — ele falou. — Queria que você e seu amigo marcassem o quadradinho antes que outro avião caísse do céu.

— O quadradinho ainda está vazio.

— Não por muito tempo. — O isqueiro de Shamron se iluminou. O cheiro acre do tabaco turco se misturou com o cheiro da madeira e do carvão inglês.

— E você? — perguntou Gabriel. — Achou que terminaria dessa forma?

— Com sua morte?

Gabriel assentiu.

— Vezes demais para me lembrar.

— Houve aquela noite no Quarteirão Vazio— disse Gabriel.

— E em Harwich?

— E Moscou.

— É — disse Shamron. — Sempre teremos Moscou. Moscou é o motivo de estarmos aqui.

Ele fumou em silêncio por um momento. Normalmente, Gabriel teria pedido que parasse, mas não agora. Shamron estava de luto. Estava a ponto de perder um filho.

— Sua amiga do The Telegraph acabou de falar por telefone com o Uzi.

— Como foi?

— Aparentemente, ele falou bastante bem de você. Um talento excepcional, uma grande perda para o país. Parece que Israel está menos segura essa noite. — Shamron parou, depois acrescentou: — Acho que ele gostou disso, na verdade.

— Qual parte?

— Tudo. Afinal — disse Shamron —, se você está morto, não pode se tornar o próximo chefe.

Gabriel sorriu.

— Não comece com essas ideias — disse Shamron. — Assim que isso terminar, você volta para Jerusalém, onde vai realizar uma milagrosa ressurreição.

— Exatamente como...

Shamron levantou a mão. Ele tinha sido criado em uma vila no leste da Polônia onde haviam ocorrido ataques regulares. Ainda precisava fazer as pazes com o cristianismo.

— Estou surpreso porque você não veio para a Inglaterra com uma equipe de resgate — disse Gabriel.

— Pensei nisso.

— Mas?

— É importante enviarmos uma mensagem aos russos de que vão pagar um preço pesado se assassinarem nosso próximo chefe. A ironia disso é que a mensagem será entregue por você.

— Acha que os russos entendem ironia?

— Tolstói entendia. Mas o czar só entende força.

— E os iranianos?

Shamron pensou na questão antes de responder.

— Eles têm menos a perder — disse finalmente. — Portanto, devemos tratá-los com mais cuidado.

Ele jogou a ponta do cigarro no fogo e tirou outro do maço.

— O homem que você está procurando está em Viena. Está hospedado no hotel InterContinental. A Organização Interna conseguiu acomodações para você e Keller. Vai encontrar dois velhos amigos ali também. Use-os como achar melhor.

— E o Eli?

— Ele ainda está sentado naquela pocilga em Lisboa.

— Mande que vá a Viena.

— Quer manter o apartamento em Lisboa sob vigilância?

— Não — falou Gabriel. — Quinn nunca vai pisar ali de novo. Lisboa já serviu ao seu objetivo.

Shamron assentiu lentamente.

— Quanto às suas comunicações — ele disse —, teremos de usar métodos tradicionais a forma como fazíamos durante a Ira de Deus.

— É duro voltar à tradição no mundo moderno.

— Você tem a capacidade de fazer um quadro de quatrocentos anos parecer novo outra vez. Tenho certeza de que vai pensar em alguma coisa. — Shamron consultou o relógio. — Gostaria que você pudesse fazer uma última ligação para sua esposa, mas infelizmente não é possível nessas circunstâncias.

— Como ela está levando essa história da minha morte?

— Tão bem quanto era esperado. — Shamron olhou para Gabriel. — Você é um homem de sorte. Não há muitas mulheres que deixariam o marido ir para uma guerra contra o Kremlin nas semanas finais da gravidez.

— É parte do acordo.

— Foi o que pensei também. Devotei minha vida a meu povo e meu país. E, nesse tempo, afastei todo mundo que amei.

Shamron parou, depois acrescentou:

— Todo mundo, menos você.

Do lado de fora, estava começando a chover de novo, uma rajada repentina enviava gotas gordas que entraram pela lareira. Shamron pareceu não notar; estava olhando para o relógio. O tempo sempre tinha sido um inimigo, nunca tanto quanto agora.

— Quanto tempo mais? — ele perguntou.

— Não muito — respondeu Gabriel.

Shamron fumou em silêncio enquanto as gotas de chuva se sacrificavam na lareira quente.

— É assim que você imaginou que seria? — ele perguntou.

— É exatamente como eu imaginei.

— Uma coisa terrível, não é?

— O quê, Ari?

— O filho morrer antes dos pais. Isso subverte a ordem natural das coisas. — Ele jogou o cigarro no fogo. — Não podemos ficar de luto de forma apropriada. Só podemos pensar em vingança.

Ari Shamron, como Gabriel, tinha se acostumado de forma limitada ao mundo moderno. Ele carregava um celular de má vontade, pois sabia bem a que grau essas geringonças poderiam se voltar contra seus usuários. Atualmente, o aparelho estava descansando na caixa de madeira na mesa de Parish, reservada para posses proibidas do “acompanhante”. Parish não tinha vergonha de admitir que não gostava do velho. “Como fuma! Nossa, como fuma.” Pior do que o jovem inglês que estava sempre caminhando pelo pântano. O velho tinha cheiro de cinzeiro. Era cadavérico. “E os dentes!” Tinha um sorriso que parecia uma armadilha de aço e era tão agradável quanto.

Estava pouco claro se o velho planejava passar a noite ali. Ele não tinha dado nenhuma indicação de seus planos, e Parish não tinha recebido nenhuma orientação de Vauxhall Cross, exceto uma curiosa nota sobre o site do The Telegraph. Parish deveria verificar regularmente depois da meia-noite. Uma matéria iria aparecer ali que seria de interesse para os dois homens de Israel. Vauxhall Cross não se incomodou de falar por que seria de interesse. Aparentemente, seria evidente. Parish deveria imprimir a história e entregar para os dois homens sem comentar e com a solenidade apropriada, independentemente do conteúdo. Parish tinha trabalhado para o MI6 por quase trinta anos em vários cargos. Estava acostumado a estranhas instruções do quartel-general. Em sua experiência, elas iam de mãos dadas com importantes operações.

Ele ficou em sua mesa até tarde aquela noite, muito depois que a senhorita Coventry tinha sido levada para casa em sua deprimente vila de Devon, e muito depois que os seguranças, mais magros depois de um dia perseguindo o jovem inglês pelo pântano, tinham ido dormir. A instalação tinha se tornado eletrônica, o que significava que estava sendo protegida por máquinas, e não por homens. Parish leu umas poucas páginas de P. D. James, abençoou a alma dela e ouviu um pouco de Handel no rádio. Ele ouvia mais a chuva. Outra noite complicada. Quando isso ia terminar?

Finalmente, à meia-noite, ele abriu o browser em seu computador e teclou o endereço do The Telegraph. Era a bobagem de sempre: uma briga em Westminster sobre a NHS, uma bomba em Bagdá, algo sobre a vida amorosa de uma estrela pop que Parish achou profundamente repulsiva. Não havia nada, no entanto, que parecesse remotamente de interesse para o “acompanhante” da Terra Santa. Ah, houve algum vislumbre de esperança sobre as negociações nucleares do Irã, mas claramente eles não precisavam que Parish contasse algo sobre isso.

Ele voltou a seu P.D. James e seu Handel até se passarem cinco minutos, quando clicou em ATUALIZAR e viu a mesma porcaria de antes. Depois de dez minutos, nada tinha mudado. Mas quando apertou de novo, à 00h15, a página ficou congelada como um bloco de gelo. Parish não era especialista em questões cibernéticas, mas sabia que sites podem congelar durante períodos de transição ou muito tráfego. Sabia, também, que não adiantaria ficar clicando ou digitando para acelerar o processo, então se permitiu ler mais algumas linhas do romance enquanto a página se livrava de suas restrições digitais.

Isso aconteceu precisamente à 00h17. A página foi carregando, três palavras apareceram no alto. Grande fonte, tão grande quanto Dartmoor. Parish falou o nome do Senhor em vão, imediatamente se arrependeu e clicou para imprimir. Enfiou as páginas no bolso do casaco e cruzou o jardim até a porta traseira da casa. E, enquanto isso, ele estava repassando as curiosas instruções que tinha recebido de Vauxhall Cross. Apropriada solenidade, realmente. Mas como exatamente alguém deveria contar a um homem que ele estava morto?


38

LONDRES — KREMLIN

FICOU ALI POR QUASE uma hora, sem ser reproduzido pelo resto da imprensa, talvez nem tinha sido notado. Então, um produtor da BBC World Service, avisado por uma ligação de um editor do The Telegraph, inseriu a história em um boletim de notícias da uma da manhã. A Rádio Israel estava ouvindo e, poucos minutos depois, os telefones estavam tocando e repórteres estavam sendo tirados da cama, assim como membros dos influentes serviços de segurança e inteligência do país, do passado e do presente. Publicamente, ninguém falava nada. Internamente, eles sugeriram que provavelmente era verdade. O ministro de relações exteriores disse somente que estava pensando sobre a questão; o escritório do primeiro-ministro disse que esperava que houvesse algum erro. Mesmo assim, quando os primeiros raios do sol caíram sobre Jerusalém naquela manhã, uma música sombria enchia as ondas do rádio. Gabriel Allon, o anjo vingador de Israel, próximo na fila para ser o chefe do Escritório, estava morto.

Em Londres, no entanto, as notícias da morte de Allon eram uma ocasião para controvérsia, em vez de tristeza. Ele tinha um longo histórico em solo britânico, sendo que parte era conhecido do público; a maioria, ainda bem, não era. Havia suas operações contra Zizi al-Bakari, o financista saudita do terror, e Ivan Kharkov, o contrabandista de armas favorito do Kremlin. Também havia o incrível resgate de Elizabeth Halton, a filha do embaixador norte-americano, em frente à abadia de Westminster, e o pesadelo em Covent Garden. Mas por que ele tinha seguido o carro-bomba na Brompton Road? E por que ele tinha feito uma corrida precipitada em direção a um Ford branco preso no trânsito? Estava trabalhando junto com o MI6 ou tinha voltado para Londres por conta própria? O famoso serviço de inteligência de Israel tinha alguma culpa pela tragédia? A inteligência britânica se recusou a comentar, assim como a Polícia Metropolitana. O primeiro-ministro Lancaster, enquanto visitava uma escola pública em má situação na East End de Londres, ignorou a pergunta de um repórter sobre a questão, o que o resto da imprensa britânica assumiu como prova de que a história era verdadeira. O líder da oposição exigiu uma investigação parlamentar, mas o imame da mesquita mais radical de Londres não conseguia conter a alegria. Ele chamou a morte de Allon “de um presente atrasado e bem-vindo de Alá para o povo palestino e o mundo islâmico como um todo”. O arcebispo da Cantuária gentilmente criticou os comentários como “de pouca ajuda”.

No Green’s Restaurant and Oyster Bar, um elegante estabelecimento em St. James’s frequentado por habitantes do mundo da arte de Londres, o clima era totalmente de funeral. Eles tinham conhecido Gabriel Allon não como um agente de inteligência, mas como um dos melhores restauradores de arte daquela geração — apesar de que alguns tinham participado sem nem saber de suas operações, e outros poucos tinham sido cúmplices por vontade própria. Julian Isherwood, o famoso negociante que tinha contratado Allon por mais tempo que podia se lembrar, estava inconsolável. Até o gorducho Oliver Dimbleby, o negociante lascivo da Bury Street, que todos achavam que fosse incapaz de chorar, foi visto soluçando com uma taça de um Montrachet surrupiado de Roddy Hutchinson. Jeremy Crabbe, o diretor de quadros dos Velhos Mestres na venerável casa de leilões Bonhams, chamou Allon de “um dos maiores, realmente”. Não pode ser esquecido que Simon Mendenhall, o leiloeiro chefe da Christie’s, sempre queimado de sol, disse que o mundo da arte nunca mais seria o mesmo. Simon nunca tinha visto Gabriel Allon e provavelmente não o reconheceria nem em uma fila de identificação da polícia. Porém, de alguma forma tinha falado palavras de inegável verdade, algo que raramente fazia.

Havia tristeza também do outro lado do oceano. Um ex-presidente para quem Allon tinha realizado várias tarefas secretas disse que o agente de inteligência israelense tivera um papel crucial na segurança dos Estados Unidos evitando outros atentados estilo 11 de setembro. Adrian Carter, por muito tempo o chefe do Serviço Clandestino de Defesa da CIA, disse que era “um parceiro, um amigo, talvez o homem mais corajoso que já conheci”. Zoe Reed, âncora da CNBC, titubeou enquanto lia uma nota sobre a morte de Allon. Sarah Bancroft, curadora especial do Museu de Arte Moderna de Nova York, inexplicavelmente cancelou seus compromissos para aquele dia. Algumas horas depois, ela disse a sua secretária que iria tirar o resto da semana de folga. Quem presenciou sua abrupta saída do museu descreveu-a como consternada.

Não era segredo que Allon adorava a Itália, e no geral a Itália também gostava dele. No Vaticano, Sua Santidade o Papa Paulo VII se retirou para sua capela privada ao ouvir as notícias, enquanto seu poderoso secretário particular, Monsenhor Luigi Donati, fez várias ligações urgentes, tentando confimar se era verdade. Uma das ligações foi para o General Cesare Ferrari, chefe do famoso Esquadrão de Arte dos Carabinieri. O general não tinha nada a informar. Nem Francesco Tiepolo, o dono de uma conhecida empresa de restauração veneziana que tinha contratado Allon para restaurar secretamente vários retábulos da cidade. A esposa de Allon era do antigo gueto judeu e seu sogro era o rabino chefe da cidade. Donati fez várias ligações para o escritório e para a casa do rabino. Nenhuma foi atendida, fazendo com que o secretário do papa não tivesse outra escolha a não ser presumir o pior.

Em vários outros lugares ao redor do mundo, no entanto, a reação à morte de Allon foi muito diferente — especialmente dentro de complexos fortemente guardados localizados no subúrbio de Yasenevo, no sudoeste de Moscou. O complexo já tinha sido o quartel-general do Primeiro Diretório da KGB. Agora pertencia ao SVR. Mesmo assim, a maioria dos que trabalhavam ali ainda se referia a ele pelo velho nome da KGB, que era Moscou Center.

Na maior parte do complexo, a vida continuava normalmente naquele dia. Mas não no escritório do terceiro andar do Coronel Alexei Rozanov. Ele chegou a Yasenevo às três da manhã, no meio de uma tempestade de neve e tinha passado o resto da manhã em uma tensa troca de mensagens com o chefe do SVR em Londres, um amigo próximo chamado Dmitry Ulyanin. As mensagens eram protegidas pela encriptação mais recente do SVR e transmitidas pelo link mais seguro do serviço. Mesmo assim, Rozanov e Ulyanin discutiram a questão como se se tratasse de um problema de rotina envolvendo o pedido de visto de um empresário britânico. À uma da tarde, Ulyanin e sua Estação Londres, com uma boa equipe, tinham visto o suficiente para convencê-los de que a informação do The Telegraph era verdade. Rozanov, um cínico por natureza, continuou cético, no entanto. Finalmente, às duas horas, ele pegou seu telefone seguro e ligou diretamente para Ulyanin. Ulyanin tinha notícias encorajadoras.

— Nós vimos o velho deixando o grande edifício no Tâmisa há uma hora.

O grande edifício no Tâmisa era a sede do MI6 e o velho era Ari Shamron. A Estação Londres tinha seguido Shamron desde sua chegada ao Reino Unido.

— Onde ele foi depois?

— Foi para o Heathrow e embarcou em um voo da El Al para Ben-Gurion. Por falar nisso, Alexei, o voo atrasou vários minutos.

— Por quê?

— Parece que a equipe de terra tinha de carregar um item final na área de carga.

— O que era?

— Um caixão.

A linha segura estalou e silvou durante os dez longos segundos em que Alexei Rozanov não falou.

— Tem certeza de que era um caixão? — perguntou finalmente.

— Alexei, por favor.

— Talvez era um judeu britânico morto recentemente que queria ser enterrado na Terra Prometida.

— Não era — disse Ulyanin. — O velho estava parado na pista enquanto o caixão estava sendo carregado.

Rozanov desligou, hesitou e depois ligou para o número mais importante na Rússia. Uma voz masculina atendeu. Rozanov a reconheceu. Dentro do Kremlin, o homem era conhecido apenas como Porteiro.

— Preciso ver o Chefe — disse Rozanov.

— O Chefe tem compromissos à tarde.

— É importante.

— Também é importante nossa relação com a Alemanha.

Rozanov xingou baixinho. Tinha esquecido que o chanceler alemão estava na cidade.

— Só vou precisar de poucos minutos — ele falou.

— Há um curto espaço entre a última reunião e o jantar. Eu poderia encaixá-lo.

— Diga que tenho boas notícias.

— É melhor mesmo — disse Porteiro —, porque o chanceler está se cansando com a Ucrânia.

— Que horas devo chegar aí?

— Cinco horas — disse Porteiro e cortou a ligação. Alexei Rozanov desligou e ficou olhando a neve caindo em Yasenevo. Então, pensou em um caixão sendo carregado em um avião israelense no aeroporto de Heathrow enquanto um velho observava na pista e, pela primeira vez em quase um ano, ele sorriu.

Na verdade, tinham sido dez meses. Dez meses desde que Alexei Rozanov tinha descoberto que seu velho amigo e camarada Pavel Zhirov fora encontrado em uma floresta de bétulas em Tver Oblast, congelado, duas balas na cabeça. Dez meses desde que ele tinha sido chamado ao Kremlin para uma reunião com o presidente. O Chefe queria que Rozanov realizasse uma missão de vingança. Uma série de assassinatos confusos não funcionaria. O Chefe queria punir seus inimigos de uma forma que iria plantar a discórdia em suas fileiras e fazer com que pensassem duas vezes antes de se intrometer nos assuntos russos de novo. Mais do que tudo, entretanto, o Chefe queria ter certeza de que Gabriel Allon nunca se tornaria chefe do serviço de inteligência de Israel. O Chefe tinha grandes planos. Ele queria restaurar a glória perdida da Rússia, reclamar seu império perdido. E Gabriel Allon, um agente de inteligência de um minúsculo país, era um dos seus oponentes mais intrometidos.

Rozanov tinha pensado muito sobre seu plano, tinha organizado com cuidado e montado as peças necessárias. Então, com a bênção do presidente, ordenou o assassinato que havia colocado as rodas operativas em movimento. Graham Seymour, o chefe do MI6, tinha reagido da forma como Rozanov esperava que faria, assim como Allon. Agora seu corpo estava na barriga de um avião indo para o Aeroporto Internacional Ben-Gurion. Rozanov imaginou que seria enterrado no monte das Oliveiras, perto do túmulo de seu filho. Ele não se preocupou muito. Só se preocupava com que Allon não estivesse mais entre os vivos.

Abriu a última gaveta de sua mesa. Continha uma garrafa, um copo e um maço de Dunhill, um gosto que tinha adquirido enquanto trabalhava em Londres antes do colapso da União Soviética — a grande catástrofe, como Rozanov se referia. Ele não tinha tocado em álcool ou tabaco em dez meses. Agora serviu uma generosa dose de vodca e pegou um Dunhill. Algo o fez hesitar antes de acendê-lo. Ele pegou o telefone de novo, parou e preferiu inserir um DVD em seu computador. O disco fez um zumbido; Brompton Road apareceu em sua tela. Ele assistiu a tudo desde o começo. Então, viu o homem correndo desesperado para o carro branco. Quando a imagem cortou, Alexei Rozanov sorriu pela segunda vez.

— Que tonto — disse baixinho, e acendeu o cigarro.

Rozanov pediu que um carro estivesse pronto para as quatro horas. Como ia no contrafluxo do trânsito horrível de Moscou, demorou apenas quarenta minutos para chegar à Torre Borovitskaya do Kremlin. Entrou no Grande Palácio Presidencial e, acompanhado por um assistente que o esperava, subiu as escadas até o escritório do presidente. Porteiro estava em sua mesa na antessala. Sua expressão austera era idêntica à usada pelo próprio presidente.

— Chegou cedo, Alexei.

— Melhor do que tarde.

— Sente-se.

Rozanov se sentou. O relógio marcou as cinco e continuou. Depois as seis. Finalmente, às seis e meia, Porteiro se aproximou.

— Ele pode dar dois minutos.

— Dois minutos é tudo de que preciso.

Porteiro levou Rozanov por um corredor de mármore até um par de portas douradas. Um guarda abriu uma delas, Rozanov entrou sozinho. A sala era um espaço cavernoso, escuro, exceto por uma esfera de luz que iluminava a mesa onde se sentava o Chefe. Ele estava olhando para uma pilha de papéis e continuou a fazer isso mesmo depois da entrada de Rozanov. O homem do SVR ficou parado em frente à mesa em silêncio, as mãos unidas protegendo a altura dos genitais.

— Então? — Perguntou finalmente o Chefe. — É verdade ou não?

— O chefe da Estação Londres diz que é.

— Não estou perguntando ao chefe da Estação Londres. Estou perguntando a você.

— É verdade, senhor.

O Chefe levantou a cabeça.

— Tem certeza?

Rozanov assentiu.

— Diga, Alexei.

— Ele está morto, senhor.

O Chefe olhou para seus documentos de novo.

— Lembre-me quanto devemos ao irlandês.

— Segundo nosso acordo — disse Rozanov, tranquilo —, ele deveria receber dez milhões ao final da primeira fase da operação e outros dez milhões na segunda.

— Onde ele está agora?

— Em uma casa segura do SVR.

— Onde, Alexei?

— Budapeste.

— E a mulher?

— Aqui em Moscou — respondeu Rozanov —, esperando uma ordem de partida.

Fez-se silêncio entre eles, como o silêncio de um cemitério à noite. Rozanov sentiu-se aliviado quando o Chefe finalmente falou.

— Gostaria de fazer uma pequena mudança — ele falou.

— Que tipo de mudança?

— Diga ao irlandês que vai receber os vinte milhões depois de completar as duas fases da operação.

— Isso poderia ser um problema.

— Não vai ser.

O Chefe empurrou uma pasta em sua enorme mesa. Rozanov levantou a capa e olhou dentro. A morte resolve todos os problemas, ele pensou. Sem homem, sem problema.


39

LONDRES — VIENA

MAS GABRIEL ALLON NÃO estava morto, claro. Na verdade, no exato momento em que Alexei Rozanov estava entrando no Kremlin, ele estava embarcando em um voo da British Airways no aeroporto de Heathrow, em Londres. Seu cabelo estava grisalho; os olhos não eram mais verdes. No bolso de seu casaco havia um passaporte britânico falso e vários cartões de crédito com o mesmo nome, um presente de Graham Seymour, dados com a aprovação do próprio primeiro-ministro. Seu assento era na primeira classe, terceira fileira, perto da janela. Quando ele se sentou, a aeromoça ofereceu uma bebida e uma seleção de jornais. Ele escolheu o The Telegraph e leu sobre sua morte enquanto os subúrbios ocidentais de Londres desapareciam embaixo dele.

O voo de Heathrow a Viena durava duas horas. Ele fingiu ler, fingiu dormir, comeu algo de sua comida de plástico, evitou uma tentativa de conversa iniciada por seu vizinho de assento. Homens mortos, aparentemente não conversavam em aviões. Nem carregavam celulares. Quando o avião tocou a pista do aeroporto Schwechat de Viena, ele foi o único passageiro na primeira classe que não tirou automaticamente o celular. Sim, ele pensou enquanto tirava a mala do guarda-volumes em cima do assento, a morte tinha suas vantagens.

No saguão, ele seguiu as placas para controle de passaporte, parando de vez em quando para ver aonde estava indo, apesar de que poderia se localizar ali, mesmo de olhos fechados. Os olhos do jovem agente de imigração ficaram parados no rosto dele por um momento longo demais.

— Sr. Stewart? — ele perguntou, olhando para o passaporte.

— Sim — respondeu Gabriel com um sotaque neutro.

— Sua primeira vez na Áustria?

— Não.

O policial de fronteira folheou as páginas do passaporte e encontrou provas de visitas anteriores.

— O que o traz dessa vez?

— Música.

O austríaco carimbou o passaporte e devolveu sem comentários. Gabriel caminhou até o saguão de chegada, onde Christopher Keller estava parado ao lado de um quiosque de câmbio. Ele seguiu Gabriel até o lado de fora, no estacionamento de curta permanência. Um carro tinha sido deixado lá, um Audi A6, cinza.

— Melhor que um Škoda — disse Keller.

Gabriel pegou a chave do pneu esquerdo traseiro e procurou por uma bomba embaixo do carro. Então, abriu as portas, colocou a mala no banco de trás e sentou-se no banco do motorista.

— Talvez eu devesse dirigir — disse Keller.

— Não — respondeu Gabriel, quando ligou o motor. Era sua área.

Ele não precisava de mapa ou GPS; sua memória servia como guia. Pegou a Ost Autobahn até Donaukanal e depois virou para o oeste passando pelo bloco de apartamentos de Landstrasse até o Stadtpark. O hotel InterContinental estava no flanco sul do parque, em Johannesgasse. Havia um número incomum de policiais uniformizados nas ruas ao redor e mais na entrada do hotel.

— As negociações nucleares — explicou um manobrista quando Gabriel desceu do carro e retirou a mala do banco traseiro.

— Que delegação está hospedada aqui? — Ele perguntou, mas o manobrista deu um sorriso insincero apenas.— Desfrute sua estada, Herr Stewart.

Havia mais policiais no saguão, uniformizados e com roupas civis, e alguns poucos capangas sem gravatas que pareciam seguranças iranianos. Gabriel e Keller passaram por eles até a recepção, fizeram check-in em seus quartos e subiram o elevador até o quarto andar. Keller estava no 428. Gabriel estava no 409. Ele passou o cartão e hesitou um pouco antes de girar a maçaneta. Dentro, Mozart tocava baixinho no rádio. Ele desligou, fez uma busca completa no quarto e pendurou as roupas no armário para ajudar a equipe de arrumação. Pegou o telefone e ligou para o operador do hotel.

— Feliks Adler, por favor.

— Com prazer.

O telefone tocou duas vezes. Eli Lavon atendeu.

— Em que quarto você está, Herr Adler?

— Sete doze.

Gabriel desligou e subiu pelas escadas.


40

HOTEL INTERCONTINENTAL, VIENA

ELI LAVON ABRIU A porta e o puxou rapidamente. Lavon não era o único presente. Yaakov Rossman estava espiando pelo meio das cortinas e, esticado na cama dupla, os olhos fixos em uma partida de futebol da Premier League, estava Mikhail Abramov. Nenhum homem pareceu especialmente aliviado por ver Gabriel ainda entre os vivos, especialmente Mikhail, que já tinha morrido algumas vezes.

— Boas notícias de casa — disse Lavon. — Seu corpo chegou em segurança. Está a caminho de Jerusalém agora.

— Até onde vamos levar isso?

— Só o suficiente para que os russos notem.

— E minha esposa?

— Ela está de luto, claro, mas está cercada por amigos.

Gabriel tirou o controle remoto de Mikhail e navegou pelos canais de notícias. Aparentemente, seus 15 minutos de fama tinham terminado, pois até a BBC falava de outras coisas. Ele parou na CNN, onde um repórter estava parado em frente à sede da Agência Internacional de Energia Atômica, lugar das negociações entre os Estados Unidos, seus aliados europeus e a República Islâmica do Irã. Infelizmente para Israel e os estados árabes sunitas do Oriente Médio, os dois lados estavam perto de um acordo que deixaria o Irã à beira de se tornar uma potência nuclear.

— Parece que sua morte não poderia ter acontecido em momento pior — disse Lavon.

— Fiz o melhor que pude. — Gabriel olhou para os outros ocupantes da sala e acrescentou: — Que todos nós pudemos.

— É — concordou Lavon. — Mas os iranianos também.

Gabriel estava olhando de novo para a tela.

— O nosso amigo está aí?

Lavon assentiu.

— Ele não se senta à mesa com os negociadores, mas é parte da equipe de apoio iraniana.

— Já tivemos algum contato com ele desde que chegou a Viena?

— Por que não pergunta ao agente do caso dele?

Gabriel olhou para Yaakov Rossman, que ainda estava espionando a rua. Ele tinha cabelo escuro curto e o rosto esburacado. Yaakov tinha passado sua carreira acompanhando agentes em alguns dos lugares mais perigosos do mundo — Cisjordânia, Faixa de Gaza, Líbano, Síria e agora Irã. Ele mentia para seus agentes rotineiramente e sabia que em algumas ocasiões eles também mentiam. Algumas mentiras eram parte aceitável da barganha, mas não a mentira que sua fonte iraniana tinha contado. Tinha sido parte de um complô para matar o futuro chefe do serviço de Yaakov e por isso o iraniano seria punido. Não imediatamente, no entanto. Primeiro, ele receberia uma chance de reparar seus pecados.

— Eu normalmente vou à cidade — explicou Yaakov — em que os dois lados estão negociando. Os norte-americanos nem sempre são abertos sobre suas avaliações do que está acontecendo na mesa. Reza preenche os espaços para nós.

— Então ele não vai ficar surpreso ao ver você?

— De jeito nenhum. Na verdade — acrescentou Yaakov —, deve estar se perguntando por que ainda não fiz contato.

— Ele provavelmente deve estar pensando que você está fazendo o retiro de shivá por mim em Jerusalém.

— Vamos esperar que sim.

— Onde está a família?

— Cruzaram a fronteira faz algumas horas.

— Algum problema?

Yaakov balançou a cabeça.

— E Reza não sabe de nada?

Yaakov sorriu.

— Ainda não.

Ele retomou sua vigilância da rua. Gabriel olhou para Lavon e perguntou:

— Em que quarto ele está?

Lavon apontou para o corredor.

— Como você conseguiu isso?

— Invadimos o sistema e conseguimos o número de quarto dele.

— Já entraram?

— Foi muito fácil.

Os magos no Departamento de Tecnologia do Escritório tinham desenvolvido um cartão mágico capaz de abrir qualquer porta eletrônica de hotel no mundo. A primeira passada roubava o código. A segunda abria a fechadura.

— E deixamos uma coisinha para trás — disse Lavon.

Ele se abaixou e aumentou o volume em seu notebook. Um concerto de Bach estava tocando no rádio do quarto ao lado.

— Qual é a cobertura? — perguntou Gabriel.

— Só o quarto. Não nos preocupamos com o telefone. Ele nunca usa para ligações externas.

— Algo diferente?

— Ele fala dormindo, e bebe em segredo. Tirando isso, nada.

Lavon abaixou o volume do notebook; Gabriel olhou para a tela da televisão. Dessa vez, um repórter estava parado em uma varanda de frente para a Cidade Velha de Jerusalém.

— Ouvi que estava a ponto de ser pai — disse Mikhail.

— É mesmo? — perguntou Gabriel.

— Gêmeos.

— Não me diga.

Mikhail, fingindo tédio, mudou de novo para o jogo de futebol. Gabriel voltou a seu quarto e esperou que o telefone tocasse.

A sede brilhante da Agência Internacional de Energia Atômica estava localizada no lado oposto do rio Danúbio, em um distrito de Viena conhecido como a Cidade Internacional. As negociações entre norte-americanos e iranianos continuaram ali até as oito da noite, quando os dois lados, em uma rara mostra de acordo, concordaram que era hora de parar para descansar. O negociador-chefe norte-americano apareceu brevemente para os repórteres para dizer que houve progresso. Sua contraparte iraniana estava menos animada. Ele murmurou algo sobre a intransigência norte-americana e entrou em sua limusine oficial.

Eram oito e meia quando o comboio iraniano chegou ao hotel InterContinental. A delegação cruzou o lobby sob forte segurança e subiu em vários elevadores que tinham ficado parados para a conveniência deles, irritando os outros convidados do hotel. Só um membro da delegação, Reza Nazari, um agente veterano do VEVAK que estava disfarçado de diplomata iraniano, ficou no sétimo andar. Ele caminhou pelo corredor vazio até o quarto 710, enfiou seu cartão na porta e entrou. O som da porta fechando foi ouvido no quarto ao lado, onde só tinha ficado um homem, Yaakov Rossman. Por causa do transmissor escondido debaixo da cama do iraniano, Yaakov ouviu outros sons também. Um casaco jogado sobre uma cadeira, sapatos batendo no chão, uma ligação para o serviço de quarto, uma descarga de privada. Yaakov abaixou o volume do notebook, levantou o fone e marcou um número. Dois toques, então a voz de Reza Nazari. Em inglês, Yaakov explicou o que ele queria.

— Não é possível, meu amigo — disse Nazari. — Não esta noite.

— Tudo é possível, Reza. Especialmente esta noite.

O iraniano hesitou, depois perguntou:

— Quando?

— Cinco minutos.

— Onde?

Yaakov disse ao iraniano o que fazer, desligou o telefone e levantou o volume do notebook. Um homem cancelando seu pedido ao serviço de quarto, um homem colocando os sapatos e o casaco, uma porta se fechando, passos no corredor. Yaakov pegou o telefone de novo e ligou para o quarto 409. Dois toques, então, a voz de um homem morto. O homem morto parecia feliz com a notícia. Tudo é possível, pensou Yaakov quando desligou o telefone. Especialmente esta noite.

Três andares abaixo, Gabriel levantou-se da cama e caminhou calmamente até a janela. Em seus pensamentos, ele estava calculando quanto tempo demoraria antes que o homem que tinha conspirado para matá-lo apareceria no jardim iluminado do hotel. Quarenta e cinco segundos foi quanto ele demorou para aparecer na entrada. Visto de cima, ele era uma figura pouco ameaçadora, um pontinho na noite, um nada. Foi até a rua, esperou que o pouco trânsito da noite passasse e cruzou para o Stadtpark, um losango de escuridão no meio de uma cidade iluminada. Ninguém da delegação iraniana o seguiu, só um pequeno homem com um chapéu fedora que estava registrado no hotel com o nome de Feliks Adler.

Gabriel foi até o telefone e fez duas ligações, uma para o hóspede no quarto 428, a outra para o manobrista, pedindo seu carro. Então, ele colocou uma Beretta na cintura, vestiu uma jaqueta de couro e cobriu o rosto, que tinha aparecido em muitas telas de televisão aquele dia, com um chapéu. O corredor do lado de fora do seu quarto estava vazio, assim como o elevador que o levou ao lobby. Ele passou sem ser notado pela segurança e os policiais, saindo para a noite fria. O Audi esperava na entrada; Keller já estava atrás do volante. Gabriel o levou para a ponta oriental do Stadtpark e seguiram o caminho enquanto Reza Nazari passava debaixo de um poste de luz. Uma Mercedes esperava ali, as luzes apagadas, dois homens dentro. Nazari entrou no banco traseiro e o carro se afastou rapidamente. O iraniano não sabia naquele momento, mas tinha acabado de cometer o segundo grande erro de sua vida.

Gabriel ficou olhando os faróis traseiros do carro desaparecerem em uma linda rua vienense. Então, viu Herr Adler sair do parque. Tinha tirado o chapéu, o sinal de que o iraniano estava limpo e começou a voltar para o hotel. Herr Adler tinha pedido permissão para não participar das festividades daquela noite. Herr Adler nunca tinha gostado das partes mais duras.


41

BAIXA ÁUSTRIA
– AONDE ESTAMOS INDO?

— Algum lugar calmo.

— Não posso ficar longe do hotel por muito tempo.

— Não se preocupe, Reza. Ninguém vai virar abóbora essa noite.

Yaakov olhou muito por cima do ombro. Viena era uma mancha de luz amarela no horizonte. Na frente deles apareceram as terras cultiváveis e as videiras da Baixa Áustria. Mikhail estava dirigindo alguns quilômetros acima do limite de velocidade. Estava segurando o volante com uma mão e com a outra estava mantendo um ritmo nervoso no câmbio. Isso parecia incomodar Reza Nazari.

— Quem é seu amigo? — ele perguntou a Yaakov.

— Pode chamá-lo de Isaac.

— Filho de Abraão, pobre rapaz. Ainda bem que o arcanjo apareceu. Ou então... — Sua voz desapareceu. Estava olhando os campos escuros pela janela. — Por que não vamos nos encontrar em nosso local de sempre?

— Mudança de cenário.

— Por quê?

— Você viu as notícias hoje?

— Allon?

Yaakov assentiu.

— Minhas condolências — disse o iraniano.

— Poupe-me, Reza.

— Ele ia ser o chefe, não ia?

— Ouvimos rumores sobre isso.

— Então suponho que Uzi vai manter seu emprego. Ele é um bom homem, Uzi, mas não é Gabriel Allon. Uzi recebeu todo o crédito por detonar nossas instalações de enriquecimento, mas todo mundo sabe que foi Allon que inseriu aquelas centrífugas sabotadas em nossa cadeia de suprimentos.

— Que centrífugas?

Reza Nazari sorriu. Foi um sorriso profissional, cuidadoso, discreto. Era um homem pequeno e magro com profundos olhos castanhos e uma barba bem aparada, um homem de escritório em vez de campo, um homem moderado — ou era o que ele afirmou quando se aproximou do Escritório dois anos antes, durante uma visita de trabalho a Istambul. Ele disse que queria poupar seu país de outra guerra desastrosa, que queria servir como uma ponte entre o Escritório e os homens progressistas dentro do VEVAK, como ele. A ponte não tinha saído barata. Nazari tinha recebido mais de um milhão de dólares, uma soma assombrosa pelos padrões do Escritório. Em troca, forneceu constantes informações de inteligência de alto grau que tinha dado aos líderes políticos e militares de Israel uma janela sem precedentes das intenções iranianas. Nazari era tão valioso que o Escritório tinha criado uma via de escape para sua família caso sua traição fosse descoberta. Sem que Nazari soubesse, os procedimentos de fuga tinham sido ativados naquele dia.

— Estávamos mais perto de uma arma do que vocês tinham pensado — Nazari estava falando. — Se Allon não tivesse destruído aquelas quatro instalações de enriquecimento, poderíamos ter uma arma em um ano. Mas reconstruímos essas instalações e acrescentamos mais algumas. E agora...

— Estão perto de novo.

Nazari assentiu.

— Mas isso parece não incomodar seus amigos nos Estados Unidos. O presidente quer esse acordo. É seu legado, como eles dizem.

— O legado do presidente não é problema do Escritório.

— Mas vocês compartilham a conclusão dele de que um Irã nuclear é inevitável. Uzi não tem apetite para um confronto militar. Allon era outra história, no entanto. Ele teria nos arrasado se tivesse a chance. — O iraniano balançou a cabeça lentamente. — Fico me perguntando por que ele estava seguindo aquele carro em Londres.

— É — disse Yaakov. — A gente fica se perguntando.

Uma placa na estrada passou rápido pela janela de Nazari: REPÚBLICA TCHECA 42 KM. Ele olhou para o relógio de novo.

— Por que não nos encontramos no local de sempre?

— Temos uma pequena surpresa para você, Reza.

— Que tipo de surpresa?

— Algo para mostrar nosso apreço por tudo que você fez.

— Muito longe ainda?

— Não está longe.

— Tenho de voltar ao hotel à meia-noite, no máximo.

— Não se preocupe, Reza. Sem abóboras.

Yaakov Rossman tinha sido inteiramente honesto em relação a duas coisas importantes. Ele realmente tinha uma surpresa para seu agente e eles não estavam longe do destino. Era uma casa localizada a cinco quilômetros ao oeste da cidade de Eibesthal, uma construção pequena e pitoresca com um vinhedo de um lado e um campo vazio do outro. O exterior seguia um agradável estilo italiano amarelo; as janelas eram brancas. Era pouco ameaçadora em todos os aspectos, exceto pelo isolamento. Mais de um quilômetro separava a casa de seu vizinho mais próximo. Um grito de ajuda não seria ouvido. O barulho de uma arma sem silenciador morreria no terreno acidentado.

A casa estava a uns cinquenta metros da estrada e um caminho de terra com pinheiros levava até a entrada. Estacionado do lado de fora havia um Audi A6, com o motor ligado, a capota ainda quente. Mikhail parou ao lado, desligou o carro, apagou as luzes. Yaakov olhou para Nazari e sorriu, hospitaleiro.

— Você não trouxe nada estúpido essa noite, não é, Reza?

— Como o quê?

— Como uma arma.

— Nada de armas — respondeu o iraniano. — Só um cinturão de bombas.

O sorriso de Yaakov desapareceu.

— Abra o casaco — falou.

— Há quanto tempo estamos trabalhando juntos?

— Dois anos — respondeu Yaakov —, mas esta noite é diferente.

— Por quê?

— Você vai ver em um minuto.

— Quem está aí?

— Abra o casaco, Reza.

O iraniano obedeceu. Yaakov fez uma busca rápida, mas completa. Não encontrou nada além de uma carteira, um celular, um maço de cigarros franceses, um isqueiro e a chave do quarto no InterContinental de Viena. Ele enfiou todos os itens no porta-luvas e acenou para o espelho retrovisor. Mikhail saiu do banco do motorista e abriu a porta de Nazari. Na luz rápida, Yaakov viu o primeiro traço de algo mais do que apenas apreensão no rosto do iraniano.

— Algo errado, Reza?

— Você é um israelense, sou iraniano. Por que deveria estar nervoso?

— Você é o nosso ativo mais importante, Reza. Algum dia, vão escrever um livro sobre nós.

— Que seja publicado muito tempo depois da nossa morte.

Nazari saiu do carro e, com Mikhail ao lado, começou a avançar para a entrada da casa. Era um caminho de vinte passos, tempo suficiente para Yaakov sair do banco de trás e tirar a arma do coldre. Ele enfiou a arma no bolso do casaco e estava a um passo atrás de seu agente quando chegaram à porta. Mikhail a abriu. Nazari hesitou, depois, cutucado por Yaakov, seguiu Mikhail.

O hall de entrada estava na semiescuridão, mas a luz brilhava de dentro e havia fumaça de madeira no ar. Mikhail seguiu em frente até a sala de estar, onde havia uma grande lareira acesa. Gabriel e Keller estavam na frente dela, de costas para a sala, aparentemente perdidos em seus pensamentos. Vendo os dois homens, Nazari congelou e depois recuou. Yaakov segurou um braço, Mikhail, o outro. Juntos, levantaram Nazari um pouco, assim seus sapatos podiam se afastar do chão de madeira.

Gabriel e Keller se olharam, deram um sorriso, uma piada interna à custa de seu visitante. Então Gabriel se virou lentamente, como se até aquele momento não tivesse prestado atenção na comoção atrás de si. Nazari estava se contorcendo, os olhos fundos abertos com terror. Gabriel olhou para ele calmamente, a cabeça inclinada para um lado, uma mão descansando no queixo.

— Algo errado, Reza? — ele perguntou finalmente.

— Você está...

— Morto? — Gabriel sorriu. — Desculpa, Reza, mas parece que você errou.

Na mesinha de centro havia uma Glock calibre 45, uma arma de destruição em massa. Gabriel se abaixou, pegou a arma, verificou seu peso e equilíbrio. Ofereceu-a para Keller, que afastou a mão na defensiva, como se fosse a oferta de uma brasa do fogo. Então Gabriel se aproximou de Nazari lentamente e parou a um metro dele. A arma estava na mão direita de Gabriel. Com a mão esquerda ele agarrou, com a velocidade de ataque de uma cobra, a garganta de Nazari. Instantaneamente, o rosto do iraniano ficou da cor de uma ameixa madura.

— Tem algo que gostaria de me contar? — perguntou Gabriel.

— Sinto muito — arfou o iraniano.

— Eu também, Reza. Infelizmente, é muito tarde para isso.

Gabriel apertou mais forte até conseguir sentir a cartilagem começar a quebrar. Então, colocou a arma na testa de Nazari e apertou o gatilho. Quando a arma estourou, Keller se virou e olhou para o fogo. Era pessoal, ele estava pensando. E, quando é pessoal, tudo tende a ficar confuso.


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A BALA DE 45 QUE Gabriel atirou em Reza Nazari não continha projetil, mas sua carga de pólvora era suficiente para produzir ruído que estilhaçava o ouvido e muita luz que deixava um pequeno círculo queimado no centro da testa, como uma marca de oração de um devoto muçulmano. Também era suficiente para derrubar Nazari no chão como uma pedra. Por vários segundos, ele não se mexeu nem parecia respirar. Então, Yaakov se ajoelhou e deu um tapa no seu rosto que o trouxe de volta à consciência.

— Seu maldito — ele gaguejou. — Seu maldito filho da puta.

— Eu tomaria cuidado com o que fala, Reza. Ou da próxima vez a bala pode ser real.

Há alguns homens que ficam catatônicos com o medo e outros que respondem com inúteis amostras de falsa coragem. Reza Nazari escolheu a segunda, talvez reagindo a seu treinamento, talvez porque temesse que não havia nada a perder. Ele deu um chute violento do qual Gabriel desviou facilmente. Depois se agarrou à perna de Mikhail em uma tentativa de derrubá-lo. Um golpe violento abaixo da omoplata foi suficiente para evitar o ataque. Então Mikhail saiu de lado para permitir que Yaakov terminasse o trabalho. Por dois anos, Yaakov tinha cuidado de seu agente, adulado, tinha dado a ele uma soma exorbitante de dinheiro. Agora, por dois horríveis minutos, ele deu uma surra que combinava com as transgressões de Nazari. Ele evitou acertar o rosto do iraniano, no entanto. Era importante que Nazari continuasse apresentável.

Keller não participou na surra em Reza Nazari. Em vez disso, tranquilo, tinha colocado uma cadeira de madeira e sem braços, na frente do fogo. Nazari caiu sobre ela e não ofereceu resistência quando Yaakov e Mikhail prenderam seu torso com fita adesiva. Em seguida, prenderam suas pernas enquanto Gabriel calmamente recarregou a Glock. Ele mostrou cada bala para Nazari antes de enfiá-las no pente. Não havia mais nenhuma vazia. A arma estava carregada com munição de verdade.

— Você tem uma escolha simples — disse Gabriel depois de enfiar o pente no cabo e armá-la. — Pode viver ou pode se tornar um mártir. — Ele colocou a ponta do revólver no meio dos olhos de Nazari. — Qual vai ser, Reza?

O iraniano olhou para a arma em silêncio. Finalmente, falou:

— Eu gostaria de viver.

— Escolha inteligente. — Gabriel abaixou a arma. — Mas, infelizmente, você não vai viver de graça, Reza. Terá de pagar um tributo.

— Quanto?

— Primeiro, você vai me contar como você e seus amigos russos conspiraram para me matar.

— E depois?

— Você vai me ajudar a encontrá-los.

— Eu não aconselho isso, Allon.

— Por que não?

— Porque o homem que ordenou sua morte é muito importante para ser morto.

— Quem foi?

— Diga você.

— O chefe do SVR?

— Não seja tonto — disse Nazari, incrédulo. — Nenhum chefe do SVR iria atrás de você sem aprovação. A ordem veio do alto.

— O presidente russo?

— Claro.

— Como você sabe?

— Confie em mim, Allon, eu sei.

— Isso poderia ser surpresa para você, Reza, mas você é a última pessoa do mundo em quem eu confio nesse momento.

— Posso garantir — disse Nazari, olhando para a arma — que o sentimento é mútuo.

Ele pediu para ser liberado e ser tratado com um pouco de dignidade. Gabriel se recusou a fazer as duas coisas, apesar de servir um pouco de água, para pelo menos limpar a garganta machucada dele. Yaakov colocou o copo nos lábios do agente enquanto ele bebia e depois limpou umas gotas do terno dele. O iraniano notou o gesto.

— Posso fumar um cigarro? — ele pediu.

— Não — respondeu Gabriel.

Nazari sorriu.

— Então é realmente verdade. O grande Gabriel Allon não gosta de fumaça de cigarro. — Ainda sorrindo, ele olhou para Yaakov. — Mas não meu amigo aqui. Lembro-me de nossa primeira reunião naquele quarto de hotel em Istambul. Achei que íamos colocar o alarme de fumaça para funcionar.

Parecia um bom começo, então Gabriel iniciou seu interrogatório aí — o dia de outono, dois anos antes, quando Reza Nazari estava em Istambul para uma rodada de reuniões com a inteligência turca. Durante uma parada nas reuniões, ele caminhou até um pequeno hotel no Bósforo e, em um quarto, teve sua primeira reunião com um homem que só conheceria como o “sr. Taylor”. Ele falou para o sr. Taylor que queria trair seu país e como prova de sua boa-fé entregou um pendrive cheio de informações de alto nível, incluindo documentos relacionados com o programa nuclear do Irã.

— Os documentos eram verdadeiros?

— Claro.

— Você os roubou?

— Não precisei.

— Quem deu para você?

— Meus superiores no Ministério de Inteligência.

— Você mentiu desde o começo?

Nazari assentiu.

— Quem era seu oficial de controle?

— Prefiro não falar.

— E eu prefiro não espalhar seu cérebro pela parede, mas farei isso se for preciso.

— Era Esfahani.

Mohsen Esfahani era o segundo na hierarquia do VEVAK.

— Qual era o objetivo da operação? — perguntou Gabriel.

— Influenciar o pensamento do Escritório sobre as capacidades e intenções iranianas.

— Taqiyya.

— Chame como quiser, Allon. Nós, os persas, fazemos isso há muito tempo. Até mais do que os judeus.

— Se eu fosse você, Reza, não ficaria me vangloriando. Ou vou deixar o sr. Taylor se divertir com você.

O iraniano ficou em silêncio. Gabriel perguntou sobre o milhão de dólares que o Escritório tinha colocado em um banco privado em Luxemburgo para uso de Nazari.

— Presumimos que vocês estavam vigiando o dinheiro — respondeu o iraniano —, então, Esfahani me instruiu a gastar um pouco. Comprei presentes para meus filhos e um colar de pérolas para minha esposa.

— Nada para Esfahani?

— Um relógio de ouro, mas ele mandou que eu devolvesse. Mohsen é um verdadeiro crente. Ele é como você, Allon. Totalmente incorruptível.

— Onde você ouviu algo assim?

— Nossos arquivos sobre você são bem grossos.

Nazari parou, e então disse:

— Quase tão grosso quanto o do Moscou Center. Mas acho que isso é compreensível. Você nunca pisou em solo iraniano, pelo menos não que saibamos. Na Rússia, no entanto... — Ele sorriu. — Bom, digamos apenas que você tem muitos inimigos lá, Allon.

Entre as muitas coisas que o Escritório não sabia sobre seu apreciado agente era que ele tinha sido a principal ligação entre o VEVAK e o SVR. A razão era bastante simples, ele explicou. Nazari tinha estudado história russa na universidade, falava russo fluentemente e tinha operado no Afeganistão durante a ocupação soviética. Em Cabul, ele tinha conhecido vários agentes da KGB, inclusive um jovem que parecia destinado à promoção. Isso acabou sendo realidade; o homem, agora, era um dos mais poderosos do Moscou Center. Nazari se encontrava regularmente com ele para resolver questões que iam do programa nuclear do Irã à guerra civil na Síria, onde VEVAK e SVR tinham trabalhando incansavelmente para garantir a sobrevivência de seu estado de sítio.

— O nome dele? — perguntou Gabriel.

— Como você — respondeu Nazari —, ele usa muitos nomes diferentes. Mas se eu tivesse de adivinhar, diria que seu nome real é Rozanov.

— Primeiro nome?

— Alexei.

— Descreva-o.

O iraniano fez uma vaga descrição de um homem que media aproximadamente 1,82m e tinha cabelo loiro meio grisalho, o qual penteava igual ao do presidente russo.

— Idade?

— Pode ter uns cinquenta.

— Idiomas?

— Ele pode falar qualquer idioma que quiser.

— Com que frequência você se encontra com ele?

— Uma vez a cada dois ou três meses, mais frequentemente se for necessário.

— Onde?

— Às vezes viajo a Moscou. Normalmente, nos encontramos em um terreno neutro na Europa.

— Que tipo de terreno neutro?

— Casas seguras, restaurantes — ele deu de ombros —, como sempre.

— Quando foi a última vez?

— Há um mês.

— Onde?

— Copenhague.

— Em que lugar de Copenhague?

— Um pequeno restaurante em New Harbor.

— Você falou sobre mísseis nucleares e Síria aquela noite?

— Na verdade — disse Nazari —, só havia um item na agenda.

— Qual era?

— Você.


43

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MAS ELES ESTAVAM INDO rápido demais, porque Copenhague não foi a primeira vez que Reza Nazari e Alexei Rozanov tinham conversado muito sobre Gabriel Allon. O nome tinha sido importante em muitos de seus encontros anteriores, mas nunca com mais urgência ou raiva do que durante um jantar dez meses antes na cidade velha de Zurique. O SVR estava em crise. O corpo de Pavel Zhirov tinha acabado de ser encontrado congelado em Tver Oblast, Madeline Hart tinha fugido para a Inglaterra e a empresa de energia do Kremlin tinha perdido os direitos de exploração de petróleo no mar do Norte.

— E o culpado de tudo isso — disse Nazari —, tinha sido você.

— Quem falou isso?

— A única pessoa que importa na Rússia. O Chefe.

— Imagino que o Chefe me queria morto.

— Não apenas morto — respondeu Nazari. — Queria que fosse feito de um jeito que a Rússia não pudesse ser envolvida. Também queria punir os britânicos. Graham Seymour, em especial.

— E foi por isso que os russos escolheram Eamon Quinn.

Nazari não falou nada.

— Presumo que você conhecia o nome de Quinn.

— Eu o considerava um amigo.

— Porque foi você que chamou Quinn para construir armas antitanque para o Hezbollah.

Nazari assentiu.

— Uma arma que poderia fazer uma bola de fogo viajar a trezentos metros por segundo.

— Eram muito eficientes, como descobriu a IDF.

Yaakov se aproximou com raiva de Nazari, mas Gabriel o impediu e continuou com seu questionamento.

— O que Rozanov queria de você?

— Naquele momento, só que eu o apresentasse.

— E você concordou?

— Quando se tratava de você — disse Nazari —, nossos interesses combinavam com os dos russos.

Naquela época, Nazari contou, Quinn estava vivendo na Venezuela sob a proteção de Hugo Chávez, que logo morreria. Seu futuro era incerto. Não estava muito claro se o sucessor de Chávez iria permitir que ele ficasse no país ou se poderia usar um passaporte venezuelano. Cuba era uma possibilidade, mas Quinn não estava interessado em viver aos pés dos irmãos Castro. Ele precisava de um novo lar, um novo patrocinador.

— O momento — disse Nazari — não poderia ser melhor.

— Onde se encontrou com ele?

— Em um hotel no centro de Caracas.

— Havia outra pessoa ali?

— Rozanov trouxe uma mulher.

Gabriel colocou uma fotografia de Katerina parada na varanda de Quinn em Lisboa. Nazari assentiu.

— Qual era o papel dela na operação?

— Não tinha conhecimento de todos os detalhes. Nesse momento, eu era apenas a ligação com Quinn.

— Quanto ele recebeu?

— Dez milhões.

— Antecipadamente?

— Depois de completada a missão.

— Minha morte?

Nazari olhou para Keller e disse:

— A dele também.

O que os levou de volta a Copenhague. Alexei Rozanov estava nervoso, mas animado aquela noite. O primeiro alvo tinha sido escolhido. Tudo de que Rozanov precisava era alguém para sussurrar o nome de Quinn no ouvido da inteligência israelense e britânica. Ele pediu que Nazari fosse seu mensageiro e ele imediatamente recusou.

— Por quê?

— Porque não queria fazer nada que pudesse causar problemas para minha posição com o sr. Taylor.

— O que o fez mudar de ideia?

Nazari ficou em silêncio.

— Quanto ele pagou a você, Reza?

— Dois milhões.

— Onde está o dinheiro?

— Ele queria depositar em um banco em Moscou, mas eu insisti na Suíça.

Gabriel pediu a Nazari o nome do banco, o número da conta e a senha. Nazari forneceu a informação. O banco ficava em Genebra. Recentemente, o Escritório tinha achado necessário examinar o balanço da instituição. Ter acesso aos fundos de Nazari não seria um grande desafio.

— Acho que você não mencionou nada disso a Mohsen Esfahani.

— Não — respondeu Nazari depois de hesitar por um momento. — Mohsen não sabe de nada.

— E sua esposa? — Perguntou Gabriel. — Você mencionou algo a ela?

— Por que está perguntando algo assim?

— Porque sou curioso por natureza.

— Não — falou Nazari, novamente depois de hesitar. — Minha esposa não sabe de nada.

— Talvez você devesse contar a ela.

Gabriel aceitou um celular de Mikhail e ofereceu a Nazari. O iraniano olhou para o aparelho, sem compreender.

— Vá em frente, Reza. Ligue para ela.

— O que você fez?

— Puxamos o alarme de incêndio.

— O que isso significa?

Foi Yaakov que explicou.

— Lembra-se da saída de emergência que criamos para você e sua família, Reza? A saída de emergência que não seria necessária porque você nunca disse a verdade?

O pânico se espalhou como fogo pelo rosto do iraniano.

— Mas você nunca mencionou nada disso para sua esposa — continuou Yaakov. — Na verdade, você deixou a saída de emergência no lugar, caso as coisas dessem errado no VEVAK e você precisasse de um porto no meio da tempestade. Tudo que precisamos fazer foi puxar o alarme de incêndio e eles...

— Onde estão eles? — Nazari interrompeu.

— Posso dizer onde eles não estão, Reza, e é na República Islâmica do Irã.

Uma calma perigosa se estabeleceu nos olhos fundos de Nazari. Eles foram lentamente de Yaakov para Gabriel.

— Você acabou de cometer um erro, meu amigo. Um homem como você sabe bem os riscos de usar membros inocentes da família como alvos.

— Essa é uma das grandes coisas de estar morto, Reza. Não sou mais vítima de uma consciência culpada.

Gabriel hesitou e depois continuou:

— Isso deixa meu pensamento mais claro. — Ele afastou o celular. — A pergunta é: eu deixei seu pensamento mais claro também?

O olhar de Nazari foi do rosto de Gabriel para o fogo. A calma perigosa tinha desaparecido. Tinha sido substituída por desespero, a percepção de que não tinha escolha a não ser se colocar à mercê de um inimigo mortal.

— O que você quer de mim? — ele perguntou finalmente.

— Quero que você salve sua família. E a si mesmo.

— E como eu poderia fazer isso?

— Ajudando-me a encontrar Eamon Quinn e Alexei Rozanov.

— Não é possível, Allon.

— Quem falou isso?

— O Chefe.

— Eu sou o chefe agora — falou Gabriel. — E você está trabalhando para mim.

Eles usaram a hora seguinte para repassar tudo novamente, desde o começo. Prestaram particular atenção aos detalhes da conta bancária em Genebra e as circunstâncias da última reunião de Nazari com Alexei Rozanov em Copenhague. A data precisa, o nome do restaurante, a hora e a maneira da chegada deles, os nomes dos hotéis onde tinham ficado.

— E sua próxima reunião? — perguntou Gabriel.

— Não temos nada planejado.

— Quem normalmente inicia o contato?

— Isso depende da situação. Se Alexei tem algo a discutir, ele faz contato e sugere um local. E se eu preciso vê-lo...

— Como você faz contato com ele?

— De uma forma que vocês e a NSA não conseguem monitorar.

— Você manda um e-mail inocente em uma conta que parece inofensiva?

— Às vezes — disse Nazari — as formas simples são as melhores.

— Qual é o e-mail de Rozanov?

— Ele usa vários.

Nazari então recitou quatro endereços de memória. Eram todas combinações aleatórias de letras e números. Foi uma demonstração incrível de memória.

Nesse momento, já eram quase 11 horas. Havia pouco tempo para devolver Nazari ao InterContinental. Gabriel avisou o iraniano das consequências de qualquer quebra do acordo ao qual tinham chegado. Então, o liberou da cadeira. Nazari parecia surpreendentemente bem para um homem que tinha sido sujeitado a uma surra e a uma falsa execução. A única evidência visível de seu sofrimento era a pequena queimadura no centro da testa.

— Coloque um pouco de gelo quando voltar ao quarto — disse Yaakov enquanto colocava Nazari de volta no carro. — Queremos que você esteja bem para as negociações amanhã.

Eles o deixaram na parte oriental do Stadtpark, e Mikhail o seguiu de volta ao hotel. O lobby estava deserto; Nazari entrou sozinho em um elevador e subiu até o sétimo andar, onde seu quarto comprometido esperava por ele. Em frente a um laptop no quarto ao lado, Eli Lavon ouviu o que aconteceu em seguida. Um homem vomitando muito no banheiro, um homem chorando incontrolavelmente depois que uma ligação para sua casa em Teerã não foi atendida. Lavon abaixou o volume e deu à sua presa um pouco de privacidade. Jogo de gente grande, ele pensou. Regras de gente grande.


44

COLINAS SPARROW, MOSCOU

O SONHO DE KATERINA AKULOVA aconteceu como sempre. Ela estava caminhando por uma floresta de bétulas perto de seu antigo campo de treinamento quando as árvores se abriram como uma cortina e um lago azul cristalino apareceu. Ela não precisava tirar a roupa; em seus sonhos ela estava sempre nua, não importava a situação. Deslizou pela superfície calma e nadou pelas ruas de sua falsa vila alemã. Então, a água se transformava em sangue e ela percebia que estava se afogando. Sem oxigênio, seu coração batendo nas costelas, lutava selvagemente para chegar à luz, mas sempre que alcançava a superfície, uma mão a puxava para baixo de novo. Era a mão de uma mulher, macia e perfeita. Apesar de Katerina nunca ter sentido seu toque, ela sabia que era a mão da sua mãe.

Finalmente, se sentava na cama, procurando por ar como se não tivesse respirado por vários minutos. O cabelo dela estava úmido, as mãos tremiam de medo. Pegou o cigarro, acendeu um com dificuldade e tragou fundo a fumaça em seus pulmões. A nicotina a acalmou, como sempre. Olhou o relógio e viu que era quase meio-dia. De alguma forma, tinha dormido quase 12 horas. Do lado de fora, a neve da noite anterior tinha parado e um raio branco de sol brilhava no céu pálido. Moscou, ao que parecia, tinha conseguido que o inverno fosse adiado por algumas horas.

Katerina colocou os pés no chão, foi se arrastando até a cozinha e fez uma xícara de café na cafeteira automática. Bebeu enquanto estava parada na frente da máquina e imediatamente preparou outra. O celular do SVR estava em cima do balcão. Ela o pegou e franziu a testa ao olhar a tela. Ainda não havia nenhuma ordem de partida de Alexei. Ela estava convencida de que não era um descuido da parte dele. Ele tinha seus motivos. Sempre tinha.

Verificou a previsão do tempo. Estava alguns graus acima de zero, algo raro em Moscou nessa época do ano, e esperava-se um céu limpo pelo resto da tarde. Já fazia um bom tempo que ela não se exercitava e decidiu que uma corrida faria bem. Levou o café até o quarto e se vestiu: calça e camiseta, um agasalho para baixas temperaturas, um par de tênis novos — tênis genuínos norte-americanos, não os baratos e surrados que saíam das fábricas russas. Melhor correr descalça do que com tênis russos. Em seguida, tirou um par de luvas pesadas e prendeu o cabelo debaixo de um chapéu de lã. Tudo que faltava era sua arma, uma Makarov 9mm que ela odiava carregar quando estava correndo. Além disso, se algum pervertido cheio de vodca na cabeça fosse tonto o suficiente para tentar algo, era mais do que capaz de se cuidar. Ela já tinha deixado um assediador inconsciente nos caminhos do parque Gorky. Alexei tinha terminado o trabalho — pelo menos era o rumor no Moscou Center. Katerina nunca se preocupou em perguntar o destino do homem. Ele tinha merecido, quem quer que fosse.

Ela se alongou por uns minutos enquanto fumava o segundo cigarro e bebia a terceira xícara de café preto. Desceu de elevador até o lobby e, ignorando o cumprimento bêbado do porteiro com a barba por fazer, saiu para a rua. A calçada estava sem neve; ela estabeleceu um ritmo tranquilo para o oeste até Michurinsky Prospekt. Deu a volta na Universidade Estatal de Moscou, a escola que Katerina poderia ter frequentado se tivesse sido uma criança normal e não a filha de uma oficial da KGB que tinha se esquecido de tomar a pílula anticoncepcional enquanto era parte de uma armadilha sexual.

No fundo da colina, virou à direita seguindo a gentil curva da rua Kosygina. No meio havia um caminho pavimentado com fileiras de árvores sem folhas dos dois lados. Suas pernas estavam começando a esquentar; ela podia sentir as primeiras gotas de transpiração formando-se debaixo da jaqueta. Aumentou o ritmo. Passou por uma igreja verde e branca, e o ponto de observação das colinas Sparrow, onde dois recém-casados sorrindo estavam posando para fotografias tendo a cidade como fundo. Era uma tradição dos casais russos que Katerina nunca iria experimentar. No improvável evento de que ela se casasse, o SVR teria de aprovar seu marido. O casamento aconteceria em segredo e nenhum fotógrafo estaria presente. Nem família também. Não era problema para Katerina, pois ela não tinha ninguém.

Era sua intenção correr até a Academia de Ciências da Rússia e depois voltar para casa pela margem do rio Moscou. Porém, quando passou pela entrada espalhafatosa do hotel Korston, percebeu que estava sendo seguida por um Range Rover com vidros escurecidos. Ela tinha visto o carro pela primeira vez em Michurinsky Prospekt e uma segunda vez no ponto de observação das Sparrow, onde um dos ocupantes, um homem com casaco de couro, tinha fingido admirar a vista. Agora o veículo estava estacionado em frente ao Korston, e o homem de casaco de couro estava caminhando na direção de Katerina por entre as árvores. Tinha mais de 1,82m, bem mais de noventa quilos e caminhava movendo os braços como alguém que passou muito tempo na academia.

Ia contra o treinamento de Katerina virar as costas para um perigo em potencial, então, ela continuou na direção do homem no mesmo ritmo, os olhos para frente, como se apenas tivesse percebido vagamente a presença dele. As mãos dele estavam enfiadas nos bolsos do casaco de couro. Quando ela tentou passar, ele tirou a mão direita e agarrou-a pelo bíceps. Era como ser agarrada pela garra de uma escavadeira mecânica. O pé de Katerina derrapou. Ela teria caído no chão se a mão não a tivesse mantido de pé.

— Ei, me solta! — ela gritou.

— Nyet — ele disse friamente.

Katerina tentou empurrá-lo, mais um aviso do que uma verdadeira tentativa de fugir, mas ele a apertou ainda mais forte. O movimento dela foi totalmente instintivo. Ela pisou forte no pé direito dele e cegou-o enfiando os dois dedos nos olhos. Ele relaxou o aperto, ela se equilibrou e levantou um joelho na direção da virilha. Ela se equilibrou de novo e deu uma violenta cotovelada na testa, que o derrubou no chão. Estava se preparando para fazer um dano permanente em seu pescoço exposto, mas parou quando ouviu uma risada no caminho atrás dela. Colocou as mãos no joelho e lutou para conseguir respirar o ar gelado. Sua boca tinha gosto de sangue. Ela imaginou que era o sangue dos seus sonhos.

— Por que fez isso?

— Queria ter certeza de que você estava pronta para voltar ao campo.

— Estou sempre pronta.

— Você deixou isso bem óbvio. — Alexei Rozanov balançou a cabeça lentamente. — Esse pobre diabo nunca mais vai precisar se preocupar com camisinhas. Acho que está melhor assim.

Eles estavam no carro de Rozanov, que estava preso no trânsito na rua Kosygina. Aparentemente, houve um acidente em algum ponto. Isso era comum.

— Quem era ele? — Katerina perguntou.

— O jovem que você quase matou?

Ela assentiu.

— É recém-formado na escola de inteligência da KGB. Até hoje eu tinha muita esperança nele.

— Em que planejava usá-lo?

— Trabalho muscular — disse Rozanov, sem um traço de ironia.

O carro avançava muito lentamente. Rozanov tirou um Dunhill do bolso do casaco e permaneceu pensativo.

— Quando você voltar a seu apartamento — disse após um momento —, vai encontrar uma maleta esperando no hall de entrada, junto com um passaporte e seus documentos de viagem. Você parte amanhã de manhã.

— Para onde?

— Vai passar uma noite em Varsóvia para estabelecer sua identidade. Depois, vai cruzar a Europa até Roterdã. Reservamos um quarto para você em um hotel perto do terminal de balsa. Um carro estará esperando do outro lado.

— Que tipo de carro?

— Um Renault. A chave estará escondida no lugar de sempre. As armas estarão escondidas na parte de trás. Vamos colocar uma Skorpion. — Rozanov sorriu. — Você sempre gostou da Skorpion, não é, Katerina?

— E o Quinn? — perguntou.

— Ele vai até seu hotel. — Rozanov parou, depois acrescentou: — Acho que ele não vai estar de bom humor.

— Qual é o problema?

— O presidente decidiu adiar o pagamento do dinheiro até ele completar a segunda fase da operação.

— Por que o presidente faria algo assim?

— Para dar um incentivo ao Quinn — respondeu Rozanov. — Nosso amigo irlandês tem um longo histórico de resolver as coisas do seu jeito. Aquela mensagem de texto que ele insistiu em mandar a Allon quase destruiu uma operação perfeitamente planejada.

— Você não deveria ter dado o número do Allon.

— Não tive escolha. Quinn foi muito específico em suas exigências. Ele queria que Allon soubesse que havia uma bomba naquele carro. E queria que ele soubesse quem tinha colocado.

Eles tinham conseguido voltar ao ponto de observação da colina. Os recém-casados tinham ido embora; um novo casal havia tomado o lugar deles. Posando junto havia uma criança, uma menina de seis ou sete anos usando um vestido branco, com flores no cabelo.

— Bonita garota — disse Rozanov.

— É — disse Katerina, distante.

Rozanov olhou para ela por um momento.

— É minha imaginação — ele perguntou finalmente — ou você está relutante em voltar a campo?

— É sua imaginação, Alexei.

— Porque se não for capaz de realizar seus deveres, eu preciso saber.

— Pergunte ao seu novo castrati se sou capaz.

— Sei que você é...

— Não tem nenhum problema — ela disse, cortando.

— Esperava que essa fosse sua resposta.

— Você sabia que seria.

Eles tinham chegado à fonte do congestionamento. Havia uma idosa morta na rua. Sua sacola de compras desamarrada estava caída ao lado dela; maçãs espalhadas por todo o asfalto. Alguns carros buzinavam em protesto. Nova ou velha, não importava. A vida era barata na Rússia.

— Meu Deus — disse Rozanov baixinho quando o corpo esmagado da velha passou por sua janela.

— Não acredito que fique mal pela visão de um pouco de sangue.

— Não sou como você, Katerina. Mato com papel e caneta.

— Eu também, se não tiver outra coisa disponível.

Rozanov sorriu.

— É bom saber que você ainda tem seu senso de humor.

— É preciso ter senso de humor nessa linha de trabalho.

— Concordo plenamente. — Rozanov tirou uma pasta da maleta.

— O que é isso?

— O presidente tem mais um trabalho que ele gostaria que você resolvesse antes de voltar para a Rússia.

Katerina aceitou a pasta e olhou para a fotografia na primeira página. Novo ou velho, não importava. A vida era barata na Rússia. Inclusive a dela.


45

COPENHAGUE, DINAMARCA
– DESCULPE — DISSE LARS Mortensen —, mas não entendi seu nome.

— Merchant — respondeu Christopher Keller.

— Você é israelense?

— Infelizmente, sim.

— E o sotaque?

— Nascido em Londres.

— Entendo.

Mortensen era o chefe do PET, o pequeno mas eficiente serviço de segurança e inteligência interno da Dinamarca. Oficialmente, era um ramo da polícia nacional do país e operava sob a autoridade do Ministério da Justiça. Sua sede estava localizada em um escritório anônimo ao norte dos Jardins de Tivoli. O escritório de Mortensen ficava no andar mais alto. Os móveis eram sólidos, pálidos e dinamarqueses. Assim como Mortensen.

— Como você poderia esperar — Mortensen estava falando —, a morte de Allon foi um terrível choque para mim. Eu o considerava um amigo. Trabalhamos juntos em um caso há alguns anos. As coisas deram errado em uma casa no norte. Eu cuidei disso para ele.

— Eu lembro.

— Você trabalhou naquele caso também?

— Não.

Mortensen bateu a ponta de uma caneta prateada contra o conteúdo de uma pasta aberta.

— Allon parecia o tipo de homem que seria difícil de matar. É difícil imaginar que ele realmente morreu.

— Sentimos o mesmo.

— E esse pedido de vocês? Tem algo a ver com a morte de Allon?

— Prefiro não falar.

— E eu prefiro não estar nessa reunião — disse Mortensen, frio. — Mas quando um amigo pede um favor, eu tento acomodar as coisas.

— Nosso serviço passou por uma terrível perda — disse Keller depois de um tempo. — Como você pode imaginar, não estamos focados em nada mais.

Era pouca coisa, mas o suficiente para o agente dinamarquês.

— O que vamos procurar no vídeo?

— Dois homens.

— Onde eles se encontraram?

— Um restaurante chamado Ved Kajen.

— Em New Harbor?

Keller assentiu. Mortensen pediu a data e a hora. Keller as forneceu.

— E os dois homens? — perguntou Mortensen.

Keller entregou uma fotografia.

— Quem é ele?

— Reza Nazari.

— Iraniano?

Keller assentiu.

— VEVAK?

— Exatamente.

— E o outro homem?

— É um chefe do SVR chamado Alexei Rozanov.

— Você tem uma fotografia?

— É por isso que estou aqui.

Mortensen colocou a fotografia do iraniano em sua mesa e ficou pensativo.

— Somos um país pequeno — ele disse depois de um momento. — Um país pacífico, exceto por alguns milhares de islâmicos esquentados. Entende o que estou falando?

— Acho que sim.

— Não quero nenhum problema com os persas. Nem com os russos, por falar nisso.

— Não se preocupe, Lars.

Mortensen olhou para o relógio.

— Isso pode levar algumas horas. Onde você está hospedado?

— No D’Angleterre.

— Qual a melhor forma de entrar em contato?

— Telefone do hotel.

— Qual é o nome?

— LeBlanc.

— Achei que tinha dito que seu nome era Merchant.

— Disse.

Keller deixou a sede do PET a pé e caminhou até os Jardins de Tivoli — longe o suficiente para confirmar que Mortensen tinha designado duas equipes de vigilantes para segui-lo. O céu sobre Copenhague estava da cor de granito, e uns poucos flocos de neve giravam sob a luz dos postes. Keller cruzou o Rådhuspladsen e caminhou por Strøget, a principal rua para pedestres de Copenhague, antes de voltar ao imponente hotel D’Angleterre. No seu quarto, ele matou o tempo por uma hora assistindo às notícias. Então, ligou para a telefonista e, em um inglês com sotaque francês, disse que estava indo para o bar Balthazar. Passou mais uma hora na mesa de canto com apenas uma taça de brut. Era, ele pensou, desanimado, uma prévia da vida que o esperava no MI6. O grande Gabriel Allon, que descanse em paz, já tinha descrito a existência de um espião profissional como uma vida de viagens constantes e tédio entorpecedor quebrado por interlúdios de terror absoluto.

Finalmente, alguns minutos depois das sete, uma garçonete veio até ele e informou a Keller que tinha uma ligação. Ele atendeu no lobby. Era Lars Mortensen.

— Acho que podemos ter encontrado a imagem que você está procurando — ele falou. — Há um carro esperando do lado de fora.

Não foi difícil encontrar o sedan do PET. Estava ocupado por dois dos mesmos homens que o seguiram mais cedo. Eles o levaram de volta e o depositaram em uma sala na sede do PET equipada com uma grande tela de televisão. Nela havia uma imagem congelada de um homem com aparência de persa cruzando uma rua estreita de paralelepípedos. A data e a hora batiam com a informação que o iraniano tinha fornecido durante seu interrogatório nos arredores de Viena.

— Nazari? — perguntou Lars Mortensen.

Quando Keller assentiu, Mortensen apertou algumas teclas em um laptop aberto e novas imagens apareceram na tela. Um homem alto, rosto largo, com pouco cabelo. Um chefe do Moscou Center, se é que isso existe.

— Esse é o homem que você está procurando?

— Diria que é ele.

— Tenho mais umas poucas fotos e um pouco de vídeo, mas essa é definitivamente a melhor imagem.

Mortensen ejetou um disco do computador, colocou em uma caixinha e mostrou para Keller.

— Com os cumprimentos do povo dinamarquês — ele falou. — Sem custos.

— Foram capazes de encontrar algo sobre a viagem deles?

— O iraniano deixou Copenhague na manhã seguinte em um voo para Frankfurt. Era escala para Teerã.

— E o russo?

— Ainda estamos trabalhando nisso. — Mortensen entregou o disco a Keller. — Por falar nisso, a conta pelo jantar foi de mais de quatrocentos euros. O russo pagou em dinheiro.

— Foi uma ocasião especial.

— O que estavam comemorando?

Keller enfiou o disco no bolso do casaco.

— Entendo — disse Mortensen.

Na manhã seguinte, Christopher Keller voou para Londres. Foi recebido no aeroporto de Heathrow por uma equipe do MI6 e levado a uma velocidade estranhamente alta até uma casa segura na Bishop’s Road, em Fulham. Graham Seymour estava sentado em frente a uma mesa de linóleo na cozinha, o casaco Chesterfield jogado sobre uma das cadeiras. Com um movimento de olhos, ele instruiu Keller a se sentar. Empurrou uma única folha de papel sobre a mesa e colocou uma caneta prateada sobre ela.

— Assine.

— O que é isso?

— É pelo seu novo telefone. Se vai trabalhar para nós, não pode usar mais o antigo.

Keller pegou o documento.

— Minutos? Plano de dados? Esse tipo de coisa?

— Assine logo.

— Que nome devo usar?

— Seu nome real.

— Quando vou ter meu novo nome?

— Estamos trabalhando nisso.

— Tenho escolha?

— Não.

— Não parece muito justo.

— Nossos pais não permitem que a gente escolha nosso nome, nem o MI6.

— Se você tentar me chamar de Francis, eu volto para a Córsega.

Keller rabiscou algo ilegível na linha de assinatura do documento. Seymour entregou um BlackBerry novo e recitou um número de oito dígitos para a encriptação do MI6.

— Repita o número para mim — ele falou.

Keller repetiu.

— Não importa o que aconteça — disse Seymour —, nunca escreva esse número.

— Por que eu faria algo estúpido assim?

Seymour colocou outro documento na frente de Keller.

— Esse permite que você manuseie documentos do MI6. Você é membro do clube agora, Christopher. É um dos nossos.

A caneta de Keller se moveu sobre o papel.

— Algo errado? — perguntou Seymour.

— Só estou pensando se você realmente quer que eu assine isso.

— Por que não iria querer?

— Porque se eu puder atirar em Eamon Quinn...

— Então eu espero que você atire.

Seymour parou, depois acrescentou:

— Exatamente como quando você estava em Ulster.

Keller assinou o documento. Seymour entregou a ele um pendrive.

— O que é isso?

— Alexei Rozanov.

— Engraçado — disse Keller —, mas ele parecia mais alto nas fotos.

Keller voltou ao Heathrow a tempo de pegar o voo da British Airways do começo da tarde para Viena. Ele chegou alguns minutos depois das quatro e pegou um táxi para um endereço logo depois da Ringstrasse. Era um belo e antigo prédio estilo Biedermeier, com um café no térreo. Keller tocou a campainha, foi admitido no vestíbulo e subiu até o apartamento no terceiro andar. A porta se abriu um pouco. Um homem morto esperava ansiosamente dentro do apartamento.


46

VIENA

AS FOTOGRAFIAS DE COPENHAGUE provaram que Reza Nazari tinha se encontrado com um homem que parecia russo no momento e lugar especificados durante o interrogatório. E o arquivo do MI6 provou que o homem que parecia russo era realmente Alexei Rozanov. Ele tinha trabalhado em Londres sob cobertura diplomática nos anos noventa. Tanto o MI5 quanto o MI6 o conheciam muito bem.

— Seu nome completo é Alexei Antonovich. — Keller inseriu o pendrive no laptop de Gabriel, digitou uma senha encriptada e abriu o arquivo. — Ele dirigia uma série de ativos de nível médio do SVR nas embaixadas por toda a cidade. Tentou ganhar uns agentes do MI5 também. Francamente, o MI5 nunca prestou muita atenção nele. Nem o MI6. Mas quando Alexei voltou ao Moscou Center, sua estrela de repente começou a ascender.

— Sabemos por quê?

— Provavelmente tinha algo a ver com sua amizade com o presidente russo. Alexei é parte do círculo íntimo do czar. Um peixe muito grande, para dizer a verdade.

Gabriel repassou o arquivo do MI6 até chegar a uma fotografia. Mostrava um homem caminhando por uma rua úmida de Londres — Kensington High Street, de acordo com o relatório anexado. O sujeito tinha acabado de sair de uma reunião no almoço com um diplomata da embaixada canadense. O ano era 1995. A União Soviética estava morta, a Guerra Fria tinha acabado e no Moscou Center nada tinha mudado muito. O SVR via os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e os outros membros da aliança ocidental como inimigos mortais, e agentes como Alexei Antonovich Rozanov tinham ordens de espioná-los. Gabriel comparou a fotografia com uma das de Copenhague. A testa estava mais alta, o rosto um pouco mais gordo e mais decadente, mas era claramente o mesmo homem.

— A pergunta é — disse Keller —: podemos trazê-lo para fora?

— Não vamos precisar — respondeu Gabriel. — Nazari vai fazer isso para nós.

— Outra reunião?

Gabriel assentiu. Keller pareceu duvidar.

— Algo errado?

— As negociações entre os Estados Unidos e o Irã vão durar até a semana que vem.

— É — disse Gabriel, dando um tapa em uma cópia do Times de Londres. — Acho que li algo sobre isso nos jornais essa manhã.

— E quando as conversas terminarem — disse Keller —, Reza sem dúvida terá de voltar a Teerã.

— A menos que tenha assuntos urgentes em outro lugar.

— Uma reunião com Alexei Rozanov?

— Exatamente.

Bem nesse momento, apareceu uma mensagem na tela do computador. Afirmava que a delegação iraniana tinha acabado de voltar ao InterContinental. Gabriel aumentou o volume e, um momento depois, ouviu Reza Nazari andando pelo seu quarto no hotel.

— Não parece alguém feliz para mim — disse Keller.

Gabriel não falou nada.

— Há algo mais que você não considerou — disse Keller depois de um momento. — Há uma boa chance de que Alexei Rozanov não esteja interessado na reunião com seu colega de conspiração.

— Na verdade, acho que Alexei vai ficar aliviado só de ouvir o som da voz de Reza.

— Como vai conseguir fazer isso?

Gabriel sorriu e disse:

— Taqiyya.

Às sete e meia, o telefone no quarto de Reza Nazari tocou baixinho. Ele levantou o aparelho, colocou na orelha, ouviu as instruções e desligou sem falar nada. Seu casaco estava no chão, onde ele tinha deixado cair no começo daquela noite. Ele o pegou e desceu em um elevador vazio até o lobby. Um segurança iraniano fez um gesto com a cabeça quando Nazari passou. Ele não perguntou por que o agente do VEVAK estava deixando o hotel sozinho. Não ousaria.

Nazari cruzou a rua e entrou no Stadtpark. Quando caminhava pelas margens do rio Viena, percebeu que estava sendo seguido. Era o mais baixo, o que tinha um rosto esquecível e que se vestia como uma pilha de roupa suja. O carro estava esperando no mesmo lugar, na ponta leste do parque. O israelense que Nazari conhecia como sr. Taylor estava sentado no banco de trás. Como sempre, não parecia feliz. Fez uma busca completa em Nazari e depois assentiu para o espelho retrovisor. Quem estava no volante era o mesmo da noite anterior, o homem com pele pálida e olhos como gelo. Ele se livrou do trânsito noturno e aos poucos foi acelerando o carro.

— Para onde vamos? — perguntou Nazari enquanto Viena deslizava graciosamente pela janela.

— O chefe gostaria de ter uma conversa em particular.

— Sobre o quê?

— Seu futuro.

— Não sabia que tinha um.

— Um bastante brilhante, se fizer o que mandarem.

— Não posso demorar.

— Não se preocupe, Reza. Sem abóboras.


47

VIENA

DISSERAM QUE ELE ERA um vidente, um visionário, um profeta. Quase nunca estava errado — e, até quando estava, era só porque não tinha se passado tanto tempo para provar que ele estava certo. Tinha o poder de mover mercados, levantar alertas, influenciar políticas. Era inegável, era infalível. Era uma sarça ardente.

Sua identidade não era conhecida e até sua nacionalidade era um mistério. Todos achavam que era australiano — o site estava hospedado ali —, apesar de muitos acreditarem que ele era do Oriente Médio, pois suas ideias sobre a política confusa da região eram sutis demais para serem o produto de uma mente de fora da região. E outros ainda estavam convencidos de que era, na verdade, uma mulher. Uma análise de gênero em seu estilo de escrever dizia que era, pelo menos, uma possibilidade.

Apesar de influente, seu blog não era lido pelas massas. A maioria dos seus leitores era parte da elite de negócios, executivos de empresas de segurança privada, tomadores de decisões políticas e jornalistas que focavam questões relacionadas com terrorismo internacional e a crise que enfrentava o islamismo e o Oriente Médio. Foi um grande jornalista, um respeitado repórter investigativo de uma rede de televisão norte-americana, que deu a notícia que apareceu cedo na manhã seguinte. O repórter ligou para uma de suas fontes — um agente aposentado da CIA que tinha um blog —, que disse que a história tinha passado pelo teste de cheiro. Isso era bom o suficiente para o respeitado repórter investigativo, que imediatamente postou umas linhas em seu feed de mídia social. E assim nasceu a crise internacional.

Os norte-americanos ficaram céticos no começo, os britânicos, menos. Na verdade, um especialista de proliferação do MI6 chamou de um cenário de pesadelo que se tornava verdade: 45 quilos de material nuclear altamente radioativo, suficiente para produzir uma grande bomba ou vários aparelhos menores que seriam capazes de deixar cidades importantes inabitáveis por anos. O material radioativo — sua natureza precisa não foi especificada — tinha sido roubado de um laboratório secreto iraniano perto da cidade sagrada de Qom e vendido no mercado negro para um traficante ligado aos terroristas dos chechenos islâmicos. A localização dos chechenos e do material era desconhecida, embora os iranianos dissessem que estavam procurando freneticamente pelos dois. Por razões que não eram claras, eles tinham preferido não informar seus amigos russos sobre a situação.

Os iranianos denunciaram que o relatório era uma provocação ocidental e uma mentira sionista. O laboratório nomeado no relatório não existia, disseram, e todo o material nuclear no país estava seguro e completo. Mesmo assim, no final daquele dia, era o que todo mundo estava comentando em Viena. O negociador-chefe norte-americano disse que o relatório, independentemente de sua veracidade, demonstrava a importância de chegar a um acordo. Sua contraparte iraniana parecia menos convencida. Ele deixou as negociações sem falar com os repórteres e entrou em seu carro oficial. A seu lado estava Reza Nazari.

Eles viajaram para a embaixada iraniana e permaneceram ali até as dez da noite, quando finalmente voltaram ao hotel InterContinental. Reza Nazari foi até seu quarto e só deixou o casaco e a maleta, depois bateu na porta de seu vizinho. Mikhail Abramov deixou que ele entrasse. Yaakov Rossman serviu um uísque do minibar.

— Está proibido — disse Nazari.

— Aceite, Reza. Você merece.

O iraniano aceitou a bebida e levantou um pouco o copo como forma de saudação.

— Meus parabéns — ele disse. — Você e seus amigos conseguiram criar uma bela confusão hoje.

— O que Teerã acha?

— Estão céticos sobre o momento, para dizer o mínimo. Supõem que o relatório foi parte de um complô do Escritório destinado a sabotar as negociações e prevenir um acordo.

— O nome de Allon apareceu?

— Como poderia? Allon está morto.

Yaakov sorriu.

— E os russos? — ele perguntou.

— Muito preocupados — respondeu Nazari. — Isso é dizer o mínimo.

— Você foi voluntário para acalmá-los?

— Não precisei. Mohsen Esfahani me instruiu a fazer contato e organizar uma reunião.

— Alexei vai concordar em se encontrar com você?

— Não posso garantir isso.

— Então, talvez devêssemos prometer algo um pouco mais interessante do que uma sessão de apertos de mão mútuos.

Nazari ficou em silêncio.

— Você trouxe seu BlackBerry do VEVAK?

O iraniano o levantou para que Yaakov visse.

— Envie uma mensagem a Alexei. Diga que gostaria de discutir os recentes desenvolvimentos aqui em Viena. Diga que a Rússia não tem nada com o que se preocupar.

Nazari rapidamente escreveu o e-mail, mostrou o texto a Yaakov e depois apertou ENVIAR.

— Muito bom. — Yaakov apontou para seu laptop.— Agora envie aquele para ele.

Nazari se aproximou e olhou para a tela:
Meu governo está mentindo para você sobre a seriedade da situação. É urgente que nos encontremos imediatamente.

Nazari digitou o endereço e clicou em SEND.

— Isso deverá chamar a atenção dele — disse Yaakov.

— É — disse Nazari. — Eu acho que sim.


48

VIENA

ELES NÃO OUVIRAM NADA de Alexei Rozanov aquela primeira noite, nem houve uma resposta na manhã seguinte. Reza Nazari deixou o hotel às oito e meia junto com o resto da delegação iraniana e, vinte minutos depois, desapareceu no buraco negro das negociações nucleares. Nesse ponto, Gabriel, preso em um apartamento seguro em Viena com Christopher Keller, se permitiu refletir longamente sobre todas as razões pelas quais sua operação tinha fracassado antes mesmo de começar. Era possível, claro, que Reza Nazari tivesse falado com seu serviço logo depois do brutal interrogatório. Era possível, também, que ele tivesse contado a Alexei Rozanov que o homem que tinha conspirado para matar tão espetacularmente estava bem vivo e procurando vingança. Ou talvez não houvesse nenhum Alexei Rozanov. Talvez ele não fosse mais do que parte da imaginação fervilhante de Nazari, uma peça inteligente da taqiyya criada para torná-lo útil a Gabriel e assim salvar a própria vida.

— É óbvio — disse Keller — que você ficou doido.

— Acontece com gente morta. — Gabriel pegou uma fotografia de Rozanov caminhando por uma rua de paralelepípedos em Copenhague. — Talvez ele não venha. Talvez seus superiores no SVR tenham decidido colocá-lo no gelo por um tempo. Talvez ele vá pedir que seu velho amigo Reza vá até Moscou para uma noite de vodca e garotas.

— Então vamos para Moscou, também. E vamos matá-lo lá.

“Não”, disse Gabriel, balançando a cabeça lentamente, eles não iam voltar a Moscou. Moscou era a cidade proibida deles. Tiveram sorte de sobreviver à última visita. Eles não voltariam para um bis.

À uma hora da tarde os negociadores pararam para almoçar. A sessão da manhã tinha sido especialmente improdutiva porque os dois lados ainda estavam em pânico pelo desaparecimento do material radioativo de Gabriel. Reza Nazari se afastou da delegação tempo suficiente para ligar para Yaakov Rossman no InterContinental. Yaakov ligou para Keller no apartamento seguro e repetiu a mensagem.

— Silêncio de Moscou. Nenhuma palavra de Alexei.

Nesse momento, já eram quase duas horas. O céu estava fechado e cinzento; uns poucos flocos de neve estavam soprando do outro lado das janelas do apartamento. Exceto pelo interrogatório de Nazari, Gabriel tinha sido um prisioneiro de seus quartos, escondido de todos, protegido das lembranças espreitando do lado de fora. Foi Keller que sugeriu uma caminhada. Ele ajudou Gabriel com o casaco, colocou um cachecol ao redor do pescoço e tampou o rosto com um chapéu. Então, deu a ele uma arma, uma Glock calibre 45, uma arma de destruição em massa.

— O que devo fazer com isso?

— Atire em qualquer russo que pedir informação.

— E se eu me encontrar com um iraniano?

— Vá — respondeu Keller.

Quando Gabriel saiu do prédio, a neve estava caindo forte do céu, e a calçada parecia um daqueles bolos vienenses cobertos de açúcar. Ele caminhou sem objetivo por alguns minutos, não se preocupando em verificar se estava sendo seguido. Viena tinha, há muito tempo, zombado de seu ofício. Ele adorava sua beleza, odiava sua história. Tinha inveja dela. Tinha pena dela.

O apartamento estava localizado no segundo distrito de Viena. Antes da guerra estava tão cheio de judeus que os vienenses se referiam, de forma depreciativa, como Mazzesinsel ou a Ilha Matzo. Gabriel cruzou o Ringstrasse, trocando o segundo distrito pelo primeiro e parou em frente ao Café Central, onde tinha se encontrado com um homem chamado Erich Radek, um ex-oficial da SS que tinha recebido a ordem de Adolf Eichmann para esconder provas do Holocausto. Ele caminhou um pouco até a velha mansão imponente de Radek, onde uma equipe de agentes do Escritório tinha agarrado o criminoso de guerra e começado a primeira perna de uma viagem que terminaria em uma cela de prisão israelense. Gabriel ficou sozinho no portão enquanto a neve deixava seus ombros brancos. O exterior da casa estava velho e quebrado, e as cortinas penduradas atrás de janelas sujas pareciam puídas. Parecia que ninguém queria morar na casa de um assassino. Talvez, pensou Gabriel, houvesse esperança para eles, afinal.

Da mansão em ruínas de Radek, ele cruzou para o Bairro Judeu até Stadttempel. Dois anos antes, na rua estreita saindo da sinagoga, ele e Mikhail Abramov tinham matado um grupo de terroristas do Hezbollah que estava planejando realizar um massacre na noite do Sabá. O resto do mundo tinha sido levado a acreditar que dois membros do EKO Cobra, a unidade de polícia tática de elite da Áustria, tinham matado os terroristas. Havia até uma placa do lado de fora da sinagoga comemorando a coragem deles. Lendo isso, Gabriel sorriu, apesar de tudo. É como deveria ser, ele pensou. Tanto no trabalho de inteligência quanto no de restauração, seu objetivo era o mesmo. Ele gostaria de ir e vir sem ser visto, não deixar nenhum rastro. Para bem ou para o mal, nem sempre havia funcionado dessa forma. E agora ele estava morto.

Depois de sair da sinagoga, Gabriel caminhou até um edifício próximo que já tinha abrigado uma pequena organização investigadora chamada Wartime Claims and Inquiries. Seu organizador, Eli Lavon, tinha fugido de Viena vários anos antes, depois que uma bomba destruiu seu escritório e matou suas duas jovens assistentes. Quando Gabriel voltou a caminhar, percebeu que estava sendo seguido por Lavon. Ele parou na rua e, com um movimento quase imperceptível de cabeça, instruiu Lavon para se juntar a ele. O vigilante pareceu tímido. Não gostava de ser visto por seu alvo, mesmo se o alvo o conhecesse desde que era garoto.

— O que está fazendo? — Gabriel perguntou a Lavon em alemão.

— Ouvi um estranho rumor — respondeu Lavon no mesmo idioma — de que o futuro chefe do Escritório estava caminhando por Viena sem um guarda-costas.

— Onde você ouviu algo assim?

— Keller me contou. Estou seguindo você desde que saiu do apartamento.

— Sim, eu sei.

— Não sabia, não — sorriu Lavon. — Você realmente deveria ser mais cuidadoso, sabe. Tem muitas coisas pelas quais viver.

Eles caminharam pela rua tranquila, a neve abafando o som de seus passos, até chegarem a uma pequena praça. O coração de Gabriel batia como um sino em seu peito e suas pernas pareceram muito pesadas de repente. Ele tentou continuar caminhando, mas as lembranças fizeram com que parasse. Lembrou-se de colocar o cinto de segurança no filho e o delicioso gosto de vinho nos lábios de sua esposa. E conseguia ouvir o motor hesitar porque uma bomba estava arrancando a força da bateria. Tarde demais, ele tinha tentado avisá-la para não virar a chave uma segunda vez. Então, em uma explosão branca brilhante, seu mundo tinha sido destruído. Agora, finalmente, sua restauração estava quase completa. Ele pensou em Chiara e por um instante desejou que Alexei Rozanov não caísse na isca. Lavon parecia saber o que Gabriel estava pensando. Ele sempre sabia.

— Minha oferta ainda está de pé — ele falou baixinho.

— Que oferta?

— Deixe Alexei conosco — respondeu Lavon. — Está na hora de ir para casa agora.

Gabriel avançou lentamente e parou no mesmo ponto em que o carro tinha queimado até virar um esqueleto escurecido. Apesar do tamanho compacto da bomba, tinha produzido uma explosão e um fogo estranhamente intenso.

— Já teve a chance de olhar o arquivo do Quinn? — ele perguntou.

— Leitura interessante — respondeu Lavon.

— Quinn estava em Ras al Helal em meados dos anos oitenta. Lembra-se de Ras al Helal, não Eli? Era aquele campo no leste da Líbia, perto do mar. Os palestinos treinavam ali, também. — Gabriel olhou sobre o ombro. — Tariq estava lá.

Lavon não falou nada. Gabriel olhou para os paralelepípedos cobertos de neve.

— Ele chegou em 85. Ou foi 86? Estava tendo problemas com as bombas. Falhas no detonador, problemas com o estopim e seus temporizadores. Mas quando ele saiu da Líbia...

A voz de Gabriel falhou.

— Foi um banho de sangue — disse Lavon.

Gabriel ficou em silêncio por um momento.

— Você acha que eles se conheceram? — perguntou finalmente.

— Quinn e Tariq?

— É, Eli.

— Difícil imaginar que não.

— Talvez tenha sido Quinn quem ajudou Tariq a resolver os problemas que ele estava tendo. — Gabriel hesitou.— Talvez tenha sido Quinn quem montou a bomba que destruiu minha família.

— Você já cobrou essa conta há muito tempo.

Gabriel olhou para Lavon, mas ele não estava mais ouvindo. Estava olhando para a tela do BlackBerry.

— O que diz? — perguntou Gabriel.

— Parece que Alexei Rozanov gostaria de ter uma palavrinha com Nazari, afinal.

— Quando?

— Depois de amanhã.

— Onde?

Lavon aproximou o BlackBerry. Gabriel olhou para a tela e virou o rosto para a neve caindo. Não é linda?, ele pensou. A neve absolve Viena de seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv.


49

ROTERDÃ, PAÍSES BAIXOS

HAVIA PASSADO UNS POUCOS minutos depois das onze da manhã quando Katerina Akulova saiu da estação central de trem de Roterdã. Ela entrou em um táxi e em um bom holandês instruiu o motorista a levá-la para o hotel Noordzee. A rua do hotel era mais residencial do que comercial, e o edifício tinha um ar de casa de praia decadente que havia prosperado. Katerina foi até a recepção. A atendente, uma jovem holandesa, pareceu surpresa em vê-la.

— Gertrude Berger — disse Katerina. — Meu amigo chegou ontem. Sr. McGinnis.

A mulher franziu a testa na frente do terminal de computador.

— Na verdade — ela falou —, seu quarto está vazio.

— Tem certeza?

A mulher deu o sorriso sereno que reservava para as perguntas mais vãs.

— Mas um cavalheiro deixou algo para você hoje de manhã. — Ela entregou um envelope pequeno com a insígnia do hotel Noordzee no canto superior esquerdo.

— Você sabe a que horas ele deixou isso?

— Às nove, se lembro bem.

— Lembra-se de como ele era?

A mulher descreveu um homem de aproximadamente 1,78m de altura, com cabelo e olhos escuros.

— Era irlandês?

— Não saberia dizer. Era difícil saber de onde era seu sotaque.

Katerina colocou um cartão de crédito sobre o balcão.

— Só vou precisar do quarto por algumas horas.

A mulher pegou o cartão de crédito e depois entregou uma chave.

— Precisa de ajuda com a bagagem?

— Eu me viro, obrigada.

Katerina subiu as escadas até o segundo andar. Seu quarto ficava no final de um corredor decorado com papel de parede floral e quadros de cenas bucólicas de canais e paisagens holandesas. Não havia câmeras de segurança visíveis, então ela correu a mão pelo marco da porta antes de inserir a chave na fechadura. Deixou a mala ao pé da cama e procurou no interior do quarto por câmeras escondidas ou microfones. O ar tinha o cheiro de lima e cigarros apagados. Era um aroma singularmente masculino.

Ela abriu a janela do banheiro para dispersar o cheiro, voltou ao quarto e pegou o envelope que tinha recebido da garota na recepção. Verificou o selo para ter certeza de que não tinha sido adulterado e depois abriu a aba. Dentro havia uma única folha de papel, bem dobrada em três. Nela, em letras de forma, havia uma breve explicação para a ausência de Quinn.

— Seu maldito — sussurrou Katerina. Então, queimou o bilhete na pia do banheiro.

Alexei Rozanov tinha pedido que Katerina viajasse para o país-alvo sem se comunicar com o Moscou Center. O bilhete, no entanto, mudava tudo. Dizia que Quinn não viajaria com ela como planejado. Em vez disso, ele a encontraria na próxima parada do itinerário deles, um pequeno hotel à beira-mar na costa de Norfolk, na Inglaterra. Sob as restritas regras operacionais do SVR, Katerina não poderia continuar sem a aprovação de seu controlador, e a única forma de obter essa aprovação era arriscar um contato.

Ela pegou o telefone da bolsa e escreveu um breve e-mail para um endereço com um domínio alemão. O endereço era uma fachada do SVR que automaticamente encriptava o e-mail e enviava através de uma rota tortuosa de nós e servidores para o Moscou Center. A resposta de Alexei chegou dez minutos depois. Eram poucas palavras, mas claras em suas intenções. Ela deveria seguir Quinn, pelo menos por enquanto.

Era pouco depois do meio-dia. Katerina se reclinou na cama e cochilou de forma intermitente até três e meia, quando deixou o hotel e pegou um táxi para o terminal P&O Ferries. O Orgulho de Roterdã, uma balsa de 215 metros capaz de carregar 250 carros e mais de mil passageiros, estava em processo de embarque. O SVR tinha reservado acomodações de primeira classe para Katerina sob o nome de Gertrude Berger. Ela deixou a mala na cabine, trancou a porta e subiu para um dos bares. Já estava cheio de passageiros, muitos dos quais em busca de um pouco de companhia para diminuir a solidão das dez horas de travessia. Katerina pediu uma taça de vinho e sentou-se a uma mesa virada para o porto.

Não demorou muito para os homens no bar notarem a jovem atraente sentada com a companhia apenas de seu telefone. Um deles acabou se aproximando, duas bebidas na mão e perguntou, em inglês, se poderia se sentar. Katerina notou pelo sotaque que ele era alemão. Tinha quarenta e poucos anos, cabelo fino, bem vestido. Era possível que fosse empregado de um dos serviços de segurança europeus. Mesmo assim, ela avaliou que era melhor aceitar a bebida do que ignorá-lo. Ela pegou a taça de vinho e, com um olhar, convidou-o a se sentar.

Ele trabalhava como gerente de contas de uma empresa em Bremen que fabricava ferramentas para máquinas de alta qualidade — nenhum trabalho excitante, ele disse, mas estável. Parecia que sua empresa fazia muitos negócios no norte da Inglaterra, o que explicava sua presença na balsa Roterdã-Hull. Ele preferia balsas a aviões porque dava o tempo necessário de distância de seu casamento, que, não era surpresa, estava em um estado muito ruim. Por duas horas Katerina flertou com ele em seu alemão impecável, ocasionalmente se aprofundando em assuntos tão obscuros como a deflação na zona do euro ou a crise da dívida na Grécia. O empresário ficou obviamente encantado. Seu único desapontamento chegou no final da noite, quando ela recusou a oferta para que fossem à cabine dele.

— Eu seria cuidadosa se fosse você — ele disse, levantando-se lentamente em sua derrota. — Parece que você tem um admirador secreto.

— Quem?

Ele apontou para o outro lado do bar, onde havia um homem sentado sozinho em uma mesa.

— Está olhando para você desde que me sentei aqui.

— É mesmo?

— Você o conhece?

— Não — ela falou. — Nunca o vi antes.

O alemão partiu em busca de um alvo mais promissor. Katerina se levantou e saiu para o deque de observação vazio para fumar um cigarro. Quinn se juntou a ela um momento depois.

— Quem é seu amigo? — ele perguntou.

— Um vendedor com esperanças de glória.

— Tem certeza?

— Tenho certeza. — Ela se virou para olhar para ele. Estava usando um terno cinza de empresário, um casaco cor de canela e óculos de aro preto que pareciam alterar o formato de seu rosto. A transformação era extraordinária. Katerina quase não tinha conseguido reconhecê-lo. Não era à toa que tinha conseguido sobreviver todos esses anos.

— Por que não estava no hotel? — ela perguntou.

— Você é uma garota inteligente. Diga você.

Ela virou o rosto para o mar de novo.

— Você não estava lá — disse depois de pensar por um momento — porque tinha medo de que Alexei fosse matá-lo.

— E por que eu teria medo disso?

— Porque ele está se recusando a pagar o dinheiro que deve a você. E está convencido de que a segunda fase da operação é, na verdade, um complô para se livrar de você; assim, não haverá nenhuma conexão com o SVR.

— E é?

— Contenha-se, Quinn.

A vista dele estava se movendo por ela, de cima para baixo, de um lado para o outro.

— Está armada? — ele perguntou finalmente.

— Não.

— Se incomoda se eu verificar?

Antes que pudesse responder, ele a puxou para perto em um abraço aparentemente romântico e estava passando a mão pelo corpo dela. Demorou um ou dois segundos para encontrar a pistola Makarov debaixo do suéter. Ele a enfiou no bolso do casaco. Então, abriu sua bolsa e tirou o celular. Ligou e procurou pela caixa de e-mails.

— Está perdendo seu tempo — ela disse.

— Quando foi seu último contato com Alexei?

— Meio-dia.

— Quais foram as instruções dele?

— Seguir como planejado.

— Quem era o homem que pagou uma bebida no bar?

— Eu falei...

— Era do SVR?

— Você está paranoico.

— Verdade — disse Quinn. — E é por isso que ainda estou vivo.

Ele desligou o celular e, sorrindo, fez como se fosse entregar a ela. Então, com um movimento do pulso, mandou para o fundo do mar.

— Seu maldito — disse Katerina.

— Golpe de sorte — disse Quinn.

A cabine de Quinn estava no mesmo andar que a de Katerina, algumas poucas portas mais perto da proa. Ele a forçou a entrar e imediatamente jogou o conteúdo de sua bolsa na cama. Não havia nada eletrônico, somente uma carteira contendo seu passaporte alemão, cartões de crédito e um pouco de maquiagem. Havia um silenciador para a Makarov. Quinn colocou-o no bolso e instruiu Katerina a tirar a roupa.

— Vai sonhando — ela disse.

— Como se já não tivesse visto você...

— A única razão pela qual dormi com você foi porque Alexei mandou.

— Ele me mandou fazer o mesmo. Agora tire a roupa. — Quando ela permaneceu imóvel, Quinn armou o silenciador na Makarov e apontou para o rosto dela. — Vamos começar com o casaco, certo?

Ela hesitou antes de tirar o casaco e entregar para Quinn. Ele procurou nos bolsos e no forro, mas não encontrou nada a não ser cigarros e um isqueiro. O isqueiro era grande o suficiente para conter um aparelho rastreador. Ele o guardou para jogar fora depois.

— Agora o suéter e o jeans.

Katerina hesitou novamente. Passou o suéter por cima da cabeça e tirou o jeans. Quinn procurou nas duas peças de roupa, então, com um sinal, mandou que continuasse.

— Você está em um jogo muito perigoso, Quinn.

— Muito — ele concordou.

— O que está querendo fazer?

— É bem simples, na verdade. Quero meu dinheiro. E você vai garantir que eu o receba.

Quinn passou um dedo seguindo a curva de seus seios enquanto olhava diretamente para os olhos dela. O bico do seio dela ficou imediatamente duro. O rosto, no entanto, continuava desafiador.

— O que você esperava que aconteceria quando concordou em trabalhar para o SVR?

— Esperava que Alexei mantivesse sua palavra.

— Como você é ingênuo.

— Tínhamos um acordo. Promessas foram feitas.

— Quando se trata de russos — ela falou —, promessas não significam nada.

— Entendo isso agora — disse Quinn olhando para a Makarov.

— E se conseguir seu dinheiro? Para onde vai?

— Vou encontrar um lugar. Sempre encontro.

— Nem mesmo os iranianos querem você agora.

— Então eu volto para o Líbano. Ou para a Síria. — Ele parou, depois acrescentou: — Ou talvez eu vá para casa.

— Para a Irlanda? — ela perguntou. — Sua guerra terminou, Quinn. O SVR é tudo que você tem.

— É — ele disse, deslizando a tira do sutiã de Katerina de seu ombro. — O SVR mandou você me matar.

Katerina não falou nada.

— Você não nega?

Ela cruzou os braços sobre os seios.

— E agora?

— Vou propor um acordo simples. Vinte milhões de dólares em troca de uma das agentes mais valiosas do SVR. Tenho bastante confiança de que Alexei vai pagar.

— E onde você pensa em me manter enquanto realiza as negociações?

— Em algum lugar onde Alexei e seus capangas nunca irão encontrá-la. E caso você esteja se perguntando — ele acrescentou —, os arranjos para sua viagem e confinamento indefinido já foram feitos. — Ele sorriu. — Alexei parece ter esquecido que já fiz coisas assim uma ou duas vezes.

Quinn ofereceu a Katerina seu suéter, mas ela não quis aceitá-lo. Em vez disso, colocou a mão para trás, soltou o fecho do sutiã e permitiu que ele caísse de seu corpo. Ela era perfeita, pensou Quinn — perfeita exceto pela cicatriz no pulso direito. Ele tirou o pente da Makarov e apagou a luz.


50

VIENA — HAMBURGO

A MENSAGEM DE ALEXEI ROZANOV não poderia ser mais concisa. Um restaurante, uma cidade, um horário. O restaurante era Die Bank, uma cervejaria com frutos do mar na seção Neustadt de Hamburgo. O horário era às nove da noite da quinta-feira. Significava que Gabriel teria apenas 48 horas para planejar a operação e mandar os ativos necessários para o lugar. Ele começou a trabalhar imediatamente depois de voltar para o apartamento de Viena com Eli Lavone, à meia-noite, eles tinham conseguido alojamento, carros, armas e equipamentos de comunicação segura para essa missão. Conseguiram pessoal adicional do Barak, o fabuloso time de agentes de campo de Gabriel. O único item que faltava era uma segunda reserva no restaurante. Parecia que o russo tinha assegurado a última mesa disponível para a noite de quinta. Keller sugeriu hackear o computador do restaurante e matar umas mesas — metaforicamente, claro —, mas Gabriel discordou. Ele conhecia bem o Die Bank. Havia um grande bar barulhento onde alguns agentes poderiam passar uma ou duas horas sem chamar a atenção.

O Escritório não estava sozinho em seus preparativos. O VEVAK, defensores da revolução islâmica, arqui-inimigos de Israel e do Ocidente, estava se preparando, também. O Departamento de Viagem do serviço secreto reservou a Nazari um assento no voo 171 da Austrian Airlines, que saiu de Viena às cinco e meia da tarde e chegou em Hamburgo às sete. Gabriel teria preferido um voo um pouco mais cedo, mas a chegada tardia de Nazari significaria menos tempo para algum truque do iraniano ou do russo. A escolha de um hotel pelo VEVAK — um hotel barato perto do aeroporto — era um problema, no entanto. Gabriel pediu a Nazari para mudar para o Marriott em Neustadt. Era uma curta distância do restaurante e vários membros do time israelense já tinham reserva ali. Nazari pediu um upgrade e Teerã aceitou imediatamente — fazendo com que fosse, disse Gabriel, a primeira operação conjunta Escritório-VEVAK da história. Reza Nazari não achou a observação engraçada. Naquela noite, quando chegou ao quarto de Yaakov no InterContinental para uma reunião final, estava suando de nervoso. Gabriel começou a sessão apresentando ao iraniano uma caneta de ouro.

— Um símbolo da sua estima? — perguntou Nazari.

— Pensei em conseguir um alfinete de gravata, mas vocês, iranianos, não usam gravatas.

— Os israelenses não gostam muito delas, também. — Nazari examinou a caneta com cuidado. — Qual é o alcance?

— Não é problema seu.

— Vida da bateria?

— Vinte e quatro horas, mas não seja muito ambicioso. Vire a tampa para a direita quando for hora de ligar. Se perdermos transmissão em algum momento durante o jantar, vou presumir que você desligou intencionalmente. E isso seria ruim para sua saúde.

Nazari não falou nada.

— Mantenha no bolso do peito do seu terno — continuou Gabriel. — O microfone é sensível, então sente-se naturalmente. Se você de repente tentar se sentar no colo de Alexei, ele poderia ter a impressão errada.

Nazari enfiou a caneta no bolso do casaco.

— Que mais?

— Temos de repassar o roteiro da noite.

— Roteiro?

— Não tenho nenhuma vontade de interrogar Alexei Rozanov. Portanto, vou precisar que faça isso por mim. Educadamente, claro.

— O que está procurando?

— Quinn — falou Gabriel.

Nazari ficou em silêncio. Gabriel levantou uma única folha de papel.

— Memorize as perguntas, use suas palavras. Mas não se esqueça de ser leve. Se parecer um advogado de acusação, Alexei vai suspeitar.

Gabriel entregou as perguntas a Nazari.

— Use um fósforo quando terminar essa noite. Vamos fazer uma revisão durante o voo para Hamburgo se você precisar.

— Não será necessário. Sou um profissional, Allon. Como você.

Nazari aceitou a lista.

— Em que idioma vocês vão falar? — perguntou Gabriel.

— Ele fez a reserva com o nome de Alexei Romanov, então presumo que será russo.

— Sem piscadas ou pequenos sinais com a mão — disse Gabriel. — E não tente passar nada para ele sob a mesa. Vamos ficar de olho em você o tempo todo. Não me dê motivos para matá-lo. Não são necessários muitos.

— O que acontece depois do jantar?

— Isso depende da qualidade do seu trabalho.

— Você vai matá-lo, não?

— Eu me preocuparia comigo mesmo, se fosse você.

— Eu estou. — Nazari ficou em silêncio. — Se você matar Alexei em Hamburgo amanhã à noite — ele disse depois de um instante—, os russos vão suspeitar do meu envolvimento. E depois vão me matar.

— Então sugiro que se tranque em um quarto seguro em Teerã e não saia nunca mais. — Gabriel sorriu. — Olhe o lado bom, Reza. Você salva sua família e sua vida, sem mencionar os dois milhões em dinheiro ensanguentado que o SVR guardou em Genebra para você. No final, eu diria que você se saiu bastante bem.

Gabriel se levantou. Reza Nazari fez o mesmo e esticou a mão, mas Gabriel só olhou com raiva.

— Seja um bom rapaz e faça sua lição de casa, porque se você errar suas falas em Hamburgo amanhã à noite, vou pessoalmente estourar seu cérebro. — Gabriel envolveu sua mão ao redor da de Nazari e apertou até conseguir sentir os ossos começando a quebrar. — Bem-vindo à nova ordem mundial, Reza.

Não foi surpreendente que Reza Nazari não tenha dormido bem aquela noite em Viena, e nem Gabriel. Ele estava no apartamento seguro no segundo distrito, em companhia de Christopher Keller e Eli Lavon. Lisboa nunca esteve longe de seus pensamentos: o pequeno apartamento deprimente no Bairro Alto, as videiras caindo da varanda de Quinn, a atraente mulher de talvez trinta anos que ele seguiu até a Brompton Road, em Londres. Lisboa tinha sido um cenário importante para que ele e Gabriel tivessem respondido criando uma história própria — uma história de material radioativo desaparecido e de um lendário espião que tinha morrido prematuramente. O ato final iria ser encenado na noite seguinte em Hamburgo e a estrela do espetáculo seria Reza Nazari. Era muita responsabilidade usar um inimigo mortal, mas Gabriel não tinha escolha. Nazari era a estrada que levava a Alexei Rozanov, aliado do presidente russo, patrono de Eamon Quinn. O homem que poderia fazer uma bola de fogo viajar a trezentos metros por segundo. O homem que tinha estado em um campo de treinamento terrorista na Líbia com Tariq al-Hourani. Não, ele pensou enquanto ficava olhando a neve cair gentilmente sobre Viena, ele não ia dormir essa noite.

O computador era sua única companhia. Ele releu o dossiê britânico sobre Alexei Rozanov e revisou as fotos de Copenhague. O russo tinha chegado uns minutos atrasado aquela noite, o que, de acordo com Nazari, era o costume dele. Dois guarda-costas do SVR tinham entrado atrás dele no restaurante e um terceiro tinha ficado no carro. Era uma aquisição local, uma grande Mercedes, com placa da Dinamarca. O motorista tinha esperado em uma rua lateral tranquila até Alexei Rozanov chamá-lo com uma ligação no final do jantar. O russo tinha saído do restaurante sozinho para preservar a ilusão de que não era um homem sob proteção física em tempo integral.

A madrugada veio tarde naquela última manhã em Viena, e a luz não chegou a sair completamente. Gabriel e Keller deixaram o apartamento seguro uns minutos depois das oito e tomaram um táxi até o aeroporto. Fizeram check-in separados no voo da manhã para Hamburgo e, ao chegarem, pegaram táxis para o mesmo ponto na Mönckebergstrasse, a principal rua comercial de Hamburgo. Dali eles caminharam juntos da cidade velha até a nova e, de algum lugar no fundo de sua memória, Gabriel lembrou que Hamburgo tinha mais canais e pontes do que Amsterdã e Veneza juntas.

— E São Petersburgo? — perguntou Keller.

— Não saberia dizer — disse Gabriel com um sorriso tenso.

A rua chamada Hohe Bleichen se esticava do hotel Marriott até perto da movimentada Axel-Springer-Platz. Era parte Bond Street e parte Rodeo Drive; era a Alemanha moderna mais próspera. Ralph Lauren ocupou um prédio em formato de bolo de casamento na ponta ao norte. Prada e Dibbern estavam lado a lado um pouco mais ao sul. E perto da luxuosa sapataria Ludwig Reiter estava Die Bank, o templo de mármore da comida tão adorado pela elite financeira e comercial de Hamburgo. Bandeiras vermelhas com o nome do restaurante em uma insígnia pendurada da fachada. Pilares esculpidos guardavam sua entrada.

Nesse momento, tinha passado uns minutos da uma da tarde, e a batalha da volta do almoço estava em seu ponto mais alto. Gabriel entrou sozinho e encontrou um lugar no bar dourado. Ele se forçou a beber uma taça de rosé enquanto se lembrava da decoração do restaurante. Então, pagou a conta em dinheiro e voltou para a rua. Era estreita, com apenas uns poucos espaços para estacionar. O trânsito fluía do norte para o sul. Bem em frente ao restaurante havia uma pequena esplanada retangular onde Keller estava sentado na ponta de um vaso de concreto. Gabriel se aproximou.

— Então? — ele perguntou.

— Bonito lugar — respondeu Keller.

— Para quê?

— O que você decidir. — Keller olhou para a extensão da rua. — Todas essas lojas exclusivas fecham cedo. Às nove horas esse lugar vai ficar bem tranquilo. Às onze vai estar morto. — Ele olhou para Gabriel e acrescentou: — Sem trocadilhos.

Gabriel ficou em silêncio.

— São cinco passos da entrada do restaurante até o meio-fio — disse Keller. — Eu poderia acertá-lo daqui e desaparecer antes que o corpo caísse no chão.

— Eu também — respondeu Gabriel. — Mas é possível que eu precise repassar algumas pequenas questões com ele primeiro.

— Quinn?

Gabriel se levantou sem falar nada e levou Keller para o lado sul, cruzando Neustadt até a Igreja de St. Michael. À sombra de sua torre do relógio havia um parque verde cercado por uns prédios de apartamento baixos. Eles entraram em um dos prédios — moderno, com um vestíbulo com vidro escuro —, e subiram de elevador até o quarto andar. Gabriel bateu de leve na porta do 4D e um homem alto com ar de acadêmico chamado Yossi Gavish deixou que entrassem. Rimona Stern e Dina Sarid estavam olhando para as telas de laptops na mesa da sala de jantar e, na sala de estar, Mordecai e Oded, um par de mãos para toda obra, estavam debruçados sobre um mapa de grande escala de Hamburgo. Dina levantou a cabeça e sorriu, mas fora isso ninguém prestou atenção na presença de Gabriel. Ele tirou o casaco e foi até a janela. A torre do relógio de St. Michael mostrava que eram 2h10. É bom estar de volta em casa, ele pensou. É bom estar vivo.

 

 

 


CONTINUA