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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESTRANHO / Camilla Läckberg
O ESTRANHO / Camilla Läckberg

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O que ele mais se lembrava era de seu perfume. Aquele que ela deixava no banheiro. O frasco cintilante com a fragrância doce e encorpada. Já adulto, havia procurado em lojas de perfume até encontrar um idêntico. Riu quando viu o nome: Poison.

Ela costumava borrifá-lo em seus punhos e esfregá-lo em seu pescoço e, se estivesse vestindo uma saia, também em seus tornozelos.

Ele achava aquilo tão bonito. Seus punhos frágeis e delicados roçando graciosamente um no outro. O aroma se espalhava em torno dela, e ele sempre ansiava pelo momento em que chegasse bem perto, quando ela se inclinava e o beijava. Sempre na boca. Sempre tão levemente que às vezes ele se perguntava se o beijo fora real ou se ele estava apenas sonhando.

– Cuide de sua irmã – ela sempre dizia antes de sair e parecia flutuar em vez de caminhar porta afora.

Mais tarde, ele não conseguiria se lembrar se havia respondido em voz alta ou apenas com um aceno de cabeça.

 

 

 

 

O sol de primavera brilhava através das janelas na delegacia de Tanumshede, expondo sem piedade a sujeira nas vidraças. A fuligem do inverno era como uma película sobre o vidro, e Patrik sentia como se a mesma película o cobrisse. Aquele havia sido um inverno rigoroso. Viver com uma criança em casa era infinitamente mais divertido, mas também imensamente mais trabalhoso do que ele jamais imaginara.

 

E ainda que as coisas com Maja estivessem mais calmas do que no início, Erica ainda não tinha se acostumado com a vida de mãe em tempo integral.

 

Essa noção atormentava Patrik a cada segundo e cada minuto que passava no trabalho. E tudo o que havia acontecido com Anna colocava um fardo extra sobre seus ombros.

 

Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos sombrios.

 

– Patrik? Acabamos de receber uma chamada sobre um acidente de trânsito. Apenas um carro envolvido, na estrada para Sannäs.

 

– Está bem – disse Patrik, levantando-se. – A propósito, não é hoje que chega a substituta de Ernst?

 

– Sim – disse Annika –, mas ainda não são nem oito horas.

 

– Então vou levar Martin comigo. Do contrário eu a levaria como parceira por um tempo, para pegar o jeito das coisas.

 

– Bem, isso me dá um pouco de pena da coitada – disse Annika.

 

– Por ter que andar comigo? – disse Patrik, fingindo ofender-se.

 

– Naturalmente, eu sei como você dirige... Mas, sério, não vai ser nada fácil para ela ficar com Mellberg.

 

– Depois de ler seu currículo, eu diria que, se alguém consegue lidar com ele, essa pessoa é Hanna Kruse. Ela parece ser durona, a julgar por seus registros e suas ótimas referências.

 

– A única coisa que me parece duvidosa é por que ela iria querer trabalhar em Tanumshede.

 

– Sim, talvez você tenha razão nisso – disse Patrik, vestindo o paletó. – Terei de perguntar por que ela quer baixar tanto o nível a ponto de trabalhar nesse fim de carreira com homens da lei amadores como nós – ele piscou para Annika, que deu um tapinha em

seu ombro.

 

– Você sabe que não foi isso o que eu quis dizer.

 

– Claro, eu só estava te atormentando. A propósito, conseguiu mais informações sobre o local do acidente? Alguém ferido? Alguma vítima fatal?

 

– De acordo com a pessoa que ligou, parece que há apenas uma pessoa no carro. Morta.

 

– Droga. Vou chamar Martin e vamos para lá dar uma olhada. Voltaremos logo. Você pode acompanhar Hanna por ora, não pode?

 

Naquele momento, ouviram uma voz de mulher na recepção.

 

– Olá?

 

– Deve ser ela – disse Annika, apressando-se em direção à porta. Curioso a respeito da nova conquista feminina da polícia, Patrik a seguiu.

 

Ficou surpreso quando viu a mulher de pé na recepção, esperando por eles. Não sabia pelo que esperar, mas talvez alguém... maior. E não tão bonita... e loira.

 

Ela estendeu a mão, primeiro para Patrik, então para Annika e disse:

 

– Olá, sou Hanna Kruse. Começo a trabalhar aqui hoje.

 

A voz dela superou suas expectativas. Grave, com um tom decidido.

 

Seu aperto de mão era prova de horas na academia, e Patrik reconsiderou sua primeira impressão.

 

– Patrik Hedström. E essa é Annika Jansson, a espinha dorsal da delegacia.

 

Hanna sorriu.

 

– O único posto avançado feminino numa terra de machos, percebo. Pelo menos até agora.

 

Annika riu.

 

– Sim, tenho que admitir que é bom ter alguém para contrabalançar toda a testosterona que existe aqui dentro.

 

Patrik interrompeu a conversa.

 

– Vocês, meninas, podem se conhecer melhor mais tarde. Hanna, recebemos uma chamada sobre um acidente fatal com um único carro envolvido. Pensei que você já poderia vir comigo, se concordar. Começar com tudo seu primeiro dia aqui.

 

– Por mim, tudo bem – disse Hanna – Posso só deixar minha mala em algum lugar?

 

– Eu a colocarei no seu escritório – disse Annika. – Faremos o tour mais tarde.

 

– Obrigada – disse Hanna, correndo apressada atrás de Patrik, que já estava saindo pela porta principal.

 

– Então, como se sente? – perguntou Patrik, quando já estavam dentro da viatura, na direção de Sannäs.

 

– Bem, obrigada. É sempre meio desesperador começar um novo trabalho.

 

– Você já fez isso várias vezes, a julgar pelo seu currículo.

 

– Sim, eu queria adquirir o máximo de experiência possível – Hanna disse enquanto olhava pela janela com curiosidade. – Partes diferentes da Suécia, jurisdições de tamanhos diversos, o que você imaginar. Qualquer oportunidade em que eu pudesse expandir minha experiência como policial.

 

– Mas por quê? Qual é o seu objetivo final, por assim dizer?

 

Hanna sorriu. Seu sorriso era amigável, mas ao mesmo tempo convicto.

 

– Uma posição de chefia, é claro. Em um dos maiores distritos policiais. Então tenho feito todos os cursos, aprendendo o máximo possível e trabalhando duro.

 

– Parece ser a receita para o sucesso – disse Patrik, sorrindo, mas a enorme ambição que irradiava em sua direção o fez sentir-se um pouco desconfortável. Não era algo com que estava acostumado.

 

– Espero que sim – disse Hanna, ainda vendo a paisagem rural passar. – E você? Há quanto tempo trabalha em Tanumshede?

 

Para seu desgosto, Patrik soou envergonhado aos próprios ouvidos quando respondeu.

 

– Oh... desde a academia de polícia, na verdade.

 

– Nossa, eu jamais conseguiria isso. Quero dizer, você deve gostar mesmo daqui. Parece um bom presságio para o tempo que passarei aqui.

 

Ela riu e virou-se a fim de olhar para ele.

 

– Bem, acho que você pode pensar assim. Mas boa parte disso tem a ver com costume e com ficar na minha zona de conforto também. Eu cresci aqui e conheço a área como a palma de minha mão. Se bem que não moro mais em Tanumshede. Agora eu moro em Fjällbacka.

 

– É verdade. Eu soube que você se casou com Erica Falck! Eu adoro os livros dela! Bem, dos que tratam de assassinatos. Eu ainda não li as biografias, tenho que admitir.

 

– Você não tem que se envergonhar disso. Metade da Suécia já leu seu mais recente romance policial, a julgar pelos números de venda, mas a maioria não sabe que ela publicou cinco biografias de escritoras suecas. A que mais vendeu foi sobre Karin Boye, acho que chegou a umas duas mil cópias. De qualquer forma, ainda não estamos casados, mas estaremos em breve. Vamos nos casar na noite do Pentecostes!

 

– Parabéns! Que fascinante, uma cerimônia de casamento no Pentecostes.

 

– Nós esperamos que sim. Se bem que, para ser sincero, a essa altura, eu preferiria voar para Las Vegas e fugir de toda essa algazarra. Eu não fazia ideia de que planejar um casamento seria uma tarefa tão difícil.

 

Hanna deu uma gargalhada.

 

– É, posso imaginar.

 

– Mas você também é casada. Vi na sua ficha. Você não teve uma cerimônia religiosa cheia de pompa?

 

Uma sombra passou pela face de Hanna. Ela desviou o olhar e resmungou tão baixinho que ele mal conseguiu ouvir.

 

– Nos casamos no civil. Mas isso é uma história para outra hora. Parece que chegamos.

 

Avistaram adiante um carro destruído, numa vala. Dois bombeiros se ocupavam de cortar a lataria do teto, mas sem pressa. Após uma olhada no banco da frente, Patrik entendeu o porquê.

 

Não foi por acaso que a reunião aconteceu em sua própria casa, em vez de ser no centro comunitário. Após meses de reforma pesada, a casa, ou “a Pérola”, como ele normalmente a chamava, estava pronta para ser inspecionada e admirada. Era uma das maiores e mais antigas residências em Grebbestad, e foram necessárias boas doses de persuasão para convencer os antigos proprietários a colocá-la à venda. Eles se lamentavam dizendo que ela “pertencia à família” e que seria “deixada para seus netos e bisnetos”, mas as lamúrias se reduziram a balbuciações e logo passaram a cochichos animados quando ele aumentou a oferta. E os estúpidos moradores nem perceberam que ele estava propondo consideravelmente menos do que estava disposto a pagar. Eles provavelmente nunca puseram os pés fora da cidade e não tinham a menor ideia do valor das coisas – um conhecimento que se adquiria vivendo em Estocolmo e sabendo das condições do mercado imobiliário. Após a venda, ele havia gastado sem piscar mais de dois milhões de coroas para reformar a casa e agora exibia com orgulho o resultado para o restante da Câmara Municipal.

 

– E aqui trouxemos uma escadaria da Inglaterra, que combina bem com os detalhes típicos daquele período. Não foi barato, é claro. Apenas cinco como essa são feitas por ano, mas se quiser qualidade, terá de pagar o preço. Também trabalhamos em contato direto com o Museu de Bohuslän, para não arruinar a integridade da casa. Mas Viveca e eu somos muito cuidadosos com esse tipo de coisa, queremos sempre reformar uma casa meticulosamente sem destruir sua alma. E aqui temos alguns exemplares da última edição de Residence, em que são documentados os resultados da nossa remodelação. O fotógrafo disse inclusive que nunca vira uma renovação de tamanho bom gosto. Por favor, levem uma revista na saída, para folhear à vontade. E sim, devo mencionar que Residence é uma revista que só publica casas exclusivas, não é como a Beautiful Homes, em que qualquer Tom, Dick e Harry pode ser enaltecido e deu uma risadinha para enfatizar como era absurda a ideia de que uma casa que pertencia a ele e a sua esposa figurasse naquele lixo. – Então, vamos todos nos sentar e tratar de negócios – Erling W. Larson apontou para a grande mesa de jantar, posta para o café. Sua esposa havia preparado tudo enquanto ele mostrava a casa e agora ela aguardava em pé junto à mesa enquanto todos se sentavam. Erling lhe fez um aceno de cabeça em sinal de aprovação. Ela valia ouro, a pequena Viveca: conhecia seu lugar e era uma excelente anfitriã. Talvez um pouco quieta e não muito versada na arte da conversação, mas uma mulher que sabia quando manter sua boca fechada e que não demonstrava inclinação para conversa fiada, como tinha o hábito de dizer. – Então, que tipo de ideias vocês têm para o marco que atingimos?

 

Todos estavam sentados à mesa e Viveca passava servindo café nas frágeis xícaras de porcelana branca.

 

– Bem, você sabe qual é minha posição – disse Uno Brorsson, colocando quatro cubos de açúcar em sua xícara. Erling fitou-o com aversão. Ele não entendia pessoas que negligenciavam a própria saúde. De sua parte, corria dez quilômetros toda manhã e também já havia feito pequenas cirurgias reparadoras. Mas apenas Viveca sabia disso.

 

– Certamente sim – disse Erling, um tanto mais ríspido do que pretendia –, mas você teve a chance de dar sua opinião e, agora que chegamos a um acordo, creio que seria mais razoável nos unirmos e tirarmos proveito da situação. Continuar debatendo o assunto é inútil. A equipe de TV chega hoje e vocês sabem o que penso. Pessoalmente, acho que é a melhor coisa que poderia acontecer à nossa área. Vejam só a popularidade que as temporadas anteriores trouxeram aos outros lugares. Amigas de colégio recebeu muita atenção quando Moodysson fez o tal filme sobre a cidade, mas nada comparado à publicidade gerada por um reality show daqui. E Sodding Töreboda sem dúvida colocou a comunidade no mapa. Então imaginem boa parte da Suécia parando para ver Sodding Tanum. Uma oportunidade única para exibirmos nossa pequenina esquina da Suécia pelo seu melhor ângulo!

 

– Melhor ângulo? – Uno bufou. – Álcool e sexo e mulheres burras típicas de reality show; é assim que queremos mostrar Tanumshede?

 

– Bem, eu acho que será incrivelmente excitante! – disse Gunilla Kjellin, de modo encantador, com sua voz um pouco estridente, os olhos brilhando para Erling. Ela nutria uma grave paixonite por ele, apesar de jamais admiti-lo. Mas Erling tinha conhecimento de seus sentimentos e os explorava para conseguir seu voto em todos os assuntos de seu interesse.

 

– Sim, ouçam Gunilla. Esse é o espírito com o qual devemos receber esse projeto. Estamos embarcando numa aventura excitante e é uma oportunidade que devemos saudar com gratidão – Erling usava sua voz entusiasmada, aquela que empregara com tanto sucesso em seus anos como diretor de uma imensa corretora de seguros e que fazia tanto empregados quanto gerentes ouvir com grande interesse tudo o que ele tivesse a dizer. Ele sempre se sentia nostálgico quando se lembrava dos anos passados naquela atmosfera abafada. Mas, graças a Deus, havia saído dali no momento certo. Pegou seu dinheiro ganhado com suor e disse obrigado e adeus. Antes que a matilha de repórteres sentisse o cheiro de sangue e perseguisse seus pobres colegas como caça prestes a ser abatida e despedaçada. Erling agonizou para tomar a decisão de uma aposentadoria antecipada após seu infarto, mas realmente isso acabou provando ser a melhor decisão que havia tomado na vida.

 

– Por favor, sirvam-se de alguns desses excelentes doces. São da padaria do Elg – apontou para a bandeja cheia de pastéis dinamarqueses e bolos de canela. Todos se inclinaram obedientemente e se serviram. Ele se absteve.

 

Havia tido um infarto afinal de contas e, mesmo sendo cioso com exercícios e com o que comia, aquele episódio o tornara ainda mais cuidadoso.

 

– O que estamos fazendo com relação a possíveis danos? Ouvi dizer que Töreboda teve muitos enquanto o programa foi gravado lá. A emissora vai cobrir?

 

Erling bufou impacientemente para o homem que fez a pergunta. O jovem diretor financeiro da cidade sempre tinha que se preocupar com trivialidades em vez de ver o todo, Erling adorava dizer. Que diabos o homem sabia sobre finanças? Ele mal tinha trinta anos e em toda a vida jamais devia ter lidado com quantias que Erling poderia gastar em um único dia em seus bons anos na empresa. Não, ele não tinha paciência com contadorezinhos. Virou-se para Erik Bohlin, que havia feito a pergunta e disse enfaticamente:

 

– Não é algo com que tenhamos que nos preocupar agora. Comparado ao aumento do fluxo de turistas que esperamos, algumas janelas quebradas não são nada com que se preocupar. Eu antevejo também que os policiais vão fazer o seu melhor para merecer seu salário e se manter informados sobre a situação.

 

Ele cruzou seu olhar por alguns segundos com cada um dos presentes sentados àquela mesa. Era uma técnica que descobrira ser muito eficiente no passado. E era igualmente agora. Todos baixaram o olhar e guardaram qualquer forma de protesto no lugar certo: dentro de si. Eles haviam tido sua chance, mas agora a decisão havia sido tomada em bom espírito democrático, e hoje os ônibus da TV com os participantes chegariam a Tanumshede.

 

– Vai dar tudo certo – disse Jörn Schuster. Ele ainda não havia superado o fato de que Erling tinha tomado o posto de comissário que ele desempenhara por quase quinze anos.

 

Por sua vez, Erling não compreendia por que Jörn havia decidido permanecer na Câmara. Se ele tivesse perdido na contagem de votos de maneira tão desonrosa, teria rastejado para fora com o rabo entre as pernas. Mas se Jörn queria chafurdar em sua humilhação, ótimo. Havia certos benefícios em ter a velha raposa presente, apesar de hoje estar exausta e desdentada, no sentido figurado.

 

Ele tinha seus defensores, e esses ficariam calados desde que vissem que Jörn ainda era um líder ativo.

 

– Agora, então, é uma questão de mostrarmos nosso entusiasmo. Vou até lá receber a equipe pessoalmente à uma da tarde e, claro, todos estão convidados a comparecer. Do contrário, nos veremos na reunião normal na quinta-feira. Ele levantou-se para indicar que a reunião estava encerrada.

 

Uno ainda resmungava quando saiu, mas Erling considerou que, no geral, havia se saído muito bem na tarefa de reunir as tropas. Esse empreendimento cheirava a sucesso, tinha certeza.

 

Satisfeito, foi até a varanda e acendeu um charuto da vitória. Na sala de jantar, Viveca silenciosamente tirou a mesa.

 

– Da da da da – Maja estava sentada no cadeirão balbuciando, enquanto evitava com habilidade a colher que a mãe tentava enfiar em sua boca. Depois de mirar por um momento, Erica finalmente conseguiu empurrar uma colher de mingau, mas sua alegria durou pouco, pois Maja escolheu aquele instante para demonstrar que sabia fazer o som de um carro.

 

– Brrrrr – ela disse com tanto gosto que o mingau foi borrifado por todo o rosto de sua mãe.

 

– Fedelha maldita – disse Erica, exausta, mas arrependeu-se da escolha de palavras na hora.

 

– Brrrrr – Maja disse feliz, conseguindo lançar na mesa os restos do mingau que ainda tinha na boca.

 

– ‘Elha maldita – disse Adrian, e sua irmã mais velha, Emma, o repreendeu imediatamente.

 

– Você não pode dizer palavrões, Adrian!

 

– Mas a Ica acabou de falar isso.

 

– Mesmo assim, você não deve falar palavrões, não é verdade, tia Erica?

 

Emma colocou as mãos na cintura e lançou um olhar insistente a Erica.

 

– Você está totalmente certa. Eu fui boba de falar palavrão, Adrian.

 

Satisfeita com a resposta, Emma voltou a comer seu kefir. Erica olhou para ela com amor e preocupação. A menina tinha sido forçada a amadurecer tão depressa. Às vezes ela se comportava mais como uma mãe do que como uma irmã para Adrian. Anna não parecia perceber, mas Erica via muito bem. Ela sabia exatamente o que era arcar com esse papel com tão pouca idade.

 

E agora ela estava fazendo isso de novo. Sendo mãe para sua irmã. Ao mesmo tempo que era a mãe de Maja e meio que uma mãe substituta para Emma e Adrian, esperava que Anna saísse de sua letargia. Erica olhou para o teto enquanto começava a limpar a bagunça da mesa. Mas não havia som do andar de cima. Anna raramente acordava antes das onze, e Erica a deixava dormir. Não sabia mais o que fazer.

 

– Não quero ir para a creche hoje – anunciou Adrian, fazendo uma expressão que dizia claramente “e tente me impedir se puder”.

 

– É claro que você vai para a creche, Adrian – disse Emma, de novo com as mãos na cintura. Erica interveio antes que a briga começasse, ao mesmo tempo que tentava limpar da melhor forma possível sua filha de dezoito meses.

 

– Emma, vá colocar o casaco e as botas. Adrian, eu não tenho tempo para essa discussão hoje. Você vai para a creche com sua irmã, e isso não está aberto a negociação.

 

Adrian abriu a boca para protestar, mas algo na expressão de sua tia dizia que, nessa manhã especialmente, era melhor obedecê-la. Mostrando uma obediência incomum, dirigiu-se à sala.

 

– Ótimo, agora tente calçar os sapatos – Erica pegou os tênis de Adrian, mas ele apenas balançou a cabeça.

 

– Eu não sei. Você precisa me ajudar.

 

– Sabe sim. Você calça os sapatos sozinho na creche.

 

– Não, eu não consigo. Eu sou pequeno – ele adicionou, para dar ênfase.

 

Erica suspirou e colocou Maja no chão. A menininha começou a engatinhar antes mesmo que suas mãos e seus joelhos tocassem o chão. Ela havia começado a engatinhar muito cedo e agora era mestre naquela ação.

 

– Maja, fique aqui, querida – disse Erica, enquanto tentava calçar os sapatos em Adrian. Mas Maja preferiu ignorar o pedido e saiu feliz numa viagem de descobertas. Erica sentia o suor começando a escorrer por suas costas e axilas.

 

– Eu pego a Maja – disse Emma prestativamente, tomando o silêncio de Erica como um sinal de assentimento.

 

Arfando, Emma voltou com Maja, que se contorcia em seus braços como um gato arredio. Erica viu que o rosto de sua filha começava a assumir o tom de vermelho que normalmente avisava que lá vinha choro e correu para pegar a criança. Apressou os mais velhos porta afora, em direção ao carro.

 

Droga, como ela odiava manhãs como essa.

 

– Entrem no carro, estou com pressa. Estamos atrasados novamente, e vocês sabem o que a srta. Ewa acha disso.

 

– Ela não gosta – disse Emma, balançando a cabeça, preocupada.

 

– Não, ela não gosta mesmo – disse Erica, acomodando Maja à cadeirinha, no carro.

 

– Eu quero ir na frente – Adrian anunciou, cruzando os braços, preparado para a batalha. Mas agora a paciência de Erica já estava se esgotando.

 

– Sente-se na sua cadeira! – ela gritou, sentindo certa satisfação quando o viu praticamente voar para seu assento no carro. Emma tomou seu lugar também em uma cadeirinha infantil bem no meio do banco de trás e afivelou o próprio cinto.

 

Apressadíssima e ainda irritada, Erica começou a afivelar Adrian na cadeira, mas parou ao sentir uma mãozinha em sua bochecha.

 

– Eu te a-a-amo, Ica – disse Adrian, tentando parecer o mais doce possível. Sem dúvida numa tentativa de conseguir ganhá-la, mas que funcionava sempre. Erica sentiu seu coração transbordar e inclinou-se para dar-lhe um beijo estalado.

 

A última coisa que fez antes de engatar a ré na garagem foi lançar um olhar apreensivo para a janela do quarto de Anna. Mas a persiana ainda estava fechava.

 

Jonna pressionou a testa na janela fria do ônibus e olhou para a paisagem rural que passava rapidamente. Sentia uma tremenda apatia. Como sempre. Puxou as mangas de seu moletom para cobrir as mãos. Ao longo dos anos, isso se tornara um hábito. Perguntou-se o que estava fazendo aqui. Como veio parar nisso tudo? Por que havia tanta fascinação em acompanhar sua vida diária? Jonna simplesmente não compreendia. Uma garota doente, solitária e esquisita que gostava de se cortar. Mas talvez fosse esse exatamente o motivo de ter sido eleita a continuar, semana após semana, na Casa. Porque havia muitas outras garotas como ela em todo o país. Garotas que se reconheciam avidamente nela, quando ela constantemente entrava em confronto com os outros participantes, quando chorava no banheiro, cortando os braços com lâminas, quando ela emanava tanto desamparo e desespero que os demais na Casa a evitavam como se ela estivesse infectada por raiva. Talvez fosse por isso.

 

– Ai, Meu Deus, que excitante! Imagine que temos, tipo, mais uma chance – Jonna ouvia a animação sem fim na voz de Barbie, mas se recusou a responder. Só o nome da garota já a fazia querer vomitar. Mas os tabloides amavam. BB-Barbie estava se saindo muito bem nas estatísticas. Seu nome verdadeiro era Lillemor Persson. Um dos jornais a havia desmascarado. Também encontraram fotos antigas dela, da época em que era uma moreninha esquelética com óculos imensos. Nada comparado à loira arrasadora e siliconada que era hoje. Jonna deu gargalhadas quando viu tais fotos. Eles haviam recebido uma cópia da edição na Casa. Mas Barbie chorou. E então queimou o jornal. – Veja que multidão! – Barbie apontou excitada para um grupo de pessoas na praça, para onde o ônibus parecia estar se dirigindo. – Você não compreende, Jonna? Eles estão todos aqui para nos ver, não entende? – ela mal conseguia se manter sentada, e Jonna lançou-lhe um olhar desdenhoso. E então colocou os fones de ouvido de seu tocador de MP3 e fechou os olhos.

 

Patrik caminhava lentamente ao redor do carro, que havia caído num despenhadeiro e finalmente parado quando atingiu uma árvore. A frente estava destruída, mas o resto do veículo estava intacto. Não havia conseguido fazer a curva na velocidade em que estava.

 

– O motorista deve ter se chocado contra a direção. Acho que foi essa a causa da morte – disse Hanna, agachando-se do lado do motorista.

 

– Acho melhor deixarmos isso para o médico legista – disse Patrik, ouvindo-se soar mais crítico do que pretendia. – Quero dizer...

 

– Tudo bem – disse Hanna, com um gesto de desdém. – Foi um comentário idiota. Vou me contentar em observar daqui por diante e não tirar conclusões. Por enquanto – acrescentou.

 

Patrik terminou sua volta em torno do carro e agachou-se perto de Hanna. A porta do lado do motorista permanecia aberta, e a vítima ainda estava presa ao cinto de segurança, inclinada para a frente, apoiada na direção. Sangue escorria de um ferimento na cabeça e criava uma poça no assoalho. Eles ouviram um dos técnicos fazendo fotos atrás deles para documentar a cena do acidente.

 

– Estamos te atrapalhando? – perguntou Patrik, virando-se.

 

– Não, já tiramos quase todas as fotos de que precisamos. Pensei em endireitarmos a vítima e fazer mais fotos. Tudo bem? Já viu tudo o que precisava por ora?

 

– Vimos, Hanna? – Patrik tinha o cuidado de incluir sua colega. Não devia ser fácil ser o recém-chegado, e ele queria fazer o melhor para que ela se sentisse bem-vinda.

 

– Sim, acho que sim – ambos levantaram-se e saíram da frente para dar mais espaço para os peritos. Com cuidado, ele segurou o ombro da vítima e apoiou o corpo no encosto. Só agora era possível ver que era mulher. Os cabelos curtos e as roupas unissex fizeram-nos pensar primeiro que se tratava de um homem, mas bastou olhar o rosto para perceber que a vítima era uma mulher em torno de quarenta anos.

 

– É Marit – disse Patrik.

 

– Marit? – Hanna questionou.

 

– Ela tem uma lojinha em Affärsvägen. Vende chá, café, chocolate e coisas assim.

 

– Ela tem família? – a voz de Hanna soou um pouco estranha quando fez a pergunta, e Patrik olhou para Hanna. Mas Hanna parecia a mesma de sempre, então talvez ele estivesse imaginando coisas.

 

– Eu não sei, na verdade. Teremos que verificar.

 

O perito havia terminado de fazer as fotos e deu um passo atrás. Patrik e Hanna se aproximaram novamente.

 

– Cuidado para não tocar em nada – Patrik disse, sem pensar. E antes que Hanna pudesse responder, continuou: – Desculpe, eu esqueço que você pode até ser nova em nosso departamento, mas é uma policial experiente. Você vai ter que me dar um desconto – disse, desculpando-se.

 

– Não seja tão sensível – sua nova colega disse, rindo. – Eu não me ofendo tão facilmente.

 

Patrik riu também, aliviado. Não fazia ideia de que estava tão acostumado a trabalhar com pessoas que conhecia bem, pessoas cujos hábitos profissionais lhe eram familiares. Provavelmente seria mesmo uma boa ter sangue novo na corporação. Além disso, em comparação a Ernst, qualquer coisa era uma melhoria.

 

O fato de ele ter sido despedido depois de fazer justiça com as próprias mãos, por assim dizer, no outono passado era... bem, nada mais nada menos que um milagre.

 

– Então, o que acha? – perguntou Patrik, aproximando-se para olhar o rosto de Marit.

 

– Não é tanto o que vejo, mas o cheiro que sinto – Hanna respirou fundo algumas vezes. – Ela fede à bebida. Devia estar desacordada quando saiu da estrada.

 

– É o que parece mesmo – disse Patrik. Ele parecia um pouco distraído. Com uma careta preocupada, observou o interior do carro. Não havia nada fora do normal. Uma embalagem de chocolate no assoalho, uma garrafa plástica vazia de Coca-Cola, uma página que parecia ter sido rasgada de um livro e, em um canto do outro lado do banco do passageiro, uma garrafa vazia de vodca.

 

– Não parece muito complicado. Um acidente envolvendo um único carro e um motorista embriagado.

 

Hanna deu alguns passos para trás e parecia estar se preparando para ir embora. A ambulância estava pronta para levar o cadáver e não havia mais o que pudessem fazer.

 

Patrik examinou de perto o rosto da vítima. Inspecionou os ferimentos que tinha na face. Algo não se encaixava.

 

– Posso limpar o sangue? – perguntou a um dos peritos da cena do crime, que guardava seu equipamento.

 

– Acho que tudo bem, já temos bastante documentação. Aqui, eu tenho um pano – o perito deu um pedaço de pano branco a Patrik, que agradeceu. Com cautela, quase com carinho, limpou o sangue que saía principalmente de um ferimento na testa. Os olhos da vítima estavam abertos e, antes de continuar, Patrik cuidadosamente fechou-os com seus dedos indicadores. Embaixo do sangue, o rosto de Marit estava coberto de ferimentos e hematomas. Havia batido no volante com bastante força, o carro era de um modelo antigo, sem airbag.

 

– Pode fazer mais fotos? – perguntou ao homem que lhe dera o pano. O perito concordou e pegou a câmera. Fez mais algumas fotos rapidamente e olhou para Patrik de maneira inquisidora.

 

– Já está bom – disse Patrik, caminhando até Hanna, que parecia intrigada.

 

– O que foi que você viu? – ela perguntou.

 

– Não sei. Há algo que... Não sei – ele fez um aceno de desconsideração. – Provavelmente não é nada. Vamos voltar à delegacia. Os outros podem terminar o trabalho aqui.

 

Entraram na viatura e foram para Tanumshede. O caminho de volta foi feito em total silêncio. E naquela quietude, algo latejava em sua mente. Ele só não sabia o que era.

 

Bertil Mellberg estava estranhamente tranquilo. Do modo como normalmente se sentia quando passava algum tempo com Simon, o filho do qual não soubera da existência por quinze anos. Infelizmente, Simon não o visitava com muita frequência, mas pelo menos vinha, e eles conseguiram estabelecer alguma forma de relacionamento. Não era uma ligação exuberante, nem visível de fora; existia de modo um tanto velada. Mas estava lá.

 

A sensação, difícil de descrever, veio de algo inusitado que havia acontecido a ele no domingo anterior. Depois de meses de aborrecimento e pressão de Sten, seu bom amigo – ou melhor, seu único amigo, e mesmo ele estava mais para um conhecido –, Mellberg havia concordado em ir ao baile em Munkedal. Mesmo considerando a si mesmo um bom dançarino, fazia muito tempo que não frequentava um salão de dança. E um baile de quadrilha lhe soava de alguma forma como um bando de caipiras dançando ao som de violinos. Mas Sten era um frequentador habitual e finalmente o havia convencido de que esses bailes não só ofereciam o tipo de música que gente de sua geração gostava como também eram excelentes lugares para caçar.

 

– Elas ficam lá, sentadas em fila, apenas esperando ser escolhidas – Sten lhe dissera. Mellberg não podia negar que isso parecia bom; ele não havia conhecido muitas mulheres recentemente, então certamente sentia necessidade de arejar o rapazinho. Mas seu ceticismo baseava-se na expectativa de que tipo de mulher ia a um baile daquele. Corujas velhas e depenadas, que estavam mais interessadas em cravar as garras em um homem mais velho com uma boa pensão do que em sexo casual. Mas se havia uma coisa que ele sabia era como se proteger de damas que só pensavam em casamento, então decidiu acompanhar Sten e tentar a sorte.

 

Em todo caso, vestiu seu melhor terno e borrifou um pouco de perfume aqui e ali. Sten veio até sua casa e eles se reforçaram com algumas doses antes de sair. Sten pensou em chamar um táxi, para não terem que se preocupar com quanto beberiam. Não que Mellberg se preocupasse com isso sempre, mas não seria nada bonito se fosse pego dirigindo embriagado.

 

Depois do incidente com Ernst, os chefes estavam de olho nele, por isso tinha que ser cauteloso. O que os olhos não veem...

 

Apesar de toda a preparação, não foi com grande expectativa que entrou no salão, onde a dança já estava à toda. E seu preconceito se confirmou: apenas velhas de sua idade, para todos os lados. Quanto a isso, ele e Uffe Lundell estavam em completo acordo. Quem iria querer um corpo enrugado e flácido de meia-idade perto de si quando havia tanta carne boa, firme e jovem por aí? Mellberg tinha que admitir, no entanto, que Uffe obtinha muito mais sucesso nesse campo que ele. Era por causa daquela aura de estrela do rock. Que injustiça.

 

Estava prestes a se dirigir para o bar e reforçar um pouco mais sua coragem quando ouviu alguém falar com ele.

 

– Que lugar! E nós ficamos aqui, nos sentindo velhos.

 

– Bem, eu estou aqui sob protesto – Mellberg respondeu, olhando para a mulher que estava agora ao seu lado.

 

– Eu também. Foi Bodil que me arrastou para cá – disse ela, apontando para uma das damas que já suavam na pista de dança.

 

– No meu caso, foi Sten – disse Mellberg, apontando para o amigo na pista.

 

– Meu nome é Rose-Marie – ela disse, estendendo a mão.

 

– Bertil – respondeu Mellberg.

 

No instante em que sua mão encontrou a dela, a vida dele mudou. Durante sessenta e três anos, ele havia experimentado desejo, tesão e uma compulsão por possuir alguma mulher que conhecia. Mas nunca antes havia se apaixonado. Por isso a coisa o atingiu com mais força ainda. Ele a observou com admiração. A personalidade objetiva de Mellberg registrou uma mulher por volta dos sessenta anos de idade, um metro e cinquenta e dois, ligeiramente cheinha, com cabelos curtos tingidos em um tom ruivo vivo e um sorriso feliz. Mas seu eu subjetivo viu somente seus olhos. Eram azuis e olhavam para ele com curiosidade e intensidade. Ele sentiu-se mergulhando naqueles olhos, como poderia ser descrito naqueles romances baratos que são vendidos em bancas de jornal.

 

Depois disso, a noite passou rápido demais. Eles dançaram e conversaram. Ele lhe pagou bebidas e puxou a cadeira para ela. Um comportamento que certamente não fazia parte de seu repertório. Mas nada fora normal naquela noite.

 

Quando se despediram, ele se sentiu ao mesmo tempo estranho e vazio. Simplesmente tinha que vê-la de novo. Agora estava ali, sentado no escritório numa manhã de segunda-feira, sentindo-se como um adolescente. Diante dele, sobre a mesa, jazia um pedaço de papel com o nome e o telefone de Rose-Marie.

 

Ele olhou para o pedaço de papel, respirou fundo e discou o número.

 

Haviam brigado novamente. Pela enésima vez. Por várias vezes, as discussões se transformaram em lutas verbais de boxe entre as duas. Como de costume, cada uma defendia sua posição. Kerstin queria que as duas saíssem do armário. Marit ainda queria manter tudo em segredo.

 

– Tem vergonha de mim, de nós? – Kerstin gritara. E Marit, como tantas vezes antes, virara o rosto e se recusara a olhá-la nos olhos. Porque era justamente aí que estava o problema. Elas se amavam, e Marit tinha vergonha disso.

 

No início, Kerstin tinha se convencido de que isso não importava. O mais importante era que tinham se encontrado. Que as duas, após serem meticulosamente espancadas pela vida e por pessoas que lhes magoaram até a alma, haviam mesmo se encontrado. O que importa o sexo de um parceiro? Quem se incomoda com o que os outros dizem ou pensam? Mas Marit não via assim. Ela não estava pronta para se sujeitar às opiniões e ao preconceito das pessoas à sua volta e queria que tudo permanecesse como havia sido nos últimos quatro anos. Elas continuariam a morar juntas como amantes, mas aparentemente fingiriam ser apenas duas amigas que, por questões financeiras e por conveniência, dividiam o mesmo apartamento.

 

– Por que se importa tanto com o que os outros dizem? – Kerstin perguntara quando brigaram na noite anterior. Marit chorou como sempre fazia quando elas tinham uma discussão. E como sempre, aquilo havia deixado Kerstin com mais raiva do que nunca. As lágrimas eram como um combustível para a raiva que se acumulava por trás do muro criado por seu segredo. Ela odiava fazer Marit chorar. Odiava que as circunstâncias e as outras pessoas a fizessem magoar aquela que ela amava mais que tudo.

 

– Imagine como seria para Sofie se isso se espalhasse.

 

– Sofie é muito mais forte do que você pensa. Não a use como desculpa para sua própria covardia.

 

– Quanto você acha que alguém tem que ser forte quando se tem quinze anos e as outras crianças pegam no seu pé porque sua mãe é sapatão? Tem ideia de quanta merda ela teria que aguentar na escola? Eu não posso fazer isso com ela! – as lágrimas de Marit distorciam seu rosto, como uma máscara feia.

 

– Você acha de verdade que Sofie não descobriu tudo a essa altura? Acha mesmo que a enganamos quando ela vem nos visitar e você se muda para o quarto de hóspedes, quando e nós ficamos fazendo esse teatrinho em casa? Olhe, Sofie já percebeu há muito tempo. E se eu fosse ela, teria mais vergonha de uma mãe que espera viver a vida toda numa porra de mentira para que “os outros” não comentem. Disso sim, eu teria vergonha!

 

A essa altura, Kerstin gritava tanto que podia se perceber ficando rouca. Marit a olhava com aquele olhar ferido que, ao longo dos anos, Kerstin tinha aprendido a odiar e também sabia por experiência o que viria depois. Dito e feito, Marit levantara-se da mesa e começara a vestir a jaqueta, soluçando.

 

– Vá em frente, fuja. É o que você sempre faz. Vá! E dessa vez não se incomode em voltar!

 

Quando a porta bateu atrás de Marit, Kerstin sentou-se à mesa da cozinha. Respirava com dificuldade, como se estivesse correndo. E de certa forma, estava mesmo. Correndo atrás da vida que queria para as duas, mas que o medo de Marit as impedia de ter. E pela primeira vez, suas palavras tinham intenção. Algo dentro de si dizia que logo ela não conseguiria mais suportar aquilo.

 

Mas agora, na manhã seguinte, a sensação tinha sido substituída por uma preocupação profunda, que a consumia. Havia passado a noite toda acordada.

 

Esperando a porta se abrir, esperando ouvir os passos familiares nos tacos do assoalho, esperando abraçar Marit e consolá-la e implorar por seu perdão. Mas ela não havia voltado para casa. E as chaves do carro haviam sumido. Kerstin verificara durante a noite. Onde diabos ela estaria? Será que tinha acontecido alguma coisa? Ela teria ido para a casa de seu ex-marido, o pai de Sofie? Ou teria fugido para a casa da mãe em Oslo?

 

Com dedos trêmulos, Kerstin pegou o telefone para começar a ligar.

 

– O que acha que isso vai significar para o turismo em Tanum? – o repórter aguardava de pé com bloco e caneta, pronto para anotar sua resposta.

 

– Muito. Vai se tornar imenso. Dentro de cinco semanas, haverá um programa de meia hora transmitido de Tanumshede todos os dias na TV. Essa área nunca teve uma oportunidade de marketing tão gigante – Erling sorria. Uma multidão havia se juntado do lado de fora do centro comunitário, esperando pelo ônibus com os participantes. A maioria eram adolescentes que se aglomeravam e mal podiam ficar parados de tanta ansiedade para finalmente ver seus ídolos ao vivo.

 

– Mas não pode acontecer o efeito oposto? Digo, em temporadas passadas o show terminou tendo que lidar com bate-bocas, sexo, embriaguez, e isso não deve ser a mensagem que queremos passar para os turistas, não é?

 

Erling olhou irritado para o repórter. Por que as pessoas tinham que ser tão negativas? Ele já tinha enfrentado o bastante com a própria Câmara Municipal e agora a imprensa começava a bater na mesma tecla.

 

– Claro, mas você provavelmente já ouviu a frase “Não existe divulgação ruim”, não ouviu? E, para ser sincero, Tanumshede tem uma imagem bem invisível; nacionalmente, digo. Agora isso tudo vai mudar com Sodding Tanum.

 

– Obviamente – o repórter começou a dizer, mas foi interrompido por Erling, que perdia a paciência.

 

– Infelizmente, não tenho tempo para tecer mais comentários no momento. Estou aqui no comitê de boas-vindas – ele se virou e saiu andando a passos largos na direção do ônibus, que acabava de estacionar. Os jovens se aglomeraram diante da porta do ônibus, ansiosos, aguardando com expressão excitada a abertura da porta. A visão da multidão de jovens era o suficiente para confirmar a opinião de Erling de que era disso que a cidade precisava. Agora Tanumshede entraria no mapa.

 

Quando as portas do ônibus se abriram com um som de ar sendo liberado, foi um homem de uns quarenta e poucos anos que saiu primeiro. Murmúrios decepcionados dos adolescentes indicavam que ele não fazia parte do elenco. Erling não havia assistido a nenhum dos vários reality shows já transmitidos, então não fazia ideia do que esperar.

 

– Erling W. Larson – disse ele, estendendo a mão e ligando seu sorriso vitorioso. As câmeras clicavam.

 

– Fredrik Rehn – disse o homem, apertando a mão oferecida a ele. – Nós conversamos por telefone. Sou o produtor desse circo – e ambos sorriam.

 

– Bem, deixe-me dar-lhe as boas-vindas a Tanumshede. Em nome da comunidade, gostaria de dizer que estamos extremamente felizes e orgulhosos de tê-los aqui e esperamos que seja uma temporada muito excitante.

 

– Obrigado, obrigado. Sim, nossas expectativas são grandes. Depois de duas temporadas de sucesso, estamos muito otimistas. Sabemos que é um formato de sucesso e não vemos a hora de trabalhar com vocês. Mas não vamos deixar os fãs esperando – disse Fredrik com um sorriso largo, fazendo reluzir os dentes incrivelmente brancos diante da multidão ansiosa.

 

– Aí vêm eles! O elenco de Sodding Tanum: Barbie, do Big Brother, Jonna, do Big Brother, Calle, do Survivor, Tina, do The Bar, Uffe, do Survivor e, por último, mas não menos importante, Mehmet, do The Farm!

 

Um a um, os participantes saíam do ônibus, e a histeria se alastrou. As pessoas gritavam e apontavam e lançavam-se à frente para tocar os participantes ou pedir autógrafos. Os operadores de câmera já estavam posicionados e filmavam tudo. Satisfeito, mas espantado, Erling assistia à reação frenética causada pela chegada do elenco. Não conseguia deixar de se perguntar por que a juventude de hoje ficava tão excitada com isso. Por que esse grupo de crianças arrogantes gerava tanta histeria? Bem, ele não precisava entender – o principal era explorar ao máximo a atenção que o programa traria a Tanumshede. Mais tarde, se isso o fizesse parecer o grande benfeitor da cidade, quando o sucesso se tornasse um fato, então, sim, seria naturalmente um benefício adicional.

 

– Vejam, precisaremos dispersá-los. Vocês terão muitas oportunidades para conhecer o elenco. Afinal, eles viverão aqui por cinco semanas – Fredrik espantava os fãs, que ainda cercavam o ônibus. – Nesse momento, o elenco precisa se acomodar e descansar um pouco. Mas vocês vão ligar a TV semana que vem, certo? Estreia segunda-feira, às sete! – fez sinais de positivo com as duas mãos e disparou mais um sorriso falso.

 

A jovem multidão recuou relutantemente, a maioria se dirigindo à escola, mas um grupo pequeno parecia considerar essa uma excelente oportunidade para matar as aulas de hoje e seguia direto para o Hedemyr.

 

– Inegavelmente, um início muito promissor – disse Fredrik, abraçando Barbie e Jonna. – O que me dizem, meninas, estão prontas para ir?

 

– Sem dúvida! – disse Barbie, com olhos brilhantes. Como sempre, toda a comoção lhe provara uma descarga extra de adrenalina e ela pulava de felicidade.

 

– E quanto a você, Jonna? Como se sente?

 

– Bem – ela murmurou –, mas seria bom ter chance de desfazer as malas e me acomodar.

 

– Vamos cuidar disso, gata – disse Fredrik, apertando um pouco mais seus ombros. – O principal é que vocês estejam se sentindo bem, você sabe disso – e foi em direção a Erling. – Está tudo pronto com as acomodações?

 

– Claro – Erling apontou na direção de uma casa vermelha em estilo antigo, que ficava a apenas cinquenta metros de distância. – Eles vão morar no centro comunitário. Colocamos camas e outros móveis e acho que ficou bastante confortável.

 

– Tanto faz! Enquanto tiver goró, eu posso dormir em qualquer lugar – foi Mehmet do The Farm que falou, seguido por risinhos e manifestações de concordância por parte dos demais. Bebida grátis era um pré-requisito para participarem. Isso e todas as oportunidades de fazer sexo que advinham do status de celebridade.

 

– Calma, Mehmet – disse Fredrik, sorrindo. – Vai haver um bar com tudo o que você possa querer. Vários engradados de cerveja também, e mais ainda quando tudo terminar. Vamos cuidar bem de vocês – tentava colocar os braços em volta de Mehmet e Uffe, mas os dois escaparam habilmente. Já no início eles o tacharam de bicha louca e não tinham o menor interesse em ficar se agarrando com um mordedor de fronha. Deixaram aquilo bem claro. Apesar de andarem na corda bamba: eles tinham que se dar bem com o produtor, como o elenco da temporada anterior os aconselhara. O produtor decidia quem ficava mais tempo no ar e quem ficava menos, e ficar por mais tempo diante das câmeras era a única coisa que importava. Mais tarde, se você vomitasse ou mijasse no chão ou agisse como um babaca o tempo todo, não significaria nada.

 

Erling não tinha a menor ideia disso. Nunca tinha ouvido falar em bartenders que tivessem se tornado celebridades ou no esforço imoral necessário para se manter sob os holofotes como uma estrela de reality show. Não, ele só estava interessado na visibilidade que Tanumshede conseguiria com o programa. E seu lugar de destaque como o homem que tornou isso tudo possível.

 

Erica já havia almoçado quando Anna desceu as escadas, vindo de seu quarto. Mas mesmo já sendo mais de uma hora da tarde, ela parecia não ter dormido nada. Anna sempre foi magra, mas agora estava tão enxuta que Erica às vezes tinha que controlar o impulso de demonstrar susto ao vê-la.

 

– Que horas são? – Anna perguntou, com voz trêmula. Sentou-se à mesa e pegou a xícara de café que Erica lhe oferecia.

 

– Uma e quinze.

 

– Dá, dá – disse Maja, acenando prazerosamente para Anna, numa tentativa de chamar sua atenção. Anna nem notou.

 

– Merda, eu dormi até depois da uma da tarde. Por que você não me acordou? – perguntou Anna, dando um gole em seu café quente.

 

– Bem, eu não sabia o que queria que eu fizesse. Você parecia precisar dormir – Erica disse cautelosamente, sentando-se à mesa da cozinha.

 

Sua relação com Anna andava de tal forma que já havia algum tempo tinha que tomar cuidado com o que dizia, e as coisas não haviam melhorado depois de tudo o que acontecera com Lucas. O mero fato de ela e Anna estarem morando sob o mesmo teto novamente as fez cair nos antigos padrões de que ambas lutaram tanto para escapar. Erica automaticamente retomou seu papel maternal com relação à irmã, enquanto Anna parecia vacilar entre o desejo de ser cuidada e uma necessidade de se rebelar. Nos últimos meses, a casa tinha uma atmosfera sufocante, com várias questões não ditas flutuando pelo ar, esperando o momento certo de ser ventiladas. Mas Anna ainda estava em estado de choque e não parecia capaz de sair dessa sozinha. Então Erica pisava em ovos em torno dela, morrendo de medo de dizer algo errado.

 

– E as crianças? Deram trabalho para ir para a creche?

 

– Não, correu tudo bem – disse Erica, decidindo não mencionar a birrinha de Adrian. Anna tinha tão pouca paciência com as crianças ultimamente. A maioria das questões práticas recaía sobre Erica e sempre que as crianças começavam a brigar, Anna desaparecia e deixava Erica lidar com o problema. Ela era como um trapo torcido: cambaleava indiferente pela casa, como se tentasse descobrir o que um dia a manteve de pé. Erica estava muito preocupada.

 

– Anna, não se aborreça, mas não acha que deveria conversar com alguém? Conseguimos o nome de um psicólogo que dizem ser excelente e eu acho que poderia...

 

Anna a interrompeu bruscamente.

 

– Já disse que não. Eu tenho que sair dessa sozinha. É minha culpa. Eu matei um ser humano. Não posso me sentar e reclamar com um completo estranho. Eu tenho que resolver isso sozinha – a mão que segurava a xícara de café apertou a asa com tanta força que as articulações embranqueceram.

 

– Anna, sei que já conversamos sobre isso mil vezes, mas vou dizer de novo. Você não assassinou Lucas, você o matou em legítima defesa. E estava defendendo não apenas a si mesma como às crianças também. Ninguém duvida disso, e você foi totalmente absolvida. Ele teria te matado, Anna. Era você ou Lucas.

 

O rosto de Anna se contorceu levemente enquanto Erica falava e Maja, sentindo a tensão no ar, começou a choramingar no cadeirão.

 

– Eu... não... consigo... falar... sobre... isso – disse Anna, com os dentes cerrados. – Vou voltar para a cama. Pode pegar as crianças? – ela se levantou e deixou Erica sozinha na cozinha.

 

– Sim, eu vou buscá-las – disse Erica, sentindo os olhos marejados. Logo ela não seria mais capaz de suportar isso. Alguém tinha que fazer alguma coisa.

 

Então teve uma ideia. Pegou o telefone e discou um número que tinha na memória. Não custava tentar.

 

Hanna foi diretamente para seu escritório e começou a se instalar. Patrik seguiu para o cubículo de Martin Molin e bateu cautelosamente na porta.

 

– Entre.

 

Patrik entrou na sala e sentou-se diante da mesa de Martin. Eles quase sempre trabalhavam juntos e passavam muitas horas ocupando a cadeira de visitas um do outro.

 

– Soube que saiu para investigar um acidente de automóvel. Vítimas?

 

– Sim, a motorista. Apenas um carro envolvido. E eu a reconheci. Era Marit, a mulher da loja em Affärsvägen.

 

– Que merda – disse Martin, com um suspiro. – Tão desnecessário. Tentou desviar de um cervo ou coisa assim?

 

Patrik hesitou.

 

– Os peritos estavam lá, então o relatório e a necropsia provavelmente vão nos dar uma resposta definitiva. Mas o carro fedia à bebida.

 

– Que merda – disse Martin pela segunda vez. – Dirigindo embriagada, em outras palavras. Se bem que não creio que ela alguma vez já tenha sido parada por isso. Pode ter sido a primeira vez que fez isso ou pelo menos ela nunca foi detida por isso.

 

– Sim – Patrik falou pausadamente. – Pode ser isso.

 

– Mas? – Martin cutucou, juntando as mãos atrás da cabeça. Seus cabelos ruivos brilharam contra as palmas brancas. – Posso sentir que algo o incomoda. Já te conheço bem o bastante e sei dizer quando há algo errado.

 

– Bem, eu não sei – disse Patrik. – Não é nada específico. Alguma coisa parece... errada, algo que não consigo apontar com certeza.

 

– Seus instintos normalmente estão certos – disse Martin preocupado, balançando a cadeira para frente e para trás. – Mas nesse momento talvez seja melhor esperar e ouvir o que os especialistas têm a dizer. Assim que os peritos e o patologista tiverem olhado tudo, saberemos mais. Talvez eles apareçam com uma explicação para algo parecer estranho.

 

– Sim, você está certo – disse Patrik, coçando a cabeça. – Mas... não, você tem razão, não faz sentido especular antes de sabermos mais. Agora precisamos nos concentrar no que podemos fazer. E infelizmente isso significa notificar a família de Marit. Sabe se ela tem parentes aqui?

 

Martin franziu as sobrancelhas.

 

– Ela tem uma filha adolescente, que eu saiba, e divide um apartamento com uma amiga. Houve boatos sobre esse acordo entre elas, mas não sei...

 

Patrik suspirou.

 

– Temos que ir até a casa dela e então ver o que é melhor fazer.

 

Alguns minutos depois, eles estavam batendo à porta do apartamento de Marit. Procuraram na lista e descobriram que ela morava num arranha-céu a poucos metros da delegacia. Tanto Patrik quanto Martin arfavam. Essa era a pior tarefa de um policial. Só quando ouviram passos do lado de dentro é que se deram conta de que não tinham certeza de que alguém estaria em casa àquela hora da tarde.

 

A mulher que abriu a porta soube na hora por que eles tinham vindo. Martin e Patrik podiam ver o modo como seu rosto empalideceu e seus ombros caíram, em sinal de resignação.

 

– É a respeito de Marit, não é? Aconteceu alguma coisa? – a voz dela era trêmula, mas ela recuou para deixá-los entrar.

 

– Sim, infelizmente temos más notícias. Marit Kaspersen envolveu-se num acidente de carro. Ela... faleceu – disse Patrik, em voz baixa. A mulher diante deles ficou completamente imóvel. Como se tivesse congelado naquela posição e não pudesse enviar sinais do cérebro para os músculos. Em vez disso, sua mente se ocupava de processar a informação que acabava de escutar.

 

– Gostariam de um café? – ela disse finalmente, dirigindo-se, com movimentos robóticos, para a cozinha, sem esperar pela resposta deles.

 

– Há alguém para quem devemos ligar? – perguntou Martin. A mulher parecia estar em choque. Seus cabelos castanhos tinham um corte estilo tigelinha e ela não parava de colocá-los atrás das orelhas. Era muito magra, vestia jeans e um suéter tricotado em estilo típico norueguês com um lindo e intricado padrão e grandes e elegantes fechos prateados.

 

Kerstin balançou a cabeça.

 

– Não, eu não tenho ninguém. Ninguém exceto... Marit. E Sofie, é claro. Mas ela está com o pai dela.

 

– Sofie... é a filha de Marit? – Patrik perguntou, balançando a cabeça quando Kerstin estendeu uma caixa de leite depois de servir café em três xícaras.

 

– Sim, ela tem quinze anos. É a semana de Ola. A cada duas semanas ela fica comigo e Marit e nas outras com Ola em Fjällbacka.

 

– Vocês eram amigas íntimas, você e Marit? – Patrik se sentiu desconfortável com a forma como fez a pergunta, mas não sabia de que outra maneira abordar o assunto. Tomou um gole do café enquanto aguardava a resposta. Estava delicioso. Forte, como ele gostava.

 

Um sorriso torto mostrou que Kerstin sabia o que ele estava perguntando. Seus olhos se encheram de lágrimas quando ela disse:

 

– Nós éramos amigas durante as semanas em que Sofie ficava aqui, mas amantes quando ela estava com Ola. Era isso o que nós... – sua voz falhou e lágrimas começaram a escorrer por sua face. Ela chorou por algum tempo. Então fez um esforço para controlar a voz novamente e prosseguiu: – Era isso o que nós estávamos discutindo ontem à noite. Pela centésima vez. Marit queria continuar no armário e eu a estava sufocando e queria assumir tudo. Ela usou Sofie como desculpa, mas era só uma desculpa mesmo. Marit era quem não estava preparada para se sujeitar a fofocas e olhares tortos. Eu tentei explicar para ela que não conseguiríamos escapar de qualquer jeito. Já havia fofoca e olhares o bastante. E mesmo que no início as pessoas falassem de nós se tornássemos público nosso relacionamento, eu estava convencida de que viraria notícia velha em pouco tempo. Mas Marit se recusava a me ouvir. Ela levou uma vidinha típica de classe média por tantos anos, com um marido e uma filha e uma casa e feriados acampando num trailer e tudo aquilo. A ideia de que pudesse ter sentimentos por uma mulher era algo que ela escondia a sete chaves. Mas quando nos conhecemos, foi como se as peças se encaixassem de repente. Pelo menos era assim que ela descrevia para mim. Ela aceitou as consequências, deixou Ola e veio morar comigo. Mas ainda não ousava admitir isso em público. E foi sobre isso que discutimos noite passada – Kerstin pegou um guardanapo de papel e assoou o nariz.

 

– A que horas ela saiu? – perguntou Patrik.

 

– Umas oito. Oito e quinze, acho. Eu imaginei que algo pudesse ter acontecido. Ela nunca teria passado a noite fora de propósito. Mas hesitei em ligar para a polícia. Pensei que ela teria ido para a casa de um amigo ou que tivesse passado a noite andando ou... não, eu não sei o que pensei, na verdade. Quando vocês chegaram, eu estava pensando em ligar para os hospitais e se eu não a encontrasse lá, ligaria para vocês.

 

As lágrimas começaram a cair novamente e ela teve que assoar o nariz mais uma vez. Patrik pôde ver como sofrimento, dor e autoculpabilização giravam como um turbilhão dentro dela e desejou que houvesse algo que pudesse dizer para pelo menos amainar a culpa. Mas, em vez disso, foi forçado a piorar as coisas.

 

– Nós... – hesitou, pigarreou e prosseguiu – suspeitamos que ela estava sob efeito de álcool quando o acidente ocorreu. É algo com que ela... tinha problemas?

 

Ele tomou mais um gole do café e desejou por um segundo estar em qualquer outro lugar, bem longe. Não ali, não naquela cozinha, com aquelas perguntas e aquele pesar. Kerstin o olhou, surpresa.

 

– Marit nunca bebeu álcool. Pelo menos não desde que eu a conheci, e isso faz mais de quatro anos. Ela dizia que não gostava do sabor de bebida alcoólica. Ela nunca bebeu nem sequer sidra.

 

Patrik olhou de forma significativa para Martin. Mais um detalhe estranho para adicionar à sensação elusiva que o acometia desde que vira o acidente algumas horas antes.

 

– E você tem certeza disso? – parecia uma pergunta estúpida. Ela já havia respondido, mas não podia haver ambiguidades.

 

– Sim, absoluta! Eu nunca a vi beber álcool, nem vinho ou cerveja ou qualquer coisa do tipo. Só de pensar que ela bebeu e dirigiu... não, isso soa absurdamente errado. Eu não entendo – Kerstin olhou para Patrik e para Martin com espanto. O que eles diziam não fazia o menor sentido. Marit não bebia, simples assim.

 

– Como podemos encontrar a filha dela? Você tem o endereço do ex-marido de Marit? – Martin perguntou, pegando um bloco de notas e uma caneta.

 

– Ele mora na área de Kullen, em Fjällbacka. Tenho o endereço bem aqui – pegou um pedaço de papel do quadro de avisos e deu a Martin. Ainda parecia confusa, mas a notícia inexplicável a fez parar de chorar por ora.

 

– Então não quer que liguemos para ninguém em seu nome? – perguntou Patrik, enquanto se levantava da mesa.

 

– Não. Eu... Eu acho que gostaria de ficar sozinha por enquanto.

 

– Ok. Mas ligue para nós se houver algo que possamos fazer – Patrik deu-lhe seu cartão. Virou-se pouco antes de fechar a porta atrás de si e de Martin. Kerstin ainda estava sentada à mesa. Estava totalmente imóvel.

 

– Annika! A menina nova já apareceu? – Mellberg gritou a pergunta corredor adentro.

 

– Sim! – Annika gritou de volta, sem se incomodar em sair da recepção.

 

– Então onde está ela? – Mellberg continuou, ainda gritando.

 

– Bem aqui – disse uma voz feminina e, um segundo depois, Hanna apareceu no corredor.

 

– Ah, sim, muito bem, se você não estiver muito ocupada, talvez gostaria de entrar e se apresentar – ele disse, ácido. – É costumeiro uma pessoa dizer olá para seu novo chefe. Normalmente, é a primeira coisa que se faz num novo emprego.

 

– Perdão – disse Hanna, solene, aproximando-se de Mellberg com a mão estendida. – Assim que cheguei, Patrik Hedström me levou para atender a uma chamada e acabamos de voltar. Eu estava a caminho de vir conhecê-lo, naturalmente. Em primeiro lugar, permita-me dizer quanto ouvi falar sobre o ótimo trabalho que todos fazem aqui. Certamente o crédito é seu, pela forma como vem lidando com as investigações de homicídios nos últimos anos. E fala-se muito também sobre a esplêndida liderança que você exerce aqui para possibilitar que uma delegacia tão pequena resolva casos de forma tão exemplar.

 

Ela apertou sua mão com firmeza, enquanto Mellberg a olhou desconfiado, tentando descobrir se havia ironia no que ela acabava de dizer. Mas seu olhar não apresentava o menor sinal de escárnio e ele rapidamente decidiu aceitar a lisonja. Talvez não fosse tão ruim ter uma mulher de farda, afinal de contas. Ela era bonita, também. Um pouco magra para seu gosto, mas nada mal, nada mal mesmo. Se bem que, depois da conversa que tivera de manhã, com resultado tão favorável, ele tinha que admitir que não sentia mais o mesmo frio no estômago à vista daquela mulher tão atraente. Para sua surpresa, seus pensamentos se voltaram à voz cálida de Rose-Marie e à alegria com que aceitara seu convite para jantar.

 

– Bem, não vamos ficar aqui no corredor – ele disse, após afastar relutantemente a lembrança do agradável telefonema. – Vamos nos sentar no meu escritório e conversar um pouco.

 

Hanna seguiu-o à sua sala e sentou-se diante de sua mesa.

 

– Então, vejo que já arrumou uma forma de molhar os pés.

 

– Sim, o inspetor Hedström me levou para investigar um acidente de automóvel. Apenas um carro. Com uma vítima, infelizmente.

 

– Sim, isso acontece de tempos em tempos.

 

– Nossa primeira avaliação indica que também houve envolvimento de álcool. A motorista cheirava à bebida.

 

– Droga. Patrik disse se era alguém que ele já havia detido por dirigir embriagado antes?

 

– Não, aparentemente não. Ele inclusive reconheceu a vítima. Uma mulher que tinha uma loja em Affärsvägen. Marit, acho que foi o que ele disse.

 

– Que estranho – disse Mellberg, coçando seus cabelos cacheados no topo da cabeça, contemplativamente. – Marit? Eu jamais acreditaria – pigarreou. – Espero que não tenha tido que notificar a família em seu primeiro dia aqui.

 

– Não – disse Hanna. – Patrik e um policial mais jovem e mais baixo, de cabelos ruivos, foram fazer isso.

 

– Aquele é Martin Molin – disse Mellberg. – Patrik não apresentou vocês dois?

 

– Não, ele provavelmente esqueceu. Desconfio que ele estivesse pensando no que teria que fazer.

 

– Humm – disse Mellberg. Houve um longo silêncio. E então ele pigarreou.

 

– Muito bem. Bem-vinda à delegacia de Tanumshede. Espero que goste daqui. Encontrou um lugar para morar?

 

– Estamos alugando uma casa, isto é, meu marido e eu, perto da igreja. Na verdade, nós nos mudamos há uma semana e passamos esse tempo nos instalando. A casa está mobiliada, mas queremos torná-la o mais aconchegante possível.

 

– E seu marido? O que ele faz? Também encontrou um trabalho aqui?

 

– Ainda não – Hanna disse, baixando os olhos novamente. Suas mãos se moviam incansavelmente em seu colo.

 

Mellberg estava zombando em silêncio. Então, ela era casada com esse tipo de homem. Um bosta desempregado que se deixava ser sustentado pela mulher. Bem, alguns conseguem viver assim a vida toda.

 

– Lars é psicólogo – disse Hanna, como se pudesse ouvir o que Mellberg estava pensando. – Ele tem procurado, mas o mercado para psicólogos não é lá muito bom por aqui. Então, até que encontre algo, está trabalhando em um livro. Um livro de não ficção. E ele também vai trabalhar por várias horas semanais como psicólogo dos participantes de Sodding Tanum.

 

– Sei – disse Mellberg, em um tom que demonstrava que já havia perdido o interesse no que o marido dela fazia. – Bem, mais uma vez, bem-vinda à delegacia – levantou-se para indicar que ela podia sair, agora que as formalidades haviam sido concluídas.

 

– Obrigada – disse Hanna.

 

– Por favor, feche a porta quando sair – disse Mellberg. Por um breve momento, ele pensou ter visto um sorriso divertido em seus lábios. Mas provavelmente se enganara. Ela parecia ter muito respeito por ele e seu trabalho. Havia dito isso mais ou menos, e dada a sua profunda percepção do comportamento humano, ele sempre sabia dizer se alguém estava sendo sincero ou não. E Hanna era definitivamente sincera.

 

– Como foi? – sussurrou Annika assim que entrou no escritório de Hanna, segundos depois.

 

– Bem, por ora – disse Hanna, oferecendo a ela o sorriso divertido que Mellberg imaginou ter visto. – Uma figura, esse cara – ela disse, sacudindo a cabeça.

 

– Figura. É, acho que pode chamá-lo assim – disse Annika, rindo. – Em todo caso, parece que você consegue lidar bem com Mellberg. Não engula desaforos dele, é meu conselho. Se ele achar que pode pisar em você, acabou.

 

– Já encontrei alguns Mellbergs na vida, então sei sim como lidar com ele – disse Hanna. E Annika não tinha dúvida de que ela sabia do que estava falando. – Elogie um pouco, finja que está fazendo exatamente o que ele diz, mas faça o que achar melhor. Enquanto tudo der certo no final, ele vai fingir que foi tudo ideia dele desde o início, estou certa?

 

– Exatamente. É justamente como se dar bem quando Bertil Mellberg é seu chefe – disse Annika, rindo enquanto retornava à sua mesa, na recepção. Não precisava se preocupar com essa menina. De opiniões fortes, esperta e durona. Ia ser um prazer vê-la encarar Mellberg.

 

Abatido, Dan começou a pegar as coisas espalhadas pelo quarto das meninas. Como sempre, elas haviam deixado o lugar como se uma bomba tivesse explodido lá. Ele tinha noção de que deveria ser mais rigoroso em fazê-las arrumar suas coisas, mas o tempo que passava com elas era tão precioso. A cada dois fins de semana, ele ficava com as filhas e queria aproveitar ao máximo o tempo que passavam juntos, sem o desperdiçar com críticas e brigas. Ele sabia que estava errado, estava pronto a assumir sua responsabilidade paterna e não jogar toda a culpa sobre Pernilla, mas o fim de semana acabou tão rápido e os anos também pareciam estar passando com rapidez assustadora. Belinda já estava com dezesseis anos e era praticamente adulta. Malin, aos dez, e Lisen, aos sete, estavam crescendo tão rapidamente que às vezes parecia que ele não conseguia acompanhar.

 

Três anos após o divórcio e a culpa ainda pesava como um bloco de pedra sobre seu peito. Se não tivesse cometido esse erro fatídico, agora não estaria recolhendo os brinquedos e as roupas das meninas em uma casa que fazia eco de tão vazia. Talvez também tivesse sido um erro continuar morando na casa de Falkeliden. Pernilla havia se mudado para Munkedal a fim de ficar perto de sua família. Mas ele não queria que as meninas perdessem o lar de que se lembravam. Então trabalhou, poupou, cortou o que pôde para que as garotas se sentissem em casa a cada dois fins de semana, quando vinham visitá-lo. Mas logo não seria mais possível. O custo para manter a casa o esmagava. Seria forçado a tomar uma decisão nos próximos seis meses. Sentou-se pesadamente na cama de Malin e descansou a cabeça nas mãos.

 

O toque do telefone tirou-o de seus pensamentos. Alcançou o aparelho ao lado da cama de Malin.

 

– Aqui é o Dan. Oh, olá, Erica. Estou meio pra baixo. As meninas foram embora ontem à noite. Sim, eu sei, elas voltam logo. Só que esse meio-tempo parece muito longo. Então, no que está pensando?

 

Ouviu com atenção. A ruga de preocupação que marcava seu rosto antes de atender ao telefone ficou mais pronunciada.

 

– As coisas estão assim tão ruins? Se houver algo que eu possa fazer, é só dizer.

 

Ouviu de novo, enquanto Erica falava.

 

– Bem, eu posso fazer isso, sim. Certamente. Se você acha que vai ajudar – mais uma pausa. – Ok, estou indo para aí.

 

Dan desligou e ficou sentando por um momento, pensando. Não sabia se poderia mesmo ajudar, mas, como era Erica quem estava pedindo, ele não hesitaria em tentar.

 

Um dia, muito tempo atrás, eles haviam sido um casal, mas nos anos seguintes tornaram-se amigos íntimos. Ela o ajudou quando estava se divorciando de Pernilla, e ele faria qualquer coisa por ela. Patrik também havia se tornado um grande amigo e Dan era um convidado frequente na casa deles.

 

Ele vestiu o casaco e saiu com o carro. Levou poucos minutos para chegar à casa de Erica. Ela abriu a porta na primeira batida.

 

– Oi. Entre – ela disse, dando-lhe um abraço.

 

– Oi. Onde está Maja? – ele procurou ansiosamente pela garotinha que estava rapidamente se tornando seu bebê preferido. Ele queria pensar que Maja também gostava dele.

 

– Ela está dormindo. Sinto muito – Erica riu. Sabia que sua encantadora filhinha já havia roubado para ela o primeiro lugar no afeto de Dan.

 

– Bem, acho que terei que tentar ficar sem ela, mas vou sentir falta de cheirar seu pescocinho.

 

– Não se preocupe, ela vai acordar em um minuto. Por que não entra? Anna está lá em cima dormindo – Erica apontou para o teto.

 

– Acha que é uma boa ideia? – disse Dan preocupado. – Talvez ela não esteja com vontade. Talvez até fique zangada.

 

– Não me diga que um cara grande e forte como você tem medo da ameaça de ver uma mulher com raiva – Erica zombou dele, levantando os olhos para observar Dan, que era bastante imponente. – E o fato de eu ter dito isso uma vez não quer dizer que quero ouvir de novo sobre Maria ter te achado parecido com Dolph Lundgren. Considerando que ela está certa sobre a maioria das coisas, eu não a citaria voluntariamente se fosse você.

 

– Mas eu pareço mesmo com ele, não? – Dan fez uma pose, mas riu. – Não, você deve estar certa. E meus dias de galã já ficaram para trás. Eu só tinha que pôr isso tudo pra fora.

 

– É, Patrik e eu não vemos a hora de você encontrar uma namorada com quem se possa conversar.

 

– Você diz em comparação com o alto nível intelectual desta casa? A propósito, como anda Paradise Hotel? Os seus favoritos ainda estão no programa? Quem vai para a final? Você é uma telespectadora tão fiel. Tenho certeza de que você pode me atualizar sobre o que acontece nesse programa tão cultural, que desafia seu cérebro, com tanta sede de conhecimento. E Patrik, ele pode me falar um pouco sobre a classificação de todos os times do campeonato sueco, não? Isso é matemática de alto nível.

 

– Ha ha ha. Já entendi – Erica deu-lhe um soco no braço. – Agora suba lá e seja útil.

 

– Tem certeza de que Patrik sabe no que está se metendo? Eu acho que vou ter uma conversa com ele sobre se é uma boa ideia subir ao altar com você. – Dan já estava na metade da escada.

 

– Ótima ideia! Agora suba!

 

A risada de Dan calou-se em sua garganta assim que subiu os últimos degraus. Ele mal via Anna nesse tempo em que ela e as crianças estavam com Erica e Patrik. Como a Suécia inteira, ele soube de toda a tragédia pelos jornais, mas, em todas as vezes que visitou Erica, Anna não apareceu. Pelo que Erica dizia, ela passava a maior parte do tempo no quarto.

 

Ele bateu com cuidado na porta. Nada. Bateu novamente.

 

– Anna? Olá? É o Dan. Posso entrar? – nenhuma resposta ainda. Permaneceu ali, aturdido. Não se sentia lá muito confortável com a situação, mas prometeu a Erica que tentaria ajudar, então faria o melhor possível. Respirou fundo e abriu a porta. Anna estava deitada na cama e ele viu que estava acordada. Olhava para o teto, com as mãos entrelaçadas sobre o estômago. Ela nem olhou em sua direção quando ele entrou.

 

Ele sentou-se na beirada da cama. Nenhuma reação.

 

– Como vão as coisas? Como se sente?

 

– Como parece que estou me sentindo? – Anna disse, sem tirar os olhos do teto.

 

– Erica está preocupada com você.

 

– Erica está sempre preocupada comigo.

 

Dan sorriu.

 

– Nisso você tem razão. Ela é meio mãezona, não é?

 

– Com certeza – disse Anna, olhando para Dan.

 

– Mas é com boa intenção. Ela deve estar um pouco mais preocupada que o normal nesse momento.

 

– É, eu sei – Anna suspirou. Um suspiro longo e profundo, que pareceu liberar muito mais que ar de seu corpo. – Eu só não sei como sair dessa. É como se toda a minha energia tivesse sumido. E eu não sinto nada. Absolutamente nada. Eu não tenho remorso nem estou feliz. Não sinto nada.

 

– Já conversou com alguém sobre isso?

 

– Um psicólogo ou alguém do tipo, você diz? Erica fica pegando no meu pé sobre isso. Mas eu não consigo fazer isso. Não consigo me imaginar sentada lá e falando com um completo estranho. Sobre Lucas. Sobre mim. Não consigo encarar tudo isso.

 

– Você poderia... – Dan hesitou, remexendo-se na beirada da cama. – Conseguiria se imaginar falando comigo? Nós não nos conhecemos muito bem, mas pelo menos eu não sou um completo estranho – ele fez uma pausa e aguardou sua resposta, tenso. Esperava que ela dissesse sim. Sentiu de repente um instinto de proteção por ela quando viu que estava magra demais e tinha uma expressão de assombro em seus olhos. Ela era tão parecida com Erica e, ao mesmo tempo, nem tanto. Uma versão mais amedrontada e frágil de Erica.

 

– Eu... eu não sei – ela disse. – Não sei o que dizer. Por onde começar.

 

– Podemos começar saindo para um passeio. E se você quiser conversar, a gente conversa. Se não quiser, então... a gente só anda um pouco. Que tal? – podia-se ouvir quão ansioso estava.

 

Anna sentou-se cuidadosamente. Acomodou-se de costas para ele por um instante e então levantou-se da cama.

 

– Está bem. Vamos dar um passeio. Mas só um passeio.

 

– Está bem – disse Dan, concordando. Indicou o caminho para as escadas e olhou para a cozinha, onde ouviu os passos de Erica.

 

– Vamos dar uma volta – gritou para ela e, pelo canto dos olhos, pôde ver Erica tentando fingir que isso era uma coisa normal.

 

– Está um pouco frio lá fora, então é melhor pôr uma jaqueta – ele disse a Anna, que seguiu seu conselho e vestiu uma parca bege e enrolou um grande cachecol branco em torno do pescoço.

 

– Está pronta? – ele perguntou, ciente dos múltiplos sentidos da pergunta.

 

– Sim, acho que estou – disse Anna baixinho e seguiu-o para o sol de primavera.

 

– Acha que alguém se acostuma com isso? – perguntou Martin no carro, a caminho de Fjällbacka.

 

– Não – Patrik disse. – Pelo menos, espero que não. Senão, eu teria que trocar de profissão. Ele fez uma curva rápido demais e Martin teve que se segurar na alça acima da porta, como sempre. Pensou consigo mesmo que deveria avisar a nova oficial sobre sair de carro com Patrik. Se bem que talvez fosse tarde demais. Ela já fora com ele ver o acidente naquela manhã, então já devia ter passado por sua primeira experiência de quase-morte.

 

– Que tal ela? – Martin perguntou.

 

– Quem? – Patrik parecia mais distraído que o normal.

 

– A nova funcionária, Hanna Kruse.

 

– Parece legal – disse Patrik.

 

– Mas?

 

– Que quer dizer com “mas”? – Patrik virou-se para olhar seu colega, o que fez Martin segurar a alça com mais força.

 

– Meu Deus, você pode olhar para frente, por favor? Eu só quis dizer que parecia que você queria dizer algo mais.

 

– Ah, sei lá... – para o alívio de Martin, agora Patrik mantinha os olhos na estrada. – Só não estou acostumado com pessoas tão... ambiciosas.

 

– O que quer dizer com isso? – Martin disse, rindo, incapaz de esconder o fato de que se sentia um tanto ofendido.

 

– Ei! Não me entenda mal. Eu não quis dizer que você não tem ambição, mas Hanna, ela é... como posso dizer? “Superambiciosa.”

 

– “Superambiciosa” – Martin repetiu cético. – Você tem ressalvas contra ela porque é superambiciosa? Pode ser mais específico? E o que há de errado com mulheres superambiciosas? Você não é daqueles que acham que mulheres não deviam estar na polícia, é?

 

Nesse momento, Patrik tirou os olhos da estrada novamente e lançou a Martin um olhar incrédulo.

 

– Você não me conhece bem? Acha que sou algum tipo de porco chauvinista? Um porco chauvinista cuja noiva ganha o dobro, no caso. Eu só quis dizer... ah, dane-se, você vai ter que ver por si mesmo.

 

Martin ficou em silêncio por um momento e então disse:

 

– Está falando sério? Erica ganha duas vezes mais que você?

 

Patrik riu.

 

– Eu sabia que isso iria calar a sua boca. Apesar de que, para ser bem sincero, isso sem contar os impostos. A maior parte vai para o governo. O que é uma sorte. Ser rico seria deprimente.

 

Martin riu também.

 

– É, que destino cruel. Não é um fardo que eu gostaria de carregar.

 

– Também acho – Patrik sorriu, mas de repente ficou sério. Haviam chegado a Kullen, onde os quarteirões de edifícios eram mais próximos uns dos outros, e ele estacionou. Ficaram ali sentados antes de sair.

 

– Aqui vamos nós de novo.

 

– É – disse Martin. O nó em seu estômago crescia a cada minuto. Mas não havia volta. O melhor era acabar com tudo de uma vez.

 

– Lars? – Hanna colocou a bolsa ao lado da porta, pendurou a jaqueta e colocou os sapatos na sapateira. Ninguém respondeu. – Olá? Lars? Está em casa? – a angústia se fazia notar em sua voz. – Lars? – foi entrando na casa. Tudo estava em silêncio. Montículos de poeira se espalhavam quando ela passava, claramente visíveis ao sol da primavera que brilhava através das janelas. O proprietário não havia feito um bom trabalho de limpeza antes de alugar o local. Mas ela poderia fazer isso agora. Seu mal-estar tirava tudo do caminho.

 

– LARS! – agora ela gritava, mas só ouvia a própria voz ecoando pelas paredes.

 

Hanna continuou procurando pela casa. Não havia ninguém no andar de baixo, então ela correu para o de cima. A porta do quarto estava fechada. Ela a abriu com cuidado.

 

– Lars? – ela disse, suavemente. Ele estava deitado de lado na cama, de costas para ela. Estava por cima das cobertas totalmente vestido, e ela via, por sua respiração calma, que ele estava dormindo. Ela deitou-se ao lado dele, seus corpos como duas colheres encaixadas. Ouviu sua respiração e sentiu o ritmo compassado embalando-a gentilmente. O sono afastou sua preocupação.

 

– Que porra de pardieiro! – disse Uffe, atirando-se em umas das camas já arrumadas no quarto grande.

 

– Eu acho que vai ser divertido – disse Barbie, pulando na cama.

 

– E eu disse que não ia ser? – disse Uffe, rindo. – Só falei que era um pardieiro. Mas a gente vai agitar, não vai? Dá uma olhada nos suprimentos – sentou-se, apontando para o bar bem abastecido. – O que me dizem? Vamos começar a festa?

 

– Sim! – todos gritaram, exceto Jonna. Ninguém olhou para as câmeras zunindo em torno deles. Estavam acostumados demais a elas para cometer esse erro amador.

 

– Então, saúde, porra! – disse Uffe, pegando a primeira cerveja.

 

– Saúde! – disseram todos os outros, erguendo as garrafas. Todos, exceto Jonna. Ela estava sentada em sua cama, olhando para os outros cinco, imóvel.

 

– Que merda há de errado com você? – Uffe vociferou na direção dela. – Não vai tomar uma cerveja com a gente? Não somos bons o bastante pra você beber com a gente, é isso? – todos olharam para Jonna, na expectativa. Estavam todos bem cientes de que conflitos davam audiência e, se havia algo que todos ali queriam, é que Sodding Tanum desse audiência.

 

– Só não estou com vontade agora – disse Jonna. Ela evitou o olhar de Uffe.

 

– “Só não estou com vontade” – Uffe imitou sua voz um falsete estridente. Olhou em volta para verificar se alguém o apoiava e, quando viu ansiedade nos olhos deles, prosseguiu. – Que porra é essa? Você é algum tipo de abstêmia? Achei que estivéssemos aqui pra FAR-RE-AR! – ergueu sua garrafa e tomou um belo gole.

 

– Ela não é abstêmia – Barbie arriscou dizer. Um olhar duro de Uffe a calou.

 

– Me deixe em paz – disse Jonna, irritada, se levantando da cama. – Vou sair um pouco – ela disse, vestindo sua enorme jaqueta militar disforme, que estava pendurada em uma cadeira.

 

– Vá em frente! – Uffe gritou para ela. – Vá se foder, perdedora! – ele riu alto e abriu outra cerveja. Então olhou em volta novamente. – Por que ainda estão sentados? É FESTA! Saúde!

 

Após alguns segundos de incômodo silêncio, um riso nervoso começou a se espalhar. Então os demais ergueram as garrafas e caíram na farra. As câmeras continuaram zunindo, incitando o entusiasmo de todos. Era muito bom estar na TV novamente.

 

– Pai, a campainha está tocando! – Sofie gritou antes de voltar a falar ao telefone. Suspirou.– Papai é tão lerdo. Eu não aguento ficar só aqui, sentada. Estou contando os dias até poder voltar a ficar com mamãe e Kerstin. Típico, eu tenho que ficar em casa quando começarem a gravar Sodding Tanum hoje. Todo mundo vai descer pra assistir e eu vou perder tudo. Tão típico – ela lamentou.– Pai, você precisa atender, tem alguém na porta! – gritou.– Eu já tenho idade pra parar de ser jogada de lá pra cá entre esses dois, como se eu fosse filha de um lar desfeito. Mas como eles ainda não conseguem se dar bem, nenhum dos dois me ouve. Eles agem como dois bebês.

 

A campainha soou alta pelo apartamento novamente e Sofie pulou:

 

– Está bem, eu mesma abro! – gritou e, ao voltar ao telefone, falou baixinho. – Olha, eu vou ter que te ligar depois, o velho deve estar ouvindo aquela banda nojenta com os fones de ouvido. Beijo, querida – Sofie suspirou e dirigiu-se à porta.– Tá bem, tá bem, estou indo! – ela escancarou a porta, mas ficou chocada ao ver dois estranhos em uniformes policiais parados ali.

 

– Olá.

 

– Você é Sofie?

 

– Sim, o que foi? – Sofie buscou fervorosamente na memória por algo que pudesse ter feito para atrair a polícia até sua porta. Não conseguiu pensar em nada. Claro, ela levou umas garrafas de licor de malte ao último baile da escola e já tinha andado na garupa da mobilete turbinada de Olle algumas vezes, mas achava difícil a polícia se importar com infrações tão insignificantes.

 

– Seu pai está em casa? – perguntou o policial mais velho.

 

– Tá – disse Sofie agora com os pensamentos fervilhando mesmo. Que merda papai poderia ter feito?

 

– Gostaríamos de conversar com vocês dois. Juntos – disse o policial ruivo, ligeiramente mais novo. Sofie não conseguiu deixar de pensar que ele não era nada feio. Nem o outro, para falar a verdade. Mas ele era tão velho. Devia ter pelo menos trinta e cinco anos.

 

– Entrem – ela deu um passo atrás para deixá-los passar. Enquanto tiravam os sapatos, ela entrou na sala. De fato, papai estava sentado lá com os enormes fones de ouvido grudados nas orelhas. Sem dúvida estava ouvindo algo horrível, como música eletrônica. Ela fez um gesto para ele tirar os fones dos ouvidos. Ele apenas ergueu os fones e olhou para ela com um olhar ridículo.

 

– Pai, tem dois tiras aqui que querem falar com a gente.

 

– Polícia? O quê? Quem? – Sofie podia ver as engrenagens de sua mente trabalhando enquanto ele buscava o que ela poderia ter feito para atrair a polícia para uma visita. Ela se antecipou a ele.

 

– Eu não fiz nada. Sério. Juro.

 

Ele a olhou desconfiado, mas tirou os fones de ouvido, levantou-se e foi ver o que estava acontecendo. Sofie o seguiu.

 

– O que há? – perguntou Ola Kaspersen, parecendo um tanto temeroso em escutar uma notícia ruim como resposta. Sua entonação revelava sua origem norueguesa, mas era tão suave que Patrik supôs que ele deixara sua terra natal muitos anos atrás.

 

– Podemos nos sentar? Meu nome é Patrik Hedström, a propósito, e esse é meu colega Martin Molin.

 

– Claro, por favor – diz Ola, apertando a mão dos dois. Ainda parecia intrigado. – Venham comigo – encaminhou Martin e Patrik para

a cozinha, como nove entre dez pessoas teriam feito. Por alguma razão, a cozinha sempre parecia ser o lugar mais seguro quando a polícia aparecia.

 

– Então, como podemos ajudá-los? – Ola sentou perto de Sofie, enquanto os dois oficiais de polícia acomodavam-se diante deles. Ola na mesma hora começou a arrumar a franja da toalha de mesa. Sofie olhou-o irritada. Será que ele não conseguia parar com essa inquietação nem agora?

 

– Nós... – aquele que se apresentou como Patrik Hedström soou hesitante e Sofie passou a ter uma sensação estranha no estômago. Sentiu uma urgência de tapar os ouvidos e fazer “lá lá lá lá lá”, da forma como fazia quando era pequena e mamãe e papai estavam brigando, mas sabia que não podia. Não era mais tão criança.– Sinto trazer más notícias. Marit Kaspersen faleceu em um acidente de carro ontem à noite. Sentimos muito – Hedström pigarreou novamente, mas não desviou o olhar. A sensação no estômago de Sofie piorou e ela lutou para evitar absorver o que acabava de ouvir. Não podia ser verdade! Tinha que haver algum erro. Mamãe não podia estar morta. Não era possível. Elas iam fazer compras em Uddevalla no fim de semana. Já estava marcado. Só as duas. Um daqueles passeios de mãe e filha que mamãe vinha cobrando dela havia tempos e que Sofie sempre fingia detestar, mas na verdade adorava. Imaginar que mamãe nunca soube disso. Que ela gostava de seus passeios para fazer compras. A cabeça de Sofie rodava e, ao lado dela, pôde ouvir seu pai respirando com dificuldade.

 

– Deve haver algum engano – as palavras de Ola pareciam ecoar os pensamentos de Sofie. – Marit não pode estar morta! – ele arfava como se tivesse corrido.

 

– Infelizmente, não há dúvida – Patrik fez uma pausa e então disse: – Eu mesmo a identifiquei. Eu a reconheci da loja.

 

– Mas... mas... – Ola buscou o que dizer, mas as palavras fugiam. Sofie fitou-o surpresa. Desde sempre, seus pais viviam querendo se matar. Ela jamais poderia imaginar que alguma parte de seu pai ainda se importava.– O que... o que aconteceu? – Ola gaguejou.

 

– Um acidente com apenas um carro, ao norte de Sannäs.

 

– Apenas um carro? O que isso quer dizer? – Sofie perguntou. Suas mãos se agarravam à beira da mesa. Nesse momento, parecia que essa era a única coisa que a ancorava à realidade.– Ela guinou para desviar de um cervo ou coisa assim? Mamãe só dirigia umas duas vezes por ano. Por que ela estava dirigindo ontem à noite? – ela olhava para os policiais sentados diante dela e sentia seu coração pular. A forma como olhavam para a mesa revelava claramente que havia algo que eles não estavam dizendo. O que poderia ser? Ela esperou em silêncio por uma resposta.

 

– Achamos que houve consumo de álcool. Ela poderia estar dirigindo embriagada. Mas não sabemos com certeza; os resultados da investigação vão nos dizer com mais precisão – Hedström olhava diretamente para Sofie. Ela não acreditava nos próprios ouvidos. Ela olhou para o pai e de volta para Patrik.

 

– Está brincando comigo? Tem que haver algum erro. Mamãe nunca bebeu uma gota de álcool. Nem uma gota. Eu nunca a vi nem mesmo com uma taça de vinho. Ela era totalmente contra álcool. Diga a eles! – Sofie sentiu uma esperança feroz crescer dentro de si. – Não pode ser a mamãe! – ela lançou a seu pai um olhar cheio de esperança. Ele pigarreou.

 

– É, isso é verdade. Marit nunca bebeu. Nem na época em que éramos casados, nem depois, que eu saiba.

 

Sofie buscou seus olhos para se certificar de que ele agora sentia a mesma esperança que ela, mas ele evitou olhar para ela. Ele disse o que ela sabia que ele tinha de dizer, o que a seus olhos confirmava que a coisa toda havia sido um erro, ainda assim algo parecia... errado. Ela então ignorou essa sensação e virou-se para Patrik e Martin.

 

– Ouviram isso? Vocês devem ter cometido um erro. Não pode ser a mamãe! Verificaram com Kerstin? Ela está em casa?

 

Os policiais trocaram olhares. Era o ruivo quem falava agora.

 

– Nós já fomos à casa de Kerstin. Ela e Marit aparentemente tiveram algum tipo de discussão ontem à noite. Sua mãe saiu depressa e pegou as chaves do carro. Ninguém viu Marit desde então. E... – Martin olhou para seu colega.

 

– E eu tenho certeza de que é Marit – Patrik disse. – Eu já a vi várias vezes na loja e a reconheci na hora. Entretanto, nós não sabemos ao certo se ela bebeu algo. Só ficamos com essa impressão porque sentimos cheiro de álcool no banco do motorista. Mas não temos certeza. Então é possível que haja outra explicação e que vocês estejam certos. Mas não há dúvida de que era sua mãe. Eu sinto muito.

 

A sensação desagradável no estômago de Sofie voltou. Ficou tão forte que fez bílis subir até sua garganta. Agora as lágrimas vinham também. Sentiu a mão de seu pai em seu ombro, mas o sacudiu para tirá-la de lá. Todos esses anos de brigas entre os dois. Todas as discussões, tanto antes quanto depois do divórcio dos pais, toda as mentiras, tudo o que foi dito pelas costas, todo o ódio. Tudo aquilo agora se solidificava num nó duro no meio de sua dor. Ela não conseguia mais ouvir. Com três pares de olhos acompanhando-a, ela saiu correndo porta afora.

 

Do lado de fora da janela da cozinha, Erica ouvia duas vozes alegres. Risadas aqui e ali eram abafadas pela porta, até que ela se abriu e o som se espalhou pela casa. Erica não acreditava no que via. Anna estava sorrindo, não do modo forçado e cheio de obrigação que ela fazia diante das crianças quando tentava acalmá-las, mas um sorriso genuíno que ia de orelha a orelha. Ela e Dan conversavam entre si animadamente, e suas bochechas estavam rosadas de uma boa caminhada no clima adorável da primavera.

 

– Oi! Divertiu-se? – Erica perguntou com cautela, colocando a jarra na cafeteira.

 

– Sim, estava lindo lá fora – disse Anna, sorrindo para Dan. – Foi ótimo esticar minhas pernas um pouco. Fomos até Bräcke e voltamos. O tempo está tão aberto e ensolarado que algumas árvores já estão soltando botões e... – ela teve que parar e tomar fôlego depois da caminhada.

 

– E nós simplesmente nos divertimos demais – Dan completou, tirando a jaqueta. – E então? Vai sair um café ou você está guardando para outros convidados?

 

– Não seja bobo, achei que nós três podíamos tomar uma xícara. Se estiver com vontade – disse Erica, olhando para Anna. Ela ainda sentia como se estivesse andando sobre uma fina camada de gelo quando falava com a irmã, com medo de estourar a bolha de alegria que envolvia Anna.

 

– Claro. Eu não me sinto revigorada assim há muito tempo – Anna disse, sentando-se à mesa da cozinha. Pegou a xícara que Erica lhe oferecia, colocou um pouco de leite e aqueceu as mãos no calor que emanava dela. As rosas vermelhas em suas bochechas faziam seu rosto se iluminar. O coração de Erica parou por um instante ao ver Anna sorrindo. Fazia tanto tempo que não a via assim. Há tanto tempo Anna não tinha qualquer expressão além daquele olhar baixo e lúgubre. Olhou para Dan com gratidão. Ela não sabia se estava agindo corretamente quando pediu para Dan ir até lá e falar com Anna, mas tinha a sensação de que, se alguém podia chegar até ela, seria ele. Erica tentava havia meses, mas finalmente percebeu que ela não era a pessoa certa para tirar sua irmã daquele estado funesto.

 

– Dan perguntou como iam os preparativos para o casamento, mas tive que admitir que não tenho a menor ideia. Você provavelmente me contou, mas eu não tenho estado muito receptiva ultimamente. O que já fez? Já está tudo agendado e pronto? – Anna tomou um gole de café e olhou para Erica, em dúvida.

 

De repente ela pareceu tão jovem, tão livre e despreocupada. Do jeito que era antes de conhecer Lucas. Erica forçou sua mente a sair do assunto. Não tinha o menor desejo de arruinar aquele momento pensando naquele canalha.

 

– Bem, estamos em dia com as coisas que precisam ser agendadas e encomendadas. A igreja está reservada, já fizemos a reserva no hotel e, bem, isso é tudo o que já está feito.

 

– Mas Erica, o casamento é daqui a seis semanas! Que tipo de vestido você quer? O que as crianças vão vestir? Que tipo de buquê você quer? Já conversou com o bufê sobre o cardápio? Já reservou quartos para os convidados? A disposição dos convidados nas mesas já está definida?

 

Erica ergueu a mão, rindo. Maja os observava feliz de seu cadeirão, alheia ao motivo de toda aquela alegria.

 

– Calma. Se você continuar assim, eu vou me arrepender de Dan ter conseguido te tirar da cama – ela sorriu e piscou para mostrar que estava brincando.

 

– Está bem, está bem – disse Anna. – Não vou dizer mais uma palavra. Não, tem mais uma coisa: você já providenciou a música?

 

– Não, não e não de novo é provavelmente a resposta para todas as suas perguntas, infelizmente – Erica suspirou. – Eu ainda não consegui.

 

Anna ficou séria de repente.

 

– Você não conseguiu porque tem cuidado de três crianças. Me desculpe, Erica, as coisas não devem ter sido fáceis para você nos últimos meses. Queria que eu... – sua voz falhou, e Erica viu lágrimas surgindo nos olhos da irmã.

 

– Acalme-se, está tudo bem. Adrian e Emma estão sendo anjos e ficam na creche o dia todo, então não tem sido um fardo tão grande. Mas eles sentem saudade da mãe.

 

Anna deu-lhe um sorriso triste. Dan estava brincando com Maja e tentando ficar fora da conversa. Isso era entre Erica e Anna.

 

– Oh, meu Deus, a creche! – Erica pulou da cadeira e olhou para o grande relógio na parede. – Estou superatrasada. Tenho que ir buscá-los. Ewa vai ficar louca se eu não correr.

 

– Eu vou buscá-los hoje – disse Anna, levantando-se. – Me dê a chave do carro.

 

– Tem certeza?

 

– Sim, tenho certeza. Você vai buscá-los todos os dias, então hoje é minha vez.

 

– Eles vão adorar – disse Erica, voltando a sentar-se à mesa.

 

– Sim, vão mesmo – disse Anna com um sorriso ao pegar a chave do carro da bancada. Na saída, ela se virou.

 

– Dan... obrigada. Eu precisava disso. Foi muito bom ter a chance de botar tudo pra fora.

 

– Ei, sem problemas. Eu gostei. Podemos caminhar amanhã, se o tempo ainda estiver bom. Eu trabalho até às quinze para as três, então o que me diz de um passeio de uma hora antes de pegar as crianças amanhã?

 

– Parece ótimo. Mas agora eu tenho que correr ou Ewa vai ficar furiosa ou o que quer que você tenha dito – mais um sorriso, e ela desapareceu pela porta da frente.

 

Erica virou-se para Dan.

 

– Que diabos vocês fizeram nesse passeio? Fumaram haxixe juntos?

 

Dan riu.

 

– Não, nada disso. Anna só precisava de alguém com quem conversar e parecia que uma barreira havia estourado dentro dela, de alguma forma. Quando ela finalmente começou a falar, foi impossível impedir.

 

– Tenho tentado falar com ela há meses – disse Erica. Não conseguiu evitar a mágoa que sentia.

 

– Você sabe como são as coisas entre vocês, Erica – Dan disse calmamente. – Tem muita história entre as duas. Talvez não seja fácil para Anna falar com você. São próximas demais, para o bem ou para o mal. Mas quando estávamos fora, ela me disse que é imensamente grata por você e Patrik terem estado tão dispostos a ajudar e, acima de tudo, que você tem sido fantástica com as crianças.

 

– Ela disse isso? – Erica percebeu quão ansiosa soava por reconhecimento. Estava tão acostumada a cuidar de Anna, e o fazia com prazer, mas não importava quanto isso soasse egoísta, ela queria que Anna reconhecesse a ajuda que havia recebido.

 

– Foi o que ela disse – Dan falou e cobriu a mão dela com a sua. Uma sensação familiar e gostosa.

 

– Mas a coisa toda do casamento me pareceu preocupante – Dan prosseguiu. – Acha que consegue dar conta de tudo em seis semanas? Basta pedir, se precisar de minha ajuda – ele fazia caretas para Maja, que gritava de tanto rir.

 

– O que você pode fazer pra ajudar? – Erica bufou, servindo mais café. – Escolher um vestido de noiva pra mim?

 

Dan riu.

 

– Ah, sim. Isso seria um sucesso. Não, mas eu poderia oferecer lugar para dormir a alguns de seus convidados, por exemplo. Se precisar, eu tenho bastante espaço – ele ficou sério, e Erica sabia perfeitamente do que Dan estava falando.

 

– Sabe, tudo vai se resolver. Tudo vai melhorar.

 

– Acha mesmo? – ele disse, melancólico, tomando um gole do café. – Só Deus sabe. Eu tenho tanta saudade delas. Às vezes parece que vou me partir em pedaços.

 

– É das crianças ou de Pernilla e das crianças que você sente saudade?

 

– Eu não sei. Ambas, eu acho. Se bem que eu já aceitei que Pernilla já me esqueceu. Mas me sinto morrendo por dentro por não poder ver as meninas todos os dias. Não estar lá quando elas acordam, quando vão para a escola, não poder jantar com elas e saber como foi seu dia. Tudo isso. Em vez disso, eu fico sozinho semana sim, semana não naquela maldita casa. É tão vazia que faz eco. Eu quis manter o local para que elas não perdessem o lar da infância também, mas agora não sei se consigo sustentar a casa por muito mais tempo. Talvez eu tenha que vendê-la nos próximos seis meses.

 

– Acredite, eu já passei por isso – disse Erica, referindo-se a quão perto chegaram de ver Lucas colocar sua casa à venda; aquela em que moravam hoje e onde Anna e ela cresceram.

 

– Eu simplesmente não sei o que fazer da minha vida – disse Dan, passando as mãos pelos curtos cabelos louros.

 

– Quem são essas pessoas animadas na cozinha? – a voz de Patrik, vinda da entrada, interrompeu os dois.

 

– Estamos só falando sobre o que Dan deveria fazer com sua casa – Erica respondeu, levantando-se para beijar seu futuro esposo. Maja também percebeu que o homem de sua vida entrava pela porta e agora agitava os bracinhos freneticamente para ser pega no colo.

 

Dan olhou para ela e abriu os braços de modo cômico.

 

– Como assim? Achei que estivesse rolando um clima aqui entre nós. E então você me joga fora pelo primeiro cara que entra por essa porta. As crianças de hoje em dia, eu juro... Não conhecem um produto de qualidade quando o veem.

 

– Oi, Dan – disse Patrik, dando-lhe um tapinha no ombro, rindo. E então pegou Maja. – É, o papai está no topo da lista para essa menininha aqui – ele disse, dando um beijo em Maja e roçando a barba por fazer no pescoço dela, o que a fez gritar de alegria.

 

– A propósito, Erica, você não tem que pegar as crianças na creche?

 

Erica fez uma pausa de efeito. E então disse com um enorme sorriso:

 

– Anna foi buscá-las.

 

– O que disse? Anna foi buscá-las? – Patrik parecia atônito, mas também contente.

 

– Sim, esse herói aqui levou Anna para um passeio e aí eles fumaram haxixe e...

 

– Fumamos nada, pare com isso! – Dan falou rindo, virando-se para Patrik. – Foi assim: Erica me ligou e perguntou se eu podia tentar persuadir Anna a sair comigo, para fazer um pouco de exercício. E Anna concordou e acabamos dando uma caminhada longa e muito boa. Parece ter lhe feito muito bem sair de casa.

 

– Pra dizer o mínimo – disse Erica, desarrumando os cabelos de Dan. – O que acha de se aproveitar de nossa gratidão por mais um tempo e ficar para o jantar?

 

– Depende. O que vão comer?

 

– Você é mesmo muito mimado – disse Erica, rindo. – Mas vamos comer ensopado de frango com abacate e arroz tailandês.

 

– Está bem, eu topo.

 

– Bom saber que agradamos seus altos padrões, sr. Gourmet.

 

– Vamos ver depois que eu provar.

 

– Pare com isso! – disse Erica e levantou-se para começar a fazer o jantar.

 

Sentiu-se bem. Havia sido um bom dia. Um ótimo dia. Virou-se para perguntar a Patrik como fora o dele.

 

O bem havia superado o mal. Havia mesmo? Às vezes, à noite, quando se revirava na cama com os pesadelos, ele não tinha muita certeza disso. Mas agora, à luz do dia, ele estava absolutamente certo de que o bem havia prevalecido. Sentia o mal somente na forma de sombras à espreita pelos cantos, sem ousar mostrar sua face horrenda. E isso estava bom para ele.

 

Ambos amaram-na. Incrivelmente. Mas talvez ele tenha sido quem mais a amou. E talvez ela o tenha amado mais. Haviam tido algo especial. Nada poderia os separar. O que havia de feio e imundo bateu neles e escorreu, sem grudar.

 

Sua irmã os respeitava sem ciúme. Sabia que presenciava algo único. Algo com o qual ela não podia competir. E eles a incluíam. Envolviam-na no amor deles, permitiam que fizesse parte dele. Não havia motivo para sentir ciúme. Ter permissão para entrar naquele tipo de amor era algo com que poucos eram agraciados.

 

Era porque ela os amava tão infinitamente que ela restringia seu mundo. E eles, gratos, deixavam-se ser confinados. Por que precisariam de qualquer outra pessoa? Por que seriam oprimidos com toda a sordidez que sabiam existir lá fora?

 

Ele não saberia lidar com o mundo externo. Era o que ela dizia. Ele era tão propenso a acidentes. Derrubava coisas a toda hora, esbarrava em outras, quebrava tudo. Se ela o deixasse sair, coisas terríveis poderiam acontecer. Alguém tão desastrado nunca conseguiria se virar. Mas ela sempre dizia de forma tão amável: “Meu desastrado”. “Meu pequeno desastrado.”

 

Seu amor bastava para ele. E bastava para sua irmã. Pelo menos, na maior parte do tempo.

 

A coisa toda era uma droga. Jonna apaticamente colocava as compras na esteira rolante para passar os códigos. O Big Brother tinha sido um Festival de Hultsfred comparado a isso. Isso aqui era uma porcaria! Se bem que ela não podia reclamar. Tinha visto as temporadas anteriores do programa, então sabia que teria que morar e trabalhar nesse lixo em que fora parar. Mas trabalhar na porra de um caixa de supermercado! Por essa ela não esperava. Seu único consolo é que Barbie também tinha parado lá. Estava no caixa atrás do de Jonna, com seus seios de silicone espremidos naquele avental vermelho. E a manhã toda Jonna tinha sido forçada a ouvir sua conversa estúpida com todos os fregueses, de adolescentes imaturos com vozes estridentes até velhos nojentos que tentaram convidar Barbie para sair. Será que não entendiam que não tinham que conversar com uma garota como Barbie? Basta pagar uns drinques e pisar fundo no acelerador. Idiotas.

 

– Ah, vai ser tão legal te ver na TV. E nossa cidadezinha também, é claro. Eu nunca imaginei que seríamos celebridades nacionais aqui em Tanumshede – a velhinha tola ficou ali se empinando diante do caixa e de vez em quando dava um sorriso encantado para a câmera pendurada no teto. Era tão estúpida que não percebia que essa era a melhor maneira de não ser usada em nenhum dos segmentos. Olhar direto para a câmera era terminantemente proibido.

 

– São trezentas e cinquenta coroas e cinquenta centavos – disse Jonna cansada, olhando para a senhora.

 

– Sim, estou vendo, aqui está meu cartão – disse a mulher viciada em TV, passando o cartão pelo leitor. – Ai, agora eu tenho que digitar a senha – cantarolou.

 

Jonna suspirou. Perguntou-se se conseguiria matar o trabalho a partir de hoje. Os produtores adoravam discutir com os diretores de elenco e coisas assim, mas talvez fosse meio cedo para isso. Era melhor apenas ranger os dentes por uma semana. Depois disso ela poderia até escapar com algum esquema.

 

Imaginou se mamãe e papai estariam sentados no sofá assistindo à TV na segunda-feira. Provavelmente não. Eles nunca tiveram passatempos tão triviais quanto assistir à TV. Eram médicos, então seu tempo era mais valioso que o dos outros. O tempo que passaram assistindo a Survivor – ou estando com ela – era um momento que poderiam passar fazendo uma cirurgia de ponte de safena ou um transplante de rim. Jonna estava sendo egoísta por não compreender isso. Papai até a levara ao hospital para que ela assistisse a uma cirurgia cardíaca numa criança de dez anos. Ele queria que ela compreendesse quão importante eram seus empregos, ele disse, e por que eles não podiam passar tanto tempo com ela quanto gostariam. Ele e mamãe tinham um dom, o de poder ajudar outras pessoas, e era obrigação deles fazer bom uso disso.

 

Mas que monte de besteira! Por que tiveram filhos se não tinham tempo para eles? Por que não mandaram para o inferno a ideia de ter filhos, assim poderiam passar vinte e quatro horas por dia com as mãos enfiadas no peito de alguém?

 

No dia seguinte à visita ao hospital, ela começou a se cortar. Foi tão legal. Assim que a faca fez o primeiro corte em sua pele, ela sentiu a ansiedade diminuir.

 

Parecia que havia sangrado do ferimento em seu braço. Desapareceu com o sangue que pingava devagar, vermelho e quente. Ela adorava a visão do próprio sangue. Adorava a sensação da faca ou da lâmina ou qualquer porcaria que estivesse ao alcance e pudesse cortar fora a aflição que se ancorava tão firmemente em seu peito.

 

Ela também descobriu que esse era o único momento em que reparavam nela. O sangue os fazia voltar sua atenção para ela e vê-la de verdade. Mas o barato vinha sendo cada vez menos intenso. Com cada corte, cada cicatriz, o efeito em sua ansiedade diminuía. E em vez de olhá-la com preocupação, como faziam no início, agora seus pais só a olhavam com resignação. Eles haviam perdido o controle da situação e decidiram ajudar aqueles a quem podiam salvar. Pessoas com coração defeituoso e órgãos internos que haviam parado de funcionar e precisavam ser substituídos. Ela não tinha nada disso a oferecer. Era sua alma que estava destruída e não havia nada que eles pudessem fazer com um bisturi para consertá-la. Então pararam de tentar.

 

O único amor disponível para ela agora vinha das câmeras e das pessoas que sentavam-se em frente à TV noite após noite para vê-la. Ver a Jonna real.

 

Ouviu atrás de si um cara perguntar a Barbie se podia tocar seus implantes de silicone. Os espectadores iam amar isso. Jonna deliberadamente levantou os braços para as cicatrizes ficarem visíveis. Era o único jeito de competir com aquilo.

 

– Aí, Martin, posso entrar por um minuto? Precisamos conversar.

 

– Claro, entre, estou só terminando uns relatórios – ele acenou para Patrik entrar. – O que foi? Você parece preocupado.

 

– Bem, eu não sei o que pensar sobre isso. Recebemos o resultado da autópsia de Marit Kaspersen essa manhã e devo dizer que algo parece realmente estranho.

 

– O que é? – Martin se inclinou para a frente, interessado. Lembrou-se de que Patrik andou resmungando algo nesse sentido no dia em que o acidente ocorreu, mas depois, ele sinceramente havia esquecido o fato. Patrik também não mencionara mais nada.

 

– Bem, Pedersen anotou tudo o que encontrou e eu conversei com ele por telefone também, mas há algo que não conseguimos resolver.

 

– Conte-me – a curiosidade de Martin aumentava a cada segundo.

 

– Em primeiro lugar, Marit não morreu no momento do acidente. Ela já estava morta quando aconteceu.

 

– Que diabos! Como? O que foi, um ataque cardíaco ou algo assim?

 

– Não. Não exatamente – Patrik coçou a cabeça enquanto estudava o relatório. – Ela morreu de intoxicação por álcool. O nível de álcool no sangue era de 0,61.

 

– Está brincando? Ponto meia um é o bastante para matar um cavalo!

 

– Exatamente. De acordo com Pedersen, ela deve ter bebido uma garrafa inteira de vodca. Em muito pouco tempo.

 

– E aqueles que a conheciam disseram que ela nunca tocou em bebida alcoólica.

 

– Justamente. Também não havia sinal de abuso de álcool no corpo dela, o que provavelmente significa que ela não tinha a menor tolerância. De acordo com Pedersen, a reação deve ter sido imediata.

 

– Então ela se embebedou por alguma razão. É trágico, é claro, mas infelizmente acontece de vez em quando – Martin disse, intrigado com a preocupação de Patrik.

 

– Sim, é o que parece. Mas Pedersen encontrou algo mais, que torna a coisa toda um pouquinho mais complicada – Patrik cruzou as pernas e folheou o relatório para encontrar o trecho certo. – Aqui está. Vou tentar traduzir para a compreensão de um leigo. Tudo o que Pedersen escreve é como se fosse um código secreto. Parece que ela tinha um ferimento estranho em volta da boca. Também há sinais de trauma no interior da boca e na garganta.

 

– Então, o que isso quer dizer?

 

– Eu não sei – Patrik suspirou. – Não havia provas suficientes para Pedersen tirar conclusões definitivas. Ele não pode afirmar com toda a certeza que ela não se embebedou no carro com uma garrafa inteira, morreu de intoxicação por álcool e então saiu da estrada.

 

– Mas ela já devia estar muito louca antes do acidente acontecer. Temos alguma denúncia de alguém dirigindo de forma irregular na noite de domingo?

 

– Não que eu tenha encontrado. O que só contribui para o fato de isso tudo estar muito estranho. Por outro lado, não havia muito trânsito àquela hora da noite, então talvez os demais motoristas só tiveram a sorte de não estar no caminho dela – Patrik disse, pensativo. – Mas Pedersen não conseguiu encontrar razão para o trauma dentro e em torno da boca, então acho que é motivo suficiente para investigarmos a coisa toda mais a fundo. Pode ser um caso comum de alguém dirigindo embriagado, mas pode não ser. O que acha?

 

Martin parou por um momento.

 

– Você disse que estava com um pressentimento desde o começo. Acha que Mellberg vai concordar com isso?

 

Patrik olhou para ele e Martin riu.

 

– Depende só de como eu vou apresentar o caso, não acha? – disse Patrik.

 

– Nisso você está certo. Tudo depende da apresentação.

 

Patrik riu com ele e levantou-se. E ficou sério novamente.

 

– Acha que estou cometendo um erro? Que estou fazendo tempestade em copo d’água? Pedersen não encontrou nada de concreto que indique que não foi um acidente. Mas... – ele disse, chacoalhando o fax do relatório da autópsia – ao mesmo tempo, há algo aqui que me chama a atenção. Porém, juro pela minha vida que não consigo... – Patrik passou as mãos pelos cabelos novamente.

 

– Vamos lá – disse Martin. – Vamos começar perguntando por aí e juntar mais detalhes e ver aonde isso tudo nos leva. Talvez isso dê um estalo na sua memória ou o que quer que esteja te incomodando.

 

– Ótima ideia. Vou primeiro falar com Mellberg. Por que não conversamos de novo com a companheira de Marit, mais tarde?

 

– Por mim, tudo bem – disse Martin, voltando aos relatórios que estava escrevendo. – Venha me buscar quando estiver pronto.

 

– Ok – Patrik já estava saindo quando Martin o chamou.

 

– Espere um segundo – disse hesitante. – Eu estava pra te perguntar como vão as coisas em casa. Com sua cunhada e tal.

 

Patrik sorriu de onde estava, à porta.

 

– Estamos começando a ficar mais esperançosos, na verdade. Anna parece estar saindo do abismo. Graças ao Dan.

 

– Dan? – Martin disse, surpreso. – O Dan de Erica?

 

– Me desculpe, mas o que quer dizer com “o Dan de Erica”? Ele é o “nosso Dan” agora.

 

– Está bem, está bem – Martin riu. – O “seu” Dan. Mas o que ele tem a ver com isso?

 

– Bem, na segunda-feira Erica teve a brilhante ideia de pedir a ele que viesse até nossa casa para conversar com Anna. E funcionou. Eles começaram a fazer longas caminhadas juntos, só para conversar e isso pareceu ser exatamente do que Anna precisava. Ela se transformou em uma mulher completamente diferente em poucos dias. As crianças estão encantadas.

 

– Isso é ótimo – Martin disse com sinceridade.

 

– É, certamente é – disse Patrik, dando um tapa no batente da porta. – Olhe, eu vou até lá ver Mellberg e acabar de vez com isso. Conversamos mais tarde.

 

– Está bem – disse Martin, voltando aos relatórios. Aquela papelada toda... Ele podia viver sem esse lado da profissão.

 

Os dias se arrastavam. Parecia que sexta-feira e seu encontro para o jantar nunca chegariam. Era estranho pensar nesses termos na sua idade. Mesmo não sendo um encontro de verdade, ainda assim era um convite para jantar. Quando Mellberg ligou para Rose-Marie, não tinha planejado nada, por isso ficou surpreso consigo mesmo quando sugeriu que jantassem em um restaurante chique. Seu bolso ia ficar ainda mais surpreso. Ele simplesmente não conseguia entender o que estava acontecendo com ele. Antes, sair para comer em um restaurante tão caro quanto aquele jamais teria passado por sua cabeça. O fato de que agora estava preparado para pagar para dois definitivamente não lhe era comum. E ainda assim, ele não parecia nem um pouco preocupado. Para falar a verdade, estava até ansioso. Sentia-se feliz por ter convidado Rose-Marie para um bom jantar, assim poderia olhar para o rosto dela do outro lado da mesa, à luz de velas, enquanto pratos deliciosos eram colocados à sua frente.

 

Mellberg sacudiu a cabeça espantado, e o ninho que era seu cabelo escorregou por cima de uma das orelhas. Não sabia mesmo o que estava acontecendo com ele. Estaria doente? Penteou o cabelo de volta ao topo da cabeça e sentiu a temperatura na testa, mas não, estava fresca e não demonstrava nenhum sinal de febre. Mas algo estava acontecendo, ele tinha uma sensação estranha. Talvez um docinho ajudasse.

 

Sua mão já estava quase alcançando uma das balas de coco na última gaveta da escrivaninha quando ouviu uma batida na porta.

 

– Sim – gritou, irritado.

 

Patrik entrou em seu escritório.

 

– Com licença, estou interrompendo algo?

 

– De maneira nenhuma – disse Mellberg com um suspiro, dando uma última olhada para a gaveta da escrivaninha. – Entre.

 

Ele esperou enquanto Patrik se sentava. Como sempre, Mellberg tinha sentimentos conflituosos por esse detetive, que era jovem demais na sua opinião. Decidiu ignorar que Patrik estava quase chegando aos quarenta. Por um lado, Patrik sempre fora muito eficiente nas investigações de homicídios que haviam aparecido nos últimos anos. Seu desempenho espetacular em serviço dava a Mellberg uma maravilhosa publicidade nos jornais. Mas por outro, ele sempre tinha a sensação de que Patrik se considerava superior a ele. Não era nada específico, já que Patrik sempre se comportara com o respeito exigido de um subordinado; era mais uma sensação. Bem, ele ia deixar para lá, enquanto Hedström fizesse seu trabalho e ele aparecesse na mídia como o excelente chefe de polícia que era. Mas iria ficar de olho no detetive.

 

– Recebemos o relatório do acidente de segunda-feira.

 

– Sim? – Mellberg disse, soando entediado. Acidentes de trânsito faziam parte da rotina.

 

– Bem, parece que há coisas que precisam ser esclarecidas.

 

– Esclarecidas? – agora o interesse de Mellberg havia sido estimulado.

 

– Sim – disse Patrik, olhando novamente para os papéis que segurava. – A vítima tinha ferimentos que não têm ligação com o acidente em si. Além disso, Marit na verdade estava morta antes do choque. Intoxicação por álcool. Ela apresentava um nível de 0,61 no sangue.

 

– Ponto meia um? Está brincando?

 

– Não, temo que não.

 

– E os ferimentos? De que tipo são? – disse Mellberg, inclinando-se para a frente.

 

Patrik fez uma pausa.

 

– Há sinais de trauma dentro e em torno de sua boca.

 

– Em torno da boca? – Mellberg disse, incrédulo.

 

– Sim – Patrik disse, na defensiva. – Sei que não é muita coisa, mas juntando isso ao fato de que todos disseram que ela jamais bebeu álcool e que ela tinha um nível absurdamente alto de álcool no sangue, isso tudo me parece meio suspeito.

 

– “Meio suspeito”? Está me pedindo para iniciar uma investigação porque acha que algo parece “meio suspeito”? – Mellberg ergueu uma sobrancelha e encarou Patrik. Ele não gostava nada disso; parecia vago demais. Por outro lado, a intuição de Patrik já havia funcionado antes, então talvez ele devesse prestar atenção. Pensou em tudo aquilo durante um minuto inteiro, enquanto Patrik o encarava, tenso.– Está bem – ele disse, afinal. – Dedique algumas horas a isso. Se vocês dois, imagino que vá levar Molin com você, encontrarem algo que indique que as coisas não são como deveriam ser, então podem seguir em frente. Mas se não encontrarem nada de errado, aí não quero vocês desperdiçando mais tempo nisso. Entendido?

 

– Sim, senhor – disse Patrik, obviamente aliviado.

 

– Ótimo, ao trabalho – Mellberg disse com um aceno com a mão direita. A esquerda já estava a caminho da última gaveta da escrivaninha.

 

Sofie entrou com cuidado.

 

– Olá? Kerstin, está em casa?

 

O apartamento estava vazio. Ela já havia verificado, e Kerstin não estava em seu trabalho, na Extra Film. Ela telefonara avisando que estava doente. Sem surpresa nenhuma, deram a Sofie uns dias de folga da escola em vista das circunstâncias. Mas onde estaria Kerstin? Sofie foi andando pelo apartamento. De repente foi dominada pelas lágrimas. Soltou sua mochila no chão e sentou-se bem no meio do tapete da sala. Fechou os olhos para aguçar todas as impressões sensoriais que a invadiam. Por todos os lados havia coisas que lembravam Marit. As cortinas que ela costurou, a tinta que compraram quando Marit se mudou para o apartamento, as almofadas que Sofie nunca afofava depois de ter se deitado nelas, algo de que Marit sempre reclamava. Todas as coisas triviais, cotidianas e tristes que agora ecoavam no vazio. Sofie sempre ficava tão irritada e gritava, porque sua mãe fazia exigências e ditava regras. Mas ela secretamente ficava satisfeita. Todas as brigas e bate-bocas em casa haviam feito Sofie ansiar por estabilidade e regras claras. E apesar de sua rebeldia adolescente, ela sempre se sentia segura por saber que sua mãe estava ali se precisasse dela. Mamãe. Marit. Agora só restava o papai.

 

Uma mão em seu ombro fez Sofie se sobressaltar. Virou a cabeça e olhou para cima.

 

– Kerstin. Você estava em casa?

 

– Sim, estava tirando um cochilo – Kerstin disse, agachando-se ao lado de Sofie. – Como você está?

 

– Oh, Kerstin... – foi tudo o que Sofie conseguiu dizer, enterrando o rosto em seu ombro. Kerstin a abraçou desajeitadamente. Elas não estavam acostumadas a ter muito contato físico. Sofie já havia passado da fase de gostar de abraços na época em que Marit foi morar com Kerstin. Mas dessa vez o embaraço desapareceu rapidamente. Sofie inalou com avidez o perfume do suéter de Kerstin, que era um dos preferidos de sua mãe. A fragrância de seu perfume ainda estava impregnada na lã. O odor familiar a fez soluçar mais profundamente e ela sentiu seu nariz escorrer no ombro de Kerstin. Afastou-se.

 

– Desculpe, estou te cobrindo de ranho.

 

– Não tem problema – disse Kerstin, limpando as lágrimas de Sofie com os polegares. – Pode chorar quanto quiser... a blusa é da sua mãe.

 

– Eu sei – disse Sofie, rindo. – E ela me mataria se visse que eu a sujei de rímel.

 

– Lã de carneiro não pode ser lavada em água acima de trinta graus centígrados – as duas falaram ao mesmo tempo, o que as fez rir.

 

– Venha, vamos nos sentar na mesa da cozinha – disse Kerstin, ajudando Sofie a se levantar. Só agora Sofie reparava que o rosto de Kerstin estava encovado e vários tons mais pálido que o normal.

 

– E você, como está? – Sofie perguntou, preocupada. Kerstin sempre fora tão... segura. Dava medo ver suas mãos tremendo enquanto ela enchia a chaleira e a colocava sobre o fogão.

 

– Bem, eu acho – disse Kerstin, incapaz de impedir que as lágrimas brotassem de seus olhos. Havia chorado tanto nos últimos dias que ficava admirada por ainda ter lágrimas. Então tomou uma decisão.– Sabe, Sofie, sua mãe e eu... Há algo que... – ela parou, sem saber como continuar. Sem saber sequer se deveria continuar. Mas, para seu espanto, viu Sofie começar a rir.

 

– Qual é, Kerstin, espero que não vá me contar sobre seu relacionamento com mamãe como se fosse alguma novidade.

 

– Como assim, nosso relacionamento? – disse Kerstin ansiosa.

 

– Que vocês eram um casal e tal. A quem acham que enganavam? – ela riu de novo. – Que teatrinho vocês faziam. Mamãe ficava levando as coisas dela de lá pra cá dependendo de eu estar aqui ou não, e vocês ficavam de mãos dadas escondido quando achavam que eu não estava olhando. Meu Deus, que ridículo. Quero dizer, todo mundo é homo ou bi hoje em dia. Está tão na moda.

 

Kerstin olhou para ela com total perplexidade.

 

– Mas por que não disse nada? Já que sabia de tudo?

 

– Porque era tão legal. Só de olhar vocês duas interpretando seus papéis. Entretenimento fantástico!

 

– Maldita criança – disse Kerstin, com uma risada gostosa. Depois dos últimos dias de dor e lágrimas, era um alívio rir tão alto a ponto de ecoar pela cozinha. – Marit teria torcido seu pescoço se descobrisse que você sabia esse tempo todo e nunca contou.

 

– É, provavelmente – disse Sofie, rindo com ela. – Vocês precisavam se ver. Se escondendo na cozinha pra se beijar, devolvendo as coisas ao lugar assim que eu ia pra casa do papai. Não percebiam a farsa que era?

 

– Sim, entendi, eu sei o que quer dizer. Mas era como Marit queria – Kerstin ficou séria. A chaleira apitou e ela agradeceu por poder usar isso como desculpa para se levantar e virar as costas para Sofie. Pegou duas xícaras, colocou folhas de chá em dois coadores e despejou a água quente.

 

– A água precisa esfriar um pouco primeiro – disse Sofie, e Kerstin precisou rir outra vez.

 

– Eu estava pensando a mesma coisa. Ela nos adestrou bem, sua mãe.

 

Sofie sorriu.

 

– É, adestrou mesmo. Se bem que ela provavelmente gostaria de ter me adestrado melhor. – Seu sorriso era triste, testemunhava todas as promessas que ela agora jamais poderia cumprir, todas as expectativas que ela jamais teria chance de fazer jus.

 

– Sabe, Marit tinha muito orgulho de você – Kerstin sentou-se novamente e ofereceu uma das xícaras a Sofie. – Devia ter ouvido como ela se gabava de você. Mesmo quando vocês brigavam pra valer, ela dizia: “Corajosa, essa menina”.

 

– Ela dizia isso? Está brincando? Ela tinha mesmo orgulho de mim? Mas eu sempre fui tão teimosa.

 

– Ah, Marit sempre dizia que você só estava fazendo seu trabalho. Era seu trabalho romper com ela. E... – ela fez uma pausa – considerando tudo o que aconteceu entre sua mãe e Ola, ela achava que era ainda mais importante que você fosse independente. Kerstin tomou um gole de chá, mas queimou a língua. Tinha que esperar esfriar um pouco primeiro. – Ela estava muito preocupada com isso, sabe? Ela achava que o divórcio e toda a porcaria que veio depois poderia... te ferir de alguma forma. Acima de tudo, ela estava preocupada que você não entendesse por que ela foi forçada a terminar o casamento. Foi tanto para o seu bem quanto para o dela.

 

– É, eu não entendia isso antes, mas, agora que estou mais velha, eu entendo.

 

– Desde que fez quinze anos, você quer dizer – Kerstin provocou. – Aos quinze, você recebe o manual com todas as respostas, tudo sobre a vida, a morte e a eternidade, certo? Posso pegar emprestado, uma hora dessas?

 

– Qual é! – Sofie riu. – Não foi isso que eu quis dizer. É só que talvez eu tenha começado a ver mamãe e papai mais como pessoas e menos como apenas pais. E provavelmente não sou mais a garotinha do papai, também – acrescentou, triste.

 

Por um momento, Kerstin considerou se contava a Sofie sobre todo o resto, todas as coisas das quais tentaram poupá-la. Mas o momento se foi e ela deixou que passasse.

 

Em vez disso, elas beberam seu chá e falaram sobre Marit. Riram e choraram. Mas acima de tudo, conversaram sobre a mulher que ambas amaram, cada uma a seu modo.

 

– Olá, garotas! O que vai ser hoje? Uma baguete de Uffe, talvez? Risinhos encantados das garotas que formavam um grupo grande dentro da padaria revelaram que o comentário havia surtido o efeito desejado. Isso incentivou Uffe a ir com tudo e pegar uma das baguetes da padaria e tentar mostrar o que tinha a oferecer, balançando-a à sua frente, na altura dos quadris. Os risinhos se transformaram em gritinhos de alegria disfarçados de escândalo, que fizeram Uffe começar a estocar os quadris na direção das garotas.

 

Mehmet suspirou. Uffe era tão maçante. Mehmet se deu mal quando o colocaram para trabalhar com Uffe na padaria. Fora isso, não havia nada de errado com o trabalho. Ele adorava cozinhar e estava ansioso para aprender mais sobre panificação, mas não conseguia sequer imaginar como conseguiria suportar cinco semanas com aquele idiota do Uffe.

 

– Ei, Mehmet, por que não mostra a sua baguete pra elas? Acho que as garotas vão gostar de ver a baguete ensebada de verdade.

 

– Ah, cai fora! – disse Mehmet, e continuou colocando bolos battenberg próximos à bandeja de macarons.

 

– Achei que você gostasse de mulher. E tenho certeza de que elas nunca viram um ensebado aqui. Já viram, meninas? Já viram um ensebado antes? Uffe levantou os braços dramaticamente em direção a Mehmet, como se o apresentasse num palco. Mehmet estava começando a se zangar. Pôde mais sentir do que ver as câmeras penduradas no teto dando um zoom nele. Estavam esperando uma reação sua, ansiando por sua resposta. Cada nuance seria captada pelo cabo e iria direto para a sala das pessoas. A falta de reações e emoções significava baixa audiência. Ele sabia disso, sabia como se jogava o jogo depois de chegar à final no The Farm. Mas de alguma forma ele deixou pra lá, reprimiu. Senão, por que ele concordaria em participar desse programa? Por cinco semanas lhe seria permitido viver em um ambiente protegido. Uma bolha no tempo. Nenhuma responsabilidade, sem exigências para fazer mais que ser ele mesmo e reagir. Nada de ser escravizado em um trabalhinho de merda, entediado até a morte, só para conseguir pagar o aluguel em um apartamento escuro. Nenhuma obrigação diária para roubar sua vida dia após dia, sem nada acontecer de verdade. Sem decepções porque não estava fazendo o que era esperado dele. Isso era o principal motivo para estar fugindo. A decepção que via constantemente nos olhos dos pais. Eles haviam depositado tantas de suas esperanças nele. Educação, educação, educação. Foi o mantra que escutou durante toda a sua infância. “Mehmet, você precisa estudar. Precisa aproveitar as oportunidades neste país excelente. Na Suécia, qualquer um pode ir para a universidade. Você precisa estudar.” Seu pai ficava repetindo a mesma coisa desde que ele era pequeno. E Mehmet tentou, só Deus sabe como tentou. Mas ele não era do tipo que gosta de estudar. As letras e os números não entravam em sua cabeça. Ele deveria se tornar professor. Ou engenheiro. Ou, em último caso, conseguir se graduar em administração. Seus pais estavam irredutíveis. Suas quatro irmãs mais velhas exerciam essas três profissões. Duas delas eram médicas, uma engenheira e outra era administradora. Mas ele era o filho mais novo e, de alguma forma, acabou se tornando a ovelha negra da família. E nem The Farm nem Sodding Tanum haviam melhorado sua imagem diante da família. Não que ele pensasse que isso fosse acontecer. Ele jamais considerou ficar bêbado na TV uma alternativa a ser médico.

 

– Mostra sua baguete ensebada pra gente, mostra sua baguete ensebada pra gente! – Uffe continuava zombando, tentando fazer seu risonho público juvenil juntar-se a ele. Mehmet sentiu a raiva prestes a transbordar. Parou o que estava fazendo e caminhou até Uffe.

 

– Eu disse pra parar, Uffe.

 

Simon apareceu do interior da padaria, carregando uma enorme bandeja com pãezinhos saídos do forno. Uffe lançou a ele um olhar obstinado e considerou obedecer ou não. Simon estendeu a bandeja para ele.

 

– Aqui, dê às garotas uns pãezinhos saídos do forno em vez disso.

 

Uffe hesitou, mas finalmente pegou a bandeja. A forma como franziu o canto da boca denunciou que suas mãos não estavam acostumadas como as de Simon a segurar bandejas quentes, mas não tinha outra opção a não ser ranger os dentes e oferecer a bandeja às meninas.

 

– Bem, vocês ouviram o cara. Uffe está oferecendo pães grátis. Será que vocês não podem agradecê-lo com um beijinho?

 

Simon revirou os olhos para Mehmet, que sorriu de volta, grato. Ele gostava de Simon. Era o proprietário da padaria, e os dois se deram bem na hora, desde o primeiro dia de trabalho. Havia algo especial em Simon. Uma conexão que tornava possível aos dois entender apenas com um olhar o que o outro queria dizer. Era incrível, na verdade.

 

Mehmet observou Simon enquanto ele voltava às massas e a assar bolos.

 

O verde emergindo do galho do lado de fora da janela despertava uma saudade dolorosa em Gösta. Cada botão trazia consigo a promessa de dezoito buracos e Big Bertha. Logo logo, nada ficaria entre um homem e seus tacos de golfe.

 

– Já conseguiu passar do quinto buraco? – uma voz feminina veio da porta e Gösta rápida e culposamente fechou o jogo de computador. Droga, normalmente ele conseguia ouvir quando alguém se aproximava. Sempre ficava de ouvidos atentos enquanto jogava, infelizmente às vezes em detrimento de sua concentração.

 

– Eu... eu só estava fazendo uma pausa – Gösta gaguejou, constrangido. Sabia que seus colegas não punham mais muita fé na sua capacidade de trabalhar, mas gostava de Hanna e esperava gozar de sua confiança pelo menos por mais um tempinho.

 

– Ei, não se preocupe – Hanna riu, sentando-se a seu lado. – Eu adoro esse jogo de golfe. Meu marido, Lars, também adora e às vezes nós temos que brigar pelo computador. Mas esse quinto buraco é um terror. Já conseguiu passar por ele? Se não, eu posso te mostrar o truque. Levei horas para descobrir – sem esperar por uma resposta, ela moveu a cadeira para mais perto da dele.

 

Gösta mal acreditou no que ouvia, mas clicou para abrir o jogo de novo e disse, atento:

 

– Estou penando com o quinto buraco desde semana passada. Não importa o que eu tente, ou faço um hook ou um slice. Não consigo descobrir o que estou fazendo de errado.

 

– Aqui, deixe-me mostrar – disse Hanna, pegando o mouse dele. Ela clicou para a frente, com destreza, no lugar certo, fez algumas manobras no computador e a bola se moveu adiante e aterrissou no green, em posição perfeita para ele enterrar a bola em sua próxima tacada.

 

– Uau, então é assim que se faz! Obrigado! – Gösta estava profundamente impressionado. Seus olhos brilharam como havia muitos anos não acontecia.

 

– É, esse jogo não é para crianças – Hanna riu, empurrando a cadeira de volta para afastar-se um pouco dele.

 

– Você e seu marido jogam golfe de verdade também? – Gösta perguntou com entusiasmo renovado. – Talvez possamos jogar uma rodada juntos.

 

– Não, sinto muito – disse Hanna com uma expressão pesarosa que Gösta considerou simpática. Pessoalmente, considerava um dos grandes mistérios da vida que todas as pessoas não amassem o golfe com tanta intensidade quanto ele.

 

– Mas já pensamos em começar. Só nunca encontramos tempo – ela disse, encolhendo os ombros. Gösta adorava mais ela a cada minuto que se passava. Tinha que admitir que, como Mellberg, estava um pouco cético quando ouviu que sua nova colega seria do sexo oposto. Devia ser algo na combinação entre seios e farda de policial que parecia, bem, um tanto bizarra, para dizer o mínimo. Mas Hanna Kruse apagara todos os seus preconceitos. Ela parecia ser uma mulher muito prática, e ele esperava que Mellberg se desse conta disso e não tornasse a vida dela ali tão difícil.

 

– O que seu marido faz? – perguntou Gösta. – Ele conseguiu encontrar um emprego aqui?

 

– Sim e não – disse Hanna, tirando fiapos invisíveis da camisa de seu uniforme. – Ele deu sorte de conseguir pelo menos um trabalho temporário, então vamos ter que ver como as coisas ficam.

 

Gösta ergueu as sobrancelhas, intrigado. Hanna riu.

 

– Ele é psicólogo. E sim, você adivinhou. Ele vai trabalhar com os participantes enquanto durarem as gravações. De Sodding Tanum, digo.

 

Gösta sacudiu a cabeça.

 

– Bem, alguns devem estar muito velhos para entender por que aquele espetáculo é considerado engraçado. Rebolar debaixo das cobertas e cambalear de tanto beber e fazer chacota de si mesmos diante de toda a Suécia. E por vontade própria. Não, eu não entendo a razão desse tipo de coisa. Na minha época, a gente assistia a programas como Hyland’s Corner e as produções de teatro de Nils Poppe. Um pouco mais apropriados, se me permite.

 

– Nils quem? – disse Hanna, o que fez Gösta parecer triste.

 

– Nils Poppe – ele disse. – Ele apresentava no verão um repertório de peças de teatro que... – ele parou quando viu que Hanna ria.

 

– Gösta, eu sei quem é Nils Poppe. E Lennart Hyland também. Não precisa ficar tão aflito.

 

– Obrigado por essa – disse Gösta. – De repente me senti com cem anos de idade. Uma verdadeira relíquia.

 

– Gösta, ninguém poderia estar mais longe de ser uma relíquia que você – Hanna riu, levantando-se. – Continue jogando, agora que eu te mostrei como passar pelo quinto buraco. Você merece descansar um pouco.

 

Ele deu-lhe um sorriso caloroso e agradecido. Que mulher!

 

E então voltou a tentar dominar o sexto buraco. Um par três. Fácil.

 

– Erica, falou com o hotel sobre o cardápio? Quando vamos fazer a degustação? – Anna segurava Maja no colo, fazendo-a galopar. Olhou com urgência para Erica.

 

– Merda, eu esqueci – Erica deu um tapa na própria testa.

 

– E quanto ao vestido? Está planejando se casar usando suas roupas de ginástica ou o quê? E talvez Patrik possa usar o terno da formatura para o casamento. Se for o caso, ele provavelmente vai precisar costurar mais tecido dos lados e colocar elástico entre os botões do paletó – Anna riu com vontade.

 

– Ha ha, muito engraçado – disse Erica, que não conseguia, porém, deixar de se sentir satisfeita quando olhava para a irmã. Anna era uma nova mulher. Conversava, ria, tinha apetite e, sim, até tirava sarro de sua irmã mais velha. – Quando é que vou encontrar tempo para fazer tudo?

 

– Olá, você está olhando nesse momento para a babá número um dessa cidade! Quero dizer, Emma e Adrian estão na creche o dia todo, então não é problema para mim cuidar dessa senhorita.

 

– Humm, você tem razão – disse Erica, sentindo-se um pouco tola. – Eu só não achei que... – calou-se.

 

– Não se preocupe. Eu entendo. Você não pôde contar comigo por algum tempo, mas agora eu estou de volta. O puck está em jogo. Eu acabo de sair do banco de reservas.

 

– Dá pra perceber que alguém tem passado tempo demais com o Dan – Erica riu com gosto e percebeu que era exatamente o que Anna queria. Sem dúvida que os eventos dos últimos meses também haviam afetado Erica. O estresse a havia feito viver de ombros tensos e só agora ela sentia que podia começar a relaxar. O único problema é que no momento sentia um pavor crescente, porque o casamento seria em menos de seis semanas. E ela e Patrik estavam irremediavelmente atrasados no planejamento.

 

– Está bem, vamos fazer o seguinte – Anna disse com firmeza, pondo Maja no chão. – Uma lista do que ainda falta. E então dividiremos as tarefas entre você, Patrik e mim. Talvez Kristina pudesse ajudar com alguma coisa também – Anna lançou um olhar de dúvida para Erica, mas quando viu sua expressão estarrecida, completou. – Ou talvez não.

 

– Não, pelo amor de Deus, mantenha a sogra o mais longe possível. Se eu deixasse por sua conta, ela trataria esse casamento como se fosse sua festa particular. Se eu te contasse todas as ideias que ela já deu, “com a melhor das intenções”, como ela insiste em lembrar todas as vezes. Sabe o que ela disse quando contamos a ela sobre o casamento?

 

– Não. O quê? – perguntou Anna.

 

– Ela nem começou dizendo “que lindo, parabéns” ou algo assim. Ela enumerou cinco coisas que ela já considerava erradas nesse casamento.

 

– Incrível – Anna riu. – Isso é a cara da Kristina. E quais eram suas reclamações?

 

Erica foi pegar Maja, que já tinha começado a subir as escadas, resoluta. Eles ainda não haviam conseguido comprar um portão.

 

– Bem – disse Erica –, em primeiro lugar, que era cedo demais fazer uma cerimônia no Pentecostes, nós precisaríamos de pelo menos um ano para planejar tudo. Daí ela não gostou de querermos um casamento bem íntimo, talvez para não mais que sessenta convidados, porque assim a tia Agda e a tia Berta e a tia Ruth, ou sei lá quais são os nomes, não poderiam ir. E tenha em mente que essas não são tias do Patrik, mas de Kristina! Patrik provavelmente só as viu uma vez na vida e isso quando ele tinha uns cinco anos.

 

Agora Anna ria tanto que tinha que segurar o estômago. Maja olhava de uma para a outra, como se perguntando o que era tão engraçado. Mas decidiu que não importava do que estavam rindo, então soltou uma risada alta e gostosa.

 

– Ok, são duas coisas. O que mais? – Anna arfava, entre ataques de riso.

 

– E então ela começou a falar da disposição dos convidados nas mesas e a se preocupar se Bittan ia se sentar muito perto de nós. Em circunstância nenhuma, seria permitido a ela sentar-se com os convidados de honra, porque Kristina e Lars são os pais de Patrik, afinal de contas. Meros conhecidos não poderiam ter prioridade se tivéssemos uma lista de convidados reduzida.

 

Nessa hora Anna teve que se sentar no chão de tanto rir. Estava praticamente sem ar quando disse:

 

– E a “mera conhecida” é a mulher com quem Lars vive há mais de vinte anos.

 

– Exato. E reclamação número quatro é que eu não queria usar o vestido de noiva dela.

 

– Mas você já falou sobre o vestido de noiva dela antes? – Anna encarava Erica com os olhos arregalados.

 

– Nós nunca nem chegamos perto de mencionar o vestido dela. Mas eu cheguei a vê-lo em uma foto do casamento de Lars e Kristina e achei que era um daqueles vestidos bem anos sessenta de algum tipo de malha que vai até logo abaixo do traseiro. Tenho razões suficientes para não estar nem um pouco interessada em usá-lo. Assim como Patrik não estaria interessado em ter as fartas costeletas e o bigode do pai, naquela mesma foto.

 

– Ela é totalmente maluca – disse Anna, que já havia ultrapassado a fase do riso para o total assombro.

 

– E o número cinco, tchan-nan! – disse Erica, imitando uma fanfarra de trombones. – A razão número cinco é que ela exigiu que o sobrinho dela cuidasse do entretenimento. É o primo de Patrik.

 

– E? O que há de errado nisso?

 

Erica fez uma pausa de efeito.

 

– Ele toca viola de roda.

 

– Nãããão, você só pode estar brincando – agora Anna parecia estar ficando realmente preocupada. – Está falando sério? – e os risos voltaram. – Ah, eu posso até ver. Um casamento gigante, com todas as tias de Kristina em seus andadores, você numa minissaia de malha, Patrik em seu traje de formatura com costeletas e por último, mas não menos importante, aquele instrumento tão festivo, a viola de roda. Meu Deus, que fantástico. Eu pagaria qualquer preço para ver isso.

 

– Pode rir – disse Erica –, mas do jeito que as coisas estão agora, não vai haver casamento algum, já que estamos tão atrasados com o planejamento.

 

– Está certo, então – Anna disse resoluta, sentando-se à mesa da cozinha com papel e caneta a postos. – Vamos fazer uma lista e partiremos daí. E não deixe Patrik sequer pensar em escapar de fazer sua parte. Você é a única a se casar ou são vocês dois?

 

– É, bem, provavelmente a segunda opção – disse Erica, cética em libertar Patrik da ilusão de que ela era tanto a líder do projeto quanto o soldado raso quando a questão era fazer esse casamento acontecer. Ele parecia achar que, depois de pedir sua mão, todas as obrigações práticas tinham acabado; tudo que ele precisaria fazer seria aparecer na igreja no horário marcado.

 

– Contratar uma banda para a recepção, humm... vamos ver... Patrik – Anna decidiu, alegre. Escreveu o nome dele com determinação, e Erica estava gostando de não estar na direção uma vez na vida.

 

– Agendar horário para a degustação do cardápio da cerimônia... Patrik.

 

– Olhe, isso está indo... – Erica começou a dizer, mas Anna fingiu não ouvir.

 

– Vestido de noiva. Bem, esse provavelmente vai ser você, Erica. Você precisa começar a fazer um esforço. O que diz de nós três irmos procurar um modelo amanhã?

 

– Bem... – Erica disse, hesitante. Experimentar roupas era a última coisa que queria fazer nesse momento. O peso que ganhou durante a gravidez de Maja simplesmente não desaparecia, e ela até já havia ganhado mais um tanto desde então. O estresse nos últimos meses tornara impossível para ela pensar no que estava enfiando na boca. Interrompeu o gesto de sua mão quando estava a ponto de devorar um pão e colocou-o de volta na bandeja. Anna tirou os olhos da lista e olhou para ela.

 

– Sabe, se você parar de comer carboidratos até o casamento, todo esse peso vai desaparecer.

 

– Anna, os quilos nunca sumiram de mim em grande velocidade – Erica disse, melancólica. Uma coisa era ela pensar nisso consigo mesma, mas outra complemente diferente era outra pessoa apontar que ela precisava perder peso. Mas Anna estava certa. Ela tinha que fazer alguma coisa se quisesse se sentir bonita no dia de seu casamento.

 

– Está bem, eu vou tentar. Nada de roscas e bolos, nada de doces, de pão, nem de macarrão feito de farinha branca, nada disso.

 

– Mas ainda assim você tem que começar a procurar um vestido agora. Se necessário, ele pode ser ajustado logo antes da cerimônia.

 

– Só vou acreditar quando ver – Erica disse, aborrecida. – Mas você está certa, então amanhã podemos ir pela manhã, assim que deixarmos Emma e Adrian. E aí veremos. Do contrário, eu realmente vou ter que me casar nas minhas roupas de ginástica – ela disse, imaginando-se com um expressão triste.

 

– Mais alguma coisa? – ela apontou para a lista de Anna. Sua irmã prosseguia escrevendo tarefas e as dividindo em duas colunas. Erica de repente se sentiu muito, muito cansada. Isso nunca ia funcionar.

 

Eles não tinham pressa ao atravessar a rua. Apenas quatro dias antes, Patrik e Martin haviam feito o mesmo caminho e estavam inseguros sobre o que iriam encontrar. Quatro dias atrás, Kerstin soubera da notícia de que sua companheira havia morrido. Quatro dias que certamente devem ter parecido uma eternidade. Patrik olhou para Martin e tocou a campainha. Como se tivessem ensaiado, ambos respiraram profundamente e expiraram um pouco da tensão que se formava dentro deles. De certa forma, parecia egoísmo estarem tão angustiados por ver pessoas nas profundezas do luto. Egoísmo por sentir o menor desconforto, quando as coisas eram imensuravelmente mais fáceis para eles que para a pessoa que estava lamentando a morte de um ente querido. Mas o desconforto baseava-se no medo de dizer algo errado, dar um passo em falso e possivelmente piorar as coisas. Mas o bom-senso lhes dizia que nada do que pudessem dizer ou fazer tornaria pior a dor que já era quase insuportável.

 

Ouviram passos se aproximando e a porta se abriu. Encontraram não Kerstin, como esperavam, mas Sofie.

 

– Olá – ela disse em tom suave e eles podiam ver traços inequívocos de vários dias de choro. Ela não se moveu e Patrik pigarreou.

 

– Olá, Sofie. Você se lembra de nós, não? Patrik Hedström e Martin Molin – ele olhou para Martin, mas logo voltou-se para Sofie. – Kerstin está em casa? Nós gostaríamos de falar um pouco com ela.

 

Sofie deu um passo para o lado. Entrou no apartamento para chamar Kerstin, enquanto Patrik e Martin esperavam na entrada.

 

– Kerstin, a polícia está aqui. Querem falar com você.

 

Kerstin apareceu com seu rosto vermelho de tanto chorar também. Ela parou a uma pequena distância deles sem dizer uma palavra e nem Patrik nem Martin sabiam como abordar o assunto que vinham tratar com ela. Finalmente, Kerstin disse:

 

– Não querem entrar?

 

Eles concordaram, tiraram os sapatos e seguiram-na até a cozinha. Sofie pareceu querer segui-los, mas Kerstin sentiu instintivamente que o que eles tinham para dizer não era para os ouvidos da menina, porque ela negou com a cabeça quase imperceptivelmente. Por um segundo, Sofie deu a impressão de que iria ignorar a rejeição, mas então deu de ombros, foi para seu quarto e fechou a porta. No momento certo ela saberia de tudo, mas agora Patrik e Martin queriam conversar com Kerstin em particular.

 

Patrik foi direto ao assunto assim que todos se sentaram.

 

– Nós encontramos algumas... irregularidades em relação ao acidente de Marit.

 

– Irregularidades? – disse Kerstin, olhando de um para o outro.

 

– Sim – disse Martin. – Há certos... ferimentos que talvez não possam ser atribuídos ao acidente.

 

– Podem não ser? – Kerstin disse. – Vocês não sabem?

 

– Não, não temos certeza ainda – Patrik admitiu. – Saberemos mais detalhes quando o relatório final do médico legista sair. Mas já há perguntas o bastante para nos fazer querer ter outra conversa com você. Descobrir se há alguma razão para acreditar que alguém quisesse fazer mal a Marit.

 

Patrik viu Kerstin se encolher. Sentiu um pensamento passar por sua mente, o qual ele rejeitou na hora. Mas ele tinha que descobrir o que era, não podia ignorar.

 

– Se sabe de alguém que pudesse querer ferir Marit, você precisa nos dizer. Pelo menos para excluir essa pessoa dos suspeitos – Patrik e Martin a observavam, tensos. Ela parecia lutar contra algo, então eles permaneceram quietos, dando tempo a ela para formular o que queria dizer.

 

– Nós recebemos algumas cartas – as palavras vinham devagar e relutantemente.

 

– Cartas? – disse Martin, querendo saber mais.

 

– Sim – Kerstin não parava de mexer no anel de ouro que usava no dedo anelar da mão esquerda. – Recebemos cartas por quatro anos.

 

– Sobre o que eram as cartas?

 

– Ameaças, obscenidades, coisas a respeito de meu relacionamento com Marit.

 

– Alguém que escrevia por causa da... – Patrik fez uma pausa, sem saber como formar a frase – por causa da natureza do relacionamento?

 

– Sim – Kerstin admitiu. – Alguém que percebeu ou suspeitou que éramos mais que amigas e que estava... – agora era sua vez de procurar palavras. Decidiu-se por “ofendido”.

 

– Que tipo de ameaças eram? Quão ofensivas? – Martin agora anotava tudo. Isso não contradizia em nada os indícios que apontavam para a morte de Marit como algo mais que um acidente.

 

– Bastante ofensivas. Diziam que pessoas como nós éramos nojentas, que íamos contra a natureza. Que pessoas como nós tinham que morrer.

 

– Com que frequência recebiam essas cartas?

 

Kerstin pensou. Continuava mexer no anel nervosamente.

 

– Recebemos umas três ou quatro por ano. Às vezes mais, às vezes menos. Não havia um padrão definido. Era mais como se a pessoa mandasse uma quando tinha vontade, se entende o que eu quero dizer.

 

– Por que não fez uma denúncia? – Martin desviou o olhar de seu bloco de notas e olhou para ela.

 

Kerstin deu-lhe um sorriso torto.

 

– Marit não quis. Tinha medo que isso piorasse as coisas. Que isso tomasse uma proporção maior e nosso... relacionamento viesse a público.

 

– E ela não queria que isso acontecesse? – perguntou Patrik, lembrando-se em seguida de que foi justamente por esse motivo que Kerstin e Marit haviam discutido antes de Marit pegar o carro e sair naquela noite. Na noite em que ela não voltou para casa.

 

– Não, ela não queria – Kerstin disse, apática. – Mas nós guardamos as cartas. Para alguma eventualidade. – Ela levantou-se..

 

Patrik e Martin se entreolharam, atônitos. Nem haviam pensado em perguntar por algo nesse sentido. Era mais do que ousavam esperar. Agora talvez encontrassem alguma evidência física que os pudesse levar à pessoa que escreveu as cartas.

 

Kerstin voltou com uma grossa pilha de cartas em um saco plástico. Despejou-as sobre a mesa. Patrik tinha medo de danificar qualquer prova mais do que já havia sido feito com o manuseio na postagem e por Kerstin e Marit. Então ele cutucou cautelosamente as cartas com sua caneta. Estavam em seus envelopes e ele sentiu o coração acelerar ao pensar que ainda poderia haver resíduos de DNA nos selos lambidos.

 

– Podemos levar conosco? – Martin perguntou, também observando com ansiedade a pilha de cartas.

 

– Sim, levem-nas – Kerstin disse, exausta. – Levem e queimem essa merda toda.

 

– Mas vocês nunca receberam outras ameaças, fora as cartas?

 

Kerstin sentou-se e pensou por um instante.

 

– Eu não tenho muita certeza – disse. – Às vezes o telefone tocava, mas quando atendíamos a pessoa não dizia nada, só ficava lá, em silêncio, até a gente desligar. Na verdade, nós tentamos rastrear a ligação uma vez, mas aparentemente era de um celular pré-pago. Então foi impossível descobrir quem era.

 

– Quando foi a última vez que receberam uma chamada assim? – Martin aguardou, tenso, com a caneta a postos sobre o bloco de notas.

 

– Bem, deixe-me ver – disse Kerstin. – Há duas semanas, talvez? – mexeu nervosamente no anel outra vez.

 

– Mas não houve nada além disso? Ninguém que quisesse fazer mal a Marit? Como era seu relacionamento com o ex-marido, por exemplo?

 

Kerstin não teve pressa para responder. Após dar uma olhada na direção do corredor para ver se a porta de Sofie continuava fechada, disse finalmente:

 

– Ele nos importunou no início, por um bom tempo, na verdade. Mas no último ano as coisas se acalmaram.

 

– O que exatamente quer dizer por importunar? – perguntou Patrik, enquanto Martin tomava nota.

 

– Ele não conseguia aceitar que Marit o deixara. Estavam juntos desde que eram muito jovens. Mas, de acordo com Marit, não vinha sendo um bom relacionamento havia anos, se é que um dia o fora. Para dizer a verdade, ela ficou surpresa com a força com que Ola reagiu quando ela disse que estava indo embora. Mas Ola... – ela hesitou. – Ola era um controlador. Tudo tinha que estar em perfeita ordem, e quando Marit o deixou, essa ordem foi corrompida. Isso foi provavelmente o que mais o incomodou, não o fato de que a havia perdido.

 

– Houve alguma agressão física?

 

– Não exatamente – Kerstin disse, com hesitação. Olhou mais uma vez para a porta de Sofie. – Mas acho que depende do que você define por agressão. Não acho que ele tenha chegado a bater nela, mas sei que a arrastou pelo abraço e a empurrou algumas vezes, coisas assim.

 

– E qual era o acordo com relação a Sofie?

 

– Bem, essa foi uma das coisas que causaram muito transtorno no início. Marit veio morar comigo imediatamente e mesmo que o relacionamento que tínhamos não fosse explícito, ele provavelmente desconfiava. Ele se opunha firmemente à presença de Sofie aqui. Tentou sabotar coisas quando ela ficava conosco, vindo buscá-la muito antes do horário combinado e coisas assim.

 

– Mas as coisas se acalmaram depois? – perguntou Martin.

 

– Sim, graças a Deus. Marit estava inflexível nesse ponto e ele finalmente percebeu que era inútil. Ela ameaçou ligar para as autoridades e todo esse tipo de coisa e então Ola cedeu. Mas ele nunca ficou feliz com a vinda de Sofie para cá.

 

– E Marit alguma vez contou a ele que tipo de relacionamento vocês mantinham?

 

– Não – Kerstin negou veementemente. – Ela era tão teimosa quanto a isso. Dizia que não dizia respeito a ninguém. Não queria contar nem para Sofie – Kerstin sorriu e balançou a cabeça de novo, mas com menos convicção. – Apesar de Sofie ser muito mais esperta do que Marit acreditava. Hoje ela me disse que nem por um minuto foi enganada por nossas tentativas de esconder tudo. Meu Deus, nós ficávamos levando as coisas de Marit de lá pra cá e tentando nos beijar discretamente na cozinha como um casal de adolescentes – ela riu e Patrik ficou admirado como isso suavizava seu rosto. E então ela ficou séria outra vez.

 

– Mas eu ainda acho difícil acreditar que Ola tenha algo a ver com a morte de Marit. Já fazia um tempo que não brigavam feio e bem, eu sei lá. Só parece inacreditável.

 

– E a pessoa que escreveu as cartas e telefonou para vocês? Tem alguma ideia de quem possa ser? Marit já comentou de algum cliente na loja que tenha se comportado de maneira estranha ou algo assim?

 

Kerstin pensou bastante, mas então negou com a cabeça.

 

– Não, não consigo pensar em ninguém. Mas talvez vocês tenham mais sorte – ela apontou com a cabeça para pilha de cartas.

 

– Sim, esperemos que sim – disse Patrik, colocando as cartas de volta no saco plástico. Martin e ele levantaram-se. – Tem certeza de que está tudo bem se levarmos estas cartas?

 

– Sim, claro. Eu nunca mais quero ver essas cartas de novo – Kerstin os seguiu até a porta e despediu-se deles com um aperto de mão. – Me avisem se encontrarem algo definitivo sobre... – ela deixou a frase inacabada.

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, prometo que entraremos em contato com você assim que soubermos de algo. Obrigado por conversar conosco nesse... momento difícil.

 

Ela apenas acenou com a cabeça e fechou a porta atrás deles. Patrik olhou para o saco em suas mãos.

 

– O que acha de mandarmos hoje um pacotinho para o Laboratório Nacional do Crime?

 

– Parece uma excelente ideia – disse Martin, partindo em direção à delegacia. Agora eles pelo menos tinham um ponto de partida.

 

– Sim, temos muita esperança nesse projeto. Você começa a transmitir na segunda-feira?

 

– Certamente, está tudo pronto – disse Fredrik, dando a Erling um sorriso largo.

 

Estavam sentados no espaçoso escritório da Câmara Municipal, na área onde algumas poltronas foram colocadas em torno de uma mesa. Aquilo havia sido um dos primeiros itens na lista de mudanças de Erling. Substituir a mobília municipal sem graça por algo um pouco melhor. Peças de classe e qualidade. Não foi problema algum fazer o pedido chegar discretamente à contabilidade; eles estavam sempre precisando de móveis de escritório.

 

O couro fez um ruído quando Fredrik mudou de posição na poltrona e prosseguiu:

 

– Estamos muito satisfeitos com as gravações que temos até agora. Talvez não tenha havido muita atenção, mas temos um bom material para apresentar os participantes, dar o tom do programas, se é que me entende. E então ficará por nossa conta que as intrigas se desenvolvam de forma a termos bons diálogos. Ouvi dizer que vai haver algum tipo de entretenimento noturno amanhã e isso pode ser um bom começo. Se conheço bem meus participantes, eles certamente vão dar vida a essa festa.

 

– Bem, nós queremos que Tanumshede impressione a mídia tanto quanto Åmål e Töreboda – Erling soltou a fumaça do charuto e encarou o produtor através da névoa.

 

– Tem certeza de que não quer um charuto? – apontou para a caixa sobre a mesa. O humidor, como sempre o chamava, colocando uma forte ênfase no “o”. Aquilo era importante. Só amadores mantinham seus charutos numa caixa qualquer. Conhecedores de verdade tinham um humidor.

 

Fredrik Rehn balançou a cabeça.

 

– Não, obrigado. Prefiro ficar com os pregos habituais do meu caixão – puxou um maço de Marlboro de seu bolso e acendeu um cigarro. Uma fumaça espessa começava a pairar sobre a mesa.

 

– Não posso enfatizar o bastante como é importante que façamos muito sucesso nas próximas semanas – Erling deu outra baforada. – Åmål foi notícia pelo menos uma vez por semana durante as gravações, e Töreboda não ficou atrás. Estou esperando a mesma cobertura para nós – ele apontava com o charuto.

 

O produtor não se intimidou; estava acostumado a lidar com chefes narcisistas de TV e não tinha medo do minipapa de sua Lilliput, que um dia havia sido alguém.

 

– As manchetes virão, confie em mim. Se tiver um início preguiçoso, nós só teremos que esquentar um pouquinho. Acredite em mim, sabemos exatamente onde provocar quando o assunto são essas pessoas. Eles não são lá muito sofisticados – ele riu e Erlig se juntou a ele. Fredrik prosseguiu:– A equação é bastante simples, na verdade. Juntamos alguns jovens complicados e loucos por atenção da mídia, um monte de álcool e colocamos câmeras em volta deles, filmando ininterruptamente. Eles dormem muito pouco, comem mal e o tempo todo sentem a pressão de se apresentar bem e serem vistos por telespectadores. Se não se derem bem assim, podem frequentar bares, furar a fila na entrada de casas noturnas, conseguir um monte de garotas ou ganhar dinheiro posando para revistas. Acredite, eles estão motivados a gerar manchetes e elevar os índices de audiência, e nós temos as ferramentas certas para fazê-los canalizar essa energia.

 

– Bem, parece que você sabe o que está fazendo – Erling se inclinou para a frente e bateu uma longa coluna de cinzas no cinzeiro. – Devo dizer, no entanto, que não entendo a fascinação por esses programas. Eu jamais me importaria em assistir, se não tivéssemos um interesse especial neste aqui. Pelo contrário, prefiro os programas que eram feitos antigamente. Aquilo era televisão de qualidade. Programas com charadas, os de entrevista. Não se fazem mais apresentadores como antes.

 

Fredrik reprimiu o impulso de revirar os olhos. Esses velhotes sempre tinham que comentar como os antigos programas de TV eram muito melhores. Mas se você os sentasse diante de um bloco com um apresentador daquela época, eles dormiriam em segundos. Que gente mais chata! Mas ele apenas sorriu para Erling, como se concordasse totalmente. Era importante cultivar a cooperação dele.

 

– Mas é claro que não queremos que ninguém se machuque – Erling prosseguiu com uma carranca de preocupação. Fez bom uso daquela careta em sua época como diretor executivo. Depois de muita prática, hoje ele parecia quase genuíno.

 

– Claro que não – disse o produtor, também esforçando-se para parecer preocupado e ansioso. – Vamos ficar de olho nos sentimentos do elenco e também contratamos alguém para fazer aconselhamento profissional durante a permanência aqui.

 

– Quem você contratou? – perguntou Erling, abandonando a bituca de seu charuto.

 

– Tivemos a sorte de conseguir o contato de um psicólogo que acabou de se mudou para Tanumshede. Sua esposa foi recentemente contratada pela delegacia local. Ele tem sólida experiência profissional, então estamos muito felizes por tê-lo encontrado. Ele vai conversar com os participantes tanto individualmente como em sessões em grupo duas vezes por semana.

 

– Bom, bom – disse Erling, assentindo. – Fazemos questão de que todos estejam em boas condições de saúde – deu a Fredrik um sorriso paternal.

 

– Nesse ponto estamos em total acordo. – O produtor retribuiu o sorriso, apesar de não exatamente com a mesma expressão paternal.

 

Calle Stjernfelt observou com desgosto os restos de comida nos pratos. Perdido, ficou ali com seu microfone em uma das mãos e um prato na outra.

 

– Droga, isso é repulsivo – disse, sem conseguir desviar o olhar dos pedaços de batata, molho e carne que estavam misturados em uma gororoba irreconhecível.

 

– Ei, Tina, quando é mesmo a hora de trocarmos de lugar? – ele disse frustrado, olhando-a fixamente, enquanto ela vinha da cozinha carregando dois pratos de comida belamente arrumada.

 

– Nunca, se eu tiver escolha – ela exclamou, empurrando com o quadril a porta vaivém.

 

– Merda, eu odeio isso! – Calle gritou, lançando o prato na pia. Uma voz atrás de si o fez pular.

 

– Ei, se quebrar alguma coisa, o valor sai do seu salário – Günther, o chef do restaurante de Tanumshede, lançou-lhe um olhar penetrante.

 

– Se acha que estou aqui por causa de seu ótimo salário, está muito enganado – Calle rosnou. – Só pra você saber, em Estocolmo eu ganho mais em uma noite do que você em um mês – ele pegou outro prato de forma explícita e jogou-o na pia. A louça se quebrou e seu olhar atrevido desafiava Günther a fazer algo quanto àquilo. Por um segundo, o chef fez menção de abrir a boca e gritar com ele, mas então olhou para as câmeras e foi embora resmungando, decidindo-se por mexer a comida que fumegava no balcão de banho-maria.

 

Calle riu. As coisas eram iguais em qualquer lugar. Tanumshede ou Stureplan, em Estocolmo. Não havia diferença nenhuma. O dinheiro falava. Todos seguiam o dinheiro. Ele crescera nessa ordem mundial e aprendera a viver com isso e apreciar o fato. Por que não? A coisa toda jogava a seu favor, afinal de contas. E ele não podia fazer nada se havia nascido em um mundo onde o dinheiro dita as regras. O único lugar em que essas regras não se aplicavam era na ilha. Uma sombra passou por seu rosto ao pensar nisso. Calle havia feito o teste para o Survivor com enorme expectativa. Estava acostumado a vencer. Claro que não seria problema nenhum para ele se livrar de um bando de caipiras idiotas. Sabia que tipo de gente ia para o programa. Os desempregados, estivadores e cabeleireiros. Seria sopa para um cara como ele sair vitorioso. Mas a realidade havia sido um choque. Sem poder dar carteirada ou se exibir, outras coisas se mostraram importantes. Quando a comida acabou e a sujeira e as pulgas de areia tomaram conta, ele rapidamente se reduziu

a zero, a um zé-ninguém. Foi uma péssima experiência. Ele foi o quinto a

ser votado para sair da ilha, não chegando nem ao momento da fusão. De repente foi forçado a reconhecer que as pessoas não gostavam dele. Não que fosse o cara mais amado de Estocolmo, mas lá as pessoas pelo menos demonstravam algum respeito e admiração. E gostavam de puxar seu saco também, assim podiam estar em sua companhia, com o champanhe rolando solto e as garotas que viviam em volta dele. Na ilha, aquele mundo parecia estar tão longe, e um zero à esquerda venceu. Um carpinteiro estúpido por quem todos suspiravam, porque era tão genuíno, tão honesto, tão simples. Malditos idiotas. Não, a ilha era uma experiência que ele queria esquecer assim que possível.

 

Mas aqui seria diferente. Aqui ele estava mais em seu habitat. Bem, não exatamente como um lavador de pratos, mas ele tinha a chance de mostrar que era alguém. Seu sotaque e seus cabelos em um penteado clássico todo para trás e suas roupas caras significavam alguma coisa aqui. Ele não precisaria correr seminu como um selvagem e tentar se apoiar em alguma “personalidade” de merda. Aqui ele poderia dominar. Relutantemente ele pegou um prato sujo do tabuleiro e começou a lavar. Ele iria falar com a produção sobre trocar de lugar com Tina. Esse trabalho simplesmente não combinava com sua imagem.

 

Como em resposta ao seu pensamento, Tina voltou pela porta vaivém. Encostou-se na parede, tirou os sapatos e acendeu um cigarro.

 

– Quer um? – ela lhe ofereceu o maço.

 

– Porra, se quero – ele disse, encostando-se na parede também.

 

– Nós não podemos fumar aqui, certo? – ela disse, soprando um anel de fumaça.

 

– Não – disse Calle, soltando outro anel, que foi ao encontro do dela.

 

– O que vai fazer hoje? – ela olhou para ele.

 

– Vou para a danceteria ou que porra eles chamem aqui. Você também vai?

 

– Claro, parece bom – ela riu. – Acho que não vou a uma “danceteria” desde que estava no começo do ginásio – ela moveu os dedos dos pés, que estavam doloridos por estar enfiados num par de saltos altos há horas.

 

– Vai ser legal, sem dúvida. Nós mandamos nessa cidade. As pessoas vão aparecer só pra nos ver. É legal ou não é?

 

– Bem, eu pensei em pedir ao Fredrik se ele conseguia arranjar de eu cantar.

 

Calle riu.

 

– Está falando sério?

 

Tina olhou-o, magoada.

 

– Acha que estou aqui só porque é legal pra caralho? Tenho que aproveitar essa oportunidade. Venho fazendo aulas de canto há meses e apareceu um monte de interessados de gravadoras depois do The Bar.

 

– Então já tem um contrato para gravar? – Calle provocou-a, dando uma tragada profunda em seu cigarro.

 

– Não... Foi tudo por água abaixo, sei lá como. Mas o momento foi errado, é o que diz meu empresário. E nós temos que achar uma música boa para a minha imagem. E ele está tentando arranjar que aquele Bingo Rimér faça minhas fotos de divulgação também.

 

– Você? – Calle deu uma gargalha bruta. – Barbie tem mais chance. Você não tem os... – deixou os olhos percorrerem o corpo de Tina. – atributos necessários.

 

– O que quer dizer? Meu corpo é pelo menos tão sexy quanto o daquela loira burra. Meus seios são um pouco menores, só isso – Tina jogou o cigarro no chão e o esmagou com o salto. – E eu estou economizando para comprar novos – ela acrescentou, olhando para Calle com olhar desafiador. – Mais dez mil coroas e eu poderei pagar uns belos tamanho G.

 

– Certo. Boa sorte – disse Calle esmagando o cigarro no chão.

 

Exatamente no momento em que Günther voltava. Seu rosto assumiu um tom ainda mais escuro de vermelho do que já tinha por conta do vapor que subia das panelas.

 

– Está fumando aqui? É proibido, totalmente proibido, absolutamente proibido – agitou os braços com vontade e Tina e Calle olharam um para o outro e vaiaram. Ele era uma caricatura. Com relutância, voltaram ao trabalho. As câmeras captaram tudo.

 

Os melhores momentos eram quando eles se sentavam perto, bem próximos um do outro. Os momentos em que ela pegava o livro. O farfalhar das páginas enquanto ela as folheava, a fragrância do seu perfume, o toque do tecido macio da blusa dela contra sua bochecha. Era quando as sombras se mantinham afastadas. Tudo o mais lá fora, tanto assustador quanto tentador, perdia importância. O volume de sua voz subia e caía em ondas suaves. Às vezes, se estavam cansados, um deles ou os dois, adormeciam com a cabeça no seu colo. A última coisa de que se lembravam antes que o sono os dominasse era a história, a voz, o farfalhar do papel, os dedos dela acariciando seus cabelos.

 

Já tinham ouvido a história tantas vezes. Sabiam de cor. E mesmo assim ela parecia nova a cada vez. Às vezes ele observava sua irmã enquanto ela prestava atenção. Sua boca meio aberta, seus olhos fixos nas páginas do livro, seus cabelos caindo em cascata pelas costas da camisola. Ele costumava escovar seus cabelos todas as noites. Era seu trabalho.

 

Quando ela lia para eles, todo o desejo de sair pela porta trancada desaparecia. Então existia apenas um mundo colorido de aventuras, cheio de dragões, príncipes e princesas. Não uma porta trancada. Não duas portas trancadas.

 

Ele se lembrava vagamente de que no início teve medo. Mas não tinha mais. Não quando ela cheirava tão bem e era tão macia e quando sua voz se elevava e baixava tão ritmicamente. Não quando ele sabia que ela o estava protegendo. Não quando ele sabia que era um pé frio.

 

Patrik e Martin se ocuparam com outras tarefas na delegacia por algumas horas, esperando que Ola chegasse do trabalho. Consideraram ir até lá para conversar com ele, mas decidiram esperar até as cinco horas, quando seu expediente terminaria. Não havia razão para sujeitá-lo a um monte de perguntas de seus colegas. Pelo menos, não por ora. Kerstin não acreditava que Ola tivesse algo a ver com as cartas anônimas e os telefonemas. Patrik não tinha tanta certeza. Precisaria ser convencido do contrário antes de abandonar a ideia. A pilha de cartas fora enviada para o Laboratório Criminal Nacional naquela tarde, e ele havia incluído um pedido de acesso às chamadas de Kerstin e Marit durante o período em que haviam recebido os telefonemas anônimos. Ola parecia ter acabado de sair do chuveiro quando abriu a porta. Estava vestido, mas seus cabelos ainda estavam molhados.

 

– Pois não? – disse Ola impaciente e agora eles não viam nenhum traço do pesar pela morte de sua ex-esposa. Pelo menos não era de maneira tão óbvia quanto em Kerstin.

 

– Gostaríamos de lhe fazer mais algumas perguntas.

 

– Ah, é? – disse Ola, ainda impaciente.

 

– Sim, há algumas coisas que chamaram nossa atenção no que diz respeito à morte de Marit – disse Patrik, olhando-o com insistência.

 

Ola obviamente entendeu, porque deu um passo atrás e fez menção para que os dois entrassem.

 

– Bem, que bom que vieram, porque eu estava pensando em ligar para vocês.

 

– Verdade? – disse Patrik, sentando-se no sofá. Dessa vez ele não os levara para a cozinha, mas em vez disso mostrou o caminho para o jogo de sofás na sala de estar.

 

– Sim, eu gostaria de saber se é possível expedir uma medida cautelar – Ola sentou-se numa grande poltrona de couro e cruzou as pernas.

 

– Tudo bem – disse Martin, dirigindo um olhar inquiridor a Patrik. – Uma medida cautelar contra quem?

 

Os olhos de Ola brilharam.

 

– Contra Kerstin. Em nome de Sofie.

 

Nenhum dos policiais mostrou surpresa.

 

– E por que isso, se é que posso perguntar? – o tom de Patrik passava a ilusão de calma.

 

– Não há razão para Sofie visitar aquela... aquela... pessoa agora! – ele disse tão ferozmente que cuspiu. Ola inclinou-se para a frente e prosseguiu, com os cotovelos apoiados nos joelhos: – Ela foi até lá hoje. Sua mochila havia sumido quando eu vim para casa almoçar e eu liguei para seus amigos. Ela deve ter ido ver aquela... sapatão. Podem fazer algo para impedir isso? Quero dizer, é claro que vou ter uma conversa séria com Sofie quando ela chegar, mas deve haver alguma forma de impedir essas coisas legalmente, não?

 

– Bem, isso pode ser difícil – disse Patrik, cujas suspeitas agora estavam se confirmando. O que eles queriam conversar com Ola agora parecia muito apropriado.

 

– Uma ordem cautelar é uma medida muito severa a se tomar e eu não acho que se aplique nesse caso – olhou para Ola, que claramente se agitava.

 

– Mas, mas... – ele gaguejou. – Que diabos eu posso fazer? Sofie tem quinze anos e eu não posso trancá-la em casa se ela se recusar a me obedecer e aquela maldita... – ele engoliu as palavras com dificuldade. – Ela certamente não vai cooperar. Quando Marit estava viva, eu era forçado a aceitar... tudo aquilo, mas continuar suportando essa merda toda agora, não, droga! – ele bateu com o punho na mesa de vidro com tamanha força que tanto Patrik quanto Martin pularam.

 

– Então você não aprova o estilo de vida escolhido por sua ex-esposa?

 

– Escolha? Estilo de vida? – Ola grunhiu. – Se não fosse aquela puta maldita colocando aquelas ideias na cabeça de Marit, nada disso teria acontecido. E Marit, Sofie e eu ainda estaríamos juntos. Mas em vez disso Marit não só destruiu sua família e traiu a mim e a Sofie como nos tornou motivo de riso! – ele balançou a cabeça como se ainda não conseguisse acreditar.

 

– Já demonstrou sua desaprovação de alguma forma? – disse Patrik, astuto.

 

Ola lançou-lhe um olhar desconfiado.

 

– E o que exatamente está querendo dizer? Claro, eu nunca escondi o que pensava sobre Marit ter nos deixado, mas fiz questão de não discutir seus motivos. Não é algo que você queira discutir, o fato de sua mulher passar para o outro lado. Ser trocado por outra mulher não é algo de que você queira se gabar – ele tentou rir, mas a amargura em sua voz fez a gargalhada soar nefasta.

 

– Então não fez nada para perturbar sua ex-mulher e Kerstin?

 

– Não entendo aonde quer chegar – disse Ola, estreitando os olhos.

 

– Estamos falando de cartas e telefonemas – disse Martin. – Ameaçadores.

 

– E acha que eu faria algo assim? – os olhos de Ola se arregalaram. Era difícil dizer se sua surpresa era genuína ou só fingimento.– Que tipo de relevância isso tem agora? Digo, a morte de Marit foi um acidente, afinal.

 

Patrik ignorou o comentário, naquele momento. Não queria revelar de uma vez tudo o que sabia, preferindo fazê-lo aos poucos.

 

– Alguém enviou cartas anônimas e fez ligações também anônimas para Kerstin e Marit.

 

– Bem, não é de surpreender, é? – disse Ola, com um sorriso. – Mulheres assim tendem a chamar atenção. É possível que essas coisas sejam toleradas em cidades grandes, mas não aqui no interior.

 

Patrik estava quase sufocando com tanto preconceito que irradiava daquele homem sentado na poltrona. Com dificuldade, resistiu ao impulso de pegá-lo pela camisa e dizer-lhe algumas verdades. O único consolo era que Ola estava se enterrando cada vez mais fundo no lodo a cada frase que dizia.

 

– Então não foi você quem escreveu as cartas e ficou telefonando para elas? – disse Martin com a mesma expressão de desagrado mal disfarçada.

 

– Não, eu jamais me rebaixaria assim – Ola deu-lhes um sorriso arrogante. Era tão seguro de si mesmo, e sua casa era tão limpa e organizada e em perfeitas condições. Patrik ansiava por agitar seu mundo arrumadinho.

 

– Então não faz nenhuma objeção em nos deixar tirar suas impressões digitais? E compará-las com as que o laboratório encontrar nos envelopes?

 

– Impressões digitais? – seu sorriso desapareceu de repente. – Eu não entendo. Por que remexer nisso tudo agora? – a ansiedade estava evidente em seu rosto. Patrik riu para si mesmo; uma olhada para Martin mostrou que seu colega sentia o mesmo.

 

– Antes, responda à pergunta. Posso pressupor que o senhor nos deixará colher suas impressões digitais para que possamos excluí-lo da investigação?

 

Agora Ola se retorcia em sua poltrona de couro. Seus olhos iam de um ponto a outro e ele começou a mexer nos objetos sobre a mesa de vidro. Para Patrik e Martin os enfeites já pareciam estar em linhas retíssimas, mas aparentemente Ola não enxergava da mesma forma; ficava movendo-os poucos milímetros em diferentes direções até que estivessem alinhados o bastante para acalmar seus nervos.

 

– Bem – ele disse –, suponho que terei que confessar – seu sorriso voltou. Encostou-se e parecia ter recuperado, o que por um momento ele pareceu ter perdido. – É melhor contar a verdade. Eu enviei, sim, algumas cartas e cheguei a telefonar para Kerstin e Marit algumas vezes. Foi estúpido, claro, mas eu esperava que Marit percebesse que seu relacionamento não iria durar. Eu tinha esperanças de que ela escutasse a razão. Tínhamos uma vida tão boa juntos. E poderíamos ter novamente. Se ela ao menos desistisse daquelas ideias estúpidas e parasse de passar vergonha. De me envergonhar. Era muito pior para Sofie. Imagine ter esse fardo todo para carregar na idade dela. Isso a tornaria uma verdadeira excluída na escola. Marit tinha que perceber isso. Simplesmente não ia dar certo.

 

– Mas já fazia quatro anos, então não parecia que ela estava com pressa de voltar para você – Patrik mantinha sua expressão calculadamente neutra.

 

– Era só uma questão de tempo – Ola mexia nos objetos sobre a mesa novamente. De repente, virou-se para os detetives, no sofá. – Mas não entendo que importância isso pode ter agora! Marit está morta e, se Sofie e eu pudermos nos livrar daquela pessoa, poderemos seguir em frente. Por que remexer nisso tudo agora?

 

– Porque temos vários indícios de que a morte de Marit não foi acidental.

 

Um silêncio chocado caiu sobre a pequena sala de estar. Ola encarou os dois.

 

– Não foi um acidente? – olhou de Patrik para Martin. – O que querem dizer com isso? Alguém...? – deixou a frase morrer. Se seu espanto não era genuíno, ele era um ótimo ator. Patrik daria tudo para saber exatamente o que se passava na cabeça de Ola naquele momento.

 

– Sim, acreditamos que alguém mais pode estar envolvido na morte de Marit. Logo saberemos mais. Mas, por ora, você é nosso suspeito número um.

 

– Eu? – Ola disse, incrédulo. – Mas eu jamais faria qualquer coisa para ferir Marit! Eu a amava! Eu só queria que fôssemos uma família novamente!

 

– Então foi esse imenso amor que te fez ameaçar Marit e sua namorada? – a voz de Patrik transbordava sarcasmo.

 

O rosto de Ola se contorceu à menção da palavra “namorada”.

 

– Mas ela não entendia! Devia estar passando por algum tipo de crise de meia-idade quando fez quarenta anos e seus hormônios se desequilibraram e afetaram seu cérebro, de alguma forma. Deve ser por isso que ela jogou tudo fora. Estivemos juntos por vinte anos, dá pra entender? Nos conhecemos na Noruega quando tínhamos dezesseis anos e eu pensava que ficaríamos juntos para sempre. Passamos por tanta... – fez uma pausa – merda juntos quando éramos jovens, mas finalmente tínhamos tudo o que queríamos. E então... – Ola elevou o volume da voz. Agora ele jogava as mãos para o alto em um gesto que dizia que ele ainda não tinha compreendido o que quer que ocorrera com seu casamento quatro anos antes.

 

– Onde estava na noite do domingo passado? – Patrik dirigiu-lhe um olhar inflexível e aguardava uma resposta.

 

Ola olhou-o nos olhos, incrédulo.

 

– Está me pedindo um álibi? É isso que está fazendo? Quer a porra de um álibi para domingo à noite? É isso que quer dizer?

 

– Sim, está correto – Patrik respondeu, calmamente.

 

Ola pareceu a ponto de perder o controle, mas conseguiu se segurar.

 

– Fiquei em casa a noite toda. Sozinho. Sofie dormiu na casa de uma amiga, então não há ninguém que confirme que eu estava aqui. Mas é a verdade – seus olhos eram desafiadores.

 

– Não falou com ninguém por telefone? Nenhum vizinho passou por aqui? – perguntou Martin.

 

– Não – disse Ola.

 

– Bem, isso não soa muito bem – disse Patrik, lacônico. – Isso significa que você permanece como suspeito, se ficar comprovado que a morte de Marit não foi acidente.

 

Ola deu uma risada amarga.

 

– Então, vocês não têm certeza. E ainda assim, vêm aqui e exigem que eu tenha um álibi – balançou a cabeça. – Acho que vocês dois estão malucos – levantou-se. – E agora acho que devem ir embora.

 

Patrik e Martin também ficaram de pé.

 

– Já havíamos terminado, de qualquer forma. Mas voltaremos.

 

Ola riu novamente.

 

– Sim, tenho certeza que sim – ele dirigiu-se para a cozinha, sem se preocupar em se despedir.

 

Patrik e Martin saíram sozinhos. Fecharam a porta atrás de si e então pararam por um momento.

 

– Bem, o que acha? – disse Martin, subindo totalmente o zíper da jaqueta. O calor da primavera ainda não havia chegado, e o vento ainda estava frio.

 

– Eu não sei – Patrik suspirou. – Se tivéssemos certeza de que essa é uma investigação de homicídio, seria mais fácil, mas agora... – suspirou outra vez. – Se pelo menos eu conseguisse lembrar por que esse cenário parece tão familiar. Há algo que... – ele ficou em silêncio e balançou a cabeça com uma expressão sinistra. – Não, não consigo pensar no que é. Talvez os investigadores tenham conseguido encontrar algo no carro de Marit.

 

– Vamos torcer – disse Martin.

 

– Sabe, acho que vou andando para casa – disse Patrik, quando se dirigiam ao carro.

 

– Mas como vai para o trabalho amanhã?

 

– Eu dou um jeito. Talvez peça a Erica que me dê uma carona no carro de Anna.

 

– Está bem, então – disse Martin. – Eu levo o carro e vou para casa também. Pia não estava se sentindo bem, então vou mimá-la um pouco hoje à noite.

 

– Nada sério, espero – disse Patrik.

 

– Não, ela só tem passado mal e se sentido enjoada ultimamente.

 

– É... – Patrik começou a dizer, mas um olhar de Martin o interrompeu. Ok, não era momento de fazer aquela pergunta em particular. Ele riu e acenou para Martin, que entrava no carro. Ia ser bom chegar em casa.

 

Lars massageava os ombros de Hanna. Ela estava sentada à mesa da cozinha, com os olhos fechados, os braços relaxados ao longo do corpo. Mas seus ombros estavam duros como pedras e Lars tentava o mais gentilmente possível liberar a tensão que se instalara ali.

 

– Puxa, você deveria ir a um quiroprático, seus músculos estão emaranhados.

 

– Humm, eu sei – disse Hanna, contorcendo-se um pouco quando ele tocou um nó e começou a trabalhar nele.

 

– Ai! – ela disse.

 

Lars parou no mesmo instante.

 

– Dói? Quer que eu pare?

 

– Não, continue – disse ela, ainda com uma careta de dor.

 

Mas era um tipo de dor deliciosa. A sensação de um músculo retesado se relaxando era maravilhosa.

 

– Como vão as coisas no trabalho agora? – suas mãos a amassavam mais e mais.

 

– Muito boas – ela disse –, mas é uma delegacia meio morta. Nenhum deles é lá muito inteligente. Com a exceção talvez de Patrik Hedström. E o cara mais novo, Martin, que pode ser bom um dia. Mas Gösta e Mellberg! – Hanna riu. – Gösta fica lá sentado, jogando no computador, e eu raramente vejo Mellberg. Ele fica sentado, no escritório, sem fazer nada o dia todo. Vai ser um desafio e tanto.

 

Por um tempo, o clima permaneceu leve no recinto. Mas logo as velhas sombras se esgueiraram para dentro, e a tensão usual recaiu sobre eles. Havia um limite no que podiam dizer. No que podiam fazer. Mas nunca terminava. O passado pairava entre eles como um gigante obstáculo que eles jamais conseguiram superar. Haviam se resignado. No momento, a questão era se eles realmente queriam superá-lo.

 

A mão de Lars mudou de uma massagem profunda para uma carícia e ele tocava o pescoço de Hanna. Ela deu um gemido suave, ainda com os olhos fechados.

 

– Isso um dia vai acabar, Lars? – ela sussurrou, enquanto as mãos dele continuavam acariciando-a, nos ombros, na clavícula, por baixo da blusa. A boca dele estava próxima da orelha dela e Hanna podia sentir o calor de seu hálito.

 

– Eu não sei. Simplesmente não sei, Hanna.

 

– Mas precisamos conversar sobre isso. Um dia teremos que falar sobre isso – ela podia ouvir o tom sôfrego e desesperado que sempre aparecia em sua voz quando o assunto vinha à tona.

 

– Não, não precisamos – agora a língua de Lars estava no lóbulo de sua orelha. Ela tentou resistir, mas como sempre o desejo aumentava dentro dela.

 

– Mas o que vamos fazer? – agora o desespero se misturava à paixão e ela abruptamente virou-se para ele.

 

Com o rosto próximo ao dela, Lars disse:

 

– Vamos viver nossa vida. Dia a dia, hora a hora. Vamos trabalhar, rir, fazer tudo o que é esperado de nós. Nós nos amamos.

 

– Mas... – seus protestos foram interrompidos por sua boca na dela. A capitulação que seguia era sempre muito familiar. Ela sentia as mãos dele em seu corpo todo. Elas deixavam rastros quentes e ela sentia as lágrimas surgindo. Todos aqueles anos de frustração, vergonha, paixão estavam contidos naquelas lágrimas. Lars as lambia avidamente e sua língua deixava rastros úmidos em sua face. Ela tentava se livrar, mas o amor dele, a fome, estavam em toda parte e não a deixavam se libertar. Finalmente, ela cedia. Limpava a mente de todos os pensamentos, de todo o passado. Ela correspondia a seus beijos e se agarrava a ele, enquanto ele pressionava seu corpo no dela. Arrancaram as roupas um do outro e caíram no chão da cozinha. De muito longe, ela conseguia ouvir a si mesma gritar.

 

Depois, ela sempre se sentia vazia como nunca. E perdida.

 

– Patrik estava mesmo desanimado quando chegou em casa ontem – Anna olhou para Erica, que se concentrava em dirigir.

 

Erica suspirou.

 

– É, ele não está sentindo bem. Tentei falar com ele essa manhã, quando o levei para o trabalho, mas ele não estava muito a fim de conversa. Já vi essa expressão antes. Há algo que o preocupa, algo no trabalho que o está deixando realmente incomodado. Tudo que posso fazer é dar-lhe um tempo; mais cedo ou mais tarde, ele vai começar a falar.

 

– Homens – disse Anna, e uma sombra passou por seu rosto. Erica sentiu a mudança no humor da irmã e instantaneamente sentiu um nó no estômago. Ela vivia em constante medo de que Anna voltasse à apatia, que perdesse aquela centelha de vida que fora despertada nela. Mas, dessa vez, Anna conseguiu se desfazer da memória do inferno pelo qual havia passado, a lembrança que insistentemente tentava invadir seus pensamentos.

 

– Será que tem algo a ver com aquele acidente? – ela disse.

 

– Acho que sim – disse Erica, olhando com cuidado antes de entrar na rotatória, em Torp. – De qualquer modo, Patrik disse que eles estão investigando algumas discrepâncias que surgiram e disse que o acidente o lembrava de algo.

 

– De quê? – Anna perguntou. – Do que um acidente de carro poderia lembrá-lo?

 

– Não sei. Foi tudo que ele disse. Mas ele ia investigar mais a fundo hoje, tentar resolver o caso.

 

– Imagino que você não tenha tido a chance de mostrar a lista para ele.

 

Erica riu.

 

– Não, eu não tive coragem de mostrá-la a Patrik quando ele estava tão pra baixo. Vou tentar introduzir o assunto durante o fim de semana, quando encontrar o momento certo.

 

– Bom – disse Anna. Sem ter sido requisitada, ela havia assumido o papel de organizadora-chefe e comandante do projeto do casamento. – A coisa mais importante que tem que cobrar de Patrik é o que ele vai vestir. Ele poderia ir procurar hoje e você também pode escolher algumas coisas que queira que ele experimente, mas isso não vai ser fácil sem Patrik.

 

– Bem, o que Patrik vai vestir não é exatamente um problema. Estou mais preocupada comigo mesma – Erica disse, melancólica. – Acha que eles têm uma seção para manequim GG na loja de vestidos de noiva? – ela fez a curva para entrar no estacionamento e soltou o cinto de segurança. Anna fez o mesmo e então voltou-se para Erica.

 

– Não se preocupe, você está fantástica. Nós vamos dar um jeito nisso! E você vai conseguir fazer várias coisas em seis semanas. Isso vai ser ótimo!

 

– Só acredito vendo – disse Erica. – Prepare-se. Isso não será divertido – ela trancou o carro e seguiu para a rua das lojas, com Maja sentada no carrinho. A loja de artigos para noivas ficava numa perpendicular e ela telefonara antes para saber se estariam abertos.

 

Anna não disse nada até chegarem à loja. Apertou o braço de Erica assim que entraram, tentado dar-lhe mais ânimo. Estavam indo comprar um vestido de noiva, afinal.

 

Erica respirou profundamente quando fecharam a porta, assim que entraram. Branco, branco, branco. Tule e rendas e pérolas e lantejoulas. Uma mulher baixinha em torno de seus sessenta anos, usando maquiagem em excesso, veio em sua direção.

 

– Bem-vindas, bem-vindas! – ela cantarolou, batendo palmas de entusiasmo. Erica pensou cinicamente que a dona da loja não devia ter muitos clientes, a julgar pela alegria que demonstrou ao vê-las.

 

Anna deu um passo à frente e assumiu o controle.

 

– Nós gostaríamos de encontrar um vestido de noiva para a minha irmã aqui – ela apontou para Erica e a mulher bateu palmas novamente.

 

– Oh, que maravilha, você vai se casar?

 

“Não, eu só quero ter um vestido de noiva. Para minha diversão”, Erica pensou, azeda, mas guardou o comentário para si mesma.

 

Anna olhou como se tivesse ouvido o que Erica estava pensando e declarou, rapidamente:

 

– O casamento será na noite do Pentecostes.

 

– Nossa – disse a mulher, pasma. – Então você precisa se apressar! Falta pouco mais de um mês. Ai, ai. Já está mais do que na hora de procurar um vestido.

 

Mais uma vez, Erica engoliu uma observação sarcástica e sentiu a mão de Anna em seu braço. A mulher fez um gesto para elas a acompanharem e Erica a seguiu, hesitante.

 

A situação toda era tão... bizarra. Ela nunca havia pisado em uma loja para noivas antes, e isso talvez explicasse a sensação estranha. Olhou em volta e sua cabeça começou a girar. Como ela seria capaz de encontrar um vestido aqui, no meio desse mar de forros?

 

Anna mais uma vez captou seu humor. Apontou para uma poltrona e sugeriu que Erica se sentasse. Erica pôs Maja no chão. Então Anna disse, com voz autoritária:

 

– Talvez você possa trazer alguns modelos diferentes para minha irmã olhar. Sem muitos adornos e babados. Simples e clássico. Talvez com um pequeno detalhe que dê um toque de elegância. Não acha? – olhou para Erica, que não conseguiu segurar o riso. Anna a conhecia melhor do que ela a si mesma.

 

Foram trazidos vestidos e mais vestidos. Às vezes Erica balançava a cabeça, às vezes concordava. Ao final, tinha uma arara com cinco vestidos para experimentar. Com o coração pesado, Erica entrou no provador. Esse não era seu passatempo favorito.

 

Ver seu corpo por três ângulos diferentes de uma só vez, enquanto aquela luz impiedosa iluminava todas as partes escondidas pelas roupas de inverno, era uma experiência angustiante. Especialmente quando Erica notou que ela provavelmente deveria ter se depilado aqui e ali. Ah, paciência, tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito. Com cuidado, colocou o primeiro vestido. Era um tomara que caia e ela soube, assim que subiu o zíper, que aquilo não seria um grande sucesso.

 

– Como está indo? – perguntou a mulher, em sua voz mais entusiasmada, do lado de fora da cortina. – Precisa de ajuda com o zíper?

 

– Sim, acho que preciso – disse Erica, saindo do provador relutantemente. Virou as costas para elas, a fim de que a mulher subisse o zíper, e então respirou fundo e olhou para si mesma no espelho de corpo inteiro. Desespero, total desespero. Ela podia sentir as lágrimas marejando seus olhos. Essa não era a forma como se imaginava vestida de noiva. Em seus sonhos, ela sempre estava elegantemente magra, com seios firmes e pele brilhante. A figura que a olhava de volta no espelho parecia uma versão feminina do boneco da Michelin. Cilindros de gordura protuberavam em torno de sua cintura, sua pele estava quase cinza de tão pálida. O corpete também formava estranhas linguiças de gordura e pele em suas axilas. Ela estava terrível. Engoliu as lágrimas e voltou para o provador. De alguma forma, conseguiu baixar o zíper sem ajuda e saiu do vestido. Próximo.

 

Este ela conseguiu colocar sozinha e saiu para mostrar a Anna e à dona da loja. Dessa vez ela não conseguiu esconder como se sentia. Podia ver seu lábio inferior tremer. Algumas lágrimas escaparam e ela as enxugou com as costas da mão, irritada. Ela não queria ficar ali, envergonhada e chorando, mas não podia esconder o que sentia. Esse vestido também havia ficado ruim. Novamente era um modelo simples, mas frente única, o que pelo menos não marcava as gordurinhas das axilas. Sua barriga era a maior preocupação. Era impossível imaginar como ela poderia estar em forma a ponto de se sentir feliz no dia de seu casamento. Isso era para ser divertido, não era? Era algo que ela esperara ansiosamente a vida toda. Estar ali, escolhendo e experimentando um fantástico vestido de casamento atrás do outro. Imaginando como o olhar admirado de todos se voltaria para ela quando caminhasse em direção ao altar com seu padrinho. Em seus sonhos, ela sempre pareceu uma princesa no dia de seu casamento. Mais lágrimas rolaram por suas faces, e Anna foi até ela e tocou seu braço.

 

– O que foi, querida?

 

Erica soluçou.

 

– Eu... eu... estou tão gorda! Tudo fica horrível em mim.

 

– Você não está gorda, de jeito nenhum. Só tem um pouquinho de peso extra por causa da gravidez, só isso. E nós podemos consertar isso antes do casamento. Você tem um corpo lindo. Quero dizer, olhe esse decote, por exemplo. Eu mataria por um desses quando me casei – Anna apontou para o espelho, e Erica relutantemente olhou naquela direção. Primeiro viu seu rosto patético com vestígios de lágrimas nas bochechas e um nariz vermelho e inchado. Então baixou os olhos e, sim, talvez Anna tivesse razão. Havia mesmo um belo decote à mostra ali.

 

Nessa hora a dona da loja entrou na conversa.

 

– O vestido caiu maravilhosamente bem, você só não está usando a roupa de baixo correta. Se tentar colocar uma cinta ou um corset, essa barriguinha de nada some em um segundo. Isso não é nada. Já vi algumas muito piores. Como disse sua irmã, você tem um corpo lindo. É só questão de encontrar um vestido que acentue suas curvas. Vista este aqui e eu tenho certeza de que você vai começar a se animar. Este vai vestir melhor ainda. – Pegou um dos vestidos da arara do provador e ofereceu para Erica, que entrou novamente, relutante. Com uma expressão cética no rosto, ela colocou o vestido e saiu do provador. Inspirou fundo, expirou e posicionou-se estoicamente diante do espelho de corpo inteiro, como um soldado indo para a linha de frente. Um sorriso admirado abriu-se em seu rosto. Esse era algo totalmente diferente. Caiu-lhe... perfeitamente! Tudo que parecia horrível antes tornou-se vantagem nesse vestido. Sua barriga ainda saltava um pouco, mas nada que um bom corset não resolvesse. Olhou surpresa para Anna e para a dona da loja. Encantada, Anna apenas concordou com a cabeça, e a dona da loja bateu palmas de deleite.

 

– Que noiva! O que eu te disse? Esse é perfeito para sua altura e seu tipo de corpo!

 

Erica olhou no espelho mais uma vez, ainda um pouco em dúvida Mas tinha que concordar. Sentia-se linda. Parecia uma princesa. Assim que se livrasse daqueles quilos em excesso nas semanas anteriores ao seu casamento, ele ficaria perfeito. Virou-se para Anna.

 

– Não preciso experimentar mais nenhum. Vou levar esse!

 

– Que lindo! – a mulher sorriu. – Acho que ficará mais que satisfeita. Se quiser, pode deixar aqui até o casamento e então podemos fazer mais uma prova, na semana anterior. Se for preciso apertar ou algo assim, teremos tempo suficiente.

 

– Obrigada, Anna – Erica sussurrou, segurando a mão da irmã. Anna a apertou de volta.

 

– Você está simplesmente linda nesse vestido – ela disse e Erica pensou ter visto uma lágrima se insinuar nos olhos da irmã também. Foi um belo momento. Um momento que ambas mereciam depois de tudo o que passaram.

 

– E então? Como vão as coisas até agora? – Lars observou o círculo de pessoas. Ninguém disse uma palavra. A maioria olhava para os próprios sapatos. Todos exceto Barbie, que o encarava intensamente.

 

– Alguém gostaria de ser o primeiro? – lançou-lhes um olhar de encorajamento e então pelo menos alguns deles ergueram o olhar. Finalmente Mehmet falou.

 

– É, está tudo indo bem – e então calou-se

 

– Gostaria de explicar melhor? – a voz de Lars era gentil, com um leve tom de persuasão.

 

– Bem, quero dizer, até agora está tudo ótimo. O meu trabalho é, tipo, legal e tal... – Mehmet fez silêncio novamente.

 

– Como os demais se sentem com o trabalho que lhes foi dado?

 

– Trabalho? – Calle bufou. – Eu lavo pratos o dia todo. Mas vou conversar com Fredrik sobre isso hoje à tarde. Tenho que ver se consigo fazer umas mudanças naquele lugar – deu a Tina um olhar significativo. Ela só o encarou.

 

– E você, Jonna, como foi a semana para você?

 

Jonna era a única que ainda parecia achar seus sapatos incrivelmente interessantes. Ela resmungou algo em resposta, mas sem levantar a cabeça. Todos os que estavam sentados em círculo no meio da enorme sala do centro comunitário inclinaram-se para a frente para tentar ouvir o que ela dizia.

 

– Perdão, Jonna, mas nós não ouvimos. Pode repetir? E eu gostaria muito que você fizesse a gentileza de nos olhar nos olhos quando fala conosco. Do contrário, parece que você não nos trata com respeito. É essa sua intenção, Jonna?

 

– É, é isso? – Uffe se intrometeu, chutando o pé dela. – Acha que é melhor que a gente ou o quê?

 

– Isso não é construtivo, Uffe – Lars advertiu-o. – O que queremos construir aqui é um ambiente caloroso e seguro, onde todos vocês possam falar sobre seus sentimentos e suas experiências.

 

– Está usando palavras que provavelmente são complexas demais para o Uffe – Tina debochou. – Você terá que usar frases mais simples se quiser que ele te acompanhe.

 

– Puta do caralho! – foi a eloquente resposta de Uffe, acompanhada de um olhar enfurecido.

 

– É disso mesmo que eu estou falando – a voz de Lars assumiu um tom áspero. – Não há motivo para provocarem uns aos outros assim. Vocês todos estão em uma situação extrema, que pode ser emocionalmente difícil. Aqui vocês têm a chance de aliviar a tensão de maneira saudável – olhou em volta, fixando o olhar reprovador em um após o outro. Alguns concordaram. Barbie levantou a mão.

 

– Sim, Lillemor? – ela baixou a mão.

 

– Em primeiro lugar, meu nome não é Lillemor, agora é Barbie – disse, fazendo um beicinho carrancudo. E então sorriu. – Mas eu só queria dizer que acho isso incrivelmente legal! Todos nós temos a chance de nos sentarmos aqui e falar o que pensamos. Nunca tivemos isso no Big Brother.

 

– Ah, vá se foder – disse Uffe, afundando-se na cadeira e encarando Barbie. O sorriso dela desapareceu, e ela baixou os olhos.

 

– Eu acho isso muito bem colocado – Lars disse, tentando encorajá-la. E vocês terão a oportunidade de fazer terapia individual, bem como em grupo. Acho que vamos concluir a parte grupal agora, então você e eu... Barbie, podemos começar a terapia individual. Tudo bem?

 

Ela ergueu os olhos e sorriu outra vez.

 

– Sim, eu adoraria. Tenho toneladas de coisas que preciso contar.

 

– Tudo bem, então – disse Lars, sorrindo de volta para ela. – Sugiro que a gente vá para trás do cenário, para o quarto dos fundos, a fim de podermos conversar sem sermos perturbados. E então vou conversar com um de cada vez, na ordem do círculo. Depois de Barbie vem Tina, depois Uffe e assim por diante. Está bom assim? – ninguém respondeu, o que Lars tomou com um sim.

 

Assim que a porta se fechou atrás de Barbie e Lars, eles começaram a falar. Todos exceto Jonna, que, como sempre, preferia o silêncio.

 

– Que monte de bosta – Uffe zombou, batendo no joelho.

 

Mehmet o olhou irritado.

 

– O que quer dizer? Eu acho bom. Você, como a gente, fica fodido depois de algumas semanas nesses programas. Eu acho legal que, uma vez na vida, alguém esteja pensando no elenco. Querem que a gente fique bem.

 

– Querem que a gente fique bem – Uffe imitou-o com voz estridente. – Você é um boiola, Mehmet, tá ligado? Você devia ter um daqueles programas de saúde na TV. Ficar lá sentado de roupinha justa e fazendo ioga ou sei lá que porra de nome tem aquilo.

 

– Não ligue pra ele, só está sendo um babaca – disse Tina, encarando Uffe, que voltou sua atenção para ela.

 

– Que merda você tá falando aí, sua vaca da porra? Acha que é muito esperta, não? Se gabando das boas notas que tira e quantas palavras bonitas você sabe. Você acha que é melhor que todos nós. E agora acha que vai ser uma estrela pop também – de sua risada transbordava desdém e ele olhou em volta, buscando apoio do grupo. Ninguém respondeu. Mas ninguém protestou também, então ele prosseguiu:– Você acredita mesmo nessa merda? Você só está fazendo todo mundo passar vergonha, incluindo você mesma. Ouvi dizer que você falou com eles pra te deixarem cantar sua musiquinha patética hoje à noite, e eu estou doido pra ver as pessoas jogarem tomates podres em você. Cara, eu mesmo vou lá ficar na primeira fila pra tacar alguns.

 

– É melhor você calar a boca, Uffe – Mehmet disse, fuzilando-o com o olhar. – Você é burro e nojento e está com inveja porque a Tina tem talento, enquanto tudo que você tem é uma curta carreira como um idiota de reality show. Depois disso, você vai voltar para um armazém e vai carregar caixas o dia inteiro.

 

Uffe riu de novo, mas dessa vez soou nervoso. Havia um fundo de verdade nas palavras de Mehmet, o que fez surgir um desconforto nas entranhas de Uffe. Ele, porém, afugentou a sensação.

 

– Não precisa acreditar em mim se não quiser. Mas vocês verão por si mesmos, hoje à noite. Os caipiras dessa cidade vão chorar de rir.

 

– Eu te odeio, Uffe, só quero que saiba disso – Tina levantou-se com lágrimas nos olhos e deixou o grupo. Uma câmera a seguiu. Ela começou a correr para fugir, mas era impossível escapar das câmeras. Seus olhos vorazes estavam em toda parte.

 

Patrik não conseguia se concentrar em mais nada. Pensamentos do acidente de carro o assombravam. Se pelo menos conseguisse apontar o que lhe parecia tão familiar a respeito da morte de Marit. Pegou a pasta que continha todos os papéis da investigação e sentou-se para verificar tudo novamente. Não tinha ideia de quantas vezes já havia feito aquilo. Como sempre quando estava imerso em pensamentos, ele falava sozinho.

 

– Hematomas ao redor da boca, níveis extremamente altos de álcool no sangue em um indivíduo que nunca bebeu, de acordo com seus parentes – correu os dedos pelo relatório da autópsia, em busca de algo que pudesse ter deixado passar em leituras anteriores. Mas nada parecia irregular. Patrik pegou o telefone e discou um número que sabia de cor.

 

– Olá, Pedersen, aqui é Patrik Hedström, da polícia de Tanumshede. Você teria cinco minutos para examinar o relatório comigo mais uma vez?

 

Pedersen concordou e então Patrik prosseguiu:

 

– Esses hematomas ao redor da boca, pode me dizer quando ocorreram? Ok – tomava notas nas margens, enquanto o outro falava.– E o álcool, pode dizer algo sobre o tempo que levou para ela ingerir? Não, não digo em que hora do dia; bem, isso também, talvez. Mas ela ficou bebendo por muito tempo ou virou tudo ou... Isso mesmo, é isso que eu quero dizer – ouvia com atenção e anotava furiosamente.– Interessante, muito interessante. Encontrou mais alguma coisa que consideraria estranha durante a necropsia? – Patrik escutou e não escreveu nada por um momento. Percebeu que apertava o fone contra

a orelha com tanta força que começava a machucar e então diminuiu a

pressão.– Resquícios de fita em torno da boca? Sim, essa é sem dúvida uma informação importante. Mas não há mais nada que possa me dizer? – suspirou diante das respostas pouco informativas que estava recebendo e apertou o dorso do nariz, frustrado.– Está bem, acho que é só isso então – Patrik desligou o telefone relutantemente. Ele realmente esperava por mais. Pegou as fotos da cena do crime e começou a estudá-las, procurando alguma coisa, qualquer coisa, em sua memória teimosa. A parte mais irritante é que ele nem tinha cem por cento de certeza que havia de fato algo a ser lembrado. Talvez só estivesse imaginando coisas. Talvez fosse uma forma estranha de déjà-vu. Talvez ele tivesse visto algo na TV ou em um filme ou ouvido algo que estivesse fazendo seu cérebro procurar alguma coisa que não existia. Mas quando estava a ponto de deixar de lado os papéis, frustrado, um lampejo ocorreu entre as sinapses, em seu cérebro. Inclinou-se para inspecionar mais de perto a foto que tinha nas mãos e uma sensação de triunfo lhe assomou. Talvez não estivesse tão fora de curso, afinal. Talvez algo específico tenha pairado nos cantos de sua memória, no fim das contas. Em poucos passos, estava na porta. Era hora de ir ao arquivo.

 

Com indiferença, Barbie deixou passar as mercadorias pela esteira do caixa, enquanto lia os códigos de barras. Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela as afastou com uma piscadela, obstinadamente. Não queria passar vergonha por ficar chorando.

 

A conversa daquela manhã remexeu com tantas emoções. Todo aquele lodo que estava assentado lá no fundo por tanto tempo agora subia à superfície. Olhou para Jonna sentada no caixa em frente. De certa forma, ela a invejava. Talvez sua não depressão ou o ato de se cortar. Barbie nunca seria capaz de passar uma faca na própria carne daquele jeito. O que ela invejava era a óbvia indiferença de Jonna com relação ao que os outros pensavam. Para Barbie, nada era mais importante do que sua aparência e como era vista pelos outros. Não fora sempre assim, como as fotos do tempo de escola desenterradas por aquele tabloide maldito tinham revelado. Os retratos mostravam sua aparência quando era pequena e magricela, com um aparelho gigante, seios quase inexistentes e cabelo escuro. Ficou devastada quando as imagens foram mostradas nos anúncios do jornal. Mas não pela razão que todos imaginavam. Não porque estivesse preocupada que as pessoas soubessem que tanto a cor de seu cabelo quanto seus seios eram falsos. Não era tão estúpida. Mas a magoava ver o que ela não tinha mais. Seu sorriso feliz. Cheio de autoconfiança. Ela era feliz como era, segura e satisfeita com sua vida. Mas tudo mudou no dia em que seu pai morreu.

 

Ela e seu pai se davam muito bem. Sua mãe havia morrido de câncer quando Barbie era pequena. Mas de alguma forma, seu pai conseguira fazê-la sentir-se completa apesar da morte da mãe; ela nunca sentiu falta de nada. Sabia que houvera altos e baixos por um tempo, quando era um bebê, logo depois de sua mãe morrer e quando “Todo o Mal” aconteceu. Ela soube de tudo, mas seu pai pagara o preço, aprendera a lição e seguira em frente para construir uma nova vida para si e para sua filha. Até aquele dia em outubro.

 

Pareceu tão irreal quando aconteceu. Em apenas um instante, toda a sua vida fora erradicada e tudo lhe fora tirado. Não tinha mais família, nenhum parente a quem recorrer, então foi relegada a um mundo de famílias adotivas e situações de moradia temporária. Havia aprendido lições que preferia não ter conhecido. A autoconfiança que tinha desapareceu. Seus amigos não conseguiam entender que ela havia mudado por dentro por conta do que acontecera. Aquele dia lhe tirou algo e ela jamais seria a mesma. Seus amigos tentaram apoiá-la por um tempo, mas eventualmente a deixaram à própria sorte.

 

Foi quando o desejo de ser aceita entre os meninos mais velhos e as meninas duronas começou. Não bastava mais ser uma moleca qualquer. O nome Lillemor também não combinava mais com ela. Então começou a se virar com o que tinha e com o que podia pagar. Tingiu os cabelos de loiro no banheiro de um dos namorados que passaram por sua vida. Substituiu suas roupas velhas por novas: mais justas, mais curtas, mais sedutoras. Porque havia descoberto qual seria a porta para sair da miséria. Sexo. Isso lhe traria atenção e bens materiais. Daria-lhe uma chance de sobressair na multidão. Um namorado tinha bastante dinheiro e financiou os seios. Ela os teria preferido um pouco menores, mas era ele quem estava pagando e foi dele a decisão. Ele queria tamanho GG e foi o que conseguiu. Assim que terminou a transformação física, era apenas uma questão da embalagem. O namorado que veio após o financiador dos seios a chamava de “bonequinha Barbie” e isso resolveu o problema do nome. E então tudo que ela teria que decidir era o melhor meio para lançar sua nova imagem. Começou com pequenos trabalhos como modelo, que exigiam pouca roupa, ou nenhuma. Mas sua grande chance foi o Big Brother. Ela se tornou a grande estrela do programa. E não a incomodava nem um pouco que toda a população da Suécia pudesse observar sua vida sexual a partir da sala de suas casas. Quem se importava? Ela não tinha família para repreendê-la por causar-lhes vergonha em público. Estava sozinha no mundo.

 

Ela quase sempre era bem-sucedida em não pensar no que se passava no íntimo de Barbie. Havia empurrado Lillemor para tão longe, para o fundo de sua consciência, que a menina mal existia. Havia feito o mesmo com a memória de seu pai. Não podia se permitir lembrar dele. Se tinha que sobreviver, o som de sua risada ou o toque de sua mão em sua face não podiam mais existir na vida que agora levava. Isso a magoaria demais. Mas a conversa daquela manhã com aquele psicólogo tocou em cordas que ainda vibravam insistentemente dentro dela. E Barbie não parecia ser a única a ter tal reação. O clima ficou desanimado depois que cada participante entrou na salinha atrás do cenário e se sentou de frente para o psicólogo. Às vezes ela sentia que toda a negatividade era dirigida a ela e ocasionalmente tinha a sensação de que alguns dos participantes a olhavam com malícia. Mas sempre que se virava para ver de onde vinha aquela sensação incômoda, o momento havia passado.

 

Ao mesmo tempo, algo se agitava incansavelmente dentro dela. Algo em que Lillemor tentava se concentrar. Mas Barbie se forçava a esquecer. Algumas coisas ela simplesmente não podia deixar sair.

 

Compras continuavam passando pela esteira, no caixa à sua frente. Não acabava nunca.

 

Pesquisar os arquivos era, como sempre, um trabalho tão chato quanto árduo. Nada parecia estar no lugar certo. Patrik sentou-se de pernas cruzadas no chão, com caixas ao seu redor. Sabia que tipo de documento procurava e, em um momento de tolice, achou que seria fácil encontrá-lo em uma caixa identificada “Material Educativo”. Mas não teve essa sorte. Ouviu passos na escada e olhou para cima. Era Martin.

 

– Ei, Annika disse que te viu vindo para cá. O que está fazendo? – Martin olhou admirado para todas as caixas espalhadas em volta de Patrik.

 

– Estou procurando por anotações que fiz quando fui a uma conferência em Halmstad, alguns anos atrás. Qualquer um pensaria que teriam sido arquivadas com alguma lógica, mas não. Algum idiota mexeu em tudo, não há um padrão – jogou mais uma pilha de papéis dentro de uma caixa que também não havia sido arquivada no lugar correto.

 

– É, Annika vem ralhando conosco há algum tempo por não mantermos nossos documentos em ordem aqui. Ela diz que arquiva tudo no lugar certo, mas que os documentos aparentemente criam pés.

 

– Eu não entendo por que as pessoas não podem simplesmente colocar as coisas de volta no lugar em que as encontraram. Eu sei que coloquei as anotações numa pasta que arquivei aqui – apontou para a caixa identificada como “Material Educativo” e prosseguiu. – Mas agora elas não estão aqui. Então a pergunta é: em que droga de caixa estão? “Desaparecidos”, “Casos Solucionados”, “Casos Não Solucionados” etc. Seu palpite é tão bom quanto o meu – e varreu com um gesto a salinha cheia de caixas, que iam do chão ao teto.

 

– Bem, o que mais me fascina é o fato de você ter aquivado suas anotações da conferência. As minhas ainda estão no meu escritório, em uma pilha qualquer.

 

– Está bem, acabei de descobrir que eu provavelmente deveria ter feito o mesmo. Mas fui ingênuo o bastante de achar que elas poderiam ter utilidade para mais alguém – Patrik suspirou e pegou outra pilha de documentos e começou a folheá-la. Martin sentou-se a seu lado no chão e pegou uma caixa também.

 

– Eu vou te ajudar. Assim será mais rápido. O que estou procurando? Que tipo de conferência foi? E por que está procurando suas anotações, afinal?

 

Patrik não olhou para ele, apenas respondeu:

 

– Como eu disse, foi uma conferência em Halmstad, em 2002, se me lembro bem. Tinha algo a ver com casos estranhos que ainda inspiravam perguntas e permaneciam sem solução.

 

– E? – disse Martin, esperando mais informações.

 

– Bem, eu te digo mais quando encontrarmos as anotações. Até agora é uma vaga ideia, então quero refrescar a memória antes de dizer mais.

 

– Está bem – disse Martin. Continuava curioso, mas conhecia Patrik bem o bastante para perceber que não seria nada bom pressioná-lo.

 

De repente, Patrik levantou a cabeça e sorriu de maneira astuta.

 

– Mas eu te digo se me disser...

 

– Te dizer o quê? – Martin perguntou, surpreso, mas, quando viu o sorriso de Patrik, compreendeu aonde seu colega queria chegar. Ele riu e disse:

 

– Está bem. Fechado. Quando você me disser, eu te direi.

 

Depois de uma hora de busca infrutífera, Patrik deu um grito.

 

– Achei! – puxou alguns papéis de dentro de uma pasta de plástico.

 

Martin reconheceu a caligrafia de Patrik e tentou ler de ponta-cabeça o que estava escrito. Mas não adiantou e teve que esperar, frustrado, enquanto Patrik corria os olhos pelas anotações. Depois de ler três páginas, seu dedo indicador parou repentinamente no meio da folha. Uma ruga profunda se formou entre suas sobrancelhas, e Martin tentou mentalmente fazê-lo ler mais depressa. Após o que pareceu uma eternidade, Patrik levantou a cabeça, triunfante.

 

– Está bem, seu segredo primeiro – disse.

 

– Ah, qual é! Estou tão curioso que acho que vou morrer – Martin riu e tentou arrancar os papéis da mão de Patrik. Mas seu colega estava preparado para aquela manobra e puxou-os para longe, segurando-os no ar.

 

– Pode esquecer. Primeiro você, depois eu.

 

Martin suspirou.

 

– Você é um provocador, sabia? Está bem, é o que você pensou. Pia e eu vamos ter um bebê. No fim de novembro – e levantou um dedo, em advertência. – Mas você ainda não pode contar pra ninguém! Estamos apenas na oitava semana e queremos manter segredo até pelo menos a décima segunda.

 

Patrik ergueu as duas mãos. Os papéis que segurava na mão direita farfalharam.

 

– Prometo. Meus lábios estão selados. Mas parabéns, pelo amor de Deus!

 

Martin sorriu de orelha a orelha. Por várias vezes, esteve a ponto de contar a Patrik. Estava ansioso para espalhar a boa notícia, mas Pia queria esperar o crítico primeiro trimestre passar a salvo. Então ele poderia contar às pessoas. Era um alívio finalmente contar a alguém.

 

– Está bem, agora você já sabe. Então me diga por que estamos aqui há uma hora, cobertos de poeira.

 

Patrik ficou sério de imediato. Entregou o documento a Martin, apontou o trecho em que ele deveria começar a ler e esperou. Depois de algum tempo, Martin ergueu os olhos, espantado.

 

– Agora não há dúvida de que Marit foi assassinada – disse Patrik.

 

– Não, acho que não.

 

Uma pergunta tinha que ser respondida agora. Mas ela só levantava ainda mais questões. Eles tinham toneladas de trabalho à frente.

 

Ele estava batendo as assadeiras com tanta força que o barulho podia ser ouvido lá no balcão da loja. Mehmet enfiou a cabeça nos fundos da padaria.

 

– Que porra está fazendo? Destruindo o lugar ou o quê?

 

– Vá se foder! – Uffe bateu as assadeiras na mesa de propósito.

 

– Desculpe – disse Mehmet, erguendo as mãos. – Acordou com o pé esquerdo, não foi?

 

Uffe não respondeu. Empilhou as assadeiras e sentou-se. Estava tão cansado de tudo aquilo. Sodding Tanum não estava sendo como ele esperava, pelo menos não até agora. Ainda não tinha caído a ficha de que ele ia mesmo ter que trabalhar. Isso era um inconveniente e tanto. Era a primeira vez que precisava ter um dia de trabalho honesto. Algumas invasões, vários roubos e coisas assim eram o que previamente havia lhe garantido uma vida de desempregado. Não uma vida de luxo, no entanto; Uffe jamais ousaria fazer mais que pequenos assaltos, mas eles traziam mais que o bastante para mantê-lo longe da labuta. E então ele veio parar naquele lugar. Até a vida na ilha tinha sido mais fácil. Lá ele podia ficar deitado e tomar sol o dia todo, falando besteira com os outros membros do elenco. Passou fome de verdade, mas a falta de comida não o incomodou como ele previa.

 

Mesmo os outros participantes de Sodding Tanum não eram o que ele imaginava. Eram todos uns idiotas. Mehmet, que era tão confiável. Trabalhava como um escravo na padaria, de modo totalmente voluntário. Havia o Calle, que só estava no programa para continuar a ser o rei da cena noturna de Stureplan. Tina, que era tão convencida, tão superior, que o fazia ter vontade de socá-la. E Jonna, que perdedora de merda. Toda aquela história de se cortar, ele não entendia. E por último, mas não menos importante, Barbie. O rosto de Uffe se enevoou. Ele tinha algumas coisas a dizer para aquela putinha barata. Se Barbie achava que podia conseguir tudo o que quisesse, era bom pensar de novo. As coisas que ouvira de manhã o faziam querer ter uma conversinha com a rainha do silicone.

 

– Uffe, está planejando trabalhar um pouco hoje ou não? – Simon dirigiu-lhe um olhar severo e, com um suspiro, Uffe levantou-se da cadeira. Sorriu para a câmera na parede e foi para o balcão. Teria que se conformar e trabalhar um pouco. Mas à noite... à noite ele e Barbie iriam ter uma conversa séria.

 

Quando Mellberg estava saindo da delegacia, parou rapidamente no escritório de Hedström. Patrik e Martin estavam lá. Pareciam muito ocupados. Havia papéis espalhados por toda a mesa e Martin escrevia algo em seu computador. Patrik falava ao telefone e tinha o fone preso entre sua orelha e seu ombro, para que pudesse ter acesso aos papéis à sua frente ao mesmo tempo. Por um momento, Mellberg considerou ir até lá descobrir o que era tão urgente. Mas decidiu não ir. Tinha coisas mais importantes a fazer. Como ir para casa e se arrumar para o jantar com Rose-Marie. Iriam se encontrar às sete horas no restaurante, o que significava que tinha duas horas para tornar-se o mais apresentável possível.

 

Ele arfava ao fim da curta caminhada até sua casa. Não estava em sua melhor forma, tinha que admitir. Quando entrou em seu apartamento, por instante viu tudo com os olhos de um estranho. Aquilo não ia dar certo, de maneira nenhuma. Até ele podia perceber isso. Se ele queria se dar bem e trazê-la para um pequeno interlúdio noturno em sua casa, algo teria que ser feito. Seu corpo todo protestou à mera ideia de fazer qualquer tipo de limpeza. Por outro lado, ele raramente tinha um bom incentivo para fazê-lo. Surpreendeu-se em como parecia importante causar boa impressão na mulher com quem ia sair naquela noite.

 

Uma hora depois, estava ofegante quando se sentou no sofá. As almofadas tinham sido afofadas pela primeira vez desde que havia se mudado para lá. De repente, percebeu por que limpava a casa tão raramente. Era cansativo demais. Mas, quando olhou para o apartamento, pôde ver que a limpeza tinha feito maravilhas. O lugar não parecia mais tão desmazelado. Ele tinha alguns móveis bons, que herdara dos pais. Retirada a camada de poeira que normalmente a cobria, a mobília estava bem bonita. Ele também havia conseguido arejar o cheiro de mofo que normalmente pairava no ar, originário de restos de comida e outras coisas pouco higiênicas. A pia, que normalmente estava cheia de pratos sujos, brilhava ao sol de primavera. Agora ele até podia imaginar trazer uma mulher ali.

 

Mellberg olhou para o relógio e levantou-se abruptamente. Uma hora apenas até seu encontro com Rose-Marie e ele estava suado e coberto de poeira. Teria que se tomar banho primeiro. Passou os olhos por suas roupas em busca de algo para vestir. As opções não eram tantas quanto gostaria. Com um olhar mais apurado, a maior parte de suas camisas e calças tinha manchas e não passava perto de um ferro havia muito tempo. Finalmente, por um processo de eliminação, vestiu uma camisa listrada de azul e branco, calça preta e uma gravata vermelha com um desenho do Pato Donald. Essa última ele achou uma ótima ideia. E vermelho lhe caía bem, se é que podia dizer isso. A calça, entretanto, pertencia à categoria das não passadas, e ele pensou em como resolver esse problema. Procurou pelo apartamento todo, mas não havia ferro. Seu olhar pousou no sofá e uma brilhante ideia lhe ocorreu. Arrancou as almofadas dos assentos e colocou a calça o mais reta possível ali. É claro que debaixo das almofadas não estava lá tão limpo, mas ele poderia lidar com isso mais tarde. Eram mais fiapos e migalhas, que poderiam ser espanados. Colocou as almofadas no lugar e sentou-se por cinco minutos. Se passasse mais cinco minutos no sofá depois de sair do chuveiro, provavelmente pareceria que a calça tinha acabado de ser passada. Sorte dele não ser um daqueles solteiros inúteis, pensou com satisfação. Ainda era capaz de encontrar uma boa solução para qualquer problema.

 

As pessoas começaram a se dirigir para o centro comunitário, onde iria acontecer o baile. As camas do elenco haviam sido retiradas e os participantes tiveram que guardar seus objetos pessoais. Ninguém estava autorizado a entrar no salão ainda, por isso a fila crescia e serpenteava pelo estacionamento. As garotas estavam congelando e pulando no lugar para se aquecerem. O vento frio de primavera estava fazendo seu melhor para deixá-las arrependidas por estarem usando suas saias mais curtas e suas blusas mais decotadas. A única coisa que todas as pessoas na fila tinham em comum era a expressão de expectativa no rosto. Aquele era o evento mais excitante que acontecia em Tanumshede em muito tempo. Jovens vinham da comunidade toda e mesmo de fora da cidade, de Strömstad e de Uddevalla. Vigiavam a porta que logo se abriria. Lá dentro estavam seus heróis, seus ídolos. Tinham conseguido o que todos podiam apenas sonhar. Tornar-se uma celebridade. Ser convidado para festas com outras celebridades. Ser visto na TV. Então, talvez nessa noite, alguém da cidade pudesse ter a chance de alcançar um pouco desse poder. Fazer algo que levaria as câmeras a apontar para ele. Como aquela garota em Sodding Töreboda. Ela tinha conseguido ficar com Andreas, do The Bar, e então apareceu em vários episódios do programa. Imagine conseguir fazer algo do tipo. As garotas arrumavam as roupas nervosamente, tirando da bolsa gloss para os lábios, para aplicar mais uma camada. Ajeitavam os cabelos e punham mais spray fixador, enquanto tentavam ver o resultado em espelhinhos de bolso. A tensão era palpável.

 

Fredrik Rehn riu quando viu a fila através da janela.

 

– Vejam aqui, meninos e meninas. Aí vêm os figurantes. Temos que aproveitar essa noite, está bem? Não se segurem. Bebam e se divirtam e façam tudo o que tiverem vontade – seus olhos se estreitaram. – Só lembrem-se de fazer o que quiserem em frente às câmeras. Não quero saber que alguém fugiu para se divertir sozinho. Isso poderia gerar um processo por quebra de contrato.

 

– Porra, você é pior que o Drinkenstjerna – disse Calle. Vários deles riram, concordando. Apenas Jonna nunca tinha ido a nenhuma de suas peregrinações por bares.

 

Fredrik sorriu, mas seus olhos estavam sérios como nunca.

 

– Bem, eu não vou entrar em pormenores, mas sei bem o queremos que aconteça aqui. E isso é entretenimento. Vocês foram escolhidos porque sabem como agitar um lugar e essa é mais uma tarefa de vocês aqui. Nunca se esqueçam. Não estamos jogando uma porrada de dinheiro em uma produção como essa só para os seis se divertirem e beberem de graça e melhorarem sua imagem nas baladas. Vocês estão aqui para trabalhar.

 

– Então que porra a Jonna está fazendo aqui? – Uffe riu e olhou em volta, buscando a aprovação do grupo. – Ela não conseguiria agitar nem um asilo – sua risada áspera era familiar aos outros, mas Jonna nem se incomodou em olhar para ele. Manteve os olhos fixos em seu colo.

 

– Jonna é incrivelmente popular entre as garotas de catorze a dezenove anos, nos índices etários. Muitas delas se identificam com ela. É por isso que a queremos aqui – Mas Fredrik não podia deixar de concordar com Uffe. A garota era um buraco negro social. Tão deprimida. A decisão de incluí-la fora tomada contra sua vontade e agora ele tinha que viver com isso. – Então, ficou claro para todos o que é importante essa noite? Festa, festa, festa! – ele apontou para a mesa de bebidas que estava toda enfeitada. – E vamos todos aplaudir Tina hoje, quando ela cantar sua música. Certo? – e encarou Uffe, que simplesmente bufou.

 

– Tá certo, tá certo, tanto faz. E aí, podemos começar a beber ou não?

 

– Por favor – disse Fredrik, sorrindo. Seus dentes brilhavam em um branco deslumbrante. – Vamos fazer um grande programa essa noite! – e fez sinais de positivo com as mãos.

 

Suas observações receberam murmúrios cheios de consentimento. E então eles atacaram a mesa de bebidas.

 

As pessoas em fila lá fora começaram a entrar lentamente no salão.

 

Anna estava fazendo o jantar quando Patrik chegou em casa. Erica estava sentada com as crianças na sala assistindo à TV. Maja agitava os braços de prazer e Emma e Adrian pareciam estar em transe. O estômago de Erica roncou ruidosamente, e ela inspirou vorazmente o aroma de comida tailandesa que vinha da cozinha. Anna havia prometido fazer algo que fosse tanto delicioso quanto light e, a julgar pelo cheiro, estava cumprindo o primeiro quesito.

 

– Olá, querido – disse Erica sorrindo, quando Patrik entrou no recinto. Ele parecia cansado. Um pouco despenteado também, quando ela olhou mais de perto. – O que fez hoje? Você está meio... desmazelado – ela disse, apontando para a camisa dele.

 

Patrik olhou para as próprias roupas sujas e suspirou. Começou a desabotoar a camisa.

 

– Estive em nosso arquivo poeirento desenterrando algo. Vou tomar um banho rápido e vestir roupas limpas. Te conto mais depois.

 

Erica o viu desaparecer escada acima, na direção do quarto. Ela foi juntar-se a Anna na cozinha.

 

– Patrik chegou? Pensei ter ouvido a porta – Anna disse, sem tirar os olhos das panelas.

 

– Sim, chegou. Mas subiu para tomar um banho e trocar de roupa. Parece que teve um dia duro no trabalho.

 

Anna ergueu os olhos.

 

– Pode me ajudar a arrumar a mesa? Aí estará tudo pronto quando ele descer.

 

O timing foi perfeito. Patrik desceu as escadas, com os cabelos molhados e vestindo roupas confortáveis, assim que Anna colocou a panela maior na mesa.

 

– Humm, que cheiro bom – ele disse, oferecendo um sorriso para Anna. Toda a atmosfera ali estava diferente agora que ela havia saído de seu estado depressivo.

 

– É um curry tailandês, feito com leite de coco light. Com arroz e vegetais cozidos na panela wok.

 

– Por que essa compulsão repentina por uma dieta saudável? – disse Patrik, cético, já duvidando de que a comida seria tão saborosa quanto perfumada.

 

– Bem, sua futura noiva expressou um desejo de que vocês dois estejam fantásticos quando caminharem em direção ao altar. Então, o “Plano Fantástico” começa agora.

 

– Bem, nisso você tem razão – disse Patrik, puxando a camiseta para baixo a fim de esconder a protuberância que tinha começado a se formar ao longo dos últimos anos. – E as crianças? Não vão comer com a gente?

 

– Não, elas estão se divertindo na sala – disse Anna. – É nossa chance de ter um pouco de paz e silêncio.

 

– Mas e Maja? Ela consegue se cuidar sozinha?

 

Erica riu.

 

– Que mãezona você é. Ela vai ficar bem por um tempo. E pode acreditar, Emma vai dar um grito se Maja fizer algo errado.

 

Bem nessa hora, ouviram uma voz estridente vinda da sala.

 

– Ericaaaa! Maja está mexendo no vídeo!

 

Patrik riu e se levantou.

 

– Eu cuido disso. Vocês duas, fiquem sentadas e sirvam-se.

 

Podiam ouvi-lo ralhando com Maja sem se esquecer de lhe dar um beijo depois. Até os mais velhos ganharam um, e ele parecia um pouco mais relaxado quando voltou e sentou-se.

 

– E então? No que ficou trabalhando tão arduamente hoje?

 

Patrik contou por cima o que havia acontecido. Tanto Erica quanto Anna largaram os garfos e o encararam, fascinadas pelo que ele contava. Erica foi a primeira a falar.

 

– Mas qual é a conexão? E como vai proceder?

 

Patrik terminou de mastigar antes de responder.

 

– Martin e eu ficamos a tarde toda fazendo algumas ligações para coletar informações. Na segunda-feira, queremos chegar ao fundo dessa história.

 

– Está de folga nesse fim de semana? – Erica disse, alegremente surpresa. Patrik havia passado fins de semana demais trabalhando.

 

– Sim, dessa vez estou. E as pessoas com quem tenho que conversar não estarão disponíveis até segunda-feira, de qualquer maneira. Então, estou à sua disposição nesse fim de semana, meninas – deu um sorriso aberto e Erica não resistiu e sorriu também. Parecia que haviam se encontrado pela primeira vez no dia anterior e ainda assim tinha a impressão de que sempre foram um casal. Às vezes ela se esquecia de que um dia já tivera uma vida sem Patrik. E em poucas semanas estariam casados.

 

Na sala, ouviu a filhinha falando em tatibitate. Agora que Anna estava se recuperando, Erica podia curtir a vida novamente.

 

Rose-Marie já estava sentada à mesa quando Mellberg chegou, dez minutos atrasado. Acabou não sendo tão fácil quanto planejara espanar a calça depois de “passá-la” debaixo das almofadas do sofá da sala. E um chiclete ficara grudado dos fundilhos; foi necessária toda a sua inventividade e uma faca afiada para desgrudá-lo. O tecido estava um pouco esgarçado após a utilização da faca, mas ele colocou o paletó por cima e ela provavelmente não perceberia. Deu uma última olhada em si mesmo no vidro de uma moldura para assegurar-se de que tudo estava em ordem. Essa noite ele tivera cuidado especial de ajeitar artisticamente as mechas no topo de sua cabeça. Nem um pedacinho de sua careca reluzente podia ser visto. Pensou satisfeito que estava envelhecendo com dignidade.

 

Surpreendeu-se novamente quando seu coração quase parou ao vê-la. Fazia muito tempo mesmo desde a última vez que havia batido desse jeito. O que havia nessa mulher de meia-idade e ligeiramente cheinha que o afetava tanto? Só conseguiu pensar nos olhos dela. Eram os mais azuis que ele já vira e eram mais penetrantes por conta do tom avermelhado de seus cabelos. Ele a olhava como em um transe, de início sem notar sua mão esticada. Então recuperou sua presença de espírito e encontrou-se fazendo uma mesura à moda antiga e beijando a mão de Rose-Marie. Por um momento, sentiu-se um idiota e não podia conceber de onde vinha esse impulso. Mas então viu que sua companhia para o jantar parecia apreciar o gesto, e ele sabia fazer as coisas com estilo.

 

– Que lugar agradável! Nunca estive aqui antes – ela disse suavemente, enquanto examinava o cardápio.

 

– É um estabelecimento de primeira classe, posso lhe assegurar – disse Mellberg, estufando o peito como se fosse ele o dono do restaurante.

 

– Sim, e a atmosfera daqui também é excelente – seus olhos absorviam todas as delícias do cardápio. Mellberg também estudava as opções e por um momento entrou em pânico quando viu os preços. Mas então seu olhar encontrou o de Rose-Marie por sobre os cardápios, e a agitação em seu estômago se acalmou. Em uma noite como essa, dinheiro não era problema.

 

Ela olhou através da janela, na direção do centro comunitário.

 

– Ouvi dizer que há uma festa lá hoje.

 

– Sim, são aquelas pessoas do reality show. Nós normalmente conseguimos evitar eventos desse tipo nessa região. Nossos colegas em Strömstad normalmente cuidam das opções de entretenimento por aqui, e também são eles que têm que lidar com a bebedeira e o vandalismo que se seguem.

 

– Acha que vai haver problemas? Pode mesmo tirar essa noite de folga do trabalho? – Rose-Marie mostrava-se preocupada.

 

O orgulho e o narcisismo de Mellberg transbordaram mais ainda. Era bom sentir-se importante na companhia de uma bela mulher. Aquilo quase nunca acontecia desde que tão rudemente fora transferido para Tanumshede. Por alguma razão, as pessoas acham difícil apreciar suas q reais qualidades ali.

 

– Tenho dois oficiais encarregados de ficar de olho naquela manobra publicitária essa noite – ele disse. – Então, podemos ter um bom jantar e nos divertir em paz e sossegadamente. Um bom chefe sabe como delegar, e eu admito que tenho um talento especial para isso.

 

Um sorriso de Rose-Marie confirmou que ela não duvidava que ele fosse um excelente chefe. Essa estava sendo uma noite muito agradável.

 

Mellberg olhou para o centro comunitário novamente. Então livrou a mente de tudo o que dissesse respeito a aquele evento. Martin e Hanna podiam cuidar disso. Havia assuntos mais aprazíveis que necessitavam de sua atenção.

 

Tina fez os poucos exercícios vocais que conhecia antes de subir ao palco. É claro que ela cantaria com playback; bastava que dublasse as palavras ao microfone. Mas nunca se sabe. Uma vez, em Örebro, o CD parou de repente e, como não havia ensaiado apropriadamente, ela teve que enrolar a letra até o fim, ao vivo. Não queria passar por isso nunca mais.

 

Sabia que os outros riam pelas suas costas. Estaria mentindo se dissesse que isso não a incomodava. Por outro lado, não podia fazer mais nada a não ser subir no palco e mostrar o que sabia fazer. Esta era sua grande chance de ter uma carreira como cantora. Queria cantar desde que era uma garotinha. Passara tantas horas em frente ao espelho dublando canções pop, usando como microfone sua corda de pular ou o que estivesse disponível. Com sua participação no The Bar, finalmente tivera uma chance de mostrar seu trabalho. Havia feito uma audição para o Idol antes de fazer o teste para o The Bar, mas aquela foi uma experiência que ainda doía. Os idiotas do júri acabaram com ela, e a cena fora reprisada várias vezes na TV. Até chegaram a brincar, fazendo uma comparação, que ela era tão ruim como cantora quanto Bill Clinton, o ex-presidente dos EUA, era em se manter fiel. No início, ela não compreendeu o que queriam dizer e ficou lá, com um sorriso estúpido no rosto. E aí aquele velho idiota, Clabbe, começou a vaiá-la e dizer que ela deveria ter vergonha de si mesma. Mandou-a ir para casa e se esconder debaixo do tapete. Não foi particularmente uma piada inteligente, mas pelo menos ela entendeu o que ele quis dizer. Mas a humilhação continuou. À beira das lágrimas, ela dirigiu-lhes um olhar atrevido e tentou fazer-lhes retirar o que haviam dito. Explicou que todo mundo sempre lhe dizia que ela tinha uma bela voz. Sua mãe e seu pai sempre a ouviam com lágrimas nos olhos. Diziam que tinham tanto orgulho dela. Nada jamais a havia preparado para ser tão brutalmente dispensada. Ela estava tão feliz mais cedo, naquela manhã, quando aguardava na fila e observava tudo, confiante na vitória. Tinha certeza de que estaria entre os escolhidos, um dos que fariam a jurada Kishti chorar. Tina selecionara uma música que sabia que ia impressioná-los: “Without you”, de seu ídolo, Mariah Carey. Ela daria tudo de si e deixaria o júri de boca aberta. E então começaria uma nova vida. Festas com celebridades e a histeria comum ao Idol. Turnês de verão e clipes na MTV, exatamente como Justin Bieber. Tudo o que tinha que fazer era ir à audição e dominar a competição. Mas tudo deu tão errado. Em vez disso, ela foi rejeitada, uma vez atrás da outra, humilhada e desprezada.

 

Quando os produtores do The Bar telefonaram, foi um presente dos céus. Era uma oportunidade que ela não queria deixar passar. Depois de um tempo, conseguiu descobrir o que a havia feito fracassar no Idol. Eram seus seios, claro. Os jurados gostaram de sua música, mas não a queriam no programa porque sabiam que ela não faria sucesso se não tivesse o resto do equipamento necessário. E, para uma garota, aquilo significava seios grandes. Então, assim que as gravações do The Bar começaram, ela começou a economizar. Juntara cada centavo até finalmente ter o suficiente para pagar pela cirurgia de aumento de seios. Com os implantes tamanho G a postos, nada mais a impediria. Mas ela se recusava a clarear os cabelos. Apesar de tudo, era uma garota inteligente.

 

Leif cantarolava enquanto saía do caminhão de lixo. Normalmente, fazia a rota da área de Fjällbacka, mas tantos funcionários com gastroenterite significava que ele tinha que cobrir uma área maior que a usual. Mas ele não se importava. Adorava seu trabalho e lixo era lixo, tanto fazia onde era coletado. Ele até já havia se acostumado com o cheiro, ao longo dos anos. Não havia muito mais odores que pudessem fazê-lo torcer o nariz. Infelizmente, seu olfato amortecido o impedia de notar o aroma de pães de canela saídos do forno ou o perfume de uma mulher bonita, mas eram os ossos do ofício. Ele gostava de trabalhar e não havia muita gente que podia dizer isso.

 

Calçou suas enormes luvas de trabalho e pressionou um dos botões no painel de controle. O caminhão de lixo verde começou a bufar e soltar ar, enquanto o braço do guindaste era baixado. Normalmente ele ficava na boleia enquanto o guindaste pegava a lata de lixo e depositava o conteúdo diretamente na prensa, mas uma lata em particular não estava posicionada de maneira correta, então ele teve que arrastá-la manualmente.

 

Agora ele olhava o caminhão levantar a lixeira. Era bem cedo ainda e ele bocejou. Geralmente, não ia para cama tarde, mas tomara conta dos meninos na noite anterior, seus amados netos. Eles tinham sido autorizados a ficar acordados e bagunçar até um pouco mais tarde, mas valia a pena. Ser avô era a melhor parte de sua vida. Expirou e observou a névoa branca de seu hálito subir. Estava muito frio, mesmo já sendo metade de abril. Mas a temperatura ainda baixava de uma hora para a outra.

 

Leif deu uma olhada na vizinhança, que consistia em sua maior parte de casas de veraneio. Logo este lugar estaria lotado de gente, repleto de vida. Todas as latas de lixo teriam que ser esvaziadas. Latas cheias de cascas de camarão e garrafas de vinho branco que as pessoas teriam preguiça demais para levar aos centros de reciclagem. Todo ano era a mesma coisa. Todo verão. Ele bocejou novamente e olhou para a lata pendurada no ar, enquanto era rotacionada para despejar seu conteúdo no caminhão de lixo. Ficou espantado com o que viu. Que diabos?

 

Leif apertou o botão e parou a prensa. E então pegou seu celular.

 

Patrik deu um suspiro profundo. O sábado não estava tomando o rumo que esperava. Suspirou de novo, um pouco mais fundo dessa vez e olhou em volta, resignado. Vestidos, vestidos, vestidos. Tule e rosetas e lantejoulas e o demônio e a tia dele. Estava suando e puxou o colarinho do instrumento de tortura que vestia. Pinicava e estava apertado em lugares inesperados e era tão quente quanto uma sauna portátil.

 

– E então? – disse Erica, com olhar crítico. – Sente-se bem? Ele serve direitinho? – ela virou-se para a proprietária da loja, que ficara encantada quando Erica apareceu com o futuro marido ao seu lado. – Provavelmente precisará de ajustes, a calça está um pouco comprida – disse Erica, virando-se para Patrik outra vez.

 

– Nós vamos cuidar de tudo, não há problema algum – a mulher se ajoelhou e começou a pôr alfinetes nas barras.

 

Patrik fez uma careta.

 

– Isso aqui precisa ser tão... justo? – puxou o colarinho de novo. Parecia não ventilar.

 

– O paletó serve perfeitamente – cantarolou a mulher, o que era um feito, considerando que ela tinha dois alfinetes presos no canto da boca.

 

– Eu só acho que está um pouco agarrado – disse Patrik, apelando para Erica em busca de apoio.

 

Mas não foi bem-sucedido. Ela sorriu, o que em sua mente pareceu mais um sorrisinho malvado e respondeu:

 

– Você está estupendo! Você quer estar o mais estiloso possível quando nos casarmos, não quer?

 

Patrik olhou para sua futura esposa, pensativo. Ela estava apresentando tendências preocupantes, mas talvez uma loja de artigos para noivas tivesse esse efeito sobre todas as mulheres. Ele só queria sair de lá o mais rapidamente possível. Derrotado, percebeu que só havia um jeito de conseguir isso. Com muito esforço, forçou um sorriso, dirigido a ninguém em particular.

 

– Você está certa – ele disse – Eu acho que esse está começando a ficar muito, muito bom. Vamos levar esse!

 

Erica bateu palmas de prazer. Pela milésima vez, Patrik se perguntava o que havia com casamentos que fazia brilhar os olhos das mulheres. É claro que ele também estava ansioso para se casar, mas ficaria muito feliz com uma cerimônia bem menor. Não podia negar, no entanto, que a alegria nos olhos de Erica aquecia seu coração. Apesar de tudo, o que mais importava nesse mundo é que ela estivesse feliz. Se isso significava ter que vestir por um dia uma fantasia de pinguim que pinicava, ele o faria. Inclinou-se e beijou-a nos lábios

 

– Acha que Maja está bem?

 

Erica riu.

 

– Anna já tem dois filhos, acho que ela pode tomar conta de Maja.

 

– Mas agora ela tem três crianças para cuidar. E se ela tiver que correr atrás de Adrian ou Emma e Maja escorregar e...

 

Erica o interrompeu com um sorriso.

 

– Pode parar. Eu tomei conta dos três o inverno todo e correu tudo bem. Além disso, Anna disse algo sobre Dan ir até lá. Então não há com que você se preocupar.

 

Patrik relaxou. Erica estava certa. Mas ele sempre tinha medo de que algo acontecesse com sua filha. Talvez fosse por causa de tudo que já tinha visto no trabalho. Ele conhecia bem demais os terríveis eventos que podiam ocorrer com pessoas normais. E as coisas horrendas que podiam acometer crianças. Havia lido em algum alugar que, depois que você tem um filho, é como se passasse o resto da vida com uma pistola engatilhada apontada para sua cabeça. E havia um tanto de verdade nisso. O medo estava sempre presente, à espreita. O perigo estava em toda parte. Mas ele ia tentar parar de pensar nisso por ora. Maja estava bem. E ele e Erica teriam um raro dia só para eles.

 

– Quer almoçar em algum lugar? – ele sugeriu, depois que pagaram e agradeceram à mulher. O sol de primavera brilhava sobre eles e aquecia suas faces enquanto dirigiam-se para a rua.

 

– Parece uma ideia maravilhosa – Erica disse, feliz, pegando no braço dele. Caminhavam devagar pela rua comercial em Uddevalla, olhando os vários restaurantes à disposição. O escolhido foi um tailandês em uma das travessas. Eles estavam a ponto de adentrar no sedutor aroma de curry quando o telefone de Patrik tocou. Ele olhou para o visor. Droga, era da delegacia.

 

– Não me diga... – disse Erica, balançando a cabeça, aborrecida. Pela expressão no rosto dele, ela podia dizer de onde a chamada vinha.

 

– Eu preciso atender – ele disse. – Mas vá entrando, tenho certeza de que não é nada importante.

 

Erica resmungou, cética, mas fez o que ele pediu. Patrik esperou do lado de fora, ciente da antipatia em sua voz quando atendeu.

 

– Sim, aqui é Hedström – a expressão em seu rosto logo se transformou de irritação para incredulidade.

 

– Que diabos está me dizendo, Annika? Em uma lata de lixo? Há mais alguém indo para lá? Martin? Está bem. Voltarei agora mesmo. Mas estou em Uddevalla, então talvez demore um pouco. Só me dê o endereço exato – tirou uma caneta do bolso, mas não tinha papel, então anotou o endereço na palma da mão. Desligou e respirou fundo. Não estava nem um pouco ansioso para dizer a Erica que teriam que cancelar o almoço e voltar direto para casa.

 

Às vezes ele achava que se lembrava da outra, daquela que não dera nem tão gentil nem tão bonita quanto essa. A outra, cuja voz era tão fria e implacável. Como vidro duro e afiado. Por incrível que pareça, ele às vezes sentia saudade dela. Ele havia perguntado se a irmã se lembrava dela, mas ela só balançava a cabeça. Então ela pegava seu cobertor, aquele macio, com os ursinhos cor-de-rosa, e o abraçava apertado. E ele via que ela se lembrava, sim. A lembrança estava guardada em algum lugar lá dentro, em seu peito, não em sua cabeça.

 

Certa vez, ele tentara perguntar sobre aquela voz. Onde estava agora. A quem pertencia. Mas ela ficara tão chateada. Não havia mais ninguém, ela disse. Nunca houve alguém com a voz dura e afiada. Apenas ela. Somente ela. E então ela abraçava ele e a irmã. Ele sentia a seda da blusa contra seu rosto, a fragrância de seu perfume em suas narinas. Um cacho dos longos cabelos de sua irmã fazia cócegas em sua orelha, mas ele não ousava se mover. Não queria quebrar o encanto. Nunca mais perguntou. Era tão anormal ouvi-la soar tão aborrecida, tão perturbada, que ele não ousaria arriscar.

 

A única outra vez em que ele a entristeceu foi quando pediu para ver o que estava escondido lá fora. Ele não queria fazer isso, sabia que seria inútil, mas às vezes não conseguia se segurar. Sua irmã sempre o olhava com os olhos arregalados e assustados quando ele gaguejava a pergunta. O medo nela o fez se encolher, mas não podia evitar a indagação. Ela simplesmente saiu, como uma força da natureza, como se estivesse borbulhando dentro dele e quisesse vir à superfície, escapar.

 

A resposta era sempre a mesma. Primeiro o olhar decepcionado em seus olhos. Decepção porque, apesar dela dar-lhe tanto, dar-lhe tudo, ele ainda queria mais. Queria algo diferente. E então a resposta relutante. Às vezes, ela tinha lágrimas nos olhos quando respondia. Aquelas eram as piores vezes. Em geral, ela se ajoelhava, pegava o rosto dele entre suas mãos. Então vinha a mesma afirmação. De que era para o bem deles. Que pessoas como eles não podiam sair lá fora. Que tudo iria dar errado, para ele e sua irmã, se ela os deixasse sair pela porta.

 

E então ela trancava a porta com cuidado quando saía. E ele ficava lá, sentado, com suas perguntas, e sua irmã vinha abraçá-lo.

 

Mehmet debruçou-se para fora da cama e vomitou. Mal sabia se o vômito tinha caído no chão ou em algum tipo de recipiente, mas estava muito fora de si para se incomodar.

 

– Porra, Mehmet, isso é nojento – ele ouviu de longe a voz de Jonna e com os olhos semicerrados a viu sair correndo do quarto. Também não tinha energia para se importar com isso. A única coisa que enchia sua cabeça era a dor latejante em suas têmporas. Sua boca estava seca e tinha um gosto repulsivo de bebida choca e vômito. Tinha apenas uma vaga ideia do que havia acontecido na noite anterior. Lembrava-se da música, lembrava-se da dança, lembrava-se das garotas em trajes sumários se esfregando nele, desesperadas, repugnantes. Fechou os olhos para afastar as imagens, mas isso só as amplificava. A náusea brotou novamente e ele se debruçou para fora da cama outra vez. Mas agora só restava bile. Em algum lugar próximo, pôde ouvir

a câmera, zumbindo como uma abelha. Imagens de sua família giravam em sua mente. O pensamento de que eles poderiam vê-lo naquele estado tornou a dor de cabeça cem vezes pior, mas ele não podia fazer nada a respeito, além de cobrir a cabeça com as cobertas.

 

Fragmentos de palavras iam e vinham. Corriam por sua mente, mas, assim que ele tentava reuni-las para formar algo coerente, elas se dissolviam no nada. Ele tinha que se lembrar de alguma coisa. Ele tinha que captar algo. Palavras furiosas e perversas voando como flechas na direção de alguém? De várias pessoas? Dele? Droga, ele não conseguia se lembrar. Assumiu a posição fetal, pressionando contra a boca os punhos fechados contra a boca. As palavras começaram a vir novamente. Xingamentos. Acusações. Palavras horríveis ditas para magoar. Se ele lembrava bem, elas haviam conseguido seu objetivo. Alguém havia chorado. Protestado. Mas isso não ajudara em nada. As vozes cresciam, mais e mais altas. O som de um tapa. O inconfundível som de pele contra pele a uma velocidade que causaria dor. E havia causado. Um soluço lancinante, que mais parecia um uivo, penetrou sua névoa. Ele se encolheu mais um pouco na cama, debaixo das cobertas, tentando evitar as aparentes desconexas partículas que pulavam em sua mente. Não adiantou. Os fragmentos eram tão perturbadores, tão fortes, que nada parecia segurá-los. Eles queriam algo dele. Mas havia algo de que ele precisava se lembrar. Havia também algo de que ele não queria se lembrar. Pelo menos, era o que ele acreditava. Tudo estava confuso. E então a náusea tomou conta dele novamente. Jogou longe as cobertas e debruçou-se para fora da cama.

 

Mellberg estava deitado na cama, olhando para o teto. Essa sensação que tinha... Não conseguia definir exatamente de que tipo era. Era algo que ele não sentia havia muito tempo, de qualquer forma. Talvez fosse melhor descrevê-la como satisfação. Também não era um sentimento que ele devesse ter, visto que fora para a cama sozinho e acordara sozinho. Isso jamais esteve associado a um encontro bem-sucedido, em seu mundo. Mas as coisas haviam mudado desde que conhecera Rose-Marie. As coisas certamente haviam mudado. Ele havia mudado.

 

Havia tido uma noite tão prazerosa ontem. A conversa fluíra de maneira tão fácil. Eles haviam conversado sobre tudo entre o céu e a terra. E ele estava interessado no que ela tinha a dizer. Queria saber tudo sobre ela. Onde e como havia crescido, o que havia feito ao longo da vida, quais eram seus sonhos, de que tipo de comida gostava, a quais programas de TV assistia. Tudo, tudo, tudo. Em determinado momento, ele parara para olhar o reflexo dos dois na janela, rindo, fazendo brindes um ao outro, conversando. E mal se reconheceu. Nunca tinha visto aquele sorriso em seu rosto antes e tinha que admitir que lhe caía bem. E já sabia que o sorriso de Rose-Marie caía bem a ela também.

 

Cruzou as mãos atrás da cabeça e espreguiçou-se. O sol de primavera entrou pela janela e ele notou que deveria ter lavado as cortinas há muito tempo.

 

Eles haviam se dado um beijo de boa-noite do lado de fora do restaurante. Um pouco hesitante, um pouco cauteloso. Ele segurou os ombros dela com muita delicadeza e a sensação da superfície fresca e macia do tecido de encontro às pontas de seus dedos, combinada com a fragrância de seu perfume quando a beijou, foi a coisa mais erótica que já havia experimentado. Como ela podia ter um efeito tão forte sobre ele? Em um período tão curto.

 

Rose-Marie... Rose-Marie... Saboreou o nome. Fechou os olhos e tentou imaginar seu rosto. Haviam concordado em se ver logo. Ele se perguntou a que horas já poderia ligar para ela hoje. Pareceria muito abusado de sua parte? Muito ansioso? Mas que diabos, ou vai ou racha. Com Rose-Marie ele não precisava fazer joguinhos complicados. Olhou para seu relógio. Já se passara boa parte da manhã. Ela já devia estar de pé a essa hora. Ele esticou a mão para o telefone. Mas não conseguiu segurar o fone antes que tocasse. Viu que era Hedström que ligava. Não podia ser nada bom.

 

Patrik chegou ao local onde o corpo fora encontrado ao mesmo tempo que a equipe de investigadores criminais. Deviam ter vindo de Uddevalla mais ou menos à mesma hora em que pegou o carro a fim de levar Erica para casa. A viagem de volta para Fjällbacka fora bem melancólica. Erica ficou olhando pela janela a maior parte do caminho. Não brava, mas triste e decepcionada. E ele compreendia. Estava decepcionado e infeliz também. Eles haviam tido tão pouco tempo para si mesmo nos últimos meses. Patrik mal podia se lembrar da última vez que tiveram oportunidade de sentar e conversar, só os dois.

 

Às vezes, ele detestava seu trabalho. Em situações como essa, ele realmente se questionava por que havia escolhido uma profissão em que ele jamais tinha uma folga. A qualquer momento, podia ser chamado de volta à delegacia. O trabalho estava sempre a um telefonema de distância. Mas ao mesmo tempo, o trabalho dava tanta coisa. Antes de tudo, a satisfação de sentir que estava fazendo a diferença, pelo menos ocasionalmente. Ele nunca teria conseguido aguentar uma profissão em que fosse forçado a embaralhar papéis e fazer contas o dia todo. A polícia lhe dava um sentimento de propósito, de ser necessário. O problema, ou o desafio, era que ele também era necessário em casa.

 

“Droga. Por que tem que ser tão complicado fazer as coisas funcionarem?”, Patrik pensou enquanto estacionava a uma pequena distância do caminhão de lixo verde. Havia um grupo de pessoas em volta dele, mas os investigadores já tinham colocado a fita que delimitava a cena do crime em torno de uma área grande próxima ao caminhão, para se certificar de que ninguém a invadiria e destruiria quaisquer evidências que pudesse haver. O chefe da equipe de investigadores, Torbjörn Ruud, veio até Patrik, estendendo a mão.

 

– Olá, Hedström. Bem, isso aqui não está muito divertido.

 

– Não, eu soube que Leif pegou nessa coleta um pouquinho mais do que esperava – Patrik acenou na direção do lixeiro, que se mostrava angustiado, a uma curta distância deles.

 

– É, ele tomou um choque de verdade. Não é uma visão bonita. Ela ainda está deitada lá; nós não quisemos movê-la. Siga-me e dê uma olhada, mas cuidado onde pisa. Pegue isso aqui – Torbjörn entregou dois elásticos a Patrik, que se inclinou e os colocou ao redor dos sapatos. Daquela forma, suas pegadas seriam facilmente detectáveis de quaisquer outras que pudessem ter sido deixadas pelo criminoso ou criminosos. Juntos, atravessaram cuidadosamente a fita azul e branca da polícia. Patrik sentiu um desconforto no estômago à media que se aproximava do local e teve que refrear o impulso de virar-se e fugir. Detestava essa parte do trabalho, detestava mesmo. Como sempre, precisou segurar-se antes de ficar na ponta dos pés e olhar para dentro do compartimento de lixo do caminhão. Ali, no meio de uma bagunça nojenta de restos de comida, latas, cascas de banana e outros dejetos, estava uma garota nua. Dobrada ao meio, com os pés ao lado da cabeça, como se estivesse fazendo uma acrobacia de nível avançado. Patrik olhou intrigado para Torbjörn Ruud.

 

– Rigor mortis – ele explicou, seco. – Os membros enrijecem nessa posição depois de ela ser dobrada em dois para caber na lata de lixo.

 

Patrik fez uma careta. Aquilo indicava muito sangue-frio e enorme desprezo pelo ser humano, não só por assassinar aquela menina, mas por desfazer-se dela como se fosse detrito. Enfiada em uma lixeira. Era simplesmente repulsivo. Ele se virou.

 

– Quanto tempo vai durar a investigação da cena do crime?

 

– Algumas horas – disse Torbjörn. – Devo supor que você vá procurar testemunhas nesse meio-tempo. Infelizmente, não tem muita gente por aqui – fez um gesto em direção às casas, que estavam vazias e desertas, esperando seus habitantes de verão. Mas em algumas havia moradores permanentes, então eles podiam ter alguma esperança.

 

– O que aconteceu aqui? – a voz de Mellberg soou arrogante como sempre.

 

Patrik e Torbjörn viraram-se para vê-lo apressar-se, irritado, na direção deles.

 

– Uma mulher foi enfiada nessa lata de lixo – respondeu Patrik, apontando para a lixeira que estava na calçada. Dois investigadores calçavam luvas e preparavam-se para fazer seu trabalho.

 

– Ela foi encontrada quando o Leif aqui esvaziou a lata – apontou para o lixeiro. – É por isso que ela está no caminhão de lixo.

 

Mellberg tomou isso como um convite para atravessar a fita e olhar o caminhão. Torbjörn nem sequer tentou pedir que ele colocasse os elásticos nos sapatos. Não adiantava mais. Já haviam tido que eliminar as pegadas de Mellberg de outras cenas, então já tinham as pegadas dele registradas em seu arquivo.

 

– Que merda! – disse Mellberg, apertando o nariz. – Isso fede – saiu andando, aparentemente mais preocupado com o cheiro do caminhão do que com a visão do corpo da menina. Patrik suspirou. Podia sempre contar que Mellberg tivesse um comportamento inapropriado, sem a menor sensibilidade.

 

– Alguém sabe quem ela é? – perguntou Mellberg.

 

Patrik negou.

 

– Não, ainda não sabemos de nada. Pensei em ligar para Hanna e pedir a ela para verificar se ontem houve alguma denúncia sobre uma garota que não havia voltado para casa. E Martin está a caminho, então pensei que ele e eu pudéssemos começar a bater na porta das poucas casas ocupadas aqui.

 

Mellberg concordou, solene.

 

– Ok, parece uma boa ideia. Era exatamente o que eu ia sugerir.

 

Patrik e Torbjörn trocaram olhares. Como sempre, Mellberg se apropriava das ideias dos outros, mas raramente aparecia com uma legitimamente sua.

 

– E então, onde está Molin? – Mellberg perguntou, olhando em volta, rabugento.

 

– Deve aparecer a qualquer momento – disse Patrik.

 

Bem na hora, o carro de Martin apareceu. Começava a ficar difícil encontrar um lugar para estacionar na estreita rua de brita, então ele teve que engatar a ré e voltar um pouco até encontrar uma vaga. Seus cabelos ruivos se eriçaram enquanto ele andava em direção a eles e Martin parecia cansado. Seu rosto estava amassado, como se tivesse acabado de se levantar da cama.

 

– Havia uma garota morta naquela lata de lixo e agora ela está no caminhão – disse Patrik, para resumir.

 

Martin só fez um gesto afirmativo com a cabeça. Foi até lá olhar. Seu estômago tinha a tendência de revirar-se à visão de cadáveres.

 

– Você e Hanna não estavam trabalhando ontem? – perguntou Patrik.

 

Martin concordou.

 

– Sim, estávamos de olho naquela festa no centro comunitário. E que bom que fomos. Foi um inferno e eu só cheguei em casa às quatro da manhã.

 

– O que houve? – disse Patrik, expressão ocupada.

 

– O de sempre, na maior parte do tempo. Uns caras se irritaram, uma discussão acalorada com um namorado ciumento, dois moleques bêbados brigando. Mas nada comparado com a luta que estourou entre o próprio elenco. Hanna e eu tivemos que apartá-los algumas vezes.

 

– Entendi – disse Patrik, aguçando os ouvidos. – Por quê? O que houve?

 

– Aparentemente, estavam todos furiosos com uma das garotas do elenco. Aquela com os grandes seios de silicone. Ela já tinha tomado uns bons tapas até conseguirmos detê-los – Martin esfregava os olhos, exausto.

 

Um pensamento ocorreu a Patrik.

 

– Martin, pode, por favor, dar uma olhada na garota no caminhão de lixo?

 

Martin franziu a testa.

 

– Isso é mesmo necessário? Você sabe como eu... – interrompeu-se e concordou, resignado. – Claro que olho, mas por quê?

 

– Apenas vá lá e olhe – disse Patrik, que não queria entregar o que estava pensando. – Eu explico depois.

 

– Está bem – disse Martin, sem vontade. Pegou os elásticos que Patrik oferecia e os posicionou nos sapatos. Atravessou a fita, de ombros caídos e deu alguns passos hesitantes na direção da traseira do caminhão. Depois de respirar fundo pela última vez, olhou para baixo e então voltou-se rapidamente para Patrik, atônito.

 

– Mas essa é...

 

Patrik concordou.

 

– A garota de Sodding Tanum.

 

– Sim. Percebi no momento em que você começou a falar sobre ela. Parece que ela levou uma boa surra.

 

Martin afastou-se cuidadosamente do caminhão de lixo. Tinha o rosto pálido. Patrik via que ele estava lutando para manter o café da manhã no estômago. Após alguns instantes, teve que admitir a derrota e correu para o arbusto mais próximo.

 

Patrik foi até Mellberg, que conversava animadamente com Torbjörn Rudd, fazendo gestos grandes com os braços. Patrik os interrompeu.

 

– Temos uma identificação da vítima. É uma das garotas daquele reality show. Ontem aconteceu uma festa no centro comunitário e, de acordo com Marin, houve uma discussão feia com a garota lá.

 

– Uma discussão? – disse Mellberg, preocupado. – Está dizendo que ela foi surrada até a morte?

 

– Eu não sei – disse Patrik, com uma leve irritação na voz. Às vezes não conseguia aguentar as perguntas estúpidas de Mellberg. – Só o médico legista pode fazer um pronunciamento sobre a causa da morte, depois de fazer a autópsia – “Coisa que eu não deveria ter que te explicar”, Patrik pensou. – Mas definitivamente parece que é hora de termos uma conversa com o resto do elenco. E providenciar que tenhamos acesso a todos os registros em vídeo da noite passada. Uma vez na vida, pode ser que tenhamos uma testemunha confiável.

 

– Sim, eu ia mesmo dizer que é possível que as câmeras tenham captado algo útil – Mellberg agora assumia que a ideia havia sido dele desde o princípio.

 

Patrik contou até dez. Aquilo estava ficando cansativo. Já vinha jogando esse joguinho havia anos e sua paciência estava definitivamente acabando.

 

– Então é isso que temos que fazer – disse com uma calma forçada. – Vou ligar para Hanna também, para sabermos que observações ela fez ontem à noite. Temos que falar com os produtores de Sodding Tanum, e depois pode ser uma boa ideia informar a Câmara Municipal. Tenho certeza de que todos concordam que essa gravação tem que se cancelada imediatamente.

 

– Por quê? – disse Mellberg, dirigindo a Patrik um olhar atônito.

 

Patrik estava chocado.

 

– É óbvio! Um integrante do elenco foi assassinado! Não há meio de continuarem gravando agora!

 

– Não tenho tanta certeza disso, disse Mellberg. E se bem conheço Erling, ele vai fazer tudo o que puder para garantir que continuem gravando. Ele investiu muito prestígio nesse projeto.

 

Por um instante, Patrik teve a gélida sensação de que Mellberg poderia estar certo. Mas ainda assim achava difícil acreditar. Aquelas pessoas não podiam ser tão cínicas, podiam?

 

Hanna e Lars estavam sentados em silêncio à mesa da sala de jantar, e seus rostos estavam tão apáticos e exaustos quanto sua mente. Tudo o que pairava sobre eles também contribuía para seu torpor. Havia tanto a ser dito. Mas como sempre, nenhum dos dois falou nada. Hanna sentia o desconforto familiar em seu estômago, o que fez o ovo que comia ter sabor de papelão. Forçou-se a mastigar e engolir, mastigar e engolir.

 

– Lars – começou a dizer, mas arrependeu-se na mesma hora. O nome dele soava tão desolado e estranho quando perfurava o silêncio. Ela engoliu e tentou de novo. – Lars, precisamos conversar. Não podemos deixar isso continuar assim.

 

Ele não olhou para ela. Toda a sua concentração estava empenhada em passar manteiga no pão. Fascinada, ela observava a forma como ele movia a faca para a frente e para trás, até a manteiga estar perfeitamente distribuída sobre a superfície do pão. Havia algo hipnótico naquele movimento, e ela se encolheu quando ele enfiou a faca de volta na mantegueira. Ela tentou novamente.

 

– Lars, por favor, fale comigo. Não podemos continuar assim – ela podia ouvir como soava desesperada. Mas sentia-se como se estivessem em um trem correndo a duzentos quilômetros por hora, sem ter como descer antes que ele mergulhasse no abismo que se aproximava rapidamente.

 

Ela queria se inclinar para a frente, pegar Lars pelos ombros e sacudi-lo. Forçá-lo a conversar com ela. Ao mesmo tempo, sabia que não adiantaria nada. Ele estava em um lugar onde ela não podia entrar, onde jamais teria permissão para entrar.

 

Sentindo uma pressão imensa no peito, dentro de seu coração, ela apenas o observou. Ela estava em silêncio e rendia-se novamente. Como sempre fazia. Mas ela o amava tanto. Tudo nele. Seus cabelos castanhos, que ainda estavam revoltos depois de dormir. As rugas em sua face que haviam aparecido cedo demais, mas que davam personalidade a seu rosto. A barba cerrada que parecia uma lixa em sua pele.

 

Tinha que haver um jeito. Ela sabia que sim. Não podia permitir que os dois caíssem no abismo escuro, juntos e ainda assim separados. Em um impulso, ela inclinou-se para a frente e pegou sua mão. Podia senti-lo tremer. De leve, como uma folha de álamo. Ela fez o tremor passar com uma pressão de seu braço contra a mesa e forçou-o a encará-la. Era um daqueles momentos que raramente ocorrem na vida de alguém. Um momento em que somente as verdades podem ser ditas. Verdades sobre seu casamento. Verdades sobre sua vida. Verdades sobre o passado. Ela abriu a boca. E então o telefone tocou. Lars deu um pulo e libertou seu braço. Então pegou a faca de manteiga novamente. O momento havia passado.

 

– O que acha que vai acontecer agora? – disse Tina em voz baixa para Uffe, enquanto estavam do lado de fora do centro comunitário, dando tragadas profundas em seus cigarros.

 

– Eu é que não sei – Uffe disse, rindo. – Porra nenhuma, é o que eu acho.

 

– Mas depois de ontem... – ela fez uma pausa e olhou para os próprios sapatos.

 

– Ontem não significa nada – disse Uffe, soltando um anel de fumaça branca no calmo ar de primavera. – Não significa merda nenhuma, acredite. Produções como essa custam toneladas de dinheiro e eles não vão parar tudo e perder o que investiram até agora. Sem chance.

 

– Eu não teria tanta certeza – disse Tina, cabisbaixa. Seu cigarro agora tinha uma longa coluna de cinza, que caiu direto em suas botas de camurça.– Merda! – ela disse, rapidamente agachando-se para tentar tirar as cinzas. – Agora essas botas estão arruinadas. E elas foram caras pra caramba! Merda!

 

– Bem feito – disse Uffe, rindo. – Você é tão mimada!

 

– O que quer dizer com “mimada”? – Tina sibilou, voltando-se para ele. – Só porque meus pais não estiveram na miséria a vida toda, mas trabalharam feito escravos para economizar um pouco, isso certamente não me torna mimada!

 

– Não abra a boca pra falar dos meus pais! Você não sabe porra nenhuma sobre eles! – com um gesto ameaçador, Uffe agitou seu cigarro diante do rosto dela. Tina não se amedrontou. Em vez disso, deu um passo na direção dele.

 

– Eu posso ver o que você é. Não é tão difícil descobrir que tipo de gente são seus pais.

 

Uffe cerrou os punhos, e uma veia saltava em sua têmpora. Tina percebeu que acabara de cometer um erro. Lembrou-se do que acontecera na noite anterior e rapidamente deu um passo atrás. Ela não devia ter dito o que disse. Assim que abriu a boca para acalmar as coisas, Calle veio até eles e olhou de um para o outro com uma expressão intrigada.

 

– O que há entre vocês? Vão lutar ou o quê? – ele riu. – Bem Uffe, você é um mestre em bater em mulher, então vai lá. Vamos ver você fazer isso de novo.

 

Uffe bufou e baixou os braços. Tinha o rosto enfurecido e encarava Tina. Ela deu mais um passo atrás. Havia algo em Uffe que não era muito certo. Mais uma vez, imagens e sensações desconexas da noite anterior vieram à sua mente e ela virou-se e voltou para dentro. A última coisa que ouviu antes de passar pela porta foi Uffe dizendo baixinho a Calle:

 

– Você também não é nada mau, é?

 

Ela não ouviu o que Calle respondeu.

 

Uma olhada no espelho da entrada mostrou a Erica que ela parecia tão deprimida quanto se sentia. Lentamente, pendurou sua jaqueta e seu cachecol e então parou para ouvir. Entre os gritos das crianças, os quais eram ensurdecedores, mas graças a Deus felizes, ela também ouvia outra voz que não a de Anna. Foi até a sala. Em uma pilha enorme, bem no meio do recinto, estavam deitados dois adultos e três crianças, lutando, gritando e com braços e pernas esticados, como um monstro deformado.

 

– E o que está acontecendo aqui? – ela disse, em sua voz mais autoritária.

 

Anna olhou para cima, surpresa, seus cabelos despenteados de maneira fora do comum.

 

– Oi! – disse Dan contente, também olhando para cima, mas logo depois sendo derrubado novamente por Emma e Adrian. Maja ria tão alto que gritava, enquanto tentava ajudar puxando os pés de Dan com toda a força.

 

Anna levantou-se e tirou a poeira dos joelhos. Atrás dela, a luz da primavera penetrava através da janela, formando um halo em torno de seus cabelos louros. Erica ficou impressionada com a beleza de sua irmã. Também viu pela primeira vez como ela se parecia com sua mãe. Esse pensamento causou uma pontada de dor em seu coração. E então a pergunta eterna voltou à sua mente: Por quê? Por que sua mãe não as amava? Por que nunca haviam recebido uma palavra doce, um carinho, um afago, qualquer coisa, de Elsy? Tudo que recebiam era indiferença e frieza. Seu pai era o total oposto de Elsy. Enquanto ela era dura, ele era suave. Enquanto ela era fria, ele era caloroso. Ele tentava explicar, dar desculpas para o comportamento de Elsy, compensar a negligência dela. E até certo ponto ele havia se saído bem. Mas não podia tomar o lugar dela. Ainda existia um vazio na alma de Erica, apesar de Tore e Elsy terem falecido havia quatro anos, desde que aquele acidente de carro matara a ambos.

 

Anna olhou-a intrigada, e Erica percebeu que estivera encarando-a a certa distância. Fez o possível para esconder seus sentimentos e sorrir para a irmã.

 

– Onde está Patrik? – perguntou Anna, com um último olhar divertido para a massa de braços e pernas no chão, antes de ir para a cozinha. Erica a seguiu sem responder.– Acabei de fazer um café fresco – Anna disse, servindo três xícaras.– E as crianças e eu assamos umas roscas – só agora Erica notava o convidativo aroma de canela que pairava no ar.– Mas você vai preferir esses – disse Anna, colocando uma bandeja de biscoitos secos e miúdos diante de Erica.

 

– O que é isso? – ela disse, cabisbaixa, cutucando-os.

 

– Biscoitos integrais – disse Anna, dando-lhe as costas enquanto tirava roscas recém-assadas da forma em cima da pia e as colocava em uma cesta.

 

– Mas... – Erica emitiu um protesto capenga, sentindo água na boca diante da visão das roscas grandes e fofas, salpicadas de açúcar cristal.

 

– Bem, eu não achei que voltaria tão cedo. Pretendia te poupar e colocar essas aqui no freezer antes que você voltasse para casa. Então, você só pode culpar a si mesma. Mas pense no vestido de noiva, se precisar de motivação.

 

Erica pegou um dos biscoitos e deu uma mordidinha. Bem como ela pensou. Daria na mesma comer um pedaço de papelão.

 

– Então, cadê o Patrik? E por que você voltou para casa tão cedo? Achei que fossem relaxar, fazer compras na cidade e almoçar – Anna sentou à mesa da cozinha e gritou para a sala. – O café está servido!

 

– Patrik foi chamado para trabalhar – disse Erica. Então desistiu e colocou o biscoito de volta no prato. Sua primeira e única mordida ainda estava na boca.

 

– Trabalho? – Anna disse, surpresa. – Achei que ele estivesse de folga esse fim de semana.

 

– Sim, foi o que disseram para ele – disse Erica, notando a amargura na própria voz. – Mas ele teve de ir – fez uma pausa, perguntando-se o que mais revelar. Então disse bruscamente:– Leif, o lixeiro, encontrou um cadáver no caminhão de lixo essa manhã.

 

A boca de Anna se abriu.

 

– No caminhão de lixo? Como foi parar lá?

 

– Aparentemente, o corpo estava enfiado numa lata de lixo e quando ele foi esvaziá-la...

 

– Meu Deus, que horror! – Anna disse, encarando Erica. – Mas quem era? Foi assassinato? Imagino que deva ter sido – disse Anna, respondendo à própria pergunta. – Senão, por que alguém terminaria em uma lata de lixo? Meu Deus, que horrível.

 

Dan entrou na cozinha e olhou-as, confuso.

 

– O que é horrível? – ele perguntou, sentando-se ao lado de Erica.

 

– Patrik teve que ir trabalhar. Leif, o lixeiro, encontrou um cadáver em seu caminhão – disse Anna, antes que Erica pudesse responder.

 

– Está brincando? – disse Dan, parecendo igualmente perplexo.

 

– Infelizmente, não – Erica disse, melancólica. – Mas eu gostaria que vocês não comentassem com mais ninguém. A notícia vai se espalhar logo, logo, e nós não precisamos alimentar as fofocas.

 

– Não, claro que não. Não vamos dizer nada – disse Anna.

 

– Eu não entendo como Patrik consegue aguentar esse trabalho – disse Dan, cutucando sua rosquinha de canela. – Eu jamais conseguiria lidar. Tentar ensinar gramática para adolescentes de catorze anos já é difícil o bastante.

 

– Eu também não conseguiria – disse Anna, olhando para o nada.

 

Dan e Erica praguejaram em silêncio. Falar de cadáveres e assassinato provavelmente não era a melhor coisa a fazer diante de Anna. Como se lesse seus pensamentos, ela disse com um sorriso lívido.

 

– Não se preocupem comigo. Tudo bem falar sobre isso.

 

Erica só conseguia imaginar que tipo de imagens rodopiavam na mente dela.

 

– Crianças, temos rosquinhas de canela! – chamou Anna, quebrando o clima ruim. Ouviram dois pares de pés e um par de mãos e joelhos tamborilando no assoalho e em segundos o primeiro fã de rosquinhas apareceu.

 

– Rosquinha, eu quero rosquinha! – Adrian gritou, escalando uma cadeira como um gato. Emma estava logo atrás e Maja chegou engatinhando em seguida. Ela havia aprendido rapidamente o significado da palavra “rosca”. Erica começou a se levantar, mas Dan foi mais ligeiro. Levantou Maja e, sem conseguir resistir, deu-lhe um beijo no rosto. Então colocou-a cuidadosamente no cadeirão e começou a partir pedacinhos de uma das roscas para dar a ela.

 

O surgimento de tanto açúcar diante de Maja produziu um enorme sorriso que expôs os dois dentinhos de leite em sua arcada inferior. Os adultos começaram a rir. Ela era tão linda.

 

Não houve mais conversa sobre assassinato e cadáveres. Mas eles ainda podiam imaginar pelo que Patrik estava passando.

 

Todos estavam apáticos na sala de descanso da delegacia. O rosto de Martin mostrava uma palidez anômala e ele parecia tão exausto quanto Hanna. Patrik estava debruçado sobre a pia, de braços cruzados, esperando enquanto terminavam o café. Depois de um sinal de Mellberg, começou a falar.

 

– Esta manhã, Leif Christensson, que possui um serviço de coleta de lixo, encontrou um cadáver em seu caminhão. O corpo havia sido jogado numa lata de lixo, mas foi parar em seu veículo quando ele esvaziou a lixeira. Foi um choque e tanto para ele, devo dizer – Patrik fez uma pausa e bebeu um gole de sua xícara de café, pousando-a depois na pia, diante dele. – Chegamos à cena do crime rapidamente e confirmamos que estamos lidando com uma vítima do sexo feminino. Dadas as circunstâncias, chegamos à conclusão preliminar de que se trata de um homicídio. Ela também tem sinais de violência, o que corrobora essa teoria. Mas nós não saberemos ao certo até recebermos os resultados da autópsia. Enquanto isso, manteremos o pressuposto de que ela foi assassinada.

 

– Sabemos quem...? – disse Gösta, mas foi interrompido por um olhar de Patrik.

 

– Sim, já identificamos a mulher – Patrik virou-se para olhar para Martin, que tinha que lutar contra a náusea quando as fotos da cena do crime apareceram diante dele. Ele ainda não parecia capaz de falar, então Patrik prosseguiu. – Parece que é um membro do elenco de Sodding Tanum. A garota chamada Barbie. Estamos trabalhando para descobrir seu nome verdadeiro. Não parece respeitoso chamá-la de Barbie devido às circunstâncias.

 

– Nós... nós a vimos ontem. Martin e eu – disse Anna. Seu rosto estava tenso quando olhou de Patrik para Martin.

 

– Sim, eu soube – disse Patrik, fazendo um gesto na direção de Martin. – Foi Martin quem a identificou. Será que houve problemas? – ele disse, erguendo as sobrancelhas, o que incitou Hanna a continuar.

 

– Bem – ela disse, hesitante. – Sim, por um momento foi bastante intenso. Os demais participantes a estavam intimidando, mas eu posso dizer que a maior parte eram acusações verbais e uns cutucões, nada além disso. Martin e eu intercedemos e os separamos e a última vez que encontramos Barbie foi quando a vimos fugir chorando, em direção à cidade.

 

Martin assentiu com um a cabeça.

 

– Sim, está certo. Houve gritos e berros, mas nada que pudesse produzir os ferimentos que vimos em seu corpo.

 

– Vamos ter que conversar com aquele grupo – disse Patrik. – Verificar o que houve. E se alguém viu para onde – hesitou antes de dizer o nome – Barbie estava indo. Temos que falar com a produção também e conseguir os registros do que gravaram ontem e assistir.

 

Annika anotou tudo enquanto ele enumerava as tarefas que teriam que cumprir. Patrik pensou por alguns segundos, depois fez um gesto para Annika e acrescentou:

 

– Temos que informar a família dela também. E descobrir se alguém mais observou qualquer coisa no decorrer da noite – fez uma pausa e então disse em tom grave. – Quando isso vazar, e não vai levar mais que algumas horas, a merda vai bater no ventilador. Isso é notícia nacional e temos que estar preparados para um bombardeio da mídia, pelo tempo que durar essa investigação. Então, cuidado com o que dizem e com quem conversam. Não quero informação saindo na mídia que eu e Mellberg não tenhamos autorizado – para dizer a verdade, ele estava preocupado que Mellberg abrisse a boca. O chefe adorava estar em evidência, e um repórter habilidoso poderia provavelmente conseguir que Mellberg contasse tudo sobre o caso. Mas não havia muito que pudesse ser feito agora. Mellberg era o delegado, pelo menos no papel, e Patrik não podia amordaçá-lo. Teria apenas que cruzar os dedos e ter esperança de que Mellberg ainda tivesse um mínimo de bom-senso naquela cabeça. Se bem que ele não apostaria nisso.– É isto que vamos fazer. Eu vou até lá conversar com o cara responsável pela produção... – disse, estalando os dedos enquanto tentava lembrar o nome.

 

– Rehn, Fredrik Rehn – Mellberg completou e Patrik agradeceu, surpreso. Não era todo dia que Mellberg contribuía com informações relevantes.

 

– Certo, Fredrik Rehn. Martin e Hanna, vocês se sentam e escrevem um relatório sobre o que viram e ouviram ontem à noite. E Gösta... – ele disse, pensando ferozmente em algo para dar a Gösta fazer. Finalmente disse – Gösta, você vai procurar informações sobre os proprietários da casa em cuja lata de lixo o corpo foi encontrado. Não creio que haja nenhuma ligação ali, mas nunca se sabe.

 

Gösta deu-lhe um aceno fatigado. Um trabalho específico. Já podia sentir o peso da responsabilidade.

 

– Então é isso – Patrik bateu uma palma na outra, indicando que a reunião havia acabado. – Temos muito a fazer.

 

Todos resmungaram algo em resposta e se levantaram. Patrik ficou observando enquanto todos saíam da sala. Perguntou-se se eles tinham ideia da força da natureza que estava prestes a atacá-los. Logo todos os holofotes da Suécia estariam voltados para Tanumshede. Eles teriam que se acostumar a ver o nome de sua cidade nas manchetes.

 

– Porra, isso vai ser fantástico! Posso sentir o cheiro de sucesso a uma milha de distância! – Fredrik Rehn socou o técnico nas costas, enquanto sentavam-se no exíguo espaço do ônibus. Tinham visto as gravações do dia anterior e já haviam começado a edição. Fredrik gostou do que viu. Mas tudo o que era bom podia ficar melhor.

 

– Podemos adicionar mais vaias enquanto Tina canta? O que temos gravado está meio baixinho e eu acho que a apresentação dela foi tão ruim que devíamos amplificar as vaias da plateia – ele riu e o cara da edição concordou enfaticamente. Mais vaias, sem problemas. Um pouquinho mais de volume em canais diferentes e ia parecer que todos na plateia estavam vaiando de pé.– Esse grupo é brilhante! – Fredrik disse, com um sorriso. Recostou-se na cadeira e cruzou as pernas. – Eles são tão estúpidos, mas nem percebem. Veja Tina, por exemplo. Ela acha mesmo que vai ser uma estrela da música pop, como a Carola. E a mina não consegue acertar uma nota. Falei com o cara que produziu o single dela e ele me disse que foi um pesadelo conseguir que ela cantasse pelo menos de forma quase decente. Ele disse que ela era tão desafinada que a caixa de som quase estourou – Fredrik riu e então se inclinou sobre o painel de mixagem diante dele. Aumentou o volume. – Ouçam isso. É um berro, cacete! – riu até que lágrimas rolaram por seu rosto. Até o cara da edição teve que abrir um sorriso quando ouviu a versão de Tina para “I want to be your little bunny”, que poderia conceder a ela o título de presidente da Liga Nacional dos Desafinados. Não era de se admirar que o júri do Idol a houvesse trucidado.

 

Uma batida autoritária na porta no ônibus interrompeu as risadas.

 

– Entre – disse Fredrik, virando-se para ver quem era. Não reconheceu o homem que abriu a porta.– Pois não? Posso ajudá-lo? – a visão do distintivo da polícia causou-lhe uma sensação nauseada no estômago. Não podia ser nada bom. Ou talvez sim, dependendo do que tivesse acontecido e de quão bom fosse para aparecer na TV. – O que podemos fazer por você dessa vez? – Fredrik riu enquanto se levantava para cumprimentar o detetive.

 

O policial entrou e encontrou um lugar para sentar-se entre os cabos e fios. Olhou em volta com curiosidade.

 

– Sim, aqui é onde tudo acontece – disse Fredrik, orgulhoso. – Difícil acreditar que podemos fazer um programa líder de audiência a partir desse espaço pequeno, não é? É claro que é realizado um trabalho adicional em Estocolmo – admitiu relutantemente. – Mas a parte criativa é feita aqui.

 

O oficial, que se apresentou como Patrik Hedström, fez um gesto polido de cabeça. Então pigarreou.

 

– Receio ter más notícias – ele disse. – É sobre um dos membros do seu elenco.

 

Fredrik revirou os olhos.

 

– Está bem, quem é dessa vez? – perguntou, suspirando. – Deixe-me adivinhar... É Uffe, com algum de seus velhos truques – virou-se para o editor. – Eu te falei que Uffe seria o primeiro a criar um pouco de drama, não falei? – Fredrik voltou a olhar para o policial, sua curiosidade aumentando. Estava maquinando como registrar em vídeo. O que quer que fosse.

 

Patrik pigarreou novamente e disse de maneira suave.

 

– Infelizmente um de seus participantes foi encontrado morto – foi como se uma bomba tivesse explodido naquele local mínimo. O único som era o zunido do equipamento.

 

– O que você disse? – perguntou finalmente Fredrik, recuperando a postura. – Um deles foi encontrado morto? Quem foi? E onde? Como? – ele podia sentir os pensamentos rodopiando em sua cabeça. O que havia acontecido? E algumas partes de seu cérebro já criavam estratégias de mídia. Nada assim jamais havia acontecido no meio das gravações de um reality show. Sexo, sim, seguido pelas velhas consequências: gravidez – o Big Brother norueguês havia sido o primeiro nisso; pedidos de casamento – sim, o Big Brother sueco havia obtido um sucesso estrondoso com Olivier e Carolina. E aquele ataque com o cano de ferro no The Bar fora manchete por semanas. Mas uma morte! Isso era totalmente novo. Absolutamente único. Esperou, tenso, que o policial respondesse as perguntas que acabava de fazer. Só tinha que aguardar alguns segundos.

 

– É a garota chamada Barbie. Foi encontrada esta manhã em uma... – Patrik hesitou por um momento, antes de continuar – lata de lixo. Tudo indica que foi morta.

 

– Foi morta? – repetiu Fredrik. – Quer dizer, assassinada? Ela foi assassinada? É isso o que está dizendo? Quem foi? – ele provavelmente deveria parecer tão confuso por fora quanto estava por dentro. Isso não figurava na lista dos enredos possíveis que surgiram em sua cabeça.

 

– Não temos suspeito ainda. Mas vamos começar os interrogatórios imediatamente. A começar por seu elenco. Os detetives que observaram sua festa ontem à noite disseram que houve muita discussão entre a mulher morta e os outros membros do elenco.

 

– Sim, houve palavras duras e alguns empurrões e coisas assim – disse Fredrik, relembrando as cenas a que haviam acabado de assistir. – Mas nada que parecesse grave o bastante para alguém... – ele não terminou a frase. Não que houvesse necessidade.

 

– Também precisamos das gravações de ontem – o tom de Patrik era seco, enquanto olhava Fredrik nos olhos.

 

Fredrik encarou-o de volta.

 

– Não estou autorizado a deixar que leve nenhuma fita – disse, calmamente. – Até que eu receba um mandado em meu nome para entregar o material, tudo permanece aqui. Qualquer outra ação é inaceitável.

 

– Você se deu conta de que isso é uma investigação de assassinato? – Patrik disse, irritado, mas não surpreso. Havia esperado em vão por uma resposta diferente.

 

– Sim, eu percebi, mas não podemos simplesmente entregar nosso material. Há muitos princípios éticos envolvidos – ele sorriu, fingindo pesar. Patrik simplesmente bufou. Ambos sabiam que ética não era a razão de sua recusa.

 

– Mas presumo que irá cancelar a transmissão imediatamente, por conta do ocorrido.

 

Fredrik sacudiu a cabeça.

 

– Não podemos fazer isso em absoluto. Temos a grade pronta para as próximas quatro semanas, e fechar a produção nesse momento... não, simplesmente impossível. E não creio que Barbie gostaria que isso acontecesse, ela iria querer que prosseguíssemos.

 

Só de olhar para Patrik, soube que havia passado dos limites. O policial estava vermelho e parecia estar se segurando para não bradar alguns xingamentos bem escolhidos.

 

– Você não quer me dizer que está realmente considerando... – parou e fez uma interjeição – Qual era o nome verdadeiro dela? Não posso continuar chamando-a de Barbie. É muito degradante. E a propósito, vou precisar dos dados pessoais dela e de seus familiares mais próximos. Pode nos ceder essa informação ou isso também é uma questão de ética?

 

A última palavra transbordava sarcasmo, mas a raiva de Patrik não surtiu efeito em Fredrik. Estava acostumado a lidar com emoções agressivas que o formato reality show parecia causar. Calmamente respondeu:

 

– Seu nome era Lillemor Persson. E ela cresceu em orfanatos, então não temos nenhum registro de parentes próximos. Mas já lhe daremos toda a informação de que dispomos. Sem problemas – sorriu de maneira doce.– Quando vai iniciar as entrevistas? Há alguma chance de gravarmos? – a possibilidade era mínima, e o olhar sanguinário que obteve de Patrik era uma resposta clara.

 

– Vamos começar as entrevistas imediatamente – Patrik disse, seco, saindo do ônibus. Nem mesmo se incomodou em se despedir antes de bater a porta atrás de si.

 

– Que golpe de sorte! – disse Fredrik sem fôlego e o editor apenas assentiu com a cabeça. Fredrik não podia acreditar na sorte que tiveram. Agora teriam a chance de levar um drama real para a sala das casas dos suecos. O país inteiro estaria assistindo. Por um segundo pensou em Barbie. E então pegou o telefone. A diretoria precisava ouvir isso. Sodding Tanum se transformaria em CSI. Jesus, que sucesso isso ia ser!

 

– E como vamos fazer isso? – Martin perguntou. Ele e Hanna tinham decidido ficar na sala de descanso e trabalhar, e ele pegou o bule de café para encher as xícaras. Hanna adicionou um pouco de leite e mexeu. – Devemos escrever cada um o seu relato antes, você acha, ou escrevemos um único juntos?

 

Hanna pensou por um momento.

 

– Acho que ficará mais completo se escrevermos o relatório juntos e compararmos anotações sobre o que vier à cabeça enquanto trabalhamos.

 

– Está bem, você deve estar certa – disse Martin, abrindo o laptop e ligando-o. – Eu digito ou você quer fazê-lo?

 

– Você digita – disse Hanna. – Eu ainda digito com dois dedos e nunca fui lá muito rápida.

 

– Tudo bem, eu digito – Martin riu, inserindo a senha. Abriu um novo documento no Word e preparou-se para preencher a tela com palavras.– A primeira coisa que eu notei com relação à comoção ontem à noite foi quando ouvi vozes exaltadas vindas detrás do edifício. E você?

 

Hanna aquiesceu.

 

– Sim, eu não havia notado nada antes disso. A única coisa com que tivemos de lidar antes foi com aquela garota que estava tão bêbada que não conseguia ficar de pé. Que horas eram? Meia-noite? – Martin digitava, enquanto Hanna falava. – Acho que era por volta da uma quando ouvi duas pessoas discutindo aos gritos. Foi quando te chamei e fomos para trás do prédio e encontramos Barbie e Uffe.

 

– Humm – disse Martin, ainda digitando. – Eu olhei no relógio e eram dez para a uma. Cheguei por um dos lados e vi Uffe segurando Barbie pelos ombros e sacudindo-a, violentamente. Ambos corremos até eles. Eu segurei Uffe e o arrastei para longe, enquanto você cuidou de Barbie.

 

– Sim, correto – disse Hanna, tomando um gole de café. – Coloque que Uffe estava tão agressivo que tentou chutar a garota enquanto você o segurava.

 

– Sim, é verdade, eu me lembro disso também – disse Martin. O documento ia sendo preenchido por texto.

 

– Nós liquidamos com a situação – leu alto – e separamos os indivíduos. Conversei com Uffe e disse que ele teria que vir à delegacia se não esfriasse a cabeça.

 

– Espero que não vá escrever “esfriar a cabeça” – Hanna riu.

 

– Só por ora. Mais tarde vou ter que editar o texto e fazê-lo soar burocrático, então não se preocupe. Agora vamos só deixar as palavras fluírem para incluirmos tudo.

 

– Está bem – Hanna disse, sorrindo. E então ficou séria novamente. – Eu conversei com Barbie e tentei descobrir qual foi a causa da discussão. Ela estava muito agitada e dizia que Uffe estava furioso porque pensou que ela estivesse falando mal dele, mas ela não entendia o que ele dizia. Ela se acalmou depois de um tempo e pareceu estar bem.

 

– E então, nós os liberamos – Martin completou, erguendo os olhos do computador. Pressionou a tecla enter duas vezes para gerar um novo parágrafo, bebeu um gole de café e prosseguiu.– O incidente seguinte aconteceu às... ah, por volta das duas e meia, eu diria.

 

– Sim, foi por aí – disse Hanna. – Duas e meia, quinze para as três.

 

– Dessa vez, foi um indivíduo na festa que atraiu nossa atenção porque havia uma discussão ocorrendo na rampa que leva à escola. Nos aproximamos da cena e vimos muitas pessoas agredindo um único indivíduo. Eles estavam gritando, enquanto esmurravam e batiam na pessoa. Eram os participantes Mehmet, Tina e Uffe que atacavam Barbie. Fomos até lá e apartamos a briga usando de força. Estavam todos muito exaltados, e as provocações voavam de um lado para o outro. Barbie chorava e seus cabelos estavam despenteados, sua maquiagem borrada e ela parecia muito abalada. Falei com os outros, tentando descobrir o que havia acontecido. Me deram a mesma resposta de Uffe, que “Barbie estava falando muita bobagem”. Foi a melhor explicação que consegui.

 

– Enquanto isso, eu conversava com Barbie à curta distância – Hanna acrescentou, soando emocionada. – Ela estava perturbada e com medo. Perguntei se ela queria fazer uma denúncia formal contra eles, mas ela disse que definitivamente não. Conversei um pouco com ela por alguns minutos para acalmá-la, tentando descobrir o que havia acontecido, mas ela afirmava não ter ideia. Depois de um tempo, me virei para verificar o que estava acontecendo com você. E quando me virei de volta, vi Barbie correndo em direção à cidade, mas então ela virou à direita em vez de ir para o centro comercial. Pensei em ir atrás dela, mas então decidi que ela provavelmente só precisava ficar sozinha e se acalmar – a voz de Hanna tremia um pouco. – Depois disso, não a vimos mais.

 

Martin levantou os olhos do computador e sorriu para consolá-la.

 

– Não poderíamos ter feito nada diferente. Tudo o que sabíamos é que eles tinham uma diferença muito grande de opiniões. Não havia nada que indicasse que poderia... – pausa – terminar como terminou.

 

– Acha que foi um dos participantes que a matou? – a voz de Hanna ainda estava alterada.

 

– Eu não sei – disse Martin, relendo o que já tinha escrito na tela. – Mas há boas razões para suspeitarmos. Vamos ter que ver o que descobrimos pelas entrevistas.

 

Ele salvou o documento e desligou o laptop, que pegou ao se levantar.

 

– Vou para o meu escritório escrever a versão oficial agora. Se lembrar de mais alguma coisa, fique à vontade para bater à minha porta.

 

Hanna apenas assentiu. Depois que ele foi embora, ela ficou sentada ali. As mãos que seguravam a xícara de café ainda tremiam.

 

Calle fazia uma caminhada pela cidade. Em Estocolmo, ele normalmente malhava na academia cinco vezes por semana, mas aqui tinha que se contentar com caminhadas para eliminar calorias. Aumentou a velocidade dos passos para queimar gorduras. Estar em forma era importante para ele. Ele desprezava pessoas que não cuidavam do próprio corpo. Era um verdadeiro prazer olhar-se no espelho e admirar o abdômen de tanquinho, a forma como os bíceps tensionavam quando ele flexionava os braços e a compleição musculosa de seu dorso. Quando ele saía pelas ruas em Stureplan, sempre desabotoava a camisa casualmente ao se aproximar das casas noturnas. As gatas amavam. Não paravam de enfiar as mãos sob a camisa para tocar seu peito, passando as unhas sobre seu físico sarado. Depois disso, ficava fácil levar um pedaço de carne para casa.

 

Às vezes ele se perguntava como seria sua vida sem dinheiro. Como seria viver como Uffe ou Mehmet, morando num apartamentozinho fedorento nos subúrbios, mal conseguindo pagar as contas. Uffe ficava se gabando das invasões a domicílio e outras coisas em que se meteu, mas Calle segurava o riso quando ouvia a quantia ínfima que esses crimes menores rendiam. Porra, ele ganhava mais que isso em trocados que recebia do pai toda semana. E ainda assim havia algo que o impedia de preencher o vazio que sentia no coração. Nos últimos anos, ele procurava constantemente por algo que finalmente ocupasse aquele buraco. Mais champanhe, mais festas, mais gatas, mais pó para dentro do nariz, mais de tudo. Sempre mais. Ele sempre aumentava o limite de dinheiro que era capaz de gastar. Ele não ganhava nada por si. Todo o seu dinheiro vinha de seu pai. E ele sempre pensava nisso ultimamente... agora a coisa teria de parar. Mas o dinheiro continuava entrando. Seu pai pagava uma conta atrás da outra. Comprou para ele um apartamento sem titubear e subornou a garota que inventou a história sobre ter sido estuprada, criada do nada, claro, já que tinha vindo para sua casa com ele e Ludde e não havia dúvida sobre suas intenções. Seus bolsos eram sempre reabastecidos, como uma carteira mágica que nunca ficava sem dinheiro. E não parecia haver nenhuma condição. Calle sabia por quê. Sabia por que seu pai não sabia dizer não. Sabia que sua consciência pesada o manteria pagando as contas. Ele continuava despejando coroas no vazio do peito de Calle, mas o dinheiro simplesmente desaparecia sem ocupar espaço algum.

 

Os dois tentavam repor com dinheiro o que haviam perdido. Seu pai dando e Calle gastando.

 

Enquanto as lembranças o afogavam, a dor em seu peito piorava. Calle apertou o passo, adiantando-se, tentando enterrar as imagens. Mas era impossível escapar delas. A única coisa que as amortecia era uma combinação de champanhe e cocaína. Na falta disso, tinha que viver com seu passado. Começou a correr.

 

Gösta suspirou. A cada ano, era mais difícil permanecer motivado. Ir para o trabalho pela manhã esgotava toda a sua energia; terminar qualquer tarefa era quase impossível. Seus membros pareciam pesados como se carregasse pesos invisíveis sempre que tentava trabalhar. Não conseguia sequer começar e podia passar dias sobre a mais simples das tarefas. Não compreendia como ainda pediam que fizesse algo. E a coisa só vinha piorando ao longo dos anos. Desde a morte de Majbritt, a solidão o consumia por dentro, privando-o de qualquer prazer que já tivera no trabalho. Nunca havia sido a grande estrela de sua profissão, era o primeiro a admitir isso, mas fazia o que tinha que fazer e às vezes até sentia alguma satisfação. Mas a pergunta continuava pipocando: qual a razão de tudo isso? Não tinha herdeiros para deixar alguma herança; seu único filho, um menino, havia morrido com poucos dias de vida. Ninguém estaria em casa quando voltasse à noite, ninguém com quem passar os fins de semana. Seu único prazer era jogar golfe. Tinha a clara consciência de que o jogo já havia se tornado mais uma obsessão que um passatempo. Ele preferiria jogar vinte e quatro horas por dia. Mas isso não pagava o aluguel, e ele tinha que continuar trabalhando até conseguir sua aposentadoria. Estava contando os dias.

 

Gösta sentou-se e encarou seu computador. Por razões de segurança, eles não tinham permissão para acessar a internet. Em vez disso, ele tinha que descobrir o nome do proprietário da casa pegando o telefone e ligando para a assistência à lista. Após uma breve conversa, ele rastreou o proprietário da casa de veraneio à qual pertencia a lata de lixo. Ele suspirou. Era uma tarefa sem sentido desde o início. Seu ceticismo se confirmou quando conseguiu o endereço do proprietário em Gotemburgo. Era óbvio que não tinha nada a ver com o homicídio. Foi apenas questão de azar que o assassino tenha escolhido aquela lixeira para descartar a garota.

 

Seus pensamentos foram parar na garota assassinada. Sua falta de iniciativa não tinha nada a ver com falta de compaixão. Sentia profundamente pelas vítimas e seus familiares e era grato por pelo menos não ter tido que vê-la. Martin ainda estava meio pálido quando deu de cara com ele no corredor.

 

Gösta sentia que já tinha visto sua cota de cadáveres ao longo dos anos. Após quarenta anos naquele serviço, ele ainda podia se lembrar de cada um deles. Na maior parte, vítimas de acidentes e suicídios; assassinatos eram exceção. Mas cada morte havia criado um sulco em sua memória e ele podia se recordar de lembranças tão claras quanto fotografias. Já havia tido que informar muita gente da morte de seus entes queridos, o que resultara em muitas lágrimas, desespero, choque e horror. Talvez seu desânimo fosse porque, a essa altura, o nível de tristeza no jarro de sua vida já estivesse no gargalo. Talvez cada morte, a dor e a infelicidade de cada pessoa tivessem acrescentado mais gotas ao recipiente e agora não havia mais espaço. Não era desculpa, mas uma possível explicação. Com um suspiro, pegou o telefone para contatar os proprietários da casa e informá-los de que um cadáver havia sido encontrado em sua lata de lixo. Discou os números. Melhor acabar logo com isso.

 

– Por que tudo isso? – Uffe parecia cansado e irritado, enquanto se sentava na sala de depoimentos.

 

Patrik não tinha pressa para responder. Antes de dizer qualquer coisa, ele e Martin colocaram os papéis cuidadosamente em ordem. Estavam sentados de frente para Uffe em uma mesa bamba. Fora as quatro cadeiras, era o único móvel da sala. Uffe não parecia particularmente nervoso, Patrik notou, mas ao longo dos anos já havia aprendido que o modo como um suspeito se comporta no interrogatório aparentemente tem pouco a ver com a forma como se sente. Ele pigarreou, cruzou as mãos sobre a pilha de papéis e se inclinou para a frente.

 

– Soube que houve problemas ontem à noite – Patrik estudou a reação de Uffe com atenção. Tudo que conseguiu foi um sorriso cínico. Uffe recostou-se despreocupadamente em sua cadeira. Deu uma risadinha.

 

– Ah, sim, aquilo. É, foi barra-pesada, pensando bem – fez um gesto na direção de Martin. – Talvez alguém devesse pensar em fazer uma denúncia de violência policial – ele riu de novo e Patrik sentiu sua raiva crescer.

 

– Bem – ele disse, calmamente –, nós recebemos um relatório do meu colega aqui e de outra policial que estava no local. Agora quero ouvir a sua versão.

 

– Minha versão – Uffe esticou as pernas até estar quase reclinado na cadeira. Não parecia muito confortável. – Minha versão é que houve uma pequena discussão. Uma discussão entre gente bêbada. Só isso. E daí? – seus olhos se estreitaram e Patrik pôde ver o cérebro do rapaz, desorientado pelo álcool, trabalhar freneticamente.

 

– Somos nós que fazemos as perguntas, não você – Patrik disse rispidamente. – Às dez da noite de ontem, dois de nossos oficiais viram você atacar uma das participantes do programa, Lillemor Persson.

 

– Barbie, você quer dizer – Uffe interrompeu, com uma risada. – Lillemor... Meu Deus, isso é engraçado.

 

Patrik teve que refrear o impulso de dar um tapa no jovem. Martin percebeu o que estava acontecendo, então assumiu o controle e deu a Patrik um momento para se recompor.

 

– Nós testemunhamos a forma como você empurrava e batia em Lillemor. O que deu início à briga?

 

– Bem, eu não entendo por que estão me atazanando por causa disso. Não foi nada. Tivemos uma pequena... discordância, só isso. Eu mal toquei nela! – nessa hora o ar casual de Uffe começou a se esvair e certo desconforto transpareceu.

 

– Sobre o que foi a discordância? – Martin prosseguiu.

 

– Nada! Ah, está bem, ela estava falando merda sobre mim e eu ouvi. Só queria que ela admitisse. E retirasse o que disse! Ela não pode ficar espalhando uma merda daquelas. Só queria que ela se tocasse.

 

– E o que era que você e os outros queriam que ela admitisse mais tarde? – disse Patrik, olhando para o relatório diante de si.

 

– É – disse Uffe. Estava sentado mais ereto agora. Seu sorriso cínico também desapareceu. – Mas vocês só precisam falar com a Barbie sobre isso, droga. Prometo que ela vai confirmar o que eu disse. Foi uma discussão. Não vejo por que a polícia tem que se envolver nisso.

 

Por um momento, Patrik e Martin trocaram olhares e então ele olhou calmamente para Uffe e disse:

 

– Sinto dizer que Lillemor não vai dizer muito sobre coisa alguma. Ela foi encontrada morta esta manhã. Assassinada.

 

O silêncio tomou conta da sala de entrevistas. Uffe estava pálido. Martin e Patrik aguardaram.

 

– Você... vocês dois... estão brincando, né? – ele disse, finalmente. Não houve reação dos detetives. O que Patrik disse lentamente se instalou em seu cérebro. Agora não havia mais o menor vestígio de sorriso.

 

– Que merda? Vocês acham que eu...? Mas eu... Foi só uma discussãozinha! Eu jamais... Eu não... Ele gaguejava e seus olhos não se fixavam em lugar nenhum.

 

– Vamos precisar de uma amostra de seu DNA – disse Patrik, apanhando o equipamento necessário. – Você não faz objeção, faz?

 

Uffe hesitou.

 

– Não, droga. Pegue a porra que quiser. Eu não fiz nada.

 

Patrik inclinou-se mais para a frente e, com um cotonete, colheu uma amostra do interior da bochecha de Uffe. Por um momento, Uffe pareceu se arrepender de ter consentido, mas então o objeto foi colocado dentro de um envelope e lacrado, e já era tarde demais. Uffe olhou para o envelope. Engoliu em seco e olhou para Patrik com os olhos arregalados.

 

– Vocês não vão cancelar a série agora, vão? Não podem fazer isso, podem? Quero dizer, vocês não podem! – sua voz estava cheia de desespero, e Patrik sentiu crescer todo o seu descaso por aquele espetáculo. Como um programa de TV podia ser mais importante que a vida de uma pessoa?

 

– Não cabe a nós decidir – disse ele, seco. – A produção é que vai determinar isso. Se a decisão fosse minha, eu teria acabado com essa porcaria toda em cinco segundos, mas... – ele jogou as mãos para o alto e viu a expressão de alívio espalhar-se pelo rosto de Uffe. – Pode ir agora – disse Patrik, lacônico. Ainda podia ver a imagem do corpo nu e sem vida de Barbie e sentiu um gosto amargo na boca ao pensar que sua morte se transformaria em entretenimento. O que passava pela cabeça dessas pessoas?

 

O dia havia começado tão bem para Erling. Um dia verdadeiramente glorioso, ele poderia dizer. Primeiro havia feito uma corrida longa ao ar fresco de primavera. Ele não era normalmente um desses amantes da natureza, mas naquela manhã havia se surpreendido com sua própria felicidade ao ver os raios de sol brilhando através da copa das árvores. A sensação de expansão em seu peito durou até chegar em casa e o instigou a fazer amor com Viveca, que ele esperava se provar facilmente persuasível, para variar. Essa era usualmente uma das poucas nuvens escuras na vida de Erling. Depois que se casaram, ela meio que perdeu o interesse por sexo. Ocorreu a ele que fora sem sentido encontrar para si uma esposa jovem e pura se não teria mais acesso a seu corpo. Não, isso teria que mudar. As atividades daquela manhã o haviam convencido ainda mais de que precisava ter uma conversa séria com a pequena Viveca sobre esse detalhe. Explicar a ela que um casamento se faz de favores, tanto dados quanto recebidos. E se ela ainda queria receber roupas, joias, diversão e belas coisas para sua casa, bem, então ela teria que encontrar um pouco de entusiasmo pelos favores que ele, como homem, exigia. Não havia nenhum problema com essa área antes de se casarem. Ela se instalou em um apartamento confortável pelo qual ele pagava. Isso quando tinha uma esposa a quem aturava havia trinta anos. Naquela época, ele e Viveca faziam sexo a qualquer hora e em vários lugares diferentes. Erling sentia sua libido despertar à mera lembrança. Talvez fosse hora de lembrá-la disso. Afinal, ele tinha grandes projetos prestes a serem concretizados.

 

Erling subiu o primeiro degrau das escadas para conversar com Viveca quando foi interrompido pelo toque do telefone. Por um momento, considerou deixar tocar, mas então dirigiu-se ao aparelho sem fio sobre a mesa de centro. Podia ser algo importante.

 

Cinco minutos depois, ali estava ele sentado, mudo, com o fone na mão. As consequências do que havia escutado estavam se atropelando em sua mente, e seu cérebro já tentava formular possíveis soluções. Levantou-se e gritou para o topo das escadas:

 

– Viveca, tenho que ir para o escritório. Algo aconteceu e eu preciso resolver.

 

Uma resposta abafada vinda do andar de cima confirmou que ela o ouvira, e ele vestiu uma jaqueta e pegou as chaves do carro que estavam penduradas num gancho ao lado da porta. Isso era algo com que não havia contado. Que diabos faria agora?

 

Em um dia como hoje, era ótimo ser o chefe. Mellberg lembrou a si mesmo por que estava ali planejando cuidadosamente como esconder a satisfação que sentia em seu íntimo. Teria que mostrar, em vez disso, uma combinação de empatia e determinação. Mas havia algo que lhe chamava a atenção no fato de estar sob os holofotes. Simplesmente combinava com ele. E não conseguiu deter o pensamento de como Rose-Marie reagiria ao vê-lo a todas as horas do dia ou da noite, como o homem forte da delegacia. Estufou o peito e endireitou os ombros, assumindo uma postura que exalava poder. Os flashes das câmeras quase o cegavam, mas ele manteve a atitude séria. Essa era uma oportunidade que não poderia deixar escapar de suas mãos.

 

– Vou dar-lhes mais um minuto para fazer fotos, mas depois vocês terão que se sentar por um momento. Podia ouvir como as vozes responderam com respeito e suprimiu uma onda de prazer. Era para fazer isso que havia nascido. Os flashes das câmeras pipocaram por mais alguns instantes até que ele levantou a mão e olhou por cima dos órgãos de imprensa que o rodeavam. – Como já sabem, encontramos o corpo de Lillemor Persson esta manhã – um mar de mãos se ergueu e ele fez um gesto benevolente para o repórter do Expressen.

 

– Já foi estabelecido por que ela foi assassinada? – todos aguardaram sua resposta com as canetas flutuando sobre os blocos de notas. Mellberg pigarreou.

 

– Até recebermos o relatório definitivo da autópsia, não podemos dizer ao certo. Mas todos os indícios são de que ela foi vítima de homicídio – sua resposta foi seguida por murmúrios e o riscar de caneta no papel. As câmeras de TV, marcadas com a sigla dos canais a que pertenciam, zuniam e as luzes brilhantes apontavam para ele. Mellberg ponderou a qual delas deveria dar prioridade. Após cuidadosa consideração, decidiu mostrar seu melhor ângulo para a câmera do canal TV4. Perguntas eram atiradas contra ele, que fez o gesto de permissão para outro repórter de um jornal noturno.

 

– Já tem algum suspeito? – mais um silêncio tenso em antecipação à resposta de Mellberg. Os holofotes confundiam seus olhos.

 

– Trouxemos vários indivíduos para depor – ele disse –, mas não temos um suspeito definido até o momento.

 

– O Sodding Tanum vai ser encurtado por conta disso? – dessa vez foi um repórter do telejornal do canal Aktuellt TV que fez a pergunta.

 

– Do modo como as coisas estão agora, não temos direito de tomar essa decisão, nem motivo. Isso é algo que será determinado pelos produtores do programa e pela direção da emissora.

 

– Mas um programa que tem a intenção de ser entretenimento pode realmente continuar a ser gravado depois que um de seus participantes é assassinado? – perguntou o mesmo repórter.

 

Claramente irritado, Mellberg disse:

 

– Como eu disse, não cabe a nós julgar esse assunto. Você vai ter que falar com a emissora de TV sobre isso.

 

– Ela foi estuprada? – ninguém mais esperava Mellberg acenar; as perguntas voavam em sua direção como pequenos projéteis.

 

– É uma pergunta que o médico legista terá que responder.

 

– Mas havia algum indício de violência sexual?

 

– Ela estava nua quando a encontramos, então vocês podem tirar suas próprias conclusões – assim que disse isso, Mellberg percebeu que provavelmente não fora boa ideia divulgar essa informação. Mas ele estava se sentindo pressionado pela situação, e um pouco de sua excitação com a coletiva de imprensa começava a diminuir. Isso era bem diferente de responder perguntas da imprensa local.

 

– O local em que ela foi encontrada tem algo a ver com o crime? – dessa vez era um dos repórteres locais, que finalmente conseguia enfiar uma pergunta. Os jornais das cidades grandes e as emissoras de TV pareciam ter cotovelos mais pontudos.

 

Mellberg pensou bem nessa resposta. Não queria falar demais novamente.

 

– Não há nada que indique isso até o presente momento – disse, por fim.

 

– Então onde ela foi encontrada? – a imprensa marrom agora entrava na conversa. – Há um boato de que ela foi encontrada em um caminhão de lixo. Isso está correto? – mais uma vez, os olhos de todos se fixaram no rosto de Mellberg. Ele lambeu os lábios, nervoso.

 

– Sem comentários – droga, eles eram espertos o bastante para saber que essa resposta significava que o que eles ouviram estava correto. Talvez se tivesse escutado Hedström. Logo antes da coletiva, Patrik havia se oferecido para responder a parte das perguntas. Mas Mellberg seria um idiota se abrisse mão de seu momento na ribalta. Só de pensar na oferta de Hedström, ficou tão irritado que se endireitou novamente e sentiu a coragem renovada.

 

– Sim? – apontou para uma repórter que já acenava havia um bom tempo, aguardando uma oportunidade.

 

– Os participantes de Sodding Tanum já foram interrogados?

 

Mellberg assentiu. Aquelas pessoas adoravam aparecer na mídia e se fazer de tolas, então não o incomodava nem um pouco compartilhar essa informação.

 

– Sim, nós já os interrogamos.

 

– Algum deles é considerado suspeito? – o Rapport estava gravando, e o repórter estendeu o microfone para captar a resposta de Mellberg.

 

– Em primeiro lugar, ainda não está confirmado tratar-se de um homicídio, e, não, não temos informações que apontem para nenhum suspeito específico até o momento – uma mentirinha à toa. Ele já havia lido o relatório de Molin e Kruse e já tinha uma imagem clara de quem era o culpado. Mas não era estúpido de compartilhar essa pepita até tudo estar concluído. As perguntas agora perdiam o vigor, e Mellberg pegou-se repetindo as mesmas respostas. Finalmente cansou-se e declarou o fim da coletiva de imprensa. Com as câmeras pipocando atrás de si, saiu do recinto da forma mais imponente que pôde. Queria que Rose-Marie visse um homem poderoso quando assistisse ao telejornal naquela noite.

 

Várias vezes, nos dias que se seguiram à morte de Barbie, Jonna via pessoas sussurrando e apontando para ela. Desde que participara do Big Brother, havia se acostumado a ser escrutinada. Mas isso era uma coisa totalmente diferente. Não era por curiosidade ou admiração, e sim porque ela havia aparecido na TV. Isso era a luxúria do sensacionalismo e uma espécie de sede de sangue da mídia que lhe causava arrepios.

 

Assim que soube de Barbie, teve vontade de ir para casa. Seu primeiro instinto foi o de fugir, voltar para o único lugar que conhecia, mas percebeu que não era uma opção. Em casa, encontraria apenas o mesmo vazio, a mesma solidão. Ninguém estaria lá para abraçá-la ou afagar-lhe os cabelos. Todos os gestos de consolo que seu corpo gritava por receber. Mas não havia ninguém que pudesse preencher essa necessidade. Nem em casa, nem aqui. Então decidiu que era melhor ficar.

 

O caixa atrás do dela parecia vazio. Havia outra garota lá agora, uma das funcionárias de sempre. Mas ainda parecia que não havia ninguém lá. Jonna estava atônita com o tamanho do vazio que Barbie havia deixado. Ela zombara da garota e a ignorara como pôde. Ela nem sequer a considerava um ser humano. Mas depois de tudo, agora que Barbie tinha morrido, Jonna percebia quanta alegria ela irradiava, contrariando toda a sua incerteza, sua insipidez loura, seu desejo por atenção. Barbie sempre fora aquela que os mantinha pra cima. Estava sempre rindo, excitada com o programa e tentando animar os outros participantes. Como agradecimento, eles a haviam desprezado e rejeitado como uma loira burra que não merecia o menor respeito. Só agora percebiam que ela havia, sim, contribuído.

 

Jonna puxou as mangas da blusa. Hoje ela não tinha o menor desejo de ser alvo de olhares estranhos, que transmitiam compaixão e curiosidade mórbida. Os ferimentos em seus braços estavam mais profundos que o normal. Ela havia se cortado todos os dias desde a morte de Barbie. Mais forte e mais brutalmente que nunca. Lacerando mais fundo em sua carne, até ver a pele abrir e espirrar sangue. Mas a imagem de seu fluido vermelho e pulsante não diminuía mais sua ansiedade. A sensação era agora tão arrebatadora que nada a podia conter.

 

Às vezes ouvia as vozes excitadas dentro de sua cabeça. Como uma gravação. Podia escutar o que era dito como se estivesse do lado de fora, por cima. Era terrível. Tudo tinha dado errado. Terrivelmente errado. A escuridão transbordava dentro dela e ela não podia detê-la. Toda a escuridão que ela tentava expelir com seu sangue, com seus ferimentos, explodia dentro dela como uma fúria desgovernada.

 

Agora Jonna sentia o vazio do caixa atrás de si se misturar com a vergonha. E o terror. Suas veias pulsavam. Mas o sangue queria sair.

 

– Que se dane tudo! Se eu puder dar minha opinião, nós vamos fechar esse circo! – Uno Brorsson bateu com o punho na grande mesa no centro comunitário e encarou Erling. Nem sequer olhava para Fredrik Rehn, que fora convidado para discutir o que havia ocorrido e relatar o ponto de vista da emissora.

 

– Eu acho que você deve se acalmar – Erling o repreendeu. Na verdade, tinha em mente pegar Uno pela orelha e arrastá-lo para fora da sala de reunião como uma criança desobediente, mas democracia era democracia, e ele teve refrear seu impulso. – O que aconteceu é incrivelmente trágico, mas não significa que temos que tomar decisões precipitadas com base puramente em emoções. Estamos aqui hoje para discutir o projeto de maneira sensata. Eu convidei Frank para que ele nos conte se, do lado deles, o programa continua ou não. Eu recomendo que ouçam o que ele tem a dizer. Apesar de tudo, é Fredrik quem tem experiência com esse tipo de produção. Mesmo o ocorrido sendo algo totalmente novo, e também trágico, como eu disse, tenho certeza de que ele tem algumas palavras de sabedoria a oferecer sobre como a coisa toda deve ser abordada.

 

– Idiota de Estocolmo – Uno resmungou alto o bastante para Fredrik ouvir. O produtor decidiu ignorar o comentário e postou-se de pé atrás de sua cadeira, com as mãos segurando o encosto.

 

– Bem, posso entender que isso mexeu demais com as emoções de todos. Claro que lamentamos a morte de Barbie, Lillemor, profundamente. Toda a equipe de produção e a direção em Estocolmo sentem muito pelo que aconteceu. Assim como eu pessoalmente – pigarreou e baixou os olhos, triste. Após um momento de silêncio incômodo, ele ergueu os olhos. – Mas como dizem na América: “O show tem que continuar”. Tenho certeza de que nenhum de vocês seria capaz de parar de trabalhar se algo, Deus os livre, acontecesse à sua família. Nós também não podemos. E eu estou convencido de que Barbie, Lillemor, gostaria que continuássemos – silêncio novamente, seu olhar lamentoso.

 

Uma fungada foi ouvida do outro lado da imensa mesa brilhante.

 

– Pobre criança – Gunilla Kjellin limpou com cuidado uma lágrima em seu guardanapo de papel.

 

Por um momento, Fredrik pareceu ligeiramente constrangido. E então prosseguiu:

 

– Também não podemos ignorar a realidade da situação. E a verdade é que investimos uma quantia considerável em Sodding Tanum, um investimento que sempre esperamos que fosse gerar ótimos dividendos, tanto para vocês quanto para nós. Nós conseguiríamos telespectadores e renda de publicidade, enquanto vocês ganhariam turistas e renda em turismo. Uma equação bem simples.

 

O diretor financeiro, Erik Bohlin, tentou levantar a mão indicando que tinha uma pergunta, mas Erling estava apreensivo que pudesse guiar a discussão para uma direção indesejada, então encarou o jovem economista para fazê-lo baixar a mão.

 

– Mas como isso vai trazer turistas agora? Assassinatos costumam ter um efeito... prejudicial ao turismo – o conselheiro anterior, Jörn Schuster, olhou para Fredrik Rehn com uma expressão dura e obviamente esperava uma resposta para sua pergunta. Erling sentiu sua pressão arterial começar a se elevar e contou até dez em silêncio. Por que as pessoas tinham que ser tão negativas? Era uma maldição ter que se sentar ali e fingir se preocupar com essa... gente que não aguentaria um dia na sauna que é o mundo real. Não no mundo ao qual ele estava acostumado nos seus anos como CEO. Com uma calma gélida, virou-se para Jörn.

 

– Devo dizer que estou extremamente decepcionado com a sua atitude, Jörn. Se havia alguém que eu esperava que conseguisse ver o panorama geral, era você. Um homem com a sua experiência não devia estar aqui perdido em detalhes. Estamos aqui para promover os melhores interesses da comunidade; não podemos criar obstáculos para qualquer coisa que possa nos ajudar a seguir adiante, como um bando de lamentáveis burocratas – podia ver como sua abordagem de elogio disfarçado trouxe um brilho incerto aos olhos do antigo conselheiro. Mais que tudo, Jörn queria ser visto como aquele que ainda estava no poder, como se tivesse deixado seu cargo voluntariamente para agir como uma espécie de mentor para o novato. Tanto Jörn, quanto Erling sabiam que esse não era o caso. Mas Erling estava disposto a entrar no jogo, se pudesse conseguir o que queria. A pergunta era se Jörn estaria tão disposto quanto ele. Erling esperou pacientemente. O silêncio pairou pesadamente sobre o recinto e todos olhavam tensos para Jörn a fim de ver como ele iria reagir. Após uma longa pausa para refletir, virou-se para Erling com um sorriso paterno, visível através de sua espessa barba branca.

 

– É claro que você está certo, Erling. Durante meus muitos anos como líder dessa comunidade, eu mesmo fiz passar grandes ideias sem ser prejudicado por gente “do contra” e detalhes ínfimos – assentiu com satisfação e olhou em volta da mesa. Os outros pareciam perplexos. Tentavam em vão se lembrar de que ideias Jörn estava falando.

 

Erling demonstrou sua aprovação a Jörn. A velha raposa havia tomado a decisão certa. Sabia em que cavalo apostar a longo prazo. Com o apoio de Jörn, Erling finalmente tocou no assunto.

 

– Com relação ao turismo, no momento estamos em uma situação única. Temos o nome de nossa cidade aparecendo em letras garrafais nas manchetes de todos os jornais do país. Sim, está ligado a uma tragédia, mas o fato é que o nome da cidade está sendo martelado na mente de quase todos os suecos. Isso é algo que pode virar a nosso favor. Sem dúvida. Estou pensando em propor que contratemos uma empresa de relações públicas para nos ajudar a fazer melhor uso da atenção da mídia.

 

Erik Bohlin começou a resmungar algo sobre “o orçamento”, mas Erling desprezou seu comentário como a uma mosca incômoda.

 

– Não vamos falar sobre o assunto agora, Erik. Foi exatamente sobre isso que falei agora há pouco; esses são meros detalhes. Agora que estamos pensando grande, o resto acontecerá naturalmente – voltou-se para Fredrik Rehn que seguia a conversa em torno da mesa, maravilhado. – E Sodding Tanum vai prosseguir com nosso total apoio. Estou certo? – Erling voltou-se para os outros, dirigindo a cada um deles um intenso olhar.

 

– É claro – incensou Gunilla Kjellin, olhando-o, admirada.

 

– É, que diabos, deixe a porcaria seguir em frente – disse Uno Brorsson, solenemente. – Não pode ficar pior do que já está.

 

– Eu concordo – disse Bohlin, lacônico, mas com um milhão de questões por trás de suas palavras.

 

– Bom, bom – disse Jörn Schuster, afagando a própria barba. – É um prazer ouvir que todos vocês enxergam o panorama geral como Erling e eu – deu a Erling um grande sorriso e este o retribuiu com outro sorriso forçado. “O velho pateta não sabe o que está falando”, pensou, mas deu um sorriso ainda mais largo. A coisa toda havia sido mais fácil do que imaginara. Puxa, ele era mesmo bom nisso!

 

– Peixe ou frango?

 

– Algo entre eles – respondeu Anna, rindo.

 

– Ah pare com isso – disse Erica, mostrando a língua para a irmã. Estavam sentadas na varanda, enroladas em cobertores e bebendo café. No colo, Erica tinha as sugestões do cardápio e estava com água na boca. Sua dieta rigorosa nas últimas semanas tinha reavivado suas papilas gustativas e feito sua fome disparar. Sentia que ia começar a babar de verdade.

 

– O que acha disso, por exemplo? – leu em voz alta para Anna. – Caudas de lagosta em cama de alface com vinagrete de limão como entrada, risoto de halibute com manjericão e cenouras assadas no mel como prato principal e cheesecake em calda de amoras para a sobremesa?

 

– Meu Deus, isso parece divino! – disse Anna, também com cara de quem estava com água na boca. – O halibute parece especialmente bom! – bebeu um gole de café, aconchegou-se um pouco mais no cobertor e olhou para o mar diante delas.

 

Erica estava perplexa com o modo como sua irmã mudara recentemente. Observou o perfil de Anna e viu em seu rosto certa calma que não se lembrava de ter visto antes. Ela sempre se preocupou com Anna. Era um prazer poder começar a se desapegar.

 

– Papai teria adorado nos ver sentadas aqui, tagarelando – ela disse. – Ele sempre quis nos fazer entender que tínhamos que estar sempre próximas uma da outra, como irmãs. Ele achava que eu te protegia demais.

 

– Eu sei – Anna disse, sorrindo, virando-se para encarar Erica. – Ele também conversava comigo, tentava me fazer ter mais responsabilidade, ser mais adulta, não colocar muito peso em suas costas. Porque eu fazia isso. Não importa quanto eu protestasse que você me superprotegia, de certa forma eu gostava daquilo. E sempre esperei que você fosse a mais madura e que ia cuidar de tudo.

 

– Eu me pergunto como seria se a mamãe tivesse tido mais responsabilidade. Era trabalho dela ser a adulta, afinal, não meu – Erica sentia um aperto no peito sempre que pensava em sua mãe. A mãe que durante toda a sua infância estava presente fisicamente, mas com o pensamento sempre longe.

 

– Não faz bem especular sobre isso – Anna disse, pensativa, puxando o cobertor até o queixo. Mesmo com o sol brilhando sobre elas, o vento estava frio e se embrenhava em todas as frestas. – Quem sabe que tipo de bagagem ela carregava consigo? Pensando bem, não me lembro de ela jamais falar de sua infância, sobre sua vida antes de papai. Não é estranho? – disse Anna, perplexa. Nunca havia pensado nisso. As coisas sempre foram assim e pronto.

 

– A coisa toda é estranha, se quer saber minha opinião – disse Erica, rindo. Mas ela mesmo percebia o tom amargo daquela risada.

 

– Mas vamos falar sério por um momento – disse Anna. – Consegue se lembrar de Elsy falando sobre sua infância, seus pais, como conheceu papai, qualquer coisa que seja? Não me lembro de um comentário sequer. E ela também não tinha fotografias. Me lembro de pedir para ver fotografias da vovó e do vovô uma vez e ela ter ficado muito irritada e dizer que eles já estavam mortos havia tanto tempo que ela não fazia ideia de onde tinha colocado aquelas velharias. Não é um pouco estranho? Quero dizer, quem não tem fotos antigas? Ou pelo menos não sabe onde elas estão?

 

De repente, Erica percebeu que Anna estava certa. Ela também nunca tinha visto nada sobre o passado de Elsy. Era como se sua mãe só tivesse começado a existir quando a foto de seu casamento com Tore fora tirada. Antes daquilo não havia... nada.

 

– Bem, você vai ter que fazer uma pesquisa sobre isso um dia desses – disse Anna, e Erica notou que ela queria mudar de assunto. – Você sabe fazer essas coisas. Decidiu-se pela sugestão que leu para mim? Eu acho que parece fantástica!

 

– Tenho que verificar com Patrik primeiro e ver se ele acha que uma boa ideia – disse Erica. – Tenho que admitir que me sinto meio fútil por incomodá-lo com detalhes como este quando ele está no meio de uma investigação de assassinato. Parece um pouco... superficial, de alguma forma.

 

Colocou o cardápio no colo e olhou melancólica para o horizonte. Ela mal tinha visto Patrik nos últimos dias e sentia saudade dele. Mas compreendia. O assassinato daquela garota era horrendo e ela sabia que Patrik queria pegar o assassino mais que qualquer coisa. Ao mesmo tempo, sua falta de trabalho era acentuada pelo fato de que ele estava com um grande volume de trabalho e fazia algo muito importante. Claro que sua contribuição também era essencial. Ser mãe era mais importante que tudo; é claro que ela sabia disso e acreditava nisso também. Mas não conseguia evitar querer fazer algo... adulto. Algo em que ela pudesse ser Erica e não somente a mãe de Maja. Agora que Anna havia emergido do crepúsculo que a mantivera prisioneira, Erica tinha esperança de começar a escrever algumas horas por dia. Tinha mencionado a ideia para Anna, que se ofereceu entusiasticamente para cuidar de Maja enquanto ela escrevia.

 

Então Erica começou a procurar novos projetos, um caso real de assassinato que tivesse um lado humano excitante e que ela achasse que daria um bom livro. Depois dos dois anteriores, ela fora exposta a algumas críticas pela mídia. Vários críticos afirmaram que ela mostrava sinais de algum tipo de mentalidade de hiena quando escrevia sobre casos de assassinato reais. Mas Erica não via as coisas dessa forma. Sempre tinha o cuidado de ouvir todos os lados e sempre tentava fazer tudo que podia para apresentar o mais justo e multifacetado panorama possível do ocorrido. Também não achava que os livros teriam vendido tanto se não tivessem sido escritos com empatia. Mas precisava admitir que fora mais fácil escrever o segundo, em que ela não tinha uma ligação pessoal com o caso como tivera com o assassino de seu amigo Alex Wijkner. Era mais difícil se manter objetiva quando tudo que escrevia era colorido com suas próprias experiências.

 

Pensar nos livros só aumentou seu desejo de começar a trabalhar.

 

– Acho que vou navegar um pouco na internet – disse, levantando-se. – Pensei em ver se encontro algum caso novo sobre o qual escrever. Pode cuidar de Maja por um tempo se ela acordar?

 

Anna sorriu.

 

– Eu cuido de Maja, vá trabalhar. Boa pesca!

 

Erica riu e foi para seu escritório. A vida em casa tinha ficado muito mais fácil ultimamente. Ela só desejava que Patrik conseguisse logo uma folga do caso em que estava trabalhando.

 

O cheiro de água salgada. Pássaros piando no céu e o azul se estendia até onde ele podia enxergar. A sensação do balançar de um barco. A sensação de que algo estava diferente. Alguém tinha desaparecido. Algo que havia sido quente e macio se tornara duro e afiado. Braços que o abraçavam, mas tinham um cheiro forte e desagradável, que estava impregnado nas roupas e na pele. Mas o pior cheiro de todos saía da boca da mulher. Ele não conseguia se lembrar de quem era ela. E não sabia por que estava tentando se lembrar. Parecia que havia sonhado com algo durante a noite, algo ruim, mas ainda familiar. Algo que ele queria conhecer melhor.

 

E ele não conseguia deter suas perguntas. Não sabia por quê. Por que ele não podia aceitar tudo, como sua irmã? Ela sempre ficava com tanto medo quando ele fazia perguntas. Ele queria deixá-la em paz. Mas não conseguia. Não quando sentia o cheiro de água salgada e se lembrava do vento nos cabelos dela. E do homem que costumava balançar ele e sua irmã no ar. Enquanto a outra, a mulher cuja voz que antes era suave e depois se tornara ríspida, ficava ao lado dele e olhava. Às vezes, em sua memória, ele achava que a via sorrir.

 

Mas talvez fosse como ela dizia. Ela que era real e bonita e os amava. Aquilo foi só um sonho. Um pesadelo que ela iria substituir por sonhos bons e adoráveis. Ele não a contradizia. Mas às vezes se pegava com saudade do cheiro salgado. E dos pássaros piando. Até da voz ríspida. Mas jamais ousaria dizê-lo.

 

– Martin, que diabos estamos fazendo, afinal? – Patrik arremessou a caneta na mesa, frustrado. Ela quicou no tampo e caiu no chão. Martin a pegou calmamente e a colocou no porta-lápis de Patrik.

 

– Só se passou uma semana, Patrik. Isso leva tempo, você sabe.

 

– Tudo que eu sei é que as estatísticas mostram que, quanto mais se demora para revolver um caso, menor é a probabilidade de que ele seja solucionado.

 

– Mas estamos fazendo tudo o que podemos. Não há mais horas no dia – Martin estudou Patrik por um momento. – A propósito, você não deveria tirar a manhã de folga, tomar um longo banho, relaxar um pouco? Você parece exausto.

 

– Relaxar? No meio desse circo? Eu acho que não – Patrik passou a mão pelos cabelos, que já estavam tão despenteados que ficaram de pé. O telefone tocou com um som agudo e ambos pularam. Irritado, Patrik levantou o fone e o desligou novamente. Ele ficou em silêncio por um minuto e depois tocou outra vez. Frustrado, Patrik foi até a sala principal e gritou:

 

– Droga, Annika, desconecte meu telefone, pode ser? – voltou a seu escritório e bateu a porta atrás de si. Vários outros telefones na delegacia tocaram sem parar, mas com a porta fechada não faziam tanto barulho.

 

– Qual é, Patrik, isso não vai dar certo. Você está a ponto de subir pelas paredes. Precisa descansar um pouco. Precisa comer. E talvez seja uma boa ideia você ir até lá e pedir desculpas para a Annika, senão ela vai te amaldiçoar. Ou te dar sete anos de azar. Ou você nunca mais vai poder saborear um dos bolinhos caseiros que ela traz às sextas-feiras à tarde.

 

Patrik voltou a sentar-se pesadamente em sua cadeira, mas teve de sorrir.

 

– Os bolinhos, você diz? Acha que ela seria tão maquiavélica a ponto de me negar seus bolinhos?

 

– Talvez até a fornada especial, com caramelo feito em casa e fudge de chocolate do Natal, – Martin fez com a cabeça um gesto de quem fingia seriedade.

 

Patrik entrou na brincadeira e arregalou os olhos:

 

– Não, não o de chocolate! Ela não seria tão vil.

 

– Eu acho que ela seria – disse Martin. – Então, talvez fosse melhor você ir lá e pedir desculpas.

 

Patrik riu.

 

– Ah, ok, eu vou – correu a mão por seus cabelos castanhos novamente. – Eu só não esperava esse... cerco. Os repórteres de TV e jornais são loucos. Não parecem ter o menor escrúpulo. Será que não percebem que estão sabotando nossa investigação quando ficam nos caçando assim? É impossível trabalhar!

 

– Eu acho que avançamos bastante em uma semana – Martin disse calmamente. – Nós entrevistamos todos os colegas de elenco de Lillemor, examinamos o vídeo da noite da festa em que ela desapareceu e estamos verificando cada pista que recebemos do público. Acho que estamos fazendo um belo trabalho. Sobre o fato de as coisas estarem mais caóticas por causa de Sodding Tanum, bem, não há muito o que possamos fazer.

 

– Acredita que decidiram continuar transmitindo aquela porcaria? – Patrik jogou as mãos para cima. – Uma garota é assassinada e eles usam isso como entretenimento em horário nobre. E o resto da Suécia senta e assiste. Eu acho que isso mostra uma incrível falta de respeito.

 

– Mais uma vez, você está certo – disse Martin, agora com mais rispidez na voz. – Mas o que podemos fazer? Mellberg e aquele Erling W. Larson são tão aparecidos que nem consideraram cancelar a produção. Mas nós só precisamos continuar fazendo nosso trabalho. A situação não vai mudar. E eu ainda digo que tanto você quanto a investigação se beneficiariam de um descanso.

 

– Eu não vou para casa, se é isso que está insinuando. Eu não tenho tempo. Mas nós poderíamos almoçar no restaurante. Isso conta como descanso? – encarou Martin, mas sabia que seu colega tinha razão.

 

– Vai ter que servir, acho – disse Martin, levantando-se. – E lembre-se de pedir desculpas para Annika na saída.

 

– Sim, mamãe – disse Patrik. Pegou seu paletó e seguiu Martin pelo corredor. Só então percebeu como estava com fome.

 

À volta deles, os telefones continuavam tocando.

 

Kerstin não conseguiria encarar a ideia de ir ao trabalho. Ela na verdade não precisava ir, ainda estava de licença por doença e o médico lhe aconselhara a pegar leve. Mas ela tinha sido criada com uma forte ética profissional que a obrigava a cuidar de seu emprego, não importava o preço. De acordo com seu pai, estar no leito de morte seria o único motivo válido para não ir ao serviço.

 

O único problema era que ela se sentia assim. Seu corpo funcionava: movia-se, comia, lavava-se e fazia tudo o que era necessário, mas mecanicamente. Por dentro, era como se estivesse morta. Nada mais parecia importante. Nada lhe dava qualquer sensação de alegria ou mesmo interesse. Tudo parecia frio e morto. A única coisa que restava dentro dela era a dor, que às vezes ficava tão forte que a fazia se dobrar.

 

Duas semanas haviam se passado desde que a polícia fora à sua porta. Assim que ouviu a batida, soube de alguma forma que isso iria mudar sua vida. Todas as noites, quando ia para a cama e tentava dormir, lembrava-se da discussão que tivera com Marit. Ela jamais poderia escapar da certeza de que a última conversa que tiveram foi repleta de raiva. Kerstin desejava ternamente poder retirar pelo menos parte das palavras duras que havia atirado a Marit. Mas o que isso importava agora? Por que não podia deixar isso pra lá? Por que queria tanto que Marit tomasse uma posição e tornasse público o relacionamento entre ambas? Por que isso era tão importante? A coisa mais importante deveria ser estarem juntas. O que as outras pessoas sabiam ou pensavam ou diziam agora era tão insignificante. E ela não conseguia entender por que, no passado distante, na verdade apenas duas semanas atrás, ela chegara a pensar que era tão crucial.

 

Incapaz de decidir o que fazer, Kerstin deitou-se no sofá e ligou a TV com o controle remoto. Cobriu-se com o cobertor que Marit havia comprado durante uma de suas raras viagens para casa, na Noruega. Cheirava à lã e ao perfume de Marit. Kerstin enterrou o rosto no cobertor e respirou fundo, desejando que a fragrância preenchesse o vazio dentro dela. Partículas de lã penetraram em seu nariz e a fizeram espirrar.

 

De repente, sentiu saudade de Sofie. A menina que tanto a fazia lembrar Marit e tão pouco Ola. Sofie tinha vindo ver Kerstin duas vezes. Fizera isso para consolar Kerstin, apesar de parecer que ia chorar a qualquer momento. A menina, de uma hora para outra, havia adquirido um ar adulto, que nunca esteve aparente antes. Certa maturidade dolorosa que era totalmente nova. Kerstin queria poder tirar isso dela, queria fazer voltar o relógio e trazer de volta a ingenuidade que meninas da idade de Sofie deveriam ter. Mas nela isso se fora para sempre. Kerstin também sabia que perderia Sofie. A menina não havia percebido ainda; sem dúvida tinha toda a intenção de permanecer ligada à companheira de sua mãe. Mas a vida não ia permitir isso. Havia tantas outras coisas que teria que fazer, coisas que iriam assumir o comando quando a dor passasse: amigos, namorados, escola, tudo que faz parte da vida de um adolescente. Além disso, Ola ia tornar difícil para ela manter o contato. Com o tempo, Sofie não seria capaz de continuar lutando. As visitas se tornariam menos frequentes e finalmente cessariam por completo. Dali um ano ou dois, Kerstin e Sofie poderiam até se cumprimentar caso se encontrassem na rua, talvez trocar algumas palavras, mas então cada uma se viraria e seguiria seu caminho. A única coisa que restaria seriam as memórias de outra vida, memórias que, como as partículas de névoa, iriam se espalhar se tentassem agarrá-las. Ela ia perder Sofie. É assim que as coisas são.

 

Kerstin zapeava indiferentemente pelos canais. Eram na maioria programas em que os telespectadores tinham que telefonar e adivinhar palavras. Terrivelmente chatos. Seus pensamentos foram para o assunto que a preocupava tanto nas duas últimas semanas. Quem iria querer machucar Marit? Quem a capturaria no meio de seu desespero por conta da briga delas, no meio de sua raiva? Será que ela teve medo? Sua morte foi rápida ou lenta? Teria sido dolorosa? Será que ela sabia que ia morrer? Todas essas perguntas se atropelavam na cabeça de Kerstin sem encontrar respostas. Ela havia acompanhado as matérias sobre o assassinato da garota do reality show, tanto nos jornais quanto na TV, mas se sentia estranhamente alheia a tudo; ainda estava completamente tomada por sua própria dor. Em vez disso, ficou preocupada que esse segundo assassinato pudesse tirar recursos da investigação da morte de Marit. A atenção da mídia faria a polícia passar todo o tempo tentando encontrar o assassino da garota, e eles não iriam mais se preocupar com Marit.

 

Kerstin sentou-se e buscou o telefone na mesa de centro. Se ninguém mais ia fazer coisa alguma, ela iria pelo menos cuidar que os interesses de Marit estivessem protegidos. Ela lhe devia isso.

 

Desde a morte de Barbie, eles se reuniam em um círculo no meio do centro comunitário uma vez ao dia. A princípio, houve protestos. Um silêncio solene seguido de comentários mordazes, mas depois de Fredrik explicar que isso era a condição para prosseguirem com as gravações, todos eles relutantemente aceitaram cooperar. Depois de mais ou menos uma semana, começaram, de um jeito constrangido, a aguardar ansiosos pela terapia em grupo com Lars. Ele não era arrogante com eles, ele ouvia, fazia comentários que não pareciam deslocados e falava com eles em seus próprios termos. Até Uffe relutantemente começava a gostar de Lars, ainda que preferisse morrer a admitir abertamente. As sessões em grupo também eram complementadas por conversas individuais e ninguém mais protestava quanto a elas. Ninguém no grupo estava exatamente exultante com o processo da terapia, mas agora prevalecia um ar de aceitação resignada.

 

– Como se sentiram nesses últimos dias? Com tudo o que aconteceu? – Lars olhou para um participante após o outro, esperando que alguém começasse a falar. Seus olhos pararam em Mehmet.

 

– Acho que está tudo bem – Mehmet disse, depois de um momento. – Tem sido um caos tão grande que nós, tipo, quase nem tivemos tempo para pensar.

 

– Pensar sobre o quê? – disse Lars, incentivando-o a explicar melhor.

 

– Sobre o que aconteceu. Sobre Barbie – Mehmet olhou para as próprias mãos. Lars tirou os olhos dele e correu-os pelos demais.

 

– Acha que é uma coisa boa? Que vocês não tenham tempo para pensar nisso? É assim que tem sido a experiência dos demais? Que o caos tem sido positivo?

 

Outro momento de silêncio.

 

– Não para mim – disse Jonna, triste. – Eu acho que está sendo difícil. Muito difícil.

 

– De que maneira? Que aspecto disso tudo tem sido difícil? – Lars inclinou a cabeça para o lado.

 

– Pensar no que aconteceu com ela. Ver imagens em minha mente. Como ela deve ter morrido e coisas assim. E a forma como ela estava naquela... lata de lixo. Tão nojento.

 

– Vocês todos veem imagens também? – o olhar de Lars pousou sobre Calle.

 

– Claro, pode acreditar que sim. Mas pensar nisso não faz nenhum bem. Barbie ainda vai estar morta.

 

– Então não acha que seria melhor para vocês lidar com essas imagens? Confrontá-las?

 

– Porra, é melhor tomar outra cerveja. Não acha, Calle? – Uffe chutou Calle na canela e riu, mas logo se retraiu por trás de sua expressão solene quando notou que ninguém comprara a ideia. Lars deslocou o foco para Uffe, o que o fez se contorcer na cadeira. Ele era o único que ainda se recusava teimosamente a participar do processo, como Lars o chamava.

 

– Uffe, você sempre se faz parecer durão. Mas o que vem à sua mente quando pensa em Barbie? Que tipo de imagem passa pela sua cabeça?

 

Uffe olhou em volta como se não pudesse acreditar no que estava ouvindo. Que imagem mental de Barbie? – ele riu e olhou para Lars.

 

– Bem, qualquer um que disser que os seios não são a primeira coisa de que se lembram está mentindo. Aquilo eram bombas de silicone! – pôs as mãos em forma de cálice e olhou em volta, buscando apoio do grupo. Mas ninguém parecia se divertir dessa vez também.

 

– Meus Deus, Uffe, cale a boca! – Mehmet disse, irritado. – Você é tão estúpido quanto parece ou está só se exibindo?

 

– Por que diabos acha que pode me criticar? – Uffe inclinou-se na direção de Mehmet com uma expressão hostil, mas parecia ter ciência, em algum lugar naquele cérebro de réptil, de que seus comentários poderiam não ser apropriados. Novamente se fechou em um sorriso solene. Ninguém gostava de Barbie quando era viva, mas agora todos se sentavam aqui como bebês chorões e falavam sobre ela como se sua melhor amiga tivesse morrido.

 

– Tina, você não falou muito. Como a morte de Lillemor te afetou?

 

– Foi tão trágico – ela tinha lágrimas nos olhos e sacudia a cabeça. – Quero dizer, ela tinha toda a vida pela frente. E uma carreira internacional de certa forma. Ela ia fazer um ensaio para uma grande revista quando o programa terminasse, isso já estava certo e também tinha falado com um cara sobre ir para os Estados Unidos e tentar fazer a Playboy. Quero dizer, ela poderia ter sido a nova Victoria Silvstedt. Victoria já está envelhecendo, e Barbie estava pronta para assumir. Conversávamos muito sobre isso e ela era tão ambiciosa. Legal pra caramba também. Isso é uma merda, é tão trágico – agora as lágrimas corriam e ela as enxugava com a mão, com cuidado para não borrar o rímel.

 

– É, é triste pra cacete, é verdade – disse Uffe. – O mundo perdeu a próxima Victoria Silvstedt. Tipo, o que vai ser do mundo agora? – ele riu, mas ergueu as mãos na defensiva quando viu os olhares de desdém dirigidos a ele. – Está bem, está bem, eu vou calar minha boca. Fiquem aí tagarelando, seus idiotas hipócritas.

 

– Você parece estar sentindo uma enorme frustração a respeito de tudo isso, Uffe – Lars disse gentilmente.

 

– Não é frustração. Eu só acho que eles são uns falsos de merda. Sentados aí, chorando por causa de Barbie, sendo que não se importavam nada com ela quando estava viva. Pelo menos eu estou sendo sincero – ele jogou as mãos para cima.

 

– Você não é sincero – Jonna resmungou. – Você só está sendo um imbecil.

 

– Olha só, a louca de pedra está falando. Puxa aí suas mangas pra eu ver sua última obra de arte. Louca do caralho – ele riu e Lars se levantou.

 

– Eu não acredito que vamos obter mais progressos hoje. Uffe, eu acho que você e eu deveríamos ter nosso encontro individual agora.

 

– Beleza, beleza. Mas não pense que eu vou sentar lá e chorar. Esses outros trouxas fazem isso tão bem – ele se levantou e deu um tapa na parte de trás da cabeça de Tina, o que a fez se virar e socá-lo. Ele apenas riu e saltitou atrás de Lars. Os outros o observaram partir.

 

Rose-Marie estava a caminho de Tanumshede para o almoço. Era o primeiro encontro dos dois desde o jantar e Mellberg estava esperando com excitação febril o relógio bater meio-dia. Olhou para o relógio, que

ainda indicava que faltavam dez minutos, enquanto batia o pé do lado de fora. Os ponteiros se arrastavam, e ele olhava de lá para cá entre o relógio e os veículos que entravam no estacionamento de vez em quando. Ele havia sugerido o mesmo restaurante da outra vez. Em termos de atmosfera romântica, não havia lugar melhor.

 

Cinco minutos depois, ele viu o pequeno Fiat vermelho de Rose-Marie entrar no estacionamento. Seu coração começou a bater de modo estranho e ele sentiu sua boca secar. Verificou, em ato reflexo, se seus cabelos estavam no lugar. Enxugou as mãos nas calças e foi ao encontro dela. O rosto de Rose-Marie se iluminou quando o viu e ele teve que reprimir um impulso de incliná-la para trás e dar-lhe um beijo bem longo no meio do estacionamento. A força de seus sentimentos o surpreendia. Sentia-se como um adolescente novamente. Eles se abraçaram e apertaram as mãos e ele a deixou ir à sua frente para dentro do restaurante. Sua mão tremia um pouquinho quando a tocou nas costas por um segundo.

 

Quando entraram no restaurante, ele teve uma surpresa. Em uma das mesas próximas à janela, Hedström e Molin olhavam para ele, estupefatos. Rose-Marie olhou-o com curiosidade e depois para seus dois colegas, e Mellberg relutantemente percebeu que teria que fazer as devidas apresentações. Martin e Patrik cumprimentaram Rose-Marie com sorrisos largos. Mellberg suspirou. As fofocas na delegacia começariam logo. Por outro lado... Rose-Marie não era definitivamente uma mulher ao lado de quem ele teria vergonha de ser visto.

 

– Gostariam de se juntar a nós? – Patrik apontou as duas cadeiras vazias em sua mesa.

 

Mellberg estava a ponto de declinar quando ouviu Rose-Marie dizer um alegre “sim”. Ele disse um palavrão baixinho. Estava ansioso para ficar sozinho com ela. Um almoço com Hedström e Molin definitivamente não iria proporcionar a intimidade romântica que ele tinha visualizado. Mas teria que sorrir e aguentar. Olhou irritado para Patrik pelas costas de Rose-Marie. E então, resignado, puxou uma cadeira para ela. Hedström e Molin pareciam não acreditar no que seus olhos viam. Não era de surpreender. Jovens da idade deles provavelmente nunca ouviram a palavra “cavalheiro”.

 

– Que prazer conhecê-la... Rose-Marie – disse Patrik, olhando para ela do outro lado da mesa. Ela sorriu e as ruguinhas de expressão ao redor de seus olhos ficaram mais pronunciadas. Mellberg não conseguia parar de olhar para ela. Havia algo na forma como seus olhos brilhavam e seus lábios se curvavam para cima quando sorria, que... não, ele não conseguia pôr em palavras.

 

– Onde vocês dois se conheceram? – a voz de Molin tinha um tom ligeiramente divertido, e Mellberg encarou-o carrancudo. Ele esperava de verdade que eles não pensassem que podiam tirar sarro às suas custas. E de Rose-Marie.

 

– No baile, em Munkedal – os olhos de Rose-Marie brilharam. – Bertil e eu fomos arrastados para lá por nossos amigos e não estávamos tão entusiasmados com tudo aquilo. Mas às vezes o destino nos guia para o caminho certo – sorriu para Mellberg e ele sentiu-se enrubescer de felicidade. Então ele não era o único tolo sentimental. Rose-Marie também sentia que havia algo de especial naquela primeira noite.

 

A garçonete chegou à mesa para anotar os pedidos.

 

– Peçam o que quiserem, hoje é por minha conta! – Mellberg ouviu-se dizer, para seu imenso espanto. Arrependeu-se por um instante, mas o olhar de admiração que recebeu de Rose-Marie fortaleceu sua determinação. Descobriu, talvez pela primeira vez em sua vida, o verdadeiro valor do dinheiro. O que eram poucas centenas de coroas comparadas ao apreço que viu nos olhos de uma mulher bonita? Hedström e Molin olharam para ele pasmos, e ele bufou irritado.

 

– Olhem aqui, peçam logo antes que eu mude de ideia e desconte dos seus salários.

 

Ainda em estado de choque, Patrik gaguejou:

 

– Eu vou querer a solha – e Molin, tão embasbacado quanto ele, só conseguiu fazer um gesto que indicava que ia querer o mesmo.

 

– Eu vou querer o picadinho – disse Mellberg, e então olhou para Rose-Marie.

 

– E você, minha querida? O que a dama gostaria de pedir hoje? – Mellberg ouviu Hedström tossir, engasgado com um gole d’água. Olhou com reprovação para Patrik e pensou que era embaraçoso estar na companhia de dois adultos que não sabiam se comportar. A juventude de hoje tinha grandes lacunas em sua educação de berço.

 

– Eu vou querer o filé de lombo de porco, por favor – disse Rose-Marie, desdobrando o guardanapo e colocando-o no colo.

 

– Você mora em Munkedal? – perguntou Martin, polidamente, servindo mais água para a mulher sentada ao seu lado.

 

– No momento, estou morando em Dingle – ela disse, bebendo um gole d’água antes de continuar. – Recebi uma oferta de aposentadoria antecipada e não pude recusar, então decidi morar mais perto de minha família. Agora estou hospedada na casa de minha irmã até encontrar um lugar para mim. Morei na costa leste por muito tempo, então quero me habituar com a área antes de decidir onde plantar minhas raízes. Quando eu me instalar, terão de me carregar de lá na horizontal.

 

Ela deu uma risadinha que fez o coração de Mellberg parar por um instante. Como se tivesse percebido isso, ela prosseguiu, tímida, com olhos baixos:

 

– Vamos ver o que acontece. Tudo depende das pessoas que conhecemos – ela ergueu os olhos e encontrou o olhar de Mellberg. Ele não se lembrava de ter sido tão feliz. Abriu a boca para dizer algo, mas nesse exato momento a garçonete chegou com a comida. Rose-Marie virou-se para Patrik, com uma pergunta:

 

– Como vão as coisas para vocês com esse assassinato terrível? Pelo que soube por Bertil, foi algo bem chocante.

 

Por um momento, Patrik se concentrou em equilibrar peixe, batatas, molho e vegetais no garfo que se dirigia para sua boca.

 

– Sim, terrível é certamente a palavra correta para isso – ele disse ao terminar de mastigar. – E também não tem sido fácil para nós, com esse circo que a mídia está fazendo. – Ele olhou pela janela na direção do centro comunitário.

 

– Sim, eu não entendo como as pessoas podem achar divertido parar para assistir tamanho lixo – Rose-Marie sacudiu a cabeça. – Especialmente depois de um evento tão trágico. As pessoas são como urubus!

 

– Verdade, verdade – disse Martin, sombrio. – Eu acho que é porque elas não encaram como pessoas reais quem aparece na TV. É a única explicação que eu consigo encontrar. De que outra forma poderiam suportar divertir-se com tamanha tragédia?

 

– Vocês suspeitam que algum dos outros participantes esteja envolvido no assassinato? – Rose-Marie baixou a voz de maneira conspiratória.

 

Patrik olhou para seu chefe. Não se sentia confortável discutindo aspectos da investigação com alguém de fora da polícia. Mas Mellberg permaneceu em silêncio.

 

– Estamos investigando o caso de todos os ângulos possíveis – disse Patrik, com cautela. – Ainda não nos concentramos em nenhum suspeito específico – ele decidiu esquecer o assunto.

 

Comeram em silêncio por um tempo. A comida estava boa, mas o esdrúxulo quarteto não conseguia encontrar um tópico em comum para conversar. De repente, o silêncio foi quebrado pelo toque agudo de um telefone. Patrik procurou no bolso por seu celular e então se levantou e andou rapidamente para a entrada enquanto atendia. Ele não queria perturbar os demais clientes. Voltou após alguns minutos. Voltou-se para Mellberg sem tornar a se sentar.

 

– Era Pedersen. O relatório da autópsia de Lillemor Persson foi concluído. Podemos ter mais pistas para seguir em frente – sua expressão era sombria.

 

Hanna estava curtindo o silêncio de sua casa. Decidiu ir até lá para almoçar; a viagem de carro levava poucos minutos. Após os cansativos últimos dias, era muito bom poder dar um descanso aos ouvidos do som dos telefones tocando. Em casa, ela ouvia apenas o barulho distante do tráfego da rua lá fora.

 

Sentou-se à mesa da cozinha e soprou a comida que havia aquecido no micro-ondas. Era o estrogonofe de linguiça do jantar da noite anterior, um prato que ela sempre achava que era mais gostoso no dia seguinte. Era um prazer estar sozinha em casa. Ela amava Lars demais. Mas quando ele estava em casa, havia sempre aquela tensão, aquela preocupação silenciosa no ar. Ela percebeu quanto aquilo a deixava exausta.

 

O problema era que ela sabia que seu relacionamento estava sendo drenado por algo que eles nunca poderiam mudar. O passado era como um cobertor pesado e úmido que sufocava tudo em suas vidas. Às vezes, ela tentava fazer Lars entender que eles tinham que erguer aquele cobertor juntos, deixar entrar um pouco de ar, um pouco de luz. Mas ele não conhecia outra forma de viver que não no escuro e na umidade. Pelo menos era algo familiar.

 

Ela frequentemente ansiava por algo novo. Algo diferente desse ciclo vicioso miserável em que eles tinham entrado. Nos últimos anos, ela sentira que um filho poderia ser capaz de apagar o passado. Uma criança que poderia iluminar a escuridão, aliviar o peso e permitir que respirarassem de novo. Mas Lars se recusara. Não queria nem discutir o assunto. Ele tinha seu trabalho, dissera; e ela, o dela; isso bastava. Mas ela sabia que não. Sempre faltava algo. Isso nunca terminava. Um filho faria tudo aquilo acabar. Abatida, pousou o garfo no prato. Tinha perdido o apetite.

 

– Como vão as coisas com você? – Simon dirigiu a Mehmet um olhar preocupado enquanto se sentava de frente para ele à mesa, em um canto da padaria. Haviam trabalhado duro e agora estavam se permitindo uma pequena pausa. Mas isso significava que Uffe tinha que cuidar dos pedidos na loja, então Simon ficava olhando inquieto naquela direção.

 

– Ele não consegue arruinar tudo em cinco minutos. Eu não acho, pelo menos – disse Mehmet, rindo.

 

Simon relaxou e riu também.

 

– Infelizmente, eu já perdi as esperanças quanto a aquela “aquisição” em particular para o meu quadro de funcionários – disse. Eu devo ter tirado o palito curto quando foi feita a distribuição de tarefas no elenco – bebeu um gole de café.

 

– Pode ser. Mas você também conseguiu a mim! – disse Mehmet com um sorriso largo. – Então, se juntar Uffe e eu, você tem um funcionário mediano.

 

– Sim, você tem razão quanto a isso. Peguei você também! – disse Simon, rindo. Ele então ficou sério e olhou longamente para Mehmet, mas este decidiu não corresponder. Havia muitas dúvidas e palavras não ditas naquele olhar, com as quais ele não podia lidar no momento. Se é que um dia conseguiria.

 

– Você não respondeu minha pergunta. Como vão as coisas com você? – Simon insistiu.

 

Mehmet sentiu tremores nervosos em suas mãos. Tentou ignorar a pergunta.

 

– Ah, estou bem. Eu não a conhecia muito bem. Mas há uma gritaria tão grande em torno disso. Pelo menos, os caras da TV estão felizes. Os números da audiência estão batendo todos os recordes.

 

– É, eu vejo vocês dois o suficiente na loja todos os dias, então não consegui assistir a um único episódio ainda – Simon baixou um pouco a intensidade de seu olhar. Mehmet permitiu-se relaxar. Deu uma mordida caprichada em uma rosquinha que acabara de sair do forno, deliciando-se com o sabor e o aroma da canela.

 

– Como foi? Ser interrogado pela polícia? – Simon também pegou uma rosquinha e engoliu quase um terço dela em uma mordida.

 

– Não foi tão ruim – Mehmet não se sentia muito confortável falando sobre isso com Simon. Além disso, estava mentindo. Não queria contar a verdade sobre como fora humilhante sentar-se naquela salinha, como fora bombardeado com perguntas e como as respostas que dera nunca eram satisfatórias.

 

– Eles foram muito educados. Não creio que eles suspeitem seriamente de algum de nós – ele evitou os olhos de Simon. Imagens se sucediam em sua mente, mas ele as afastou na hora. Recusava-se a aceitar do que elas queriam lembrá-lo.

 

– O psicólogo com quem vocês conversam, ele é bom? – Simon inclinou-se para a frente e deu outra boa mordida na rosquinha enquanto esperava pela resposta de Mehmet.

 

– Lars é legal. Está sendo bom poder falar com ele.

 

– Como Uffe está aceitando? – Simon apontou com a cabeça para a loja, onde podiam ver Uffe passar correndo pela porta, fingindo tocar guitarra em uma baguete. Mehmet não conseguiu conter o riso.

 

– O que acha? Uffe é... bem, Uffe. Mas poderia ser pior. Nem ele ousa questionar Lars. Não, ele está bem.

 

Uma senhora de idade entrou na padaria e Mehmet a viu se proteger da dança selvagem de Uffe.

 

– Acho que está na hora de socorrer os fregueses.

 

Simon virou-se a fim de ver para onde Mehmet estava olhando e levantou-se prontamente.

 

– Você tem razão, a sra. Hjertén pode ter um infarto se não a ajudarmos.

 

Quando eles entraram na loja, a mão de Simon sem querer roçou a de Mehmet. Mehmet se afastou como se tivesse sido queimado.

 

– Erica, eu tenho que ir a Gotemburgo hoje à tarde, então vou chegar em casa um pouco tarde. Lá pelas oito, acho.

 

Enquanto ouvia a resposta de Erica, podia escutar Maja balbuciando ao fundo. Sentiu na hora uma saudade aguda de casa. Poderia mandar tudo para o inferno, ir para casa, jogar-se no chão e brincar com a filha. Também tinha se aproximado muito de Emma e Adrian nos últimos meses e queria poder passar mais tempo com eles. E se sentia culpado por Erica ter que cuidar de tantas coisas antes do casamento, mas, do jeito que as coisas estavam, não tinha outra opção. A investigação se encontrava em seu estágio mais intenso e ele não tinha tempo para mais nada. Sorte dele Erica ser tão compreensiva, pensou enquanto entrava no carro. De início, pensou em pedir a Martin que fosse com ele, mas não era necessário que os dois fossem até Pedersen. Martin merecia uma chance de ir para casa ficar com Pia. Ele também vinha trabalhando demais ultimamente. Assim que Patrik engatou a marcha para sair com o carro, o telefone tocou novamente.

 

– Hedström – ele disse, ligeiramente irritado por imaginar ser mais uma bateria de perguntas de um repórter. Quando ouviu quem era, lamentou o tom impaciente de sua voz.

 

– Olá, Kerstin – ele disse, desligando o motor. A leve sensação de culpa que sentia havia uma semana agora o atingia em cheio. Ele havia negligenciado a investigação da morte de Marit por estar trabalhando no caso de Lillemor. Não fora uma decisão consciente, mas a pressão da mídia era enorme depois do assassinato da garota. Com uma careta, ouviu o que Kerstin tinha a dizer e então respondeu:– Nós... nós não descobrimos muita coisa, sinto dizer.

 

– Eu entendo, vocês devem estar muito ocupados ultimamente.

 

– Deixe-me assegurá-la de que nós não perdemos o foco na investigação da morte de Marit – fez outra careta, achando de mau gosto ter de mentir. Mas o que poderia fazer agora era tentar compensar o tempo perdido. Ficou ali sentado por um instante, depois de desligar o telefone. E então ligou para outro número e passou os cinco minutos seguintes conversando com alguém que soava muito confuso com o que ele dizia. Aliviado, Patrik dirigiu-se para Gotemburgo.

 

Duas horas depois, ele chegou ao Laboratório de Medicina Forense, em Gotemburgo. Logo encontrou o caminho para o escritório de Pedersen e bateu na porta. Eles normalmente se comunicavam por fax ou telefone, mas dessa vez Pedersen havia insistido em discutir os resultados da autópsia pessoalmente. Patrik suspeitava que o grande interesse da mídia fosse a razão para que os chefões não quisessem deixar nada para a sorte.

 

– Olá! Há quanto tempo! – disse Pedersen quando Patrik entrou. Ele se levantou e os dois se cumprimentaram.

 

– Sim, é verdade. Faz tempo desde a última vez que nos vimos, apesar de conversarmos por telefone o tempo todo – disse Patrik, sentando-se na cadeira do visitante, de frente para a enorme mesa de Pedersen.

 

– Sinto que nem sempre tenha boas notícias para te dar.

 

– Não, mas são sempre importantes – disse Patrik.

 

Pedersen sorriu. Era alto e forte, mas tinha uma natureza gentil que contrastava com a brutalidade que via em sua profissão. Seus óculos estavam constantemente caindo para a ponta do nariz, e seus cabelos ligeiramente grisalhos estavam sempre despenteados. Sua aparência poderia enganar um observador e fazê-lo acreditar que Pedersen era distraído e descuidado. Mas isso não poderia estar mais longe da verdade. Os papéis em sua mesa ficavam em pilhas organizadas, e as pastas e fichários estavam cuidadosamente etiquetados nas prateleiras. Pedersen era meticuloso com detalhes. Agora ele pegava um bloco de papéis e os estudava, antes de olhar para Patrik e falar:

 

– A garota foi estrangulada, sem dúvida. Há fraturas no osso hioide, assim como no grande corno da cartilagem tiroidal. Mas ela não tinha marcas de corda, apenas os hematomas dos dois lados do pescoço, que correspondem a estrangulamento manual – ele colocou uma grande fotografia diante de Patrik e apontou os hematomas aos quais se referia.

 

– Então, está dizendo que alguém a estrangulou com as mãos.

 

– Sim – disse Pedersen. Ele sempre tinha compaixão pelas vítimas que iam parar em sua mesa de autópsia, mas raramente demonstrava em seu tom de voz. – Uma evidência adicional de estrangulamento é que ela teve petéquias, ou pontos de sangue na conjuntiva dos olhos e na pele em torno deles.

 

– É necessária muita força para estrangular alguém dessa forma? – Patrik não conseguia desviar os olhos das fotografias de Lillemor, sua face pálida e ligeiramente azulada.

 

– Mais do que se imagina. Demora um bom tempo para estrangular alguém, e a pessoa tem que manter pressão forte e constante na garganta. Mas nesse caso – ele tossiu e virou-se por um momento, antes de continuar –, nesse caso o perpetrador facilitou o próprio trabalho.

 

– Como? – Patrik se inclinou para a frente, com interesse. Pedersen procurou nas páginas até encontrar o trecho que procurava.

 

– Aqui. Encontramos traços de sedativo em seu sistema. Aparentemente ela adormeceu primeiro e depois foi estrangulada.

 

– Oh, merda – disse Patrik, novamente olhando para as fotos de Lillemor.

 

– Foi possível descobrir como o sedativo foi administrado? Se foi misturado a alguma coisa, eu quero dizer.

 

Pedersen balançou a cabeça.

 

– O estômago dela era um verdadeiro coquetel do demônio. Não temos ideia do que ela bebeu, mas o odor de álcool era impressionante. A garota estava extremamente bêbada na hora de sua morte.

 

– Sim, soubemos que a festa estava boa naquela noite. Acha que ela recebeu o sedativo em um de seus drinques?

 

Pedersen atirou as mãos para cima.

 

– Impossível dizer.

 

– Ok, então ela dormiu e foi estrangulada. Disso nós já sabemos. Há mais pistas?

 

Pedersen passou os olhos pelos papéis outra vez.

 

– Sim, há mais ferimentos. Ela parece ter tomado alguns golpes pelo corpo, e uma das faces tinha uma hemorragia tanto subcutânea quanto na musculatura, como se tivesse levado uma bofetada com força.

 

– Isso corresponde ao que sabemos sobre aquela noite – disse Patrik, sinistro.

 

– Ela também tinha cortes profundos nos punhos. Devem ter sangrado bastante.

 

– Cortes – disse Patrik. Ele não havia notado isso quando a viu no caminhão de lixo. Por outro lado, ele não tinha dado uma boa olhada nela. Tinha visto o corpo e logo desviado o olhar. Essa informação era inegavelmente importante.

 

– O que pode me dizer sobre os cortes?

 

– Não muito – Pedersen eriçou os cabelos e Patrik teve uma sensação de déjà-vu, pensando na imagem de si mesmo, que via no espelho nos últimos dias – Os ferimentos estão localizados de tal forma que eu não acredito que foram autoinfligidos. Se bem que isso está se tornando moda hoje em dia, particularmente entre as meninas mais jovens, de se cortar.

 

Patrik viu a imagem de Jonna na sala de entrevistas, com seus braços completamente lacerados dos punhos até os cotovelos. Uma ideia começava a se formar. Mas teria que esperar até mais tarde.

 

– E a hora? – Patrik perguntou. – Pode dizer a que horas ela morreu?

 

– Como você sabe, nós não estamos lidando com uma ciência exata nesse caso, mas a temperatura de seu corpo quando ela foi encontrada indica que ela morreu após a meia-noite. Em torno de três ou quatro da manhã, é meu palpite como profissional.

 

– Está bem – disse Patrik, pensativo. Não se incomodou em fazer anotações. Ele sabia que receberia uma cópia do relatório da autópsia antes de sair.

 

– Mais alguma coisa? – podia ouvir como soava esperançoso. Esteve tateando no escuro na semana anterior, sem pistas definidas para avançar a investigação. Estava pronto a se agarrar a qualquer migalha.

 

– Bem, nós conseguimos tirar uns pelos interessantes de sua mão. Estou imaginando que o perpetrador a despiu para remover possíveis provas, mas não percebeu o fato de que ela se agarrou algo, presumivelmente quando estava morrendo.

 

– Então eles podem não ter vindo do caminhão de lixo?

 

– Não. Não, considerando a forma como estavam presos em sua mão fechada.

 

– É? – Patrik sentiu a impaciência crescer como um calor em seu corpo. Viu, pela atitude de Pedersen, que isso era bom, que finalmente encontraram algo útil. – Que tipo de pelos?

 

– Pelos de cachorro. De um galgo espanhol de pelo duro, para ser mais exato. Isso de acordo com o Laboratório Nacional de Criminalística. Colocou o papel com o relatório do LNC diante de Patrik. O documento misericordiosamente cobriu a foto de Lillemor.

 

– É possível fazer uma correspondência entre o pelo e um cão específico?

 

– Sim e não – respondeu Pedersen, sacudindo a cabeça de leve, com pesar. – O DNA canino é tão específico e identificável quanto o DNA humano. Mas, assim como em gente, o folículo tem que estar ligado ao corpo para ser possível extrair DNA. E quando um cão perde o pelo, normalmente o folículo não está incluído. Nesse caso, não havia folículos. Por outro lado, uma vantagem é que o galgo espanhol é uma raça muito incomum. Só há por volta de duzentos em toda a Suécia.

 

Patrik olhou para ele impressionado, com os olhos arregalados.

 

– Você sabe tudo isso de memória? Seu conhecimento é bem amplo, não?

 

Pedersen riu.

 

– Desde que a série CSI estreou na TV, nossa reputação aumentou muito. Todos pensam que sabemos tudo sobre tudo! Mas, infelizmente, eu terei que te decepcionar. Acontece que meu sogro é uma das duzentas pessoas que criam um galgo espanhol. E toda vez que nos encontramos, eu tenho que ouvir tudo sobre o maldito cachorro.

 

– Sei como é isso. Tive uma experiência parecida. Não com a família de minha noiva; os pais dela infelizmente morreram em um acidente de carro há poucos anos. Mas o pai de minha ex-mulher. No caso, o assunto eram carros que tinham que ser vendidos.

 

– Sim, sogros e sogras podem ser bastante obcecados por algumas coisas, mas acho que todos nós podemos – Pedersen riu, mas logo ficou sério. – Se tiver quaisquer perguntas sobre os pelos de cachorro que foram encontrados, terá que perguntar diretamente ao LNC. Tudo o que sei é o que passaram nesse relatório, do qual eu te darei uma cópia.

 

– Ótimo – disse Patrik. – Só tenho mais uma pergunta. Não há então sinal algum de violência sexual ligada à morte de Lillemor? Nenhum sinal de estupro ou coisa assim?

 

Pedersen sacudiu a cabeça.

 

– Não há indício disso. O que não significa que o assassinato não tenha relação com sexo, mas não há prova que aponte para estupro.

 

– Obrigado por sua ajuda – Patrik disse, levantando-se de sua cadeira.

 

– Como vai seu outro caso? – Pedersen perguntou de repente e Patrik caiu sentado na cadeira novamente. Seu rosto demonstrava culpa.

 

– Aquilo... aquilo infelizmente foi negligenciado – disse, triste. – Tem sido um caos tão grande com a TV e os jornais e os chefes ligando a cada cinco minutos, perguntando se chegamos a algum lugar com o caso de Lillemor, que o outro foi meio que colocado em banho-maria. Mas isso vai mudar. Vou começar agora a reverter essa situação.

 

– Bem, quem quer que seja o culpado deve ser preso o mais rapidamente possível. Nunca vi nada como aquilo. Que maneira mais fria de matar uma pessoa.

 

– Sim, eu concordo. – disse Patrik, apático. Estava pensando na voz de Kerstin ao telefone algumas horas antes. Como havia soado desanimada e desesperada. Ele não podia se perdoar por negligenciar a investigação da morte de Marit. – Mas, como eu disse, minhas prioridades vão mudar a partir de agora. Espero conseguir algumas respostas hoje mesmo – levantou-se, pegou a pilha de papéis que Pedersen havia lhe dado e agradeceu-o com um aperto de mão.

 

De volta a seu carro, dirigiu-se ao local onde esperava encontrar mais algumas respostas. Ou pelo menos novas perguntas.

 

– Conseguiu algo de bom com Pedersen? – Martin escutava ao telefone e tomava notas enquanto Patrik lhe dava um apanhado geral do que Pedersen havia dito. – A parte dos pelos de cachorro foi bem interessante. Nos dá um ponto de partida bem específico – continuou ouvindo – Cortes? Sim, entendo aonde quer chegar. Uma pessoa parece de particular interesse. Outro interrogatório? Claro. Posso pegar Hanna e levá-la comigo. Sem problemas.

 

Depois de um breve “tchau”, Martin desligou o telefone e permaneceu em silêncio por um instante. E então se levantou e foi encontrar Hanna.

 

Exatamente meia hora depois, estavam sentados na sala de interrogatório, diante de Jonna. Não precisaram ir muito longe para encontrá-la. Estava em seu local de trabalho, no Hedemyr, do outro lado da rua a partir da delegacia.

 

– Então, Jonna. Da última vez, nós falamos com você sobre a noite de sexta-feira. Há alguma coisa que gostaria de acrescentar? Pelo canto do olho, Martin viu Hanna observar Jonna como um falcão. Tinha um olhar tão inflexível que até ele se sentia compelido a desembuchar todos os seus pecados. Ele esperava que ela tivesse o mesmo efeito sobre a garota à sua frente. Mas Jonna evitou os olhos dela, olhou para a mesa e simplesmente resmungou uma resposta.

 

– O que disse, Jonna? Você precisa falar mais alto, porque nós não conseguimos ouvir o que está dizendo! – disse Hanna, insistentemente. Martin viu como a aspereza de sua voz forçava Jonna a olhar para ela. Era impossível não obedecer às ordens de Hanna.

 

Em voz baixa, mas clara, Jonna disse:

 

– Eu já falei tudo o que sei sobre sexta-feira.

 

– Acredito que não disse – a voz de Hanna cortou o ar como uma das lâminas que Jonna usava em seus braços. – Eu acho que não disse nem metade do que sabe!

 

– Não sei do que está falando – nervosa, Jonna puxou as mangas compulsivamente. Martin viu as cicatrizes sob sua blusa e estremeceu. Ele não compreendia nada daquilo. Como alguém podia voluntariamente se ferir daquele jeito?

 

– Pare de mentir para nós! – Hanna elevou a voz e Martin também teve um sobressalto. Cara, ela era durona.

 

Hanna prosseguiu, agora em voz insidiosamente baixa.

 

– Sabemos que está mentindo, Jonna. Temos provas de que está mentindo. Agora é a sua chance de nos dizer exatamente o que aconteceu.

 

Uma sombra de incerteza passou pelo rosto de Jonna. Agora ela cutucava incessantemente sua blusa de tricô grande demais. Depois de um momento de hesitação, ela disse:

 

– Não sei do que está falando.

 

A mão de Hanna bateu com força no tampo da mesa.

 

– Pare de falar besteira! Nós sabemos que você a cortou.

 

Os olhos de Jonna encontraram os de Martin, angustiados, e ele disse em tom de voz mais calmo:

 

– Jonna, se sabe de mais alguma coisa, nós precisamos ouvir. Mais cedo ou mais tarde, a verdade vai aparecer e seria muito melhor se você pudesse nos explicar.

 

– Mas... – ela olhou nervosamente para Martin, mas deixou o corpo cair para a frente, derrotada. – Sim, eu a cortei com uma lâmina – disse em voz baixa. – Quando estávamos brigando, antes de ela fugir.

 

– Por que fez isso? – perguntou Martin calmamente, instigando-a com o olhar.

 

– Eu... eu... não sei bem. Eu estava tão furiosa. Ela tinha falado um monte de coisas sobre mim, porque eu, tipo, me corto, e eu só queria que ela soubesse como é – ela olhou de Martin para Hanna. – Eu não entendo o porquê... Quero dizer, eu normalmente não fico furiosa daquele jeito, mas eu tinha bebido um pouco e... – ela parou de falar e olhou para a mesa.

 

Sua postura era tão retraída e triste. Martin teve que refrear o desejo de abraçá-la. Mas lembrou-se de que ela estava sendo interrogada em uma investigação de assassinato. Olhou para Hanna. O rosto dela estava rígido, sua expressão era remota e ela não parecia ter a menor compaixão pela garota.

 

– E o que aconteceu depois disso? – ela disse bruscamente.

 

Jonna fixou os olhos na mesa e respondeu.

 

– Foi nessa hora que vocês apareceram. Conversaram com os outros e com Barbie também. Ela ergueu os olhos e olhou para Hanna. Martin virou-se para sua colega.

 

– Você notou que ela estava sangrando?

 

Hanna pareceu parar para pensar, mas então sacudiu a cabeça lentamente.

 

– Não, devo admitir que não notei. Estava escuro e ela mantinha os braços cruzados, então era difícil enxergar. E então ela saiu correndo.

 

– Há mais alguma coisa que não tenha nos contado? – o tom de Martin era gentil e Jonna respondeu dando-lhe um olhar agradecido.

 

– Não, nada. Eu juro – ela sacudiu a cabeça vigorosamente e seus longos cabelos caíram sobre seu rosto. Quando ela os colocou para trás, eles viram toda a teia de cortes em seu antebraço, e Martin não conseguiu evitar um soluço de espanto. Jesus Cristo, aquilo deve ter lhe causado muita dor. Ele não conseguia nem tirar um curativo e só de pensar em lacerar sua própria carne, não, ele nunca conseguiria fazer isso.

 

Depois de uma olhada interrogativa para Hanna, que ela respondeu com um aceno de cabeça, ele juntou seus papéis.

 

– Nós vamos voltar a falar com você, Jonna. Eu não preciso dizer que não fica bem para você guardar informações em uma investigação de assassinato. Confio que vá nos notificar voluntariamente caso se lembre ou ouça qualquer coisa.

 

Ela assentiu de leve.

 

– Posso ir agora?

 

– Sim, pode ir – disse Martin. Eu levo você até a porta.

 

Quando ela saiu da sala de interrogatório, virou-se a fim de olhar para Hanna, que estava sentada, rebobinando a fita no gravador. Tinha uma expressão lúgubre.

 

Demorou um pouco até Patrik se encontrar nas ruas de Borås. Havia recebido instruções de como chegar à delegacia, mas, uma vez lá, nada mais parecia fazer sentido. Contudo, após algumas indicações dos moradores locais, conseguiu encontrar a delegacia e estacionar o carro. Não precisou esperar mais que poucos minutos na recepção até o inspetor Jan Gradenius aparecer e levá-lo até seu escritório. Depois de um sim agradecido para uma xícara de café, Patrik sentou-se em uma das cadeiras para convidados. O inspetor sentou-se à sua escrivaninha e lançou-lhe um olhar curioso.

 

– Bem – disse Patrik, bebendo um gole do café, que estava muito bom. – Temos um caso bastante estranho em nossas mãos, em Tanumshede.

 

– Refere-se ao assassinato da garota do reality show?

 

– Não – disse Patrik. – Recebemos uma chamada sobre um acidente de carro na semana anterior ao assassinato de Lillemor Persson. Uma mulher havia perdido o controle do carro e saído da estrada, caindo numa vala e colidindo com uma árvore. A princípio parecia se tratar de um acidente com apenas um carro e uma vítima fatal, o que foi revisto por conta do fato de que a mulher estava extremamente embriagada antes de morrer.

 

– Mas não foi isso o que aconteceu? – o inspetor Gradenius inclinou-se para a frente, interessado. Tinha mais de sessenta anos, Patrik supunha, alto e atlético e com uma farta cabeleira grisalha, mas que provavelmente havia sido loura. Patrik não conseguiu evitar a inveja quando comparou sua calvície à abundância de cabelos de Gradenius. Percebeu que, da maneira como as coisas andavam, ele estaria mais parecido com Mellberg que com Gradenius quando chegasse à idade dos dois. Patrik suspirou, bebeu mais um gole de café e então respondeu à pergunta do inspetor.

 

– Não. O primeiro sinal de que algo ali não fazia sentido é que todos os que conheciam a vítima juraram que ela jamais tocara em uma gota de álcool – viu as sobrancelhas de Gradenius elevarem-se, mas seguiu fazendo seu relato. No tempo certo, o inspetor chegaria às próprias conclusões.– Isso foi inegavelmente um sinal de alerta, e quando a autópsia indicou algumas circunstâncias estranhas, então... bem, nós finalmente concluímos que a vítima fora assassinada – Patrik pôde ouvir como o jargão policial soava seco e impessoal quando tinha que explicar o que na verdade era uma tragédia. Mas era a linguagem que ambos conheciam e cujas nuances compreendiam.

 

– E o que a autópsia mostrou? – disse Gradenius, seus olhos fixos em Patrik. Ele parecia já saber a resposta.

 

– A vítima apresentava níveis etílicos de 0,61, mas boa parte do álcool foi encontrada em seus pulmões. Também havia ferimentos e hematomas em torno de sua boca e em sua garganta e sinais de fita adesiva ao redor dos lábios. Também havia marcas nos tornozelos e nos punhos, o que indica que a vítima foi confinada de alguma forma.

 

– Eu reconheço tudo o que está me dizendo – disse Gradenius, pegando uma pasta que estava em sua mesa –, mas como me encontrou?

 

Patrik riu.

 

– Documentação exagerada, de acordo com um de meus colegas. Nós dois estivemos na conferência em Halmstad alguns anos atrás. Um dos trabalhos era que cada grupo teria que apresentar uma conclusão para um caso não solucionado. Algo com que estávamos intrigados, mas não sabíamos como proceder. Você apresentou um caso que me lembrou esse nosso caso atual. Eu tinha guardado as minhas anotações, então antes de ligar para você pude verificar se minha memória não falhara.

 

– Nada mau, devo dizer. Estou impressionado que tenha se lembrado. É uma sorte para nós dois. Aquele caso me incomodou por anos, mas a investigação chegou a um beco sem saída. Ficarei feliz em te dar toda a informação que temos e quem sabe você possa nos dar as suas também.

 

Patrik concordou e pegou os papéis que Gradenius lhe oferecia.

 

– Posso levá-los comigo?

 

– Certamente, são apenas cópias. Gostaria de repassar as informações comigo?

 

– Eu prefiro dar uma olhada sozinho antes. Posso telefonar para você depois disso; tenho certeza de que terei várias perguntas. E eu te mandarei sem falta uma cópia de nosso material, o mais rápido possível. Vou providenciar que lhe seja enviado amanhã.

 

– Parece ótimo – disse Gradenius, levantando-se. – Seria muito bom resolver esse assunto. A mãe da vítima está estarrecida e ainda sofre com isso. De vez em quando, ela liga para mim. Seria maravilhoso poder ter algo a dizer a ela.

 

– Vamos fazer o melhor possível – disse Patrik, apertando a mão de seu colega. Segurando a pasta contra o peito, dirigiu-se à saída. Não via a hora de voltar e ler o arquivo. Tinha a sensação de que isso seria uma reviravolta. Tinha que ser.

 

Lars se atirou no sofá e colocou as pernas na mesa de centro. Estava tão cansado ultimamente. Aquela exaustão constante e paralisante que o assolava e se recusava a deixá-lo. Suas dores de cabeça também eram mais frequentes; era como se uma gerasse a seguinte. A exaustão e as dores de cabeça formavam uma espiral sem fim que o arrastava cada vez mais para baixo. Massageou as têmporas, aliviando um pouco a dor. Quando sentiu a pressão dos dedos de Hanna nos seus, colocou as mãos no colo, inclinou-se para trás e fechou os olhos. Os dedos dela continuaram a massagear e pressionar. Ela sabia exatamente onde friccionar. Tinha adquirido muita prática ultimamente.

 

– Como se sente? – ela disse de maneira suave, enquanto movia os dedos gentilmente para frente e para trás.

 

– Bem – disse Lars, notando como a preocupação na voz dela o invadia e se instalava como uma irritação indesejada. Ele não queria que ela se preocupasse. Ele detestava quando ela se preocupava.

 

– Você não parece bem – ela disse, acariciando-lhe a testa. A carícia era deliciosa, mas ele não conseguia relaxar por conta de todas as questões não ditas dela. Irritado, ele afastou as mãos dela e endireitou-se na cadeira.

 

– Eu disse que estou bem. Só um pouco cansado. Deve ser febre da primavera.

 

– Febre da primavera? – disse Hanna com uma risada que era tanto amarga quanto irônica. – Vai culpar a primavera, agora? – ela continuava de pé atrás do sofá.

 

– Sim, em que diabos você quer colocar a culpa? Talvez no fato de que eu venho trabalhando como um louco ultimamente. Tanto no livro quanto tentando manter na linha aquela molecada idiota do centro comunitário.

 

– Que maneira respeitosa de falar sobre seus clientes, ou melhor, pacientes. Você fala pra eles que os considera uns idiotas? É um bom meio de facilitar a terapia, eu pensaria.

 

Sua voz era ferina e ela tinha a clara intenção de que ele sentisse a alfinetada. Ele não entendia por que ela fazia isso. Por que não podia simplesmente deixá-lo em paz? Lars esticou-se para pegar o controle remoto e sentou-se no sofá, dando as costas a Hanna. Depois de zapear pelos canais por um tempo, parou em um quiz e testou seus conhecimentos contra os participantes. Ele sabia todas as respostas corretas.

 

– Você tem mesmo que trabalhar tanto? E naquele programa? – ela acrescentou. Tudo que ela dizia deixava o ar entre eles carregado.

 

– Eu tenho que trabalhar de alguma forma – respondeu Lars, desejando que ela se calasse. Às vezes se perguntava se ela o entendia mesmo. Se compreendia tudo o que ele fazia por ela. Ele virou-se e olhou para ela.

 

– Eu estou fazendo o que tenho que fazer, Hanna. Como sempre. Você sabe disso.

 

Seus olhos se encontraram por um segundo. E então Hanna se virou e saiu da sala. Logo depois, ele pôde ouvir a porta da frente se fechar.

 

Na TV, o quiz ainda cuspia desafios.

 

– O que é O velho e o mar? – ele perguntou. Elas eram todas fáceis demais.

 

– Bem, o que acham do programa até agora? – Uffe abriu uma cerveja para cada uma das garotas, que deram risinhos quando as pegaram.

 

– Ótimo! – disse a loira.

 

– Muito legal! – disse a morena.

 

Calle não estava com a menor vontade de fazer isso essa noite. Uffe tinha arrastado para dentro duas garotas que ficavam do lado de fora do centro comunitário, e agora ele estava no meio de uma azaração pesada. Até onde fosse possível, pelo menos. Cantadas não eram seu forte.

 

– De quem vocês gostam mais? – Uffe passou o braço sobre os ombros da loira e chegou mais perto. – De mim, não é? – cutucou a menina na altura das costelas e riu, recebendo uma risadinha encantada como resposta. Ganhando coragem, continuou:– Bem, não é exatamente uma competição. Só eu sou homem de verdade aqui dentro – bebeu um gole da cerveja diretamente na garrafa e então apontou-a para Calle. – Esse cara, por exemplo. Um daqueles típicos mauricinhos de Stureplan, não é tipo para garotas legais como vocês duas. Tudo que eles sabem fazer é estourar o cartão de crédito do papai – as meninas riram e ele prosseguiu. – Mehmet, por outro lado – apontou para Mehmet, que estava deitado em sua cama, lendo um livro –, ele é o extremo oposto de um mauricinho que vocês possam imaginar. É um genuíno wog da classe operária. Sabe como subir na vida, mas não consegue escapar à realidade de que o sangue sueco é o melhor – esticou os braços e tentou enfiar a mão debaixo da blusa da loira. Ela percebeu na hora o que ele queria fazer e, depois de um olhar ansioso para a câmera apontada para eles, tirou a mão dele discretamente. Uffe pareceu insatisfeito por um momento, mas se recuperou rapidamente de sua derrota. Levaria um tempo para as meninas se esquecerem da presença da câmera. Mas, depois disso, elas estavam no papo. Seu objetivo nas poucas semanas do programa era conseguir transar um pouquinho – ou bastante, já que estava no assunto – debaixo das cobertas. Porra, ele poderia virar uma lenda por isso. Chegara bem perto na ilha, se pelo menos aquela garota de Jokkmokk estivesse um pouquinho mais bêbada. Isso ainda o emputecia e o deixava louco por vingança.

 

– Droga, Uffe, vamos pegar leve, está bem? – Calle estava ficando cada vez mais irritado.

 

– O que quer dizer com pegar leve? – Uffe tentou enfiar a mão de novo, mas também sem nenhum sucesso. – Não estamos aqui pra pegar leve. E eu pensando que você era o maior festeiro daqui! Ou você é bom demais pra curtir em qualquer outro lugar que não Stureplan? – Uffe soou malicioso.

 

Calle buscou apoio em Mehmet, mas este parecia totalmente concentrado em seu livro de literatura fantástica. Calle sentiu mais uma vez quanto estava cansado daquela bosta toda. Nem sabia por que tinha feito o teste, para começar. Survivor fora outra coisa, mas isso! Trancado aqui com esses idiotas. Fez um gesto exagerado para mostrar que estava colocando os fones de ouvido e deitou-se, ouvindo música em seu iPod. O volume alto misericordiosamente calou o falatório de Uffe e ele deixou seus pensamentos correrem soltos. Foi inexoravelmente levado ao passado. Primeiro para as memórias mais antigas. Imagens de sua infância, granuladas e tremidas, como se filmadas em Super 8. Ele correndo para os braços de sua mãe. O cheiro de seus cabelos, que era uma mistura do perfume de grama e verão. A sensação de segurança dos braços dela em torno de si. Ele também viu seu pai rindo e olhando para eles com amor nos olhos, mas ele sempre estava partindo, sempre a caminho de outro lugar. Nunca havia tempo de parar e compartilhar do abraço. Nunca havia tempo para cheirar os cabelos de mamãe. O perfume do xampu do qual ele se lembrava perfeitamente. Então o filme avançava até parar em uma imagem que era muito mais distinta. Totalmente em foco. A imagem dos pés dela quando ele abriu a porta de seu quarto. Ele tinha treze anos. Fazia muitos anos desde a época em que corria para os braços da mãe. Havia acontecido tanta coisa. Tanta coisa havia mudado. Lembrava-se de ter chamado um pouco irritado. Perguntava por que ela não havia respondido. Mas quando empurrou a porta, sentiu o silêncio opressivo e a primeira sensação gélida em seu estômago de que algo estava errado. Aproximou-se lentamente dela. Ela parecia estar dormindo. Deitada de costas, os cabelos que eram longos quando ele era pequeno agora estavam curtos. Rugas de cansaço e amargura marcavam seu rosto. Por um segundo, ele pensou que ela estivesse mesmo dormindo. Dormindo profundamente. Então ele reparou no frasco de remédios vazio derrubado no chão, ao lado da cama. Havia caído das mãos dela quando as pílulas começaram a fazer efeito e ela finalmente conseguiu se libertar da vida com a qual não podia mais lidar.

 

Desde então, ele e seu pai viviam lado a lado, em uma hostilidade silenciosa. Nada jamais fora dito sobre o ocorrido. Nada fora mencionado sobre a nova mulher de seu pai ter se mudando para lá uma semana após o funeral de sua mãe. Ninguém jamais havia confrontado a verdade sobre as palavras duras que levaram ao ato final de sua mãe. Ninguém falava sobre como sua mãe fora deixada de lado, descartada com uma facilidade que não era fingida, e sim genuína. Como um casaco velho sendo substituído por um novo.

 

Em vez disso, o dinheiro havia tomado conta. Com o passar dos anos, havia se tornado uma imensa dívida, uma dívida de consciência que parecia não ter fim. Calle aceitava o dinheiro em silêncio; nunca tinha exigido nada, mas não mencionava o que ambos sabiam ser a razão para todos os subornos. Naquele dia em que o silêncio havia ecoado pela casa. Quando ele pediu ajuda, mas não houve resposta.

 

O filme estava sendo rebobinado novamente. Ele o sugava, cada vez mais rapidamente, até que as imagens granuladas e tremidas fossem outra vez o que via em sua mente. Em sua memória, ele corria na direção dos braços abertos de sua mãe.

 

– Gostaria de marcar uma reunião às nove horas. Pode verificar com os demais se eles podem comparecer? No escritório de Mellberg.

 

– Você parece cansando. Foi para a farra ontem à noite? – Annika olhou para ele por cima dos óculos que usava para ler. Patrik sorriu, mas seu sorriso não chegava aos olhos cansados.

 

– Quem me dera. Não, eu fiquei acordado metade da noite lendo relatórios e documentos. E é por isso que preciso convocar uma reunião – caminhou na direção de seu escritório e olhou o relógio. Oito e dez. Ele estava muito cansado, e seus olhos pareciam conter areia depois de muita leitura e pouco sono. Mas tinha cinquenta minutos para organizar seus pensamentos. Então seria o momento de contar a eles o que havia encontrado.

 

Cinquenta minutos se passaram rápido demais. Quando entrou no escritório de Mellberg, a equipe toda estava reunida. Ele tinha adiantado o assunto para Mellberg pelo telefone no caminho para a delegacia naquela manhã, a fim de que o chefe soubesse mais ou menos o que Patrik ia dizer. Os outros pareciam mistificados, mas também interessados em ouvir do que se tratava.

 

– Nos últimos dias, demos muita ênfase à investigação do assassinato de Lillemor Persson, em detrimento de nossa outra investigação, a da morte de Marit Kaspersen – Patrik posicionou-se ao lado do flip chart, de costas para a mesa de Mellberg e olhou com expressão séria para seus colegas. Não faltava ninguém. Annika trouxera caneta e papel e tomava notas, como sempre. Martin estava sentado ao lado dela, seus cabelos ruivos espetados. Suas sardas brilhavam em sua pele alva como o inverno, e ele aguardava impacientemente pelo que Patrik tinha a dizer. Ao lado dele, estava Hanna, tão serena, calma e segura quanto todos já esperavam a julgar pelas duas semanas em que vinha trabalhando com eles. Patrik refletiu brevemente sobre como ela tinha se encaixado bem na equipe. Parecia que estava lá havia muito tempo. Gösta, como sempre, estava largado em sua cadeira. Havia pouquíssimo interesse em seus olhos; ele parecia querer estar em qualquer outro lugar. Mas era como Gösta sempre aparentava estar quando não se encontrava no campo de golfe, Patrik pensou, entediado. Mellberg, por outro lado, tinha o corpo inclinado para a frente como sinal de que estava prestando muita atenção à apresentação de Patrik. Ele sabia onde Patrik queria chegar com isso; nem mesmo ele poderia ignorar as conexões que Patrik havia descoberto. Agora tudo que restava fazer era dispor os fatos de maneira concentrada para que pudessem prosseguir com a investigação.

 

– Como sabem, a princípio nós tratamos a morte de Marit como um acidente. Mas os exames da medicina forense e a autópsia mostraram que esse não foi o caso. Ela foi amarrada, algum tipo de objeto foi forçado para dentro de sua boca e garganta abaixo. Então alguém despejou uma grande quantidade de álcool dentro dela, o que a propósito foi a causa de sua morte. Então o perpetrador, ou os perpetradores, colocou-a de volta em seu carro e tentou fazer a colisão parecer um acidente. Não sabemos muito mais que isso. Nem fizemos grandes esforços para ir a fundo desde que nossa investigação mais... “ligada à mídia” tomou toda a nossa energia. Consequentemente, alocamos os nossos recursos de uma forma que, em retrospectiva, eu considero extremamente infeliz. Mas é inútil chorar sobre o leite derramado. Nós simplesmente temos que nos esforçar mais e tentar compensar o tempo perdido.

 

– Você tinha uma pista inicial... – Martin começou a falar.

 

Patrik interrompeu-o, impaciente.

 

– Isso mesmo. Eu encontrei uma possível conexão e fui atrás dela ontem – ele virou-se e pegou a resma que tinha colocado sobre a mesa de Mellberg. – Fui a Borås ontem e me encontrei com um colega chamado Jan Gradenius. Nós dois fomos a uma conferência em Halmstad, dois anos atrás. Na época, ele nos contou os detalhes de um caso em que ele esteve envolvido e que suspeitava que a vítima havia sido assassinada, mas não existiam provas suficientes. Ele me deu acesso a todas as informações a respeito do caso e... – Patrik fez uma pausa de efeito e olhou para o pequeno grupo – acontece que aquele caso tem similaridades notáveis com as circunstâncias que levaram à morte de Marit Kaspersen. A vítima também tinha uma quantidade absurda de álcool em seu corpo, inclusive nos pulmões. E isso apesar do fato de que a vítima nunca bebia álcool, de acordo com o testemunho de seus parentes próximos.

 

– Havia as mesmas evidências físicas? – Hanna perguntou, com a testa franzida. – Hematomas ao redor da boca, resíduo de fita adesiva etc.?

 

Nesse ponto, Patrik, um tanto frustrado, coçou a cabeça.

 

– Infelizmente, essa informação não consta. Esse caso, em que a vítima era um homem de trinta e um anos chamado Rasmus Olsson, foi considerado à época como um suicídio, em que primeiro Olsson ingeriu bebida alcoólica e depois teria se atirado de uma ponte. Então a investigação foi baseada nessa hipótese. E eles não foram tão exigentes com as provas quanto deveriam ter sido. Mas há fotos da autópsia e eu fui autorizado a vê-las. Do ponto de vista de um leigo, parecia haver traços de hematomas em torno dos punhos e da boca, mas eu enviei as fotos para serem avaliadas por Pedersen. E então passei a noite em claro estudando o material que me foi dado e para mim não há dúvida de que existe algum tipo de conexão.

 

– Então, o que está dizendo – disse Gösta, em tom cético – é que alguém primeiro matou esse cara em Borås alguns anos atrás e agora decidiu matar Marit Kaspersen aqui em Tanumshede. Parece meio forçado, se querem minha opinião. Que tipo de conexão existe entre as vítimas? – Patrik compreendeu o ceticismo de Gösta, mas ainda assim ficou furioso. Uma sensação que ia até a boca de seu estômago o convencia de que havia uma conexão. Eles teriam que encontrar a ligação entre os dois casos.

 

– É isso que nós temos que encontrar – disse Patrik. – Pensei em começarmos escrevendo o pouco que sabemos, então talvez juntos possamos encontrar um caminho para seguir – ele tirou a tampa de uma caneta e desenhou uma linha vertical bem no meio do papel no flip chart. No topo de uma das colunas, escreveu “Marit” e na outra escreveu “Rasmus”.

 

– Pois bem. O que sabemos sobre as vítimas? Ou melhor, o que sabemos sobre Marit? Eu vou preencher as informações sobre a morte de Rasmus Olsson, porque sou o único que teve acesso aos detalhes daquela investigação. Mas distribuirei cópias de tudo mais tarde.

 

– Quarenta e três anos – disse Martin. – Morava com sua companheira Kerstin, tinha uma filha de quinze anos, possuía uma loja.

 

Patrik anotou tudo que Martin mencionou e então virou-se com a caneta na mão, esperando por mais.

 

– Abstêmia – disse Gösta, parecendo verdadeiramente alerta por um momento. Patrik apontou para ele enfaticamente e escreveu “ABSTÊMIA” no papel. Então escreveu rapidamente a informação correspondente na coluna de Rasmus: trinta e um anos, solteiro, sem filhos, trabalhava num pet shop. Abstêmio.

 

– Interessante – disse Mellberg, balançando a cabeça, de braços cruzados.

 

– Mais alguma coisa?

 

– Nascida na Noruega, divorciada, tinha um relacionamento ruim com o ex-marido, meticulosa... – Hanna atirou os braços para cima quando não conseguiu pensar em mais nada. Patrik anotou todos esses pontos. A coluna de Marit estava ficando muito maior que a de Rasmus. Patrik acrescentou “meticuloso” à coluna dele também; descobrira isso durante as entrevistas com os parentes do homem. Depois de pensar por um momento, escreveu “acidente?” na coluna de Marit e “suicídio” na de Rasmus.

 

O silêncio dos demais confirmou que não havia muito mais a acrescentar no momento.

 

– Temos dois indivíduos aparentemente muito diferentes que foram assassinados da mesma forma anormal. Tinham idade diferente, gêneros opostos, empregos diferentes, situação doméstica diferente; eles não parecem ter nada em comum exceto o fato de que eram abstêmios.

 

– Abstêmios – disse Annika. – A mim isso parece ter um som quase religioso. Pelo que sei, Marit não era particularmente envolvida com nenhum tipo de religião formal. Ela simplesmente não bebia álcool.

 

– Sim, isso é algo que temos que descobrir sobre Rasmus. Já que esse é o único denominador comum que conseguimos encontrar, é um começo tão bom quanto outro qualquer. Acho que Martin e eu deveríamos ir até Borås conversar com a mãe de Rasmus. Então você, Gösta, pode pegar Hanna e conversar tanto com a companheira de Marit quanto com seu ex-marido. Descubram tudo o que for possível sobre o aspecto de sua vida relacionado à sobriedade. Havia alguma razão particular para isso? Ela fazia parte de algum tipo de organização? Qualquer coisa que possa nos dar uma pista de que tipo de conexão ela poderia ter com um homem solteiro em Borås. Onde ela morava antes, por exemplo. Ela alguma vez já morou na área de Borås?

 

Gösta olhou para Hanna, fatigado.

 

– Claro, creio que podemos fazer isso agora pela manhã.

 

– Sem problemas – disse Hanna, mas ela não parecia nada feliz com essa tarefa.

 

– Há algo errado? – disse Patrik de modo impertinente a Hanna, mas se arrependendo logo depois. Ele estava tão exausto.

 

– De maneira nenhuma – disse Hanna, soando irritada. – Só acho um pouco vago. Eu gostaria que tivéssemos um pouco mais para começar, para não acabarmos num beco sem saída. Digo, podemos mesmo concluir que existe uma conexão? Talvez seja apenas uma coincidência que os dois tenham morrido da mesma forma. Como não há conexão óbvia entre as vítimas, a coisa toda parece meio nebulosa. Mas isso é só a minha opinião – ela atirou as mãos para cima de forma a indicar que achava que todos deveriam concordar com ela.

 

Patrik replicou de forma seca e com um tom frio na voz, o qual soava deslocado até mesmo para ele:

 

– Então eu acho que você deve guardar essa sua opinião para si mesma por ora e fazer o trabalho para o qual foi designada.

 

Ele sentiu o olhar atônito dos outros sobre si enquanto saía do escritório de Mellberg. E ele sabia que estavam certos em se surpreender. Ele raramente perdia a razão. Mas Hanna colocara o dedo na ferida. E se seus instintos os estivessem guiando para o lado errado? Ainda assim, algo lhe dizia que tinha que haver uma conexão entre os dois casos. Agora ele só precisava saber o que era.

 

– Sim? – perguntou Kristina, bebendo seu chá com uma careta. Para enorme surpresa de Erica, ela tinha declarado não beber mais café por causa de seu “estômago delicado”, dando uma batidinha em sua barriga com um suspiro lamentoso. Desde que Erica a conhecia, Kristina sempre fora uma grande consumidora de café, então ia ser interessante ver até quanto ia durar essa decisão. Erica ouviu uma longa explanação sobre como o estômago de sua sogra não mais tolerava café, por isso revirou os olhos para Anna quando Kristina deu-lhe as costas para brincar com Maja. Erica e Patrik nunca tinham ouvido nada sobre ela ter “estômago sensível”, mas Kristina havia acabado de ler um artigo sobre esse mesmo assunto numa revista e rapidamente atribuíra os sintomas a si mesma.

 

– É você a queridinha da vovó? Sim, é você a queridinha da vovó, o meu docinho... – Kristina falava com voz de criança. Maja encarava Kristina com admiração. Às vezes, Erica achava que sua filha já parecia mais inteligente que sua sogra, mas ainda estava conseguindo se segurar e não expor essa teoria a Patrik. Como se Kristina pudesse ouvir seus pensamentos, virou-se para nora e perfurou-a com o olhar.

 

– E então? Como vão as coisas com esse... casamento? – ela perguntou sem traço nenhum de tatibitate. Para dizer a palavra “casamento”, usou o mesmo tom que teria usado se estivesse dizendo “cocô de cachorro”. Pelo menos, ela não esperava se envolver no planejamento.

 

– Estão indo esplendidamente. Obrigada por perguntar – disse Erica, abrindo seu sorriso mais amável. Por dentro, estava disparando os piores xingamentos que conhecia. Um marinheiro teria ficado orgulhoso daquele riquíssimo vocabulário.

 

– Estou vendo – disse Kristina, contrariada. Erica sentia que ela havia feito a pergunta na esperança de captar um lampejo que fosse de um desastre iminente.

 

Anna, que estava sentada ali por perto, observando com prazer a interação de sua irmã com a sogra, agora jogava uma tábua de salvação a Erica:

 

– Está tudo sob controle. Estamos até adiantadas, não é, Erica?

 

Erica assentiu com orgulho óbvio. Mas agora todos os apelidinhos que tinha em mente eram substituídos por interrogações. Do que Anna estava falando, adiantadas? Sua irmã estava sendo otimista demais. Mas Erica não deixou transparecer sua confusão. Havia aprendido a pensar na sogra como um tubarão. Se Kristina sentisse o menor vestígio de sangue, mais cedo ou mais tarde alguém iria perder um braço. Ou uma perna.

 

– E quanto à música? – disse Kristina em desespero, fazendo uma nova tentativa de beber seu chá. Erica tomou um belo gole de seu café preto como carvão e agitou um pouco a xícara para que o aroma se espalhasse para o lado de Kristina.

 

– Contratamos uma banda de Fjällbacka. Eles se chamam Garage e são muito bons.

 

– Estou vendo – disse Kristina com mau humor indisfarçado. – Então vamos ter um pouco dessa música pop que vocês jovens ouvem. Nós, que somos um pouco mais velhos, provavelmente teremos de ir embora mais cedo.

 

Erica sentiu Anna chutar-lhe a canela. Ela não ousou olhar para a irmã, por medo de cair na gargalhada, mesmo não achando a situação lá muito engraçada.

 

– Bem, espero que pelo menos esteja pensando na lista de convidados. Eu jamais poderei comparecer se tia Göta e tia Ruth não forem convidadas também.

 

– Verdade? – Anna perguntou, inocente. – Patrik deve ser muito ligado a elas. Ele passava muito tempo com as tias quando era pequeno?

 

Kristina não imaginava que esse assunto promoveria um ataque tão traiçoeiro. Permaneceu em silêncio por alguns segundos, enquanto reunia suas tropas para criar a estratégia de defesa.

 

– Bem, não, na verdade, não posso dizer que...

 

Anna a interrompeu, falando com a mesma voz inocente:

 

– E quando foi a última vez que Patrik as viu? Não me lembro dele jamais ter mencionado essas tias.

 

Com uma careta austera, Kristina foi forçada a recuar.

 

– Eu acho que já faz um tempo. Patrik devia ter uns... dez anos, se bem me lembro.

 

– Então talvez devêssemos guardar esses lugares na lista para alguém que Patrik tenha visto nos últimos vinte e sete anos – disse Erica, lutando contra o desejo de estender a mão para a irmã bater.

 

– Eu acho que você vai fazer o que quiser, de qualquer forma – disse Kristina, irritada. Ela percebeu que esse tópico em seus planos podia ser considerado perdido. Mas quem não arrisca não petisca. Depois de tomar mais um gole de seu terrível chá, ela desferiu seu último golpe, com os olhos fixos em Erica:

 

– Espero que pelo menos Lotta seja a sua madrinha!

 

Erica lançou a Anna um olhar desesperado. Esse era um ataque furtivo que ela não previu. Nem havia considerado pedir à irmã de Patrik para ser sua madrinha; é claro que queria que Anna assumisse esse papel. Erica sentou-se em silêncio por um momento, pensando em como iria responder à última manobra de Kristina. E então decidiu simplesmente pôr as cartas na mesa.

 

– Anna vai ser minha madrinha – ela disse, calmamente. – E quanto aos outros detalhes da cerimônia, eu quero que sejam uma surpresa. Você vai ter que esperar até o dia do casamento.

 

Com uma expressão insultada no rosto, Kristina abriu a boca para protestar, mas viu o brilho do olhar duro como aço nos olhos de Erica e se deteve. Em vez disso, ela se contentou em resmungar:

 

– Bem, eu só estava tentando ajudar. Só isso. Mas se você não quer minha ajuda, então...

 

Erica não disse uma palavra. Simplesmente sorriu e bebeu mais um gole de café.

 

 

 

                                                              CONTINUA

 

 

 

Patrik dormiu o caminho todo até Borås. Estava exaurido depois de tudo o que acontecera nas últimas semanas e depois de ter passado a noite acordado lendo os documentos de Gradenius. Quando acordou, já nos arredores de Borås, sentiu torcicolo por dormir com a cabeça apoiada na janela. Com uma careta, massageou o local dolorido enquanto piscava para se acostumar à luz.

– Estaremos lá em cinco minutos – disse Martin. – Conversei com Eva Olsson e peguei instruções de como chegar à casa dela. Acho que estamos perto.

– Que bom – disse Patrik, tentando organizar os pensamentos antes da entrevista. A mãe de Rasmus Olsson havia soado tão impaciente quando eles telefonaram para ela. Ela os convidou para ir à casa dela ter uma conversa.

– Finalmente – ela disse. – Finalmente, alguém vai me ouvir.

Patrik sinceramente esperava que eles não tivessem que decepcionar a mulher. As instruções que ela dera a Martin foram excelentes e não demorou muito até encontrarem o quarteirão do prédio onde ela vivia. Apertaram o botão para seu apartamento e ouviram o som do portão eletrônico se abrindo. Dois andares acima e a porta se abriu assim que chegaram ao andar. Uma mulher baixa, de cabelos escuros, estava esperando por eles. Cumprimentaram-se e ela os levou à sala de estar. Tinha posto a mesa para o café com uma toalha de renda, lindas xícaras, guardanapos elegantes e garfos para bolo. Havia leite em um bulezinho fino e açúcar em um açucareiro com pinças de prata. Tudo era tão delicado e refinado que a mesa parecia ter sido posta para um chá de bonecas. Cinco tipos de docinhos também estavam dispostos em um prato de porcelana decorado no mesmo padrão que as xícaras.

 

  

 

– Por favor, sentem-se – ela disse, apontando para o sofá com encosto floral. O apartamento era tomado por luz. A janela tripla mantinha lá fora o ruído do tráfego na rua; o único som era o tique-taque de um antigo relógio na parede. Patrik reconheceu o elaborado desenho em ouro e a forma do relógio. Sua avó tinha um igualzinho.

– Vocês bebem café? Senão, eu tenho chá – ela dirigiu-lhes um olhar ansioso. Queria tanto agradá-los que isso cortou o coração de Patrik. Ele teve a impressão de que ela não recebia muitas visitas.

– Adoraríamos um café – ele disse e sorriu. Enquanto ela os servia com cuidado, ele pensou que ela parecia tão pequena e delicada quanto as xícaras. Devia ter entre cinquenta e sessenta anos, ele supôs, mas era difícil dizer, porque ela tinha um ar de eterna tristeza. Como se o tempo tivesse parado. Estranho como ela parecia saber o que ele estava pensando.

– Faz quase três anos e meio que Rasmus morreu – ela disse. Olhou para as fotografias que estavam distribuídas em uma escrivaninha, a um dos lados da sala. Patrik olhou também e reconheceu o homem das fotos da pasta que Gradenius lhe dera. Mas as circunstâncias daquelas imagens guardavam pouca semelhança com os retratos naquela sala.

– Posso pegar um docinho? – Martin perguntou.

Eva Olsson assentiu, tirando os olhos das fotos de seu filho.

– Sim, por favor. Fique à vontade.

Martin pegou um doce e colocou-o no pratinho à sua frente. Olhou para Patrik, que respirou profundamente antes de falar.

– Como eu lhe disse ao telefone, estamos investigando novamente a morte de Rasmus.

– Sim, compreendo – disse Eva, cujos olhos mostravam uma centelha de interesse além da tristeza – O que me intriga é por que a polícia de... Tanumshede, é isso?... é que está investigando. Não deveria ser a polícia aqui de Borås?

– Sim, tecnicamente deveria. Mas a investigação aqui foi encerrada e nós achamos que...

 

 

                                                                                                   

 

 

                                       

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