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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FALCÃO MALTÊS / Dashiell Hammett
O FALCÃO MALTÊS / Dashiell Hammett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FALCÃO MALTÊS

 

                   SPADE & ARCHER

O maxilar de Samuel Spade era longo e ossudo, e seu queixo, um V proeminente sob o V mais flexível da boca. As narinas curvavam-se para trás, formando um outro V menor. Os olhos, amarelo-pardos, eram horizontais. O mo­tivo V era retomado por espessas sobrancelhas, que saíam de duas rugas gêmeas sobre o nariz adunco e se erguiam na parte externa, e o cabelo, castanho-claro, descia das têmporas altas e achatadas, em ponta sobre a testa. Dava a impressão um tanto divertida de um demônio loiro.

— Então, meu bem? — disse ele, dirigindo-se a Effie Perine.

Effie Perine era uma moça esbelta, morena de sol, cujo vestido de lã escura e leve a envolvia produzindo um efeito melancólico. Tinha olhos castanhos e travessos, num rosto vivo e juvenil.

Acabou de fechar a porta, encostou-se a ela, e disse:

— Está aí uma moça à sua procura. Chama-se Wonderly.

— Uma cliente?

— Acho que sim. De todo jeito, terá que vê-la: ela é uma graça.

— Faça-a entrar, meu bem — disse Spade. — Faça-a entrar.

Effie Perine abriu de novo a porta, recuando para a sala externa sem tirar a mão do trinco, enquanto dizia:

— Faça o favor de entrar, srta. Wonderly.

Uma voz respondeu "Muito obrigada", tão suavemen­te que apenas a clara pronúncia tornava as palavras inteli­gíveis, e uma jovem transpôs a porta. Caminhava devagar, com passos hesitantes, fixando em Spade uns olhos azul-cobalto que se mostravam ao mesmo tempo tímidos e perscrutadores. Era alta e de uma esbeltez flexível, sem angulosidades. Tinha o talhe ereto e o colo alteado, pernas longas, mãos e pés estreitos. Usava dois tons de azul, esco­lhidos de acordo com os olhos. O cabelo, caindo em anéis sob o chapéu azul, era de um vermelho sombrio, e os lábios cheios, de um vermelho mais vivo. Dentes alvos brilhavam na meia-lua formada pelo seu sorriso tímido.

Spade levantou-se, cumprimentando-a e indicando com a mão de dedos grossos a cadeira de braços feita de car­valho, ao lado da sua secretária. Ele tinha bem um metro e noventa de altura. A pronunciada curvatura dos ombros fazia seu corpo, de largura igual tanto na frente como dos lados, parecer quase cômico e impedia o paletó cinzento, bem passado, de cair direito.

A srta. Wonderly murmurou suavemente: — Muito obrigada — e sentou-se na beirada do assento de madeira. Spade afundou na cadeira giratória, deu uma volta para colocar-se frente à moça e sorriu com polidez, quase sem abrir os lábios. Todos os VV do seu rosto se alonga­ram. Através da porta fechada, veio o tip-tap das teclas e o leve som da campainha, acompanhando o ruído abafado da máquina de Effie Perine. Num escritório próximo, um motor elétrico vibrou surdamente. Na secretária de Spade, um cigarro amassado fumegava num cinzeiro de latão, cheio de pontas de cigarros. Montículos de cinza salpicavam a superfície amarela da secretária, o mata-borrão verde e os papéis ali existentes. Uma janela de cortinas amarelo-claras, aberta uns trinta centímetros, deixava penetrar, vinda do pátio, uma corrente de ar que recendia levemente a amo­níaco. Sobre a secretária, as cinzas se agitaram e foram arrastadas pela corrente.

A srta. Wonderly observava as partículas de cinza se agitarem e serem levadas pelo vento. Seus olhos mostra­vam-se inquietos. Ela estava sentada bem na beirada da ca­deira, com os pés apoiados no chão, como se estivesse prestes a se levantar. As mãos, calçadas com luvas escuras, apertavam sobre o colo uma bolsa em formato de carteira, também escura. Spade recostou-se na cadeira, e perguntou: — Em que lhe posso ser útil, srta. Wonderly? Ela reteve a respiração e dirigiu-lhe o olhar. Depois tomou fôlego e disse precipitadamente: — O senhor po­deria . . . ? Eu pensei... eu... isto é. . . — Mordeu então o lábio inferior com os dentes brilhantes, e ficou calada. Apenas os olhos escuros falavam agora, suplicando.

Spade sorriu e fez um gesto de aquiescência com a cabeça, como se a tivesse compreendido, mas com ar satis­feito, como se não fosse nada de importante, e disse:

— Se a senhora me contar o que há, desde o começo, saberemos o que é preciso fazer. É melhor começar. Bem do início.

— Foi em Nova York.

— Sim.

— Não sei onde ela o encontrou. Quero dizer, não sei em que lugar de Nova York. Ela é cinco anos mais moça que eu — tem apenas dezessete anos —, e nossas amizades não eram as mesmas. Como irmãs acho que nunca fomos unidas como devíamos ser. Mamãe e papai estão na Europa. Isso os matará. É preciso que eu a faça voltar, antes que eles venham.

— Sim — disse ele.

— Eles voltam dia 1.° do próximo mês.

Os olhos de Spade brilharam. — Temos então duas semanas.

— Eu não sabia o que ela tinha feito, até chegar a sua carta. Fiquei louca. — Seus lábios tremeram. As mãos amas­savam a bolsa sobre o colo. — Receava muito que ela tivesse feito qualquer coisa assim, para procurar a polícia, mas o medo de que lhe tivesse sucedido algum mal me impedia de ir dar parte. Não havia ninguém a quem eu pudesse recor­rer, para pedir conselho. Não sabia o que fazer. O que eu podia fazer?

— Nada, realmente — disse Spade. — Mas então che­gou a carta dela?

— Chegou, e eu lhe mandei um telegrama pedindo-lhe que voltasse. Enviei-o para a posta restante daqui. Foi o único endereço que ela me deu. Esperei uma semana intei­ra, mas não veio resposta, nem outra notícia. E a volta de mamãe e papai cada vez mais próxima. Então vim a San Francisco para buscá-la. Escrevi-lhe dizendo que vinha. Não devia ter feito isso, não?

— Talvez não. Nem sempre é fácil saber como pro­ceder. E encontrou-a?

— Não. Escrevi-lhe dizendo que iria para o St. Mark, e pedi-lhe que viesse falar comigo, mesmo que não tivesse a intenção de voltar em minha companhia. Mas ela não veio. Esperei três dias, e ela nem veio nem me mandou nenhum recado.

Spade inclinou a loira cabeça satânica em sinal de assentimento, franziu as sobrancelhas, demonstrando simpatia, e apertou os lábios.

— Era horrível — disse a srta. Wonderly, tentando sorrir. — Eu não podia ficar parada assim, esperando, sem saber o que lhe tinha acontecido, o que podia estar lhe acontecendo. — Abandonou o esforço de sorrir. Depois teve um estremecimento. — O único endereço que tinha era o da posta restante. Escrevi-lhe outra carta, e ontem à tarde fui ao correio. Esperei lá até depois de escurecer, mas não a vi. Voltei esta manhã e também não vi Corina, mas vi Floyd Thursby.

Spade aquiesceu de novo. Suas sobrancelhas se descerraram, dando lugar a um olhar atento e penetrante.

— Ele não quis me dizer onde Corina estava — conti­nuou ela, desanimada. — Não quis me contar nada, exceto que ela estava bem, e se sentia feliz. Mas como posso acre­ditar nele? Ele me diria isso de qualquer jeito, não é ver­dade?

— Decerto — concordou Spade. — Mas podia ser verdade.

— Espero que seja. Espero que assim seja! — excla­mou. — Mas não posso voltar para casa desse jeito, sem tê-la visto, sem ter-lhe falado, nem mesmo pelo telefone. Ele não quis me levar aonde Corina está. Disse que ela não quer me ver. Não posso acreditar nisso. Prometeu contar-lhe que tinha me visto, e trazê-la para encontrar-se comigo (se ela quiser vir) esta noite, no hotel. Disse que sabia que ela não havia de querer. Prometeu vir ele mesmo, se ela não quisesse. Ele...

Interrompeu-se, levando, assustada, a mão à boca, ao se abrir a porta.

O homem que abrira a porta deu um passo para dentro e disse: — Oh, desculpe-me! — Tirou apressadamente o chapéu da cabeça e retrocedeu.

— Não faz mal, Miles — disse Spade. — Entre. Srta. Wonderly, este é o meu sócio, sr. Archer.

Miles Archer entrou de novo no escritório, fechando a porta atrás de si. Inclinou a cabeça e sorriu para a srta. Wonderly, fazendo um vago gesto de polidez com o chapéu na mão. Era um homem de estatura mediana, de sólida com­pleição, ombros largos, pescoço grosso, com um rosto jovial e vermelho, de queixo forte, e alguns fios brancos no cabelo cortado rente. Aparentemente, havia passado tanto dos quarenta quanto Spade dos trinta.

Spade informou: — A irmã da srta. Wonderly fugiu de Nova York com um rapaz chamado Floyd Thursby. Eles estão aqui. A srta. Wonderly viu Thursby e tem uma entre­vista marcada com ele para esta noite. Talvez ele traga a irmã dela. As probabilidades são em contrário. A srta. Won­derly quer que encontremos sua irmã e a afastemos dele, e que a levemos para casa. — Olhou para a srta. Wonderly.

— É isso?

— É — disse ela com voz indistinta. Seu embaraço, que fora gradualmente afastado pelos insinuantes sorrisos, acenos de cabeça e encorajamento de Spade, deixava-a ver­melha de novo. Tinha os olhos fixos na bolsa sobre o colo, e espetava nela, nervosamente, o dedo enluvado.

Spade piscou para o sócio. Miles Archer adiantou-se e ficou de pé a um canto da secretária. Enquanto a moça fita­va a bolsa, ele a observava. Seus olhinhos castanhos corre­ram sobre ela o olhar audacioso e avaliador, desde o rosto inclinado até os pés, e voltaram de novo ao rosto. Ele olhou então para Spade e fez com a boca um trejeito de quem dá um silencioso assobio de apreciação.

Spade levantou dois dedos do braço da cadeira num breve gesto de advertência e disse: — Não teríamos com isso nenhum aborrecimento. É simplesmente questão de ter um homem no hotel esta noite para segui-lo quando ele sair, e continuar seguindo-o até que ele nos conduza a sua irmã. Se ela vier com ele, e a senhorita conseguir convencê-la a voltar para casa, tanto melhor. Caso contrário, se ela não quiser deixá-lo depois de a termos encontrado, bem, acha­remos um jeito de o conseguir.

Archer disse: — É. — Sua voz era pesada, rude.

A srta. Wonderly levantou rapidamente o olhar para Spade, enrugando a testa, entre as sobrancelhas. — Oh, mas precisam ter cuidado! — Sua voz tremia um pouco, e os lábios formulavam as palavras em arrancos nervosos. — Tenho um medo horrível dele, do que ele poderia fazer. Ela é tão moça, e tê-la trazido de Nova York para cá é tão gra­ve... Ele não poderia. . . Não poderia fazer. .. fazer-lhe qualquer coisa?

Spade sorriu, dando palmadinhas nos braços da cadeira.

— Deixe isso conosco. Nós saberemos lidar com ele.

— Mas poderia? — insistiu ela.

— Há sempre alguma probabilidade — concordou Spade judiciosamente. — Mas pode ter confiança em nós: tomaremos conta desse assunto.

— Eu confio nos senhores — disse ela com veemên­cia —, mas quero que saibam que ele é um homem peri­goso. Acredito seriamente que nada o faria retroceder. Não creio que hesitasse... em matar Corina, se achasse que isso podia salvá-lo. Não acha?

— A senhorita não o ameaçou, não?

— Disse-lhe que só queria tê-la de novo em casa antes que mamãe e papai voltassem, a fim de que não soubessem o que ela tinha feito. Prometi nunca dizer-lhes uma palavra sobre isso se ele me ajudasse; mas, se ele não o fizesse, papai sem dúvida providenciaria para que fosse punido. Eu... acho, entretanto, que ele não acreditou em mim.

— Ele poderia remediar o mal casando-se com ela? — perguntou Archer.

A moça corou, e respondeu com voz confusa:

— Ele tem mulher e três filhos na Inglaterra. Corina escreveu-me dizendo isso, para explicar por que fugira em sua companhia.

— Eles costumam ter mesmo — disse Spade —, só que nem sempre na Inglaterra. — Inclinou-se para a frente, a fim de alcançar o lápis e o bloco de papel. — Qual é a aparência dele?

— Ah, tem uns trinta e cinco anos, talvez, é tão alto como o senhor, e, ou moreno de natureza, ou queimado de sol. Seu cabelo também é escuro e as sobrancelhas, espessas. Tem um modo de falar mais ou menos alto, agressivo, e um gênio nervoso, irritável. Dá a impressão de ser. . . violento.

Spade, rabiscando sobre o bloco, perguntou, sem le­vantar a vista: — E a cor dos olhos?

— São azul-cinzentos e úmidos, mas cruéis. E. . . ah, sim, tem uma profunda cicatriz no queixo.

— Magro, regular, ou corpulento?

— Muito forte. Tem ombros largos e conserva-se ereto, no que se poderia chamar um porte decididamente mili­tar. Usava um terno cinzento e chapéu da mesma cor, quan­do o vi esta manhã.

— Qual o seu meio de vida? — perguntou Spade, enquanto descansava o lápis.

— Não sei. Não tenho a mínima idéia.

— A que horas ele deve ir vê-la?

— Depois das oito.

— Muito bem, srta. Wonderly, teremos um homem lá. Facilitaria se

— Sr. Spade, poderia ser o senhor ou o sr. Archer? —

Fez um gesto de súplica com ambas as mãos. — Um dos senhores poderia cuidar desse assunto pessoalmente? Não quero dizer que o homem que os senhores mandassem não fosse capaz, mas... oh! Tenho tanto medo do que poderia acontecer a Corina! Tenho medo dele. Seria possí­vel? Eu estaria... Eu me sentiria mais em segurança, real­mente. — Abriu a bolsa com dedos nervosos e pôs duas notas de cem dólares sobre a secretária de Spade. — Isto chega?

— Sim — disse Archer —, e eu mesmo me encarre­garei disso.

A srta. Wonderly pôs-se em pé, estendendo impulsi­vamente a mão. — Muito obrigada! Muito obrigada! — ex­clamou, e então deu a mão a Spade, repetindo: — Obri­gada!

— Não por isso — disse Spade. — Também estou satisfeito. A senhorita pode nos ajudar, se puder se encon­trar com Thursby embaixo, ou então se se mostrar no sa­guão em sua companhia por algum tempo.

— Farei isso — prometeu ela, e agradeceu-lhe de novo.

— E não me procure — advertiu Archer. — Eu a estarei vendo.

Spade acompanhou a srta. Wonderly até a porta do corredor. Quando voltou à secretária, Archer inclinou a ca­beça em direção às notas de cem dólares e rosnou, complacentemente: — Elas são bem boas. — Pegou uma, dobrou-a e enfiou-a num dos bolsos. — E têm irmãs naquela bolsa.

Spade embolsou a outra nota antes de se sentar. Então disse: — Bem, não dê em cima. O que pensa dela?

— Deliciosa! E logo você vem me dizer para não dar em cima dela? — Archer deu uma gargalhada forçada. — Talvez você a tenha visto antes, Sam, mas eu falei primeiro. — Pôs as mãos nos bolsos das calças e balançou-se nos cal­canhares.

— Você vai fazer o diabo com ela, sem dúvida — sorriu Spade com arrogância, mostrando a extremidade dos dentes posteriores. — Você é esperto, sim, se é. — E come­çou a fazer um cigarro.

 

                   MORTE NO NEVOEIRO

A campainha do telefone tocou na escuridão. Depois de tocar três vezes, as molas da cama rangeram, uns dedos tatearam na madeira, alguma coisa pequena e dura caiu no chão atapetado, as molas rangeram de novo, e uma voz de homem disse: — Alô. . . Sim, ele mesmo. . . Morto? . .. Sim. . . Quinze minutos. Obrigado.

Ouviu-se o estalido de uma chave, e um lustre branco, pendurado ao centro do teto por três correntes douradas, encheu de luz o quarto. Spade, descalço, vestido com um pijama listado de verde e branco, sentou-se na borda da cama. Olhou, carrancudo, o telefone sobre a mesa, enquanto pegava ao lado dele um maço de papel pardo e uma bolsa de Buli Durham. Um vento frio e úmido soprou através das duas janelas abertas, trazendo consigo uma meia dúzia de vezes por minuto o lamento melancólico da sereia de Alcatraz. Os ponteiros de um despertador de metal, mal equili­brado sobre um canto dos Célebres casos criminais da Amé­rica, de Duke, marcavam duas horas e cinco minutos.

Os dedos grossos de Spade fizeram um cigarro com deliberado cuidado, peneirando uma quantidade certa de flocos escuros sobre o papel curvo e espalhando-os, para que ficassem iguais nas pontas, fazendo uma pequena pressão no meio. Com os polegares, enrolou a margem interna para baixo e para cima, levantou-a sob a margem externa, en­quanto os indicadores a prendiam por cima, e fez os pole­gares e os outros dedos escorregarem para as pontas cilín­dricas do papel a fim de mantê-lo plano. Enquanto lambia a extremidade com a língua, apertou a ponta com o indica­dor e o polegar esquerdo e alisou a beira úmida com o polegar e indicador direitos. Depois, ainda com a mão direi­ta, torceu uma ponta e levou a outra até a boca. Apanhou o isqueiro niquelado e forrado de couro de porco que tinha caído no chão, acendeu-o e, com o cigarro aceso no canto da boca, levantou-se. Tirou o pijama. A lisa espessura dos braços, das pernas e do corpo, e a curvatura dos seus gran­des ombros arredondados, tornaram seu corpo semelhante ao de um urso. Parecia um urso sem pêlo: o peito não tinha pêlos, e a pele era macia e rosada como a de uma criança. Cocou a nuca e começou a se vestir. Pôs uma camiseta branca, meias cinza, ligas pretas e sapatos marrom-escuros. Quando acabou de amarrar os sapatos, pegou o telefone, chamou Graystone 4500 e pediu um táxi. Vestiu então uma camisa branca de listas verdes, pôs um colarinho branco, mole, gravata verde, o terno cinzento que usara nesse dia, um sobretudo folgado de tweed e chapéu cinza-escuro. A campainha da porta tocou quando ele punha o fumo, as chaves e o dinheiro nos bolsos.

Onde a Bush Street atravessa a Stockton, antes de descer em ladeira para o Chinatown, Spade pagou a corrida e deixou o táxi.' O nevoeiro de San Francisco, fino, pegajoso e penetrante, nublava a rua. Alguns metros além do ponto em que Spade despachou o táxi, um pequeno grupo de ho­mens olhava em direção a um beco. Duas mulheres e um homem estavam do lado oposto da Bush Street, olhando também para a viela. Viam-se rostos nas janelas.

Spade atravessou o passeio entre balaustradas guarnecidas de grades de ferro que abriam sobre horríveis degraus vazios, chegou ao parapeito e, descansando as mãos na mu­ralha úmida, olhou para a Stockton Street, embaixo. Um automóvel irrompeu do túnel abaixo dele com um ronco sibilante, como se tivesse sido impelido para fora, e desa­pareceu. Próximo à boca do túnel, um homem estava acocorado sobre os calcanhares, diante de um cartaz com anún­cios de um filme e de uma marca de gasolina que cobria o espaço entre duas casas de negócios. A cabeça do homem estava inclinada quase até o passeio, de maneira a permitir que ele olhasse por baixo do cartaz. Uma das mãos aberta sobre a calçada, a outra, agarrada à moldura verde do cartaz, mantinham-no nessa grotesca posição. Outros dois homens conservavam-se a um canto do cartaz, espreitando desajeitada­mente através dos poucos centímetros de espaço entre este e o prédio dessa ponta. O edifício do lado oposto tinha uma parede cinza-clara que dominava de cima todo o conjunto atrás do cartaz. Tremulavam clarões na parede lateral, e som­bras de homens moviam-se entre o piscar das luzes.

Spade deixou o parapeito e subiu a Bush Street em direção ao beco onde os homens estavam agrupados. Um guarda uniformizado, mascando chiclete, sob uma placa es­maltada que ostentava a inscrição "Burritt St." em branco sobre azul-escuro, avançou um braço e perguntou:

— Que quer aqui?

— Sou Sam Spade. Tom Polhaus me telefonou.

— Ah, sim. — O braço do policial foi baixado. —

Não o reconheci, a princípio. Bem, eles estão ali atrás. — Apontou um polegar por sobre o ombro. — Que droga, hem?

— É — concordou Spade, e subiu o beco. A meio caminho, não longe da entrada, estava postada uma ambu­lância escura. Atrás da ambulância, do lado esquerdo, o beco estava impedido por uma cerca que dava pela cintura, restos de um soalho rústico pregado em sentido horizontal. Da cerca, o solo escuro caía numa descida íngreme até o cartaz da Stockton Street, embaixo. A travessa superior da cerca, numa extensão de três metros, tinha sido arrancada do mourão em uma das extremidades, e balançava-se, pendente, da outra. Uns cinco metros ladeira abaixo, estava fincada uma pedra chata. Na depressão entre a pedra e a ladeira, Miles Archer jazia de costas. Dois homens estavam junto dele. Um mantinha sobre o morto a luz de uma lanterna elétrica. Outros homens, munidos de lanternas, subiam é desciam a ladeira.

Um deles saudou Spade: — Olá, Sam! — e subiu para o beco, e sua sombra ia percorrendo a ladeira à sua frente. Era alto e barrigudo, de olhos pequenos e argutos, lábios grossos e faces morenas e mal barbeadas. Seus sapatos, joe­lhos, mãos e queixo estavam sujos de lama escura. — Achei que você havia de querer vê-lo antes de o levarmos — disse,.. enquanto pulava a cerca.

— Obrigado, Tom — respondeu Spade. — Que foi que aconteceu? — Pôs um cotovelo num mourão da cerca e olhou para os homens, embaixo, respondendo aos cumpri­mentos que lhe dirigiam.

Tom Polhaus apontou para o lado esquerdo do peito com o dedo sujo. — Foi acertado. . . com isto. — Tirou um revólver grosso do bolso do paletó e estendeu-o a Spa­de. Havia lama entranhada nas depressões da superfície. — Um Webley. Inglês, não é?

Spade tirou o cotovelo do mourão da cerca e inclinou-;e para olhar a arma, mas sem tocá-la. — Sim, revólver automático Webley-Fosbery. É isso. Um 38, de oito tiros. Não os fabricam mais. Quantos tiros foram deflagrados?

— Uma bala. — Tom apontou de novo para o peito. — Deve ter morrido quando quebrou a cerca. — Levantou o revólver enlameado. — Já viu isto antes?

Spade fez que sim. — Tenho visto alguns Webley-Fosberys — disse, sem interesse, e em seguida falou rapi­damente: — Ele foi alvejado aqui, não foi? Em pé, onde você está, de costas para a cerca. O homem que atirou nele estava aqui. — Deu a volta em frente de Tom e levantou a mão à altura do peito, com o indicador estendido. — Ele atira e Miles cai para trás, arrancando o alto da cerca, pas­sando e rolando até ficar preso pela pedra. É isso?

— É — replicou Tom vagarosamente, cerrando as sobrancelhas. — A detonação queimou-lhe o paletó.

— Quem o achou?

— O ronda, Shilling. Vinha descendo a Bush, e, exa­tamente quando chegou aqui, um carro que dava a volta virou a luz dos faróis para cá e ele viu a cerca quebrada. Veio então examiná-la e achou-o.

— E quanto ao carro que estava dando a volta?

— Absolutamente nada, Sam. Shilling não lhe deu atenção, pois ainda não sabia de nenhuma irregularidade. Diz que ninguém saiu daqui enquanto ele desceu da Powell, senão ele teria visto. O único caminho afora esse seria sob o cartaz, na Stockton. Ninguém veio por lá. O nevoeiro dei­xou o chão úmido, e as únicas marcas estão onde Miles escorregou e onde esta arma rolou.

— Ninguém ouviu o tiro?

— Pelo amor de Deus, Sam, nós acabamos de chegar há pouco! Alguém deve tê-lo ouvido, mas ainda não encon­tramos esse alguém. — Voltou-se e pôs uma perna sobre a cerca. — Quer vir dar-lhe uma olhada, antes que ele seja removido?

— Não — respondeu Spade.

Tom parou com uma perna de cada lado da cerca e olhou para trás, para Spade, com os olhos pequenos cheios de surpresa.

Spade: — Você o viu. Você viu tudo o que eu poderia ter visto.

Tom, olhando ainda para Spade, assentiu com a cabeça como se estivesse em dúvida, e recolheu a perna de sobre a cerca. — A arma estava oculta no quadril — disse. — Não fora usada. O paletó estava abotoado. Tinha cento e sessenta e tantos mangos nos bolsos. Ele estava trabalhando,

Spade, após um momento de hesitação, concordou.

Tom perguntou: — Que mais?

— Ele devia estar seguindo um homem chamado Floyd

Thursby — disse Spade, e descreveu Thursby de acordo com o que ouvira da srta. Wonderly.

— Para quê?

Spade pôs as mãos nos bolsos do sobretudo e piscou os olhos sonolentos para Tom, que repetiu, impaciente:

— Para quê?

— Talvez fosse um inglês. Não sei ao certo qual o seu jogo. Estávamos tentando descobrir-lhe a moradia. — Spade sorriu vagamente, com ironia, e retirou a mão do bol­so para bater de leve no ombro de Tom. — Não me aperte — disse, e pôs de novo a mão no bolso. — Vou andando, para levar a notícia à mulher de Miles. — Voltou-se.

Tom franziu a testa, abriu a boca, fechou-a sem dizer nada, pigarreou, desmanchou a carranca e comentou com uma seca delicadeza: — É duro, ser morto assim. Miles tinha seus defeitos, como todos nós, mas suponho que de­vesse ter também suas qualidades.

— Acho que sim — concordou Spade num tom total­mente inexpressivo, e saiu do beco.

Em uma farmácia que ficava aberta durante a noite, na esquina da Bush Street com a Taylor, Spade telefonou. — Meu bem — disse, um pouco depois de ter dado o número —, Miles recebeu um tiro. . . Sim, está morto. .. Não, não fique nervosa. . . Sim. . . Você terá de comunicar a Iva . . . Não, de jeito nenhum. Você é que tem que ir. . . Você é boazinha. . . E faça com que ela não vá ao escritório. Diga-lhe que irei vê-la.. . hum.. . a qualquer hora. . . Sim, mas não me deixe amarrado a nenhuma promessa. . . É isso aí. Você é um anjo. Até logo.

 

O despertador de metal marcava três e quarenta quan­do Spade acendeu de novo a luz do lustre. Deixou cair o cha­péu e o sobretudo no leito e dirigiu-se à cozinha, voltando ao quarto com um copo e uma garrafa alta de Bacardi. Des­pejou uma dose e bebeu-a de pé. Pôs a garrafa e o copo sobre a mesa, sentou-se na beirada da cama, de frente para eles, e enrolou um cigarro. Tinha bebido o terceiro copo de Bacardi e estava acendendo o quinto cigarro, quando a campainha da porta tocou. Os ponteiros do despertador marca­vam quatro e meia. Spade suspirou, levantou-se e dirigiu-se ao telefone, junto à porta do banheiro, onde apertou o botão que soltava o fecho da porta da rua. Então resmungou: — Diabos a levem — e conservou-se carrancudo junto ao tele­fone, com a respiração desigual, enquanto uma vermelhidão opaca lhe subia às faces.

Veio do corredor o ruído raspante da porta do eleva­dor, abrindo-se e fechando-se. Spade suspirou de novo e dirigiu-se à porta. Passos silenciosos e pesados fizeram-se ouvir fora, no chão atapetado, passos de dois homens. A fisionomia de Spade iluminou-se. Seus olhos perderam o as­pecto cansado. Abriu a porta rapidamente. — Alô, Tom — disse ao detetive alto e barrigudo, com quem estivera conversando na Burritt Street, e — Alô, tenente — ao ho­mem que estava ao lado de Tom. — Entrem.

Eles o cumprimentaram ao mesmo tempo, sem dizer nada, e entraram. Spade fechou a porta e introduziu-os no quarto. Tom sentou-se num canto do sofá, junto às janelas. O tenente sentou-se em uma cadeira, ao lado da mesa. O tenente era um homem de compleição sólida, com uma ca­beça redonda sob o cabelo grisalho, cortado curto, e um rosto quadrado atrás de um bigode também grisalho e curto. Tinha pregado na gravata um alfinete feito de uma moeda de ouro de cinco dólares, e, na lapela, o emblema de uma sociedade secreta, um pequeno naipe de ouros trabalhado. Spade trouxe dois copos da cozinha e encheu-os, assim como o seu, de Bacardi, deu um a cada um dos visitantes, e sentou-se com o seu ao lado da cama. Sua fisionomia es­tava serena e indiferente. Levantou o copo e disse: — Ao crime — e bebeu-o.

Tom esvaziou o copo, colocou-o no chão, ao lado dos pés, e limpou a boca com o indicador sujo de lama. Depois ficou de olhos fixos no pé da cama, como se esta lhe recor­dasse vagamente alguma coisa de que estivesse tentando se lembrar. O tenente olhou para o copo durante uns doze se­gundos, tomou um gole insignificante do seu conteúdo, e o pôs sobre a mesa, junto ao cotovelo. Examinou o quarto com o olhar muito atento e voltou depois os olhos para Tom. Tom mexeu-se, indisposto, no sofá, e perguntou sem levantar os olhos: — Você comunicou o que aconteceu à mulher de Miles, Sam?

Spade fez: — Hum-hum.

— Como ela recebeu a notícia?

Spade sacudiu a cabeça: — Não entendo de mulheres.

Tom disse a meia voz: — Aposto que não entende . . .

O tenente pôs as mãos sobre os joelhos e inclinou-se a frente. Seus olhos esverdeados estavam cravados em Spade com uma fixidez particular, como se o seu foco fosse uma questão de mecânica, que pudesse ser mudado somente puxando uma alavanca ou apertando um botão. — Que es­pécie de arma você carrega? — perguntou.

— Nenhuma. Não gosto de armas. Naturalmente, te­nho algumas no escritório.

— Gostaria de ver uma delas — disse o tenente. — Você não terá por acaso alguma aqui?

— Não.

— Tem certeza disso?

— Procure. — Spade sorriu e fez um pequeno aceno com o copo vazio. — Vire este negócio de cima para baixo, se quiser. Não me importo... se tiverem uma ordem de busca.

Tom protestou: — Ora, vá à merda, Sam!

Spade colocou o copo sobre a mesa e ficou em pé, fitando o tenente. — O que quer você, Dundy? — per­guntou, numa voz dura e fria como o seu olhar.

Os olhos do tenente Dundy tinham se movido de for­ma a conservar o seu foco sobre os de Spade. Apenas seus olhos tinham se movido. Tom mudou de posição outra vez no sofá, deu um profundo suspiro e resmungou em tom de queixa: — Nós não estamos procurando encrenca, Sam.

Spade, ignorando Tom, disse a Dundy: — Bem, que quer você? Fale claro. Quem você pensa que é, para vir aqui tentar me espionar?

— Muito bem — disse Dundy em tom grave —, sen­te-se e ouça.

— Eu me sento, ou fico de pé, como me der na telha — retrucou Spade sem se mover.

— Pelo amor de Deus, seja razoável — pediu Tom. Qual é a vantagem de termos uma rixa? Se você quer saber por que não falamos claro, é porque, quando lhe per­guntei quem era esse Thursby, você quase me disse que não era da minha conta. Você não pode nos tratar dessa for­ma, Sam. Não é direito, e isso não lhe trará nenhuma van­tagem. Nós temos que fazer a nossa obrigação.

O tenente Dundy pôs-se em pé, chegou bem perto de Spade e aproximou o rosto quadrado do rosto do seu interlocutor: — Eu o preveni de que você escorregaria qual­quer dia destes — disse.

Spade fez um muxoxo de pouco-caso, erguendo as so­brancelhas. — Todo mundo escorrega um dia — replicou, com amabilidade zombeteira.

— E esse é o seu caso.

Spade sorriu e sacudiu a cabeça. — Não, eu me sairei bem, obrigado. — Parou de sorrir. Seu lábio superior, do lado direito, contraiu-se sobre o canino. Os olhos continua­ram apertados e injetados. A voz saiu profunda como a do tenente. — Não estou gostando disto. O que é que vocês estão xeretando? Digam-me, ou saiam e me deixem ir para a cama.

— Quem é Thursby? — perguntou Dundy.

— Eu disse a Tom o que sabia a respeito dele.

— Você disse muito pouco a Tom.

— Eu sabia muito pouco.

— Por que vocês o estavam seguindo?

— Eu não estava. Miles é que estava, pela ótima razão de termos um cliente que estava pagando bom dinheiro para que ele fosse seguido.

— Quem é o cliente?

A calma voltou de novo ao rosto e à voz de Spade. Ele disse, em tom de censura: — Vocês sabem que não posso lhes contar isso antes de ter falado a esse respeito com o cliente.

— Ou você conta agora, ou vai contar no tribunal — disse Dundy com violência. — Não se esqueça de que isso é um assassinato.

— Talvez. E aqui está uma coisa que você não deve esquecer, meu amor. Contarei ou não, como me agradar. Já vai longe o tempo em que eu chorava porque os policiais não gostavam de mim.

Tom deixou o sofá e sentou-se no pé da cama. Seu rosto mal barbeado e besuntado de lama mostrava-se cansado e enrugado. — Seja razoável, Sam — implorou. — Dê-nos uma colher de chá. Como podemos ter qualquer indício sobre o assassinato de Miles se você se recusa a dizer o que descobriu ?

— Não precisa torturar os miolos a esse respeito — disse Spade. — Eu enterrarei os meus mortos:

O tenente Dundy sentou-se e pôs de novo as mãos nos joelhos. Seus olhos eram ardentes discos verdes. — Pensei isso — disse, e sorriu com satisfação maldosa.

—Foi exatamente por isso que viemos vê-lo, não é ver­dade, Tom?

Tom gemeu, mas não articulou nenhuma palavra. Spade observava Dundy cautelosamente.

— Foi exatamente o que eu disse a Tom — continuou o tenente. — Eu disse: "Tom, tenho um palpite de que Sam Spade é um homem que lava a roupa suja em casa". Foi isso exatamente o que eu lhe disse.

A expressão de cautela abandonou os olhos de Spade, que se tornaram pesados de tédio. Ele voltou o rosto para Tom e perguntou, com ar de pouco-caso: — Que bicho mordeu o seu amigo agora?

Dundy pôs-se em pé e bateu no peito de Spade com a ponta de dois dedos curvos: — Apenas isto — disse, esfor­çando-se para tornar distintas todas as palavras, sublinhando-as com as pancadinhas dos dedos: — Thursby foi alve­jado em frente ao seu hotel, trinta e cinco minutos depois que você deixou a Burritt Street.

Spade falou, empregando o mesmo esforço nas pala­vras: — Tire as suas malditas patas de cima de mim.

Dundy recolheu os dedos, mas não mudou o tom de voz:

— Tom disse que você estava com tanta pressa que nem pôde se demorar para dar uma vista d'olhos no seu companheiro.

Tom rosnou, desculpando-se: — Bem, com os diabos, Sam, foi assim que você escapuliu.

— E não foi à casa de Archer comunicar à esposa — disse o tenente. — Nós a procuramos, e encontramos lá aquela moça do seu escritório, que disse que você a tinha mandado em seu lugar.

Spade inclinou a cabeça, assentindo. Seu rosto pare­cia apatetado, na sua imobilidade.

O tenente Dundy levantou os dois dedos curvos em direção ao peito de Spade, baixou-os de novo com rapidez e disse: — Você teve dez minutos para arranjar um telefone e falar com a moça. Teve dez minutos para alcançar o escon­derijo de Thursby, em Geary, perto de Leavenworth; você poderia fazer isso facilmente nesse tempo, ou em quinze minutos no máximo. E isso lhe dá dez ou quinze minutos de folga, antes de ele aparecer.

— Por acaso eu sabia onde ele morava? — perguntou Spade. — E sabia que ele não tinha ido direto para casa depois de matar Miles?

— Sabia o que sabia — replicou Dundy, teimoso. — A que horas chegou em casa?

— Às vinte para as quatro. Estive andando por aí, meditando.

O tenente meneou a cabeça redonda, de cima para baixo. — Sabíamos que você não estava em casa às três e meia. Tentamos ligar para cá. Por onde esteve andando?

— Saí da Bush Street a certa altura e depois voltei.

— Viu alguém que...

— Não, sem testemunhas — disse Spade, e riu jovial­mente. — Sente-se, Dundy. Você não acabou de beber. Pegue o seu copo, Tom.

Tom disse: — Não, obrigado, Sam. — Dundy sen­tou-se, mas não olhou para o copo de rum.

Spade encheu o seu copo, bebeu, pôs o copo vazio na mesa e voltou a sentar-se na beira da cama. — Agora sei onde estou — disse, olhando com olhos amistosos de um detetive para o outro. — Sinto ter ficado bravo, mas isso de uns caras como vocês virem aqui querendo me acusar me deixou nervoso. Eu já estava aborrecido com o fato de Miles estar fora de combate, e ainda por cima vêm vocês, bancando os sabidos para o meu lado. Mas agora está bem, agora que sei o que vocês estão querendo.

Tom disse: — Esqueça-se disso. — O tenente ficou calado. Spade perguntou: — Thursby morreu?

Enquanto o tenente hesitava, Tom respondeu: — Sim.

Então o tenente disse, raivoso: — E você bem pode ficar sabendo também, se já não sabe, que ele morreu antes de poder contar qualquer coisa a alguém.

Spade estava enrolando um cigarro. Sem levantar os olhos, perguntou: — Que quer dizer com isso? Pensa que eu sabia?

— Quis dizer o que disse — replicou rudemente Dundy.

Spade ergueu os olhos para ele e sorriu, segurando o cigarro enrolado em uma das mãos e o isqueiro na outra. — Você ainda não está em condições de me prender, está, Dundy? — Dundy volveu um olhar duro para Spade, e não respondeu.

— Então, não há nenhuma razão especial para que eu dê a mínima importância ao que você pensa, não é, Dundy?

— Ora, seja razoável, Sam! — pediu Tom.

Spade pôs o cigarro na boca, acendeu-o e soltou a fumaça por entre uma risada. — Serei razoável, Tom — pro­meteu. — Como foi que matei esse Thursby? Já me esqueci. Tom grunhiu, descontente. O tenente Dundy disse:

— Ele foi alvejado quatro vezes pelas costas, com um

44 ou 45, do lado oposto da rua, quando ia entrar no hotel. Ninguém viu, mas parece ter sido assim.

— E trazia uma Luger num coldre a tiracolo, que não

foi usada — acrescentou Tom.

— O que é que o pessoal do hotel sabe a respeito dele perguntou Spade.

— Nada, a não ser que estava lá havia uma semana.

— Sozinho?

— Sozinho.

— O que vocês acharam com ele? Ou no quarto? Dundy apertou os lábios e perguntou: — O que você imagina que deveríamos ter achado?

Spade descreveu um círculo negligente com o cigarro. — Alguma coisa que nos dissesse quem era ele, e o que fazia. Achou?

— Pensávamos que você nos pudesse informar quanto a isso.

Spade olhou para o tenente com os olhos amarelo-pardos cheios de exagerada candura. — Nunca vi Thursby, nem morto nem vivo.

O tenente Dundy pôs-se em pé com ar descontente. Tom levantou-se, bocejando e espreguiçando-se. — Já per­guntamos o que tínhamos a perguntar — disse Dundy, fran­zindo as sobrancelhas sobre os olhos verdes, duros como pedras. Mordeu o lábio superior, coberto pelo bigode, deixando o lábio inferior expelir as palavras. — Nós lhe contamos mais do que você nos contou. Fomos leais. Você me conhece, Spade. Seja você ou não, serei legal com você, e você terá todas as chances. Não posso censurá-lo pelo que está fazendo... mas isso não me impedirá de prendê-lo.

— É justo — replicou Spade da mesma forma. — Mas eu ficaria mais sossegado se você tivesse bebido o rum.

O tenente Dundy voltou-se para a mesa, pegou o copo e esvaziou-o lentamente. Em seguida disse: — Boa noite — e estendeu a mão. Apertaram-se as mãos cerimoniosamente. Tom e Spade despediram-se também cerimoniosamente, e Spade conduziu-os até a porta. Então se despiu, apagou as luzes e deitou-se.

 

                   TRÊS MULHERES

Quando Spade chegou ao escritório, na manhã seguin­te, às dez horas, Effie Perine estava abrindo a correspon­dência na sua escrivaninha. Seu rosto infantil mostrava-se pálido sob o queimado do sol. Pôs sobre a mesa o punhado de envelopes e a espátula de latão, e preveniu-o em voz baixa: — Ela está aí dentro.

— Pedi-lhe que a conservasse afastada — protestou Spade, também em voz baixa.

Os olhos de Effie Perine arregalaram-se, e sua voz tor­nou-se tão irritada quanto a dele: — Sim, mas não me disse como fazer isso. — Suas sobrancelhas se apertaram um pouco, e os ombros descaíram. — Não seja rabugento, Sam — disse, com ar abatido. — Aturei-a a noite inteira.

Spade aproximou-se da moça, pôs-lhe uma das mãos sobre a cabeça e alisou-lhe o cabelo. — Sinto muito, meu anjo. Eu não. . . — interrompeu-se, ao abrir-se a porta interna. — Alô, Iva — disse à mulher que a abrira.

— Oh, Sam! — fez ela. Era uma mulher loura, de pouco mais de trinta anos. Sua beleza devia ter atingido o auge uns cinco anos antes. O corpo, apesar da robustez, era bem-modelado e elegante. Estava vestida de preto, desde o chapéu até os sapatos, o que lhe dava um ar de luto impro­visado. Tendo falado, retrocedeu um passo e ficou espe­rando Spade.

Ele retirou a mão da cabeça de Effie Perine e entrou na sala interna, fechando a porta. Iva aproximou-se rapida­mente, levantando o rosto triste para o seu beijo. Seus bra­ços envolveram-no, antes que os dele a estreitassem. Depois de se beijarem, ele fez um pequeno movimento para liber­tar-se, mas ela apertou o rosto de encontro ao seu peito e começou a soluçar.

Ele bateu-lhe de leve nas costas, dizendo: — Pobrezinha. — Sua voz era terna. Seus olhos, dirigindo-se de lado para a escrivaninha que pertencera ao sócio, adiante da sua, estavam irritados. Apertou os lábios nos dentes, num trejeito de impaciência, e virou o queixo para evitar o con­tato da copa do chapéu dela. — Você mandou chamar o irmão de Miles? — perguntou.

— Mandei; chegou esta manhã. — As palavras saíam indistintas por causa dos soluços e do casaco que lhe tapava a boca.

Ele fez novo trejeito e curvou a cabeça para olhar fur­tivamente o relógio, no pulso. Seu braço esquerdo envolvia-a, descansando a mão sobre o ombro dela. O punho estava afastado o suficiente para deixar descoberto o relógio. Este marcava dez horas e dez minutos.

A mulher estremeceu nos seus braços e levantou nova­mente o rosto. Tinha os olhos azuis molhados, redondos, e orlados de branco. A boca estava úmida. — Oh, Sam — gemeu —, você o matou?

Spade olhou-a com os olhos arregalados, e seu queixo ossudo caiu. Retirou depois os braços que o prendiam e afastou-se dela. Franziu então as sobrancelhas e limpou a garganta. Ela conservou os braços levantados, como ele os tinha deixado. A angústia ensombrava-lhe os olhos, semicerrados sob as sobrancelhas erguidas. Seus lábios vermelhos e úmidos estavam trêmulos.

Spade riu uma sílaba áspera — Ah! — e dirigiu-se à janela de cortinas amarelo-claras. Conservou-se aí, de costas para ela, olhando para o pátio através da cortina, até que ela se encaminhou para ele. Então voltou-se rapidamente e dirigiu-se à sua escrivaninha. Sentou-se, apoiou os cotovelos na mesa, com o queixo entre os punhos, e olhou para a mulher. Seus olhos amarelados faiscaram por entre as pes­tanas semicerradas. — Quem pôs essa brilhante idéia na sua cabeça? — perguntou friamente.

— Eu pensei. . . — Ela levou a mão à boca, e novas lágrimas lhe vieram aos olhos. Veio colocar-se ao lado da escrivaninha, movendo-se com uma graça fácil e segura, so­bre os sapatinhos minúsculos e de salto muito alto. — Te­nha paciência comigo, Sam — disse com humildade.

Ele sorriu-lhe, com os olhos ainda em chispas. — Você matou meu marido, Sam, tenha paciência comigo.

— Puta que o pariu — disse ele, batendo as palmas das mãos.

Ela começou a chorar alto, escondendo o rosto num lenço branco. Spade ergueu-se e aproximou-se dela; pôs-lhe os braços em volta e beijou-lhe o pescoço, entre a orelha e a gola do casaco. — Não, Iva, não chore assim. — Seu rosto estava inexpressivo. Quando ela parou de chorar, ele apro­ximou-lhe a boca do ouvido e murmurou: — Você não devia ter vindo aqui hoje, amor. Foi imprudência. Você não pode continuar aqui. Devia estar em sua casa.

Ela voltou-se nos seus braços para olhá-lo de frente, e perguntou: — Você vem hoje à noite?

Ele sacudiu a cabeça com brandura: — Hoje, não.

— Logo?

— Sim.

— Quando?

— Logo que puder.

Então beijou-lhe a boca, conduziu-a até a porta, abriu-a e disse: — Até logo, Iva. — Inclinou-se, fazendo-a sair, fechou a porta e voltou à sua escrivaninha. Tirou fumo e papéis de cigarro do bolso, mas não enrolou nenhum cigar­ro. Conservou-se sentado, segurando os papéis numa das mãos e o fumo na outra, e ficou olhando, absorto, para a escrivaninha do seu companheiro assassinado.

Effie Perine abriu a porta e entrou. Seus olhos casta­nhos mostravam-se inquietos, mas ela perguntou, em tom despreocupado: — Então? — Spade não respondeu. O olhar absorto não se afastou da escrivaninha do sócio. A moça franziu as sobrancelhas, e, dando a volta, aproximou-se dele. — Então? — perguntou em voz mais alta — como se en­tenderam, você e a viúva?

— Ela pensa que eu matei Miles — disse ele, mo­vendo apenas os lábios.

— A fim de poder se casar com ela?

Spade não respondeu. A moça tirou-lhe o chapéu da cabeça, colocando-o sobre a sua escrivaninha. Depois incli­nou-se e tirou-lhe de entre os dedos inertes a bolsa de fumo e os papéis. — A polícia pensa que eu matei Thursby — disse ele.

— Quem é ele? — perguntou ela, separando do maço um papel de cigarro e derramando fumo nele.

— Quem você pensa que eu matei? — perguntou. Vendo que ela desprezava a pergunta, disse: — Thursby é o sujeito que Miles devia estar seguindo para aquela moça chamada Wonderly.

Seus dedos delgados acabaram de dar forma ao cigarro. Lambeu-o, alisou-o, dobrou-lhe as pontas e colocou-o entre os lábios de Spade. — Obrigado, meu bem — disse ele; pôs um braço em volta da cintura delgada da moça e, num gesto cansado, encostou o rosto contra o seu quadril, fe­chando os olhos.

— Você vai se casar com Iva? — perguntou a moça, baixando o olhar para o cabelo castanho-claro.

— Não seja boba — resmungou ele. O cigarro, apa­gado, balançava para cima e para baixo, com o movimento dos seus lábios.

— Ela não acha que seja bobagem. Como poderia achar. . . uma vez que você a assedia daquela forma?

Ele suspirou: — Queria não tê-la visto nunca.

— Talvez você queira isso, agora. — Um traço de rancor transpareceu na voz da moça. — Mas já houve tempo...

— Não sei o que fazer ou dizer às mulheres, a não ser dessa forma — resmungou —, e depois, eu não gostava de Miles.

— Isso é mentira, Sam — disse a moça. — Você sabe que eu a acho uma sem-vergonha, mas eu também o seria, se isso me desse um corpo igual ao dela.

Spade esfregou o rosto com impaciência contra ela, mas não disse nada. Effie Perine mordeu os lábios, enru­gou a testa e, curvando-se para ver-lhe melhor o rosto, per­guntou: — Você acha que ela poderia tê-lo assassinado?

Spade endireitou-se e tirou o braço da cintura da moça. Depois sorriu-lhe, com um sorriso divertido. Tirou o isquei­ro, acendeu-o e chegou-o à ponta do cigarro. — Você é um anjo — disse com ternura, por entre a fumaça —, um anjo bem bobinho.

Ela deu um sorriso um pouco forçado. — Ah, sou? E se eu lhe contar que não fazia muitos minutos que a sua Iva tinha chegado em casa quando eu cheguei também para lhe comunicar a notícia, às três horas desta madrugada?

— Que é que você está me contando? — Seu olhar tinha se tornado atento, apesar de a boca continuar a sorrir.

— Ela me deixou esperando na porta enquanto se des­pia, ou acabava de se despir. Eu vi as roupas em uma ca­deira, para onde as tinha atirado. O chapéu e o casaco esta­vam por baixo. Sua combinação, em cima, ainda estava quente. Ela disse que estava dormindo, mas não estava. As roupas da cama estavam simplesmente enrugadas, mas não amassadas.

Spade pegou a mão da moça e acariciou-a, batendo-lhe de leve: —Você é um detetive, meu bem, mas — sacudiu a cabeça — ela não o matou.

Effie Perine puxou a mão com força. — Essa sem-vergonha quer se casar com você, Sam — disse com amar­gura. Ele fez um gesto de impaciência com a cabeça e com uma das mãos. Ela franziu os sobrolhos e perguntou: — Você a viu a noite passada?

— Não.

— Sinceramente?

— Sinceramente. Não imite Dundy, meu amor. Não lhe fica bem.

— Dundy procurou-o?

— Hum-hum. Ele e Tom Polhaus foram tomar um trago, às quatro da manhã.

— Pensam realmente que você assassinou esse . . . como é mesmo o nome?

— Thursby. — Pôs o resto do cigarro no cinzeiro e começou a enrolar outro.

— Pensam? — insistiu ela.

— Só Deus sabe. — Seus olhos estavam fixos no ci­garro que estava fazendo. — Eles tinham uma idéia pare­cida. Não sei até que ponto consegui afastá-los dela.

— Olhe para mim, Sam. — Ele olhou-a e riu, pois uma expressão de alegria misturava-se à ansiedade, no rosto da moça. — Você me assusta — disse ela, tornando-se séria de novo. —' Sempre acha que sabe o que está fazendo, mas é prejudicado pela sua própria esperteza, e um dia desco­brirá isso.

Ele soltou um suspiro zombeteiro e esfregou o rosto no braço da moça. — Isso é o que Dundy diz, mas conserve Iva afastada de mim, meu bem, e agirei de forma a vencer o resto das minhas dificuldades. — Ergueu-se e pôs o cha­péu. — Tire da porta o "Spade & Archer" e ponha "Samuel Spade". Estarei de volta dentro de uma hora, ou então telefonarei.

Spade atravessou o longo saguão violeta do St. Mark em direção à recepção e perguntou a um almofadinha de ca­belo vermelho se a srta. Wonderly estava. O almofadinha de cabelo vermelho afastou-se, depois voltou, sacudindo a cabeça.

— Ela foi embora esta manhã, sr. Spade.

— Obrigado.

Spade passou pela recepção em direção a um compartimento fora do hall, onde um homem gordo, de meia-idade, vestido de escuro, estava sentado em frente a uma escriva­ninha de mogno, de superfície lisa. Na beira da escrivaninha, de frente para o saguão, havia uma prisma triangular, de mogno e latão, com a inscrição: "Sr. Freed".

O homem gordo levantou-se e deu a volta à escriva­ninha, com a mão estendida. — Senti imensamente o que aconteceu com Archer, Spade — disse, no tom de uma pes­soa acostumada a mostrar-se solidária na tristeza, sem ser indiscreta. — Acabei de ler no Call. Ele esteve aqui na noite passada, você sabe.

— Obrigado, Freed. Você falou com ele?

— Não. Ele estava sentado no saguão quando eu che­guei, à noite, cedo ainda. Não o procurei. Pensei que esti­vesse trabalhando, e sei que vocês gostam de ficar sós quan­do estão ocupados. Isso tem alguma relação com o seu...?

— Acho que não, mas ainda não sabemos. De qual­quer forma, não envolveremos nisso o hotel, se pudermos evitá-lo.

— Obrigado.

— Está bem. Pode me dar algumas informações a respeito de um ex-hóspede e, depois, esquecer que as pedi?

— Sem dúvida.

— Uma certa srta. Wonderly foi embora esta manhã. Gostaria de conhecer os detalhes.

— Venha comigo — disse Freed —, e vejamos o que podemos descobrir.

Spade conservou-se imóvel, sacudindo a cabeça.

— Não quero aparecer nisso.

Freed meneou a cabeça, aquiescendo, e saiu do compartimento. No saguão, parou de repente e voltou até Spa­de. — Harriman era o detetive do hotel que estava de ser­viço na noite passada — disse. — Ele viu Archer, sem dúvida. Devo preveni-lo de que silencie sobre isso?

Spade olhou de soslaio para Freed. — É melhor não dizer nada. Isso não tem importância, desde que não haja relação aparente com essa tal de Wonderly. Harriman é muito bom, mas gosta de falar, e prefiro que ele não pense que há alguma coisa a ocultar.

Freed meneou de novo a cabeça e afastou-se, voltando quinze minutos mais tarde. — Ela chegou na última terça-feira, registrando-se como tendo vindo de Nova York. Não tinha malas, apenas algumas maletas. Não houve chamadas telefônicas debitadas na sua conta, e parece que ela não recebeu muitas cartas, talvez nenhuma. A única pessoa vista em sua companhia foi um homem alto, moreno, de uns trinta e seis anos. Ela saiu às nove e meia esta manhã, vol­tou uma hora mais tarde, pagou a conta e mandou levar as maletas para um carro. O rapaz que as levou diz que era um Nash de turismo, provavelmente alugado. Ela deixou este endereço: "Ambassador", Los Angeles.

— Obrigado, Freed — disse Spade, e deixou o St.

Quando o detetive voltou ao seu escritório, Effie Perine parou de escrever uma carta à máquina para dizer-lhe: — Seu amigo Dundy esteve aqui. Queria ver as suas armas.

_ E...?

— Disse-lhe que voltasse quando você estivesse pre­sente.

— Boa menina. Se ele voltar, deixe-o vê-las.

— E a srta. Wonderly telefonou.

— Não era sem tempo. O que ela disse?

— Quer vê-lo. — A moça pegou uma folha de papel de cima da escrivaninha e leu o memorando escrito a lápis:

— Ela está no Coronet, na Califórnia Street, apartamento 1001. Deve perguntar por srta. Leblanc.

— Dê-me isso aí — disse Spade, e estendeu a mão. Quando a moça lhe deu o memorando, tirou o isqueiro, acendeu-o, chegou-o à folha de papel e ficou segurando-o até que todo ele, exceto um canto, não fosse mais do que um rolo de cinza preta; deixou-o cair no chão de linóleo e amassou-o sob a sola do sapato. A moça observava-o com um olhar de censura. Ele sorriu: — É isso mesmo, querida

— e saiu de novo.

 

                   O PÁSSARO PRETO

A srta. Wonderly, num vestido justo de crepe de seda verde, abriu a porta do apartamento 1001 do Coronet. Seu rosto estava corado. O cabelo vermelho-escuro, dividido do lado esquerdo, penteado para trás em ondas suaves sobre a fronte, do lado direito, estava um pouco desarrumado. Spade tirou o chapéu, dizendo: — Bom dia.

O sorriso dele trouxe ao rosto da moça um reflexo de sorriso, mas os olhos dela, de um azul quase violeta, não perderam a expressão perturbada. Ela abaixou a cabeça e disse, numa voz tímida, sussurrante: — Entre, sr. Spade.

A moça conduziu-o a uma sala de estar vermelha e cre­me, passando pelas portas abertas da cozinha, do banheiro e do quarto, e pedindo desculpas pela desordem: — Está tudo remexido. Nem acabei de desarrumar as malas.

Pôs o chapéu dele sobre uma mesa e sentou-se em um grande sofá de nogueira. Ele sentou-se numa cadeira de brocado de encosto oval, na sua frente. A moça olhou para os dedos, trançando-os, e disse: — Sr. Spade, tenho uma terrível confissão a lhe fazer. — Spade sorriu de modo edu­cado (ela não levantou os olhos para ele) e não disse nada.

— Essa. . . essa história que lhe contei ontem era só. .. uma história — gaguejou, e então levantou o olhar para ele com uma expressão angustiada, amedrontada.

— Oh, quanto a isso. . . — disse Spade, despreocupa­do. — Nós não acreditamos muito na sua história.

— Então. . . ? — A perplexidade juntava-se agora à angústia e ao receio nos seus olhos.

— Nós acreditamos nos seus duzentos dólares.

— O senhor quer dizer. . . ? — Ela parecia não saber o que ele queria exprimir.

— Quero dizer que a senhora nos pagou mais do que pagaria se estivesse dizendo a verdade — explicou com brandura — e o suficiente para nos fazer aceitar tudo.

Seus olhos subitamente se iluminaram. Ela se ergueu alguns centímetros sobre o sofá, sentou-se de novo, alisou a saia, inclinou-se para a frente e falou impetuosamente: — E mesmo agora, o senhor quererá. . . ?

Spade interrompeu-a, levantando a palma da mão. A parte superior de seu rosto mostrava-se carrancuda. A parte inferior sorria. — Isso depende — disse ele. — O diabo é, srta. . . Seu nome é Wonderly ou Leblanc?

Ela corou e murmurou: — O verdadeiro é O'Shaughnessy... Brigid O'Shaughnessy.

— O diabo, srta. O'Shaughnessy, é que dois assassi­natos — ela estremeceu — de uma vez, como estes, deixam todo mundo excitado, fazem a polícia pensar que pode ul­trapassar os limites, tornam todos difíceis de tratar, e isso sai caro. Não é.. . — ele parou de falar porque ela tinha parado de ouvir, e estava apenas esperando que ele ter­minasse.

— Sr. Spade, diga-me a verdade. — Sua voz tremia, quase histérica. O rosto tomara uma expressão perturbada, emoldurando os olhos angustiados. — Serei culpada pelo que... pelo que aconteceu a noite passada?

Spade sacudiu a cabeça. — Não, a não ser que existam coisas das quais eu não tenha conhecimento. A senhorita nos preveniu de que Thursby era perigoso. É verdade que nos mentiu a respeito da sua irmã e do resto, mas isso não im­porta: nós não acreditamos nisso. — Encolheu os ombros curvos. — Eu não a julgaria culpada.

— Obrigada — disse ela suavemente, e depois moveu a cabeça de um lado para o outro. — Mas sempre me cen­surarei por isso. — Então pôs a mão sobre o peito. — O sr. Archer estava tão. . . cheio de vida ontem, tão robusto e tão vigoroso, e...

— Pare — ordenou Spade. — Ele sabia o que estava fazendo. Temos que correr os riscos.

— Ele era... era casado?

— Sim, com dez mil dólares de seguro, sem filhos, e uma mulher que não o amava.

— Oh, por favor, não fale! — murmurou ela. Spade sacudiu de novo os ombros. — Essa é a verdade.

— Olhou o relógio e mudou da cadeira para o sofá, ao lado da moça. — Não há tempo para nos afligirmos agora com essas coisas. — Sua voz, embora afável, mostrava-se firme.

—Aí fora, há um bando de policiais, auxiliares de comissá­rios e repórteres em agitação, farejando uma pista. Que pre­tende fazer?

— Quero que o senhor me salve de... disso tudo — replicou numa voz trêmula e débil, pondo-lhe a mão tímida sobre a manga. — Sr. Spade, eles sabem alguma coisa a meu respeito?

— Ainda não. Eu quis vê-la primeiro.

— O que. . . o que pensariam se soubessem a forma como o procurei. . . com aquelas mentiras?

— Ficariam desconfiados. É por isso que eu os estive despistando até poder vê-la. Pensei que talvez não precisás­semos deixá-los tomar conhecimento de tudo. Devemos estar aptos a forjar uma história que dissipe as desconfianças deles, se for necessário.

— O senhor não está pensando que eu tive alguma coisa a ver com os. . . assassinatos, não?

Spade sorriu, dizendo: — Esqueci-me de lhe pergun­tar isso. Teve?

— Não.

— Ótimo. Agora, o que contaremos à polícia?

Ela se remexeu no canto do sofá, e seus olhos vacila­ram por entre as pesadas pestanas, como se tentassem se desprender do olhar dele, sem o conseguir. Parecia menor, e muito jovem e abatida. — Eles precisam mesmo saber que eu existo? — perguntou. — Acho que eu preferiria morrer, sr. Spade. Não posso lhe explicar ainda, mas o senhor não poderia proceder de forma a me esconder deles, para que eu não tenha de responder a perguntas? Acho que eu não su­portaria ser interrogada agora. Preferiria morrer. O senhor não pode, sr. Spade?

— Talvez, mas terei que saber do que se trata.

Ela se ajoelhou na sua frente e ergueu para ele o rosto pálido, tenso e atemorizado, sobre as mãos apertadas. — A minha vida não tem sido nada irrepreensível! — excla­mou. — Tenho sido má. . . pior do que o senhor possa imaginar. . . mas não sou de todo ruim. Olhe para mim, sr. Spade. O senhor sabe que não sou de todo ruim, não é verdade? Pode ver isso, não pode? Não pode então confiar um pouco em mim? Oh, estou tão sozinha e tenho tanto medo, e não tenho ninguém, se o senhor não quiser me ajudar! Sei que não tenho o direito de lhe pedir que confie em mim, se eu não confiar no senhor. Eu confio no senhor, não posso lhe contar nada. Não agora. Mais tarde contarei, quando puder. Tenho medo, sr. Spade. Tenho medo de confiar no senhor. Não é isso o que quero dizer. Eu confio no senhor, mas. . . confiei em Floyd e. .. não tenho ninguém mais, ninguém mais, sr. Spade. O senhor pode me ajudar. O senhor disse que podia me ajudar. Se eu não tivesse acreditado que o senhor poderia me salvar, teria fu­gido hoje, em vez de mandar procurá-lo. Se julgasse que alguém mais poderia me salvar, estaria assim de joelhos? Sei que não estou sendo correta. Mas seja generoso, sr. Spade, não me peça para ser correta. O senhor é forte, tem recursos, é corajoso. Pode me conceder um pouco dessa força, desses recursos e dessa coragem, sem dúvida. Ajude-me, sr. Spade. Ajude-me, porque preciso muito de ajuda, e porque, se não quiser fazê-lo, onde encontrarei alguém que possa fazer alguma coisa, mesmo que queira? Ajude-me. Não tenho direito de lhe pedir que me ajude assim às cegas, mas peço. Seja generoso, sr. Spade. O senhor pode me aju­dar. Ajude-me.

Spade, que prendera a respiração durante a maior parte desse discurso, esvaziou então os pulmões com um longo suspiro, exalado por entre os lábios cerrados, e disse: — Você não tem muita necessidade de auxílio alheio. Você é auto-suficiente. Muito auto-suficiente. São principalmente os seus olhos, acho, e esse soluço que põe na voz, quando diz coisas como "Seja generoso, sr. Spade".

Ela se ergueu de um salto. Seu rosto tornou-se cor de carmim, mas ela conservava a cabeça erguida, e olhou Spade bem nos olhos. — Mereço isso — disse. — Mereço, mas . . . oh!... eu queria tanto o seu auxílio! Quero-o, necessito-o tanto! E a mentira estava na forma como eu o disse, e não no que disse. — Voltou-se, abandonando a atitude altiva. — É minha a culpa, se não pode acreditar em mim agora.

O rosto de Spade tornou-se vermelho, e ele olhou para o chão, murmurando: — Agora está ficando perigosa.

Brigid O'Shaughnessy dirigiu-se à mesa e pegou o cha­péu dele. Voltou então e ficou na sua frente, segurando o chapéu sem oferecê-lo, mas segurando-o para que ele o pe­gasse, se quisesse. Estava com o rosto branco e fino. Spade olhou para o chapéu e perguntou: — Que aconteceu a noite passada?

— Floyd veio ao hotel às nove horas, e saímos para dar um passeio. Sugeri isso, a fim de que o sr. Archer pu­desse vê-lo. Paramos em um restaurante na Geary Street, penso, para jantar e dançar, e voltamos ao hotel mais ou menos meia hora depois da meia-noite. Floyd deixou-me na porta, e fiquei do lado de dentro, observando o sr. Ar­cher segui-lo ao descer a rua, do outro lado.

— Descer? Você quer dizer em direção à Market

Street?

— É. .

— Sabe o que eles estiveram fazendo na vizinhança

da Bush e da Stockton, onde Archer foi alvejado?

— Não era perto de onde Floyd morava?

— Não. Seriam uns doze quarteirões fora do seu ca­minho, se ele estivesse indo do seu hotel para o dele. Bem, que fez depois que eles se foram?

— Deitei-me. E esta manhã, quando saí para almoçar, vi as manchetes nos jornais e li sobre. . . o senhor sabe. Então dirigi-me à Union Square, onde tinha visto automó­veis para alugar, arranjei um e voltei ao hotel para buscar minha bagagem. Depois que descobri que meu quarto fora revistado ontem, vi que tinha de me mudar, e encontrei este apartamento ontem à tarde. Assim, vim para cá, e então telefonei para o seu escritório.

— Seu quarto no St. Mark foi revistado? — pergun­tou ele.

— Sim, enquanto eu estava no seu escritório. — Ela mordeu o lábio. — Eu não tencionava contar-lhe isso.

— Quer dizer que não devo interrogá-la a esse res­peito?

Ela aquiesceu, embaraçada, vendo-o franzir as sobran­celhas. Mexeu um pouco o chapéu entre as mãos. Ele, rindo com impaciência, disse: — Pare de me acenar o chapéu na cara. Já não me ofereci para fazer o que puder?

Ela sorriu, tensa, repôs o chapéu na mesa e sentou-se de novo no sofá, ao lado dele. Spade disse: — Não consegui nada em troca da minha confiança cega em você, exceto que não estarei em condições de ajudá-la muito, se não tiver alguma idéia sobre o assunto. Por exemplo, pre­ciso de algum esclarecimento sobre o seu Floyd Thursby.

— Conheci-o no Oriente. — Ela falava devagar, olhan­do para um dedo cuja ponta traçava oitos no sofá, entre os dois. — Chegamos aqui na última semana, vindos de Hong Kong. Ele estava. . . ele tinha prometido ajudar-me. Apro­veitou-se do meu desamparo e de eu estar na sua dependên­cia, para me trair.

— Traí-la, como? — Ela sacudiu a cabeça e não respondeu. Spade, franzindo os sobrolhos com impaciência, perguntou: — Por que você queria que ele fosse seguido?

— Queria saber até onde tinha chegado. Ele não queria nem mesmo que eu soubesse onde estava hospedado. Eu queria descobrir o que ele estava fazendo, com quem estava se encontrando, coisas assim.

— Ele matou Miles Archer?

Ela olhou-o, surpresa. — Sim, sem dúvida — disse.

— Ele tinha uma Luger em um coldre a tiracolo. Mas Archer não foi alvejado com uma Luger.

— Ele tinha um revólver no bolso do sobretudo — disse ela.

— Você o viu?

— Ah, vi-o muitas vezes! Sei que ele sempre trazia um aí. Não o vi a noite passada, mas sei que nunca usava o sobretudo sem ele.

— Por que tantas armas?

— Era o seu meio de vida. Contava-se em Hong Kong que ele fora para lá, para o Oriente, como guarda-costas de um jogador profissional que fora obrigado a deixar os Es­tados Unidos, e que desde então o jogador desaparecera. Diziam que Floyd sabia como ele desaparecera. Não sei se é verdade. Só sei que andava sempre bem armado, e que nunca ia dormir sem cobrir o chão em volta da cama com um jornal amarrotado, a fim de que ninguém pudesse entrar no seu quarto sem ser pressentido.

— Você escolheu uma bela espécie de parceiro.

— Apenas essa espécie poderia ter-me ajudado — disse ela simplesmente —, se tivesse sido leal.

— Sim, se tivesse. — Spade apertou o lábio inferior entre o indicador e o polegar, e olhou-a melancolicamente. As rugas verticais sobre o seu nariz se aprofundaram, apro­ximando as sobrancelhas. — Em que buraco você está me­tida agora!

— No pior possível.

— Perigo físico?

— Não sou valente. Acho que não existe nada pior que a morte.

— Então é isso?

— É isso, tão certo como estarmos sentados aqui — ela estremeceu —, a não ser que o senhor me auxilie.

Spade tirou os dedos dos lábios e correu-os pelo cabelo. — Quem você pensa que eu sou? — disse, irritado. — Não posso fabricar milagres. — Olhou o relógio. —: O dia está acabando, e você,não me deu nada com que trabalhar. Quem matou Thursby?

Ela levou à boca um lenço amarrotado e disse através dele: — Não sei.

— Foram inimigos seus ou dele?

— Não sei. Dele, espero, mas receio. . . não sei.

— Como ele devia ajudá-la? Por que o trouxe de Hong Kong para cá?

Ela o olhou assustada e sacudiu a cabeça em silêncio. Tinha uma expressão perturbada e tristemente obstinada. Spade pôs-se em pé, enfiou as mãos nos bolsos do paletó e olhou-a carrancudo. — Tempo perdido — disse aspera­mente. — Não posso fazer nada por você. Não sei o que você quer. Nem mesmo se você sabe o que quer.

Ela baixou a cabeça e chorou. Spade fez com a gar­ganta uma espécie de grunhido abafado e dirigiu-se à mesa em busca do chapéu. — O senhor não irá — implorou ela, em uma vozinha sufocada, sem levantar os olhos — pro­curar a polícia?

— Procurá-los! — exclamou ele, quase gritando de raiva. — Eles estiveram me atormentando desde as quatro da madrugada. Só Deus sabe o mal que fiz a mim mesmo, contemporizando. Para quê? Por uma idéia tola de que podia ajudá-la. Mas não posso. Nem vou tentar. — Pôs o chapéu na cabeça e enterrou-o com força. — Procurá-los? Mesmo que eu fique na minha, quieto, eles cairão todos sobre mim. Então eu lhes direi o que sei, e você terá que correr os riscos.

Ela levantou-se do sofá e ficou à frente dele, apesar de seus joelhos tremerem, e manteve erguido o rosto lívido de terror, não obstante não poder imobilizar os músculos trê­mulos da boca e do queixo. Então disse: — Você tem sido paciente e tem tentado me ajudar. É inútil, e sem remédio, suponho. — Estendeu a mão direita. — Agradeço-lhe por tudo o que fez. Eu. . . eu terei que correr os riscos.

Spade deu de novo o grunhido abafado e sentou-se no sofá. — Quanto você tem em dinheiro? — interrogou.

A pergunta assustou-a. Ela mordeu o lábio inferior e respondeu com relutância: — Tenho só mais uns quinhen­tos dólares.

— Passe-os para mim.

A moça hesitou, olhando-o timidamente. Ele fez tre­jeitos irritados com a boca, as sobrancelhas, mãos e ombros. Wa dirigiu-se ao quarto, voltando quase imediatamente com

um maço de notas na mão. Ele pegou o dinheiro, contou-o e disse: — Aqui estão só quatrocentos.

— Tenho que guardar algum para minha manutenção — explicou humildemente, levando uma das mãos ao peito.

— Não pode arranjar mais nenhum?

— Não.

— Você deve ter alguma coisa com que possa obter dinheiro — insistiu.

— Tenho uns anéis, algumas jóias.

— Terá que penhorá-los — disse ele, e estendeu a mão. — O Remedial é melhor. . . Mission e Fifth.

Ela olhou-o suplicante. Os olhos amarelo-pardos mos­travam-se duros e implacáveis. Lentamente, ela pôs a mão dentro do decote de vestido, retirou dali um pequeno rolo de notas e colocou-as na mão que as esperava. Spade alisou as notas e contou-as: quatro de vinte, quatro de dez, uma de cinco, e devolveu-lhe duas de dez e a de cinco, pondo as outras no bolso. Então levantou-se e disse: — Vou ver o que posso fazer por você. Voltarei assim que puder, com as me­lhores notícias que conseguir. Tocarei quatro vezes — um toque longo, um curto, um longo, um curto —, assim você saberá que sou eu. Não precisa me acompanhar até a porta. Posso sair sozinho.

Ele a deixou em pé no centro da sala, acompanhando-o com os olhos azuis, cheios de pasmo.

 

Spade entrou numa sala de espera cuja porta exibia a inscrição, "Wise, Merican & Wise". A moça de cabelos vermelhos, sentada à mesa telefônica, disse:

— Ah, alô, sr. Spade!

— Alô, meu bem. Sid está?

Ele esperou ao lado, com a mão em seu ombro roliço, enquanto a moça manejava o aparelho e falava no bocal. — O sr. Spade quer vê-lo, sr. Wise. — Olhou para Spade. — Pode entrar.

Ele apertou-lhe o ombro à guisa de agradecimento, atravessou a sala em direção a um corredor mal-iluminado e seguiu por ele até uma porta de vidro fosco, que se en­contrava no fim. Abriu a porta e entrou num escritório onde um homenzinho cor de azeitona, com uma expressão can­sada no rosto oval, sob o cabelo escuro e ralo, salpicado de caspa, estava sentado atrás de uma imensa escrivaninha onde se amontoavam maços de papel. O homenzinho acenou para Spade com o toco do charuto apagado e disse: — Puxe uma cadeira. Então Miles sifu a noite passada? — Nem o seu rosto cansado nem a sua voz aguda demonstravam qual­quer emoção.

— Hum-hum, é por isso que estou aqui. — Spade franziu as sobrancelhas e limpou a garganta. — Acho que terei de mandar um investigador às favas, Sid. Posso me abrigar atrás da inviolabilidade dos segredos e da identida­de e de não sei que mais, dos meus clientes, da mesma forma que o padre ou o advogado?

Sid Wise levantou os ombros e abaixou os cantos da boca — Ppr que não? Um inquérito não é um processo. De qualquer forma, pode tentar. Você já se livrou de coisas piores. . .

— Eu sei, mas Dundy está ficando chato, e talvez esteja um pouquinho obtuso no caso presente. Pegue o cha­péu, Sid, e vamos ver a quem de direito. Quero estar limpo.

Sid Wise olhou para os papéis amontoados sobre a escrivaninha e suspirou, mas levantou-se e dirigiu-se ao ar­mário junto à janela. — Você é um patife, Sammy — disse, enquanto tirava o chapéu do cabide.

 

Spade voltou ao seu escritório dez minutos depois das cinco, nessa tarde. Effie Perine estava sentada à escrivani­nha dele, lendo o Time. Spade sentou-se sobre a mesa e perguntou: — Alguma notícia palpitante?

— Nada. Parece que você viu passarinho verde.

Ele sorriu, contente. — Acho que vamos ter futuro. Sempre me pareceu que, se Miles sumisse e morresse por aí, nós teríamos mais probabilidades de prosperar. Quer tomar a incumbência de lhe mandar flores" em meu nome?

— Já mandei.

— Você é um anjo. Como está a sua intuição fe­minina, hoje?

— Por quê?

— Que pensa da srta. Wonderly?

— Gosto dela — replicou a moça, sem hesitação.

— Ela arranjou nomes demais. — Spade concentrou-se: Wonderly, Leblanc, e diz que o verdadeiro é O'Shaughnessy.

— Não me importa que ela tenha todos os nomes da lista telefônica. Essa moça é séria, e você sabe disso.

— Imagino. — Spade piscou sonolentamente para Effie Perine e caçoou: — De qualquer forma, ela escorregou setecentos mangos em dois dias, e isso é ótimo.

Effie Perine endireitou-se na cadeira, dizendo: — Sam, se essa moça está em dificuldades e você não a auxiliar, ou tirar vantagem disso para explorá-la, eu nunca o perdoarei, e não terei mais respeito algum por você, enquanto viver. Spade deu um sorriso forçado. Depois franziu os sobrolhos. A carranca também era forçada. Abriu a boca para falar, mas o ruído de alguém entrando pela porta do cor­redor interrompeu-o. Effie Perine levantou-se e entrou na sala externa. Spade tirou o chapéu e sentou-se na sua ca­deira. A moça voltou com um cartão onde estava impresso "Sr. Joel Cairo". — É um sujeito estranho — disse ela. — Então faça-o entrar, meu bem — disse Spade. Joel Cairo era um homem moreno, de ossos miúdos e estatura mediana. Tinha o cabelo escuro e liso, e muito lustroso. Seus traços eram orientais. Um rubi quadrado, la­deado por quatro barrinhas de brilhantes, brilhavam contra o verde-escuro da sua gravata. O paletó preto, cortado de acordo com os ombros estreitos, alargava-se um pouco sobre os quadris meio desenvolvidos. As calças, mais estreitas do que mandava a moda, ajustavam-se às pernas roliças. A parte superior dos sapatos de couro envernizado estava oculta por polainas caquis. Ele segurava um chapéu preto, duro, na mão enluvada de camurça, e veio ao encontro de Spade com passinhos curtos, miúdos, balanceados. Um aroma de sândalo entrou com ele.

Spade inclinou a cabeça para o visitante, e em seguida em direção a uma cadeira, dizendo: — Sente-se, sr. Cairo. Cairo inclinou-se cerimoniosamente sobre o chapéu, disse "Muito obrigado", em uma voz fina e aguda, e sen­tou-se. Sentou-se com afetação, cruzando as pernas, colo­cando o chapéu sobre os joelhos, e começou a tirar as luvas amarelas.

Spade recostou-se na cadeira e perguntou: — Em que posso ajudá-lo, sr. Cairo? — A amável displicência da sua voz, seu movimento na cadeira, denotavam uma atitude exa­tamente igual à que tivera quando endereçara a mesma per­gunta a Brigid O'Shaughnessy, no dia anterior.

Cairo virou o chapéu para cima, deixando cair as luvas ali dentro, e colocou-o assim virado no canto da escrivaninha que lhe ficava próximo. Fulguravam brilhantes no segundo e no quarto dedos de sua mão esquerda, e no terceiro da mão direita havia um rubi que fazia par com o da gravata, até mesmo nos brilhantes que o circundavam. Tinha as mãos macias e bem-cuidadas. Apesar de não serem grandes, sua flácida rotundidade fazia-as parecerem mal conformadas. Es­fregou as palmas uma na outra, e disse encobrindo o leve ruído que produziram: — Permite que um estranho apre­sente condolências pela desgraçada morte de seu sócio?

— Obrigado.

— Posso perguntar, sr. Spade, se havia, como os jor­nais deduziram, uma certa... hã. . . relação entre esse infe­liz acontecimento e a morte, um pouco mais tarde, desse Thursby?

Spade não respondeu, mantendo o rosto inexpressivo.

Cairo levantou-se e se inclinou. — Peço desculpas. — Sentou-se de novo e colocou as mãos lado a lado, com as palmas para baixo, no canto da escrivaninha. — Mais do que simples curiosidade levou-me a perguntar-lhe isso, sr. Spade. Estou tentando recuperar um. . . hã. . . ornamento que foi. . . como diremos?... extraviado. Julguei, e espe­rava, que o senhor pudesse me auxiliar.

Spade aquiesceu, com as sobrancelhas levantadas, para demonstrar atenção. — O ornamento é uma estatueta — continuou Cairo, escolhendo e mastigando cuidadosamente as palavras —, a figura de um pássaro preto.

Spade aquiesceu de novo, com interesse cortês.

— Estou pronto a pagar, em nome do legítimo pro­prietário da peça, a soma de cinco mil dólares para recupe­rá-lo. — Cairo levantou uma das mãos de sobre a escriva­ninha e tocou um ponto no ar com a ponta do indicador disforme, coberto por uma unha chata. — Estou pronto a prometer que. . . como é que se diz?. . . não serão feitas perguntas. — Pôs a mão sobre a escrivaninha de novo, ao lado da outra, e sorriu afavelmente por cima delas, para o detetive particular.

— Cinco mil é uma boa quantia de dinheiro — co­mentou Spade, olhando pensativamente para Cairo. — É . . . — Ouviu-se uma batida leve na porta. Quando Spade orde­nou "Entre", a porta abriu-se o suficiente para dar passa­gem à cabeça e aos ombros de Effie Perine. Ela pusera um chapeuzinho de feltro escuro e um casaco também escuro, com gola de pele cinzenta.

— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou.

— Não. Boa noite. Tranque a porta quando sair, por favor.

— Boa noite — disse ela, e desapareceu atrás da porta, que se fechou.

Spade voltou-se na cadeira para encarar Cairo de novo, dizendo: — É uma quantia interessante. — O ruído da por­ta do corredor, fechando-se atrás de Effie Perine, chegou até eles.

Cairo sorriu e tirou uma pistola preta, curta, chata e compacta, de dentro de um bolso interno. — Faça o favor — disse ele —, junte as mãos sobre a nuca.

 

                   ORIENTAL

Spade não olhou para a pistola. Levantou os braços e, encostando-se na cadeira, trançou os dedos atrás da cabeça. Seus olhos, imperturbáveis, conservavam-se fixos no rosto moreno de Cairo. Este tossiu uma tossezinha justificativa e sorriu nervosamente, com os lábios meio descorados. Seus olhos escuros estavam úmidos e humildes, e muito atentos. — Pretendo revistar seu escritório, sr. Spade. Previno-o de que, se tentar me impedir, atirarei.

— Continue. — A voz de Spade estava inexpressiva como seu rosto.

— Levante-se, por favor — ordenou o homem armado de pistola àquele cujo peito robusto ameaçava. — Preciso me certificar de que não está armado.

Spade levantou-se, empurrando para trás a cadeira com a barriga das pernas, ao se endireitar. Cairo deu a volta por trás dele, mudou a pistola da mão direita para a esquerda, levantou a aba do paletó de Spade e olhou por baixo dela. Conservando a pistola encostada às costas de Spade, pôs a mão direita à sua volta e apalpou-lhe o peito. Seu rosto ficou então uns vinte centímetros, no máximo, abaixo e atrás do cotovelo direito de Spade.

O cotovelo de Spade desceu enquanto ele girava para a direita. O rosto de Cairo recuou violentamente, mas não para muito longe: o calcanhar direito de Spade, calcado sobre os dedos cobertos de couro envernizado de seu antagonista, manteve-o no caminho do seu cotovelo, que o atingiu por baixo do molar, abalando-o de tal forma que ele teria caído se não estivesse seguro pelo pé de Spade, apoiado sobre o seu. O cotovelo de Spade passou além do rosto moreno e pasmado, e endireitou-se quando a mão de Spade se abateu sobre a pistola. Cairo largou a arma assim que os dedos de Spade a tocaram. Na mão deste, a pistola ficou pequena.

Spade tirou o pé de cima dos de Cairo, para completar a sua virada. Com a mão esquerda juntou as duas lapelas do adversário — a gravata verde com alfinete de rubi formou um emaranhado sobre os nós dos seus dedos —, enquanto com a mão direita guardava a arma apreendida num bolso do paletó. Seus olhos amarelo-pardos estavam sombrios e o rosto, imóvel, com uma expressão obstinada em torno da boca.

O rosto de Cairo estava contraído pela dor e pela angústia. Havia lágrimas nos seus olhos escuros. Sua pele tinha a cor do chumbo polido, exceto onde o cotovelo lhe avermelhara a face. Spade, agarrando ainda as lapelas do oriental, virou-o devagar e empurrou-o até junto da cadeira onde estivera sentado. Um olhar perplexo substituiu o olhar de dor no rosto cor de chumbo. Então Spade sorriu. Um sor­riso suave, quase sonhador. Seu ombro direito levantou-se alguns centímetros, e o braço direito, dobrado, foi levado pelo ombro, ao se erguer. O punho, o pulso, o antebraço, a curva do cotovelo e o braço pareciam uma só peça rígida, movida apenas pelo ombro flexível. O punho abateu-se sobre o rosto de Cairo, cobrindo por um momento um lado do seu queixo, um canto da boca, e a maior parte da face, entre o molar e o maxilar. Cairo fechou os olhos e perdeu os sentidos.

Spade largou então o corpo frouxo na cadeira, onde ele ficou, com os braços e as pernas esparramados, a cabeça descaída para trás, contra as costas da cadeira, a boca aberta. Esvaziou-lhe os bolsos um por um, procedendo metodicamente, movendo o corpo flácido quando necessário, forman­do uma pilha de objetos sobre a escrivaninha. Depois voltou para a cadeira, enrolou e acendeu um cigarro, e começou a examinar os despojos. Examinou-os com grave e lenta meticulosidade.

Havia uma grande carteira de couro escuro e macio, contendo trezentos e sessenta e cinco dólares em notas dos Estados Unidos, de diversos tamanhos; três notas de cinco libras; um passaporte grego muito visado, contendo o nome de Cairo e o seu retrato; cinco folhas dobradas de papel de seda cor-de-rosa, cobertas de uma escrita que parecia árabe; um recorte rasgado de jornal com a notícia do encon­tro dos corpos de Archer e Thursby; uma fotografia em cartão-postal de uma mulher morena, de olhos atrevidos e cruéis, e boca arqueada e terna; um grande lenço de seda, amarelado pelo tempo e um pouco rasgado nas bordas; um pequeno maço de cartões impressos do sr. Joel Cairo; e uma entrada para a platéia do Geary Theatre para aquela noite. Além da carteira e do seu conteúdo, havia mais três lenços s seda de cores alegres, cheirando a sândalo; um relógio Longines de platina com corrente de platina e ouro averme­lhado, preso a um pendente em forma de pêra, de metal branco; um punhado de moedas americanas, inglesas, fran­cesas e chinesas; uma argola com meia dúzia de chaves; uma caneta-tinteiro de prata e ônix; um pente de metal, num estojo imitando couro; uma lima para unhas, num estojo imitando couro; um pequeno guia das ruas de San Fran­cisco; um registro de bagagem da Southern Pacific; um pa­cote de pastilhas de violeta, meio vazio; um cartão comer­cial de um corretor de seguros de Xangai; e quatro folhas de papel de correspondência do Hotel Belvedere, numa das quais estava escrito, em letras miúdas e claras, o nome de Samuel Spade e os endereços do seu escritório e do seu apartamento.

Tendo examinado cuidadosamente esses objetos — ele chegou até a abrir a capa do relógio para ver se não havia nada escondido ali —, Spade inclinou-se e pegou o pulso do homem entre o indicador e o polegar, para tomar-lhe a pulsação. Depois largou-o, tornou a sentar-se, enrolou e acen­deu outro cigarro. Enquanto fumava, seu rosto, excetuando-se leves movimentos acidentais e indeterminados do lábio inferior, estava tão imóvel e pensativo que parecia apate­tado; mas, quando Cairo gemeu e moveu as pálpebras, ele tomou uma expressão branda e esboçou, com os olhos e a boca, um sorriso amistoso.

Joel Cairo acordou devagar. Seus olhos se abriram, mas passou-se um longo minuto antes de pararem num ponto fixo do teto. Depois fechou a boca e respirou, exalando pe­sadamente através do nariz. Encolheu um pé e virou uma das mãos sobre a coxa. Então levantou a cabeça das costas da cadeira, lançou um olhar confuso em volta da sala, viu Spade e sentou-se direito. Abriu a boca para falar, começou a dizer alguma coisa e levou a mão ao rosto, onde o punho de Spade tinha batido e havia agora uma contusão vermelha. Enfim, Cairo disse penosamente, por entre os dentes: — Eu podia tê-lo alvejado, sr. Spade.

— Podia ter tentado — admitiu este.

— Mas não tentei.

— Eu sei.

— Então por que me agrediu depois de eu estar de­sarmado?

— Sinto muito — sorriu Spade com arrogância, mos­trando os molares — mas imagine o meu embaraço quando descobri que essa oferta de cinco mil dólares era apenas um engodo...

— Está enganado, sr. Spade. Era, e é, uma oferta real.

— Como assim? — A surpresa de Spade era real.

— Estou pronto a pagar cinco mil dólares pela restitui­ção da estatueta. — Cairo tirou a mão da face contundida e sentou-se, novamente afetado e parecendo um homem de negócios. — Está em seu poder?

— Não.

— Se ela não está aqui — Cairo mostrava-se polida­mente cético — por que teria o senhor corrido um sério risco para impedir que eu a procurasse?

— Devia ficar quieto e deixar que entrasse gente aqui para me roubar? — Spade indicou com o dedo os objetos pertencentes a Cairo, sobre a escrivaninha. — Você arranjou o endereço do meu apartamento. Já esteve lá?

— Já, sr. Spade. Estou pronto a pagar cinco mil dólares pela devolução da estatueta, mas é sem dúvida bastante na­tural que eu tentasse primeiro poupar ao seu proprietário essa despesa, se possível.

— Quem é ele?

Cairo sacudiu a cabeça e sorriu. — Terá que me per­doar por não responder a essa pergunta.

— Terei? — Spade inclinou-se, sorrindo com os lábios cerrados. — Eu o apanhei pelo pescoço, Cairo. Você entrou aqui por sua própria vontade e se enredou o suficiente para ter que se ajustar com a polícia, por causa dos assassinatos da noite passada. Bem, agora terá que se divertir comigo, ou com eles.

O sorriso de Cairo era afetado e bastante despreocupa­do. — Tirei informações mais ou menos amplas a seu res­peito antes de iniciar qualquer ação — disse —, e assegura­ram-me que é bastante sensato para permitir que outras con­siderações interfiram em lucrativas relações comerciais.

Spade encolheu os ombros. — Onde estão elas? — perguntou.

— Ofereci-lhe cinco mil dólares por. . .

Spade bateu com as costas dos dedos na carteira de Cairo: — Não há nada parecido com cinco mil dólares aqui. Você está apostando seus olhos. Podia chegar e dizer que me pagaria um milhão por um elefante vermelho, mas, porra, que importaria isso?

— Percebo, percebo — disse Cairo pensativamente, apertando os olhos. — O senhor quer uma garantia da minha sinceridade. — Esfregou o lábio inferior com a ponta do jecj0 — Um adiantamento poderia servir?

— Poderia.

Avançou então a mão em direção à carteira, hesitou, puxou a mão e disse: — O senhor tira, digamos, cem dólares.

Spade pegou a carteira e tirou cem dólares. Depois franziu as sobrancelhas, dizendo: — Melhor inteirar duzentos — e inteirou. Cairo não disse nada. — Sua primeira conjetura foi que o pássaro estava comigo — disse Spade evasivamente, depois de pôr os duzentos dólares no bolso e a carteira sobre a escrivaninha. — Não é verdade? Qual é a segunda?

— Que o senhor sabe onde ele está, ou, se isso não é exato, que o senhor sabe onde encontrá-lo.

Spade não negou nem confirmou: mal parecia ter ouvi­do. — Que provas pode dar-me de que o seu homem é o proprietário? — perguntou.

— Muito poucas, infelizmente. Há esta, entretanto: ninguém mais pode dar-lhe nenhuma prova autêntica de pro­priedade. E se o senhor está tão a par do caso, como su­ponho — ou eu não estaria aqui —, sabe que os meios pelos quais lhe foi arrebatado mostram que o seu direito a ele era maior que o de qualquer outro, sem dúvida maior que o de Thursby.

— E quanto à filha dele? — perguntou Spade.

A excitação fez os olhos e a boca de Cairo se abrirem, avermelhou-lhe o rosto, tornou-lhe a voz estridente. — Não é ele o proprietário!

Spade fez "Ah!" de um modo suave e ambíguo.

— Ele está aqui agora, em San Francisco? — per­guntou Cairo numa voz menos estridente, mas ainda excitada.

Spade piscou os olhos sonolentos e sugeriu: — Seria melhor se puséssemos as cartas na mesa.

Cairo recuperou a compostura com uma pequena con­tração. — Não acho que seja melhor. — Sua voz mostrava-se afável agora. — Se o senhor sabe mais do que eu, aprovei­tarei os seus conhecimentos, e assim também o senhor, até a importância de cinco mil dólares. Se não sabe, então cometi um erro procurando-o, e proceder da forma como sugere seria simplesmente agravar esse erro.

Spade aquiesceu com indiferença e mostrou com a mão os objetos sobre a mesa, dizendo: — Aí estão as suas coisas: —, e logo, quando Cairo as repunha nos bolsos: — Está entendido que deve pagar minhas despesas enquanto eu esti­ver reavendo o pássaro preto para o senhor, e cinco mil dólares quando o tiver conseguido?

— Sim, sr. Spade; isto é, cinco mil dólares, menos o dinheiro que lhe tenha sido adiantado: cinco mil no total.

— Certo. E é uma proposta legítima. — O rosto de Spade mostrava-se solene, com exceção das rugas nos cantos dos olhos. — O senhor não está me contratando para come­ter assassinatos ou roubos, mas simplesmente para reaver o objeto roubado, se possível de um modo honesto e legal.

— Se possível — concordou Cairo. Seu rosto também estava solene, com exceção dos olhos. — E, em qualquer eventualidade, com discrição. — Levantou-se e pegou o cha­péu. — Estou no Hotel Belvedere, quando quiser comuni­car-se comigo: quarto 635. Espero com confiança o maior benefício mútuo da nossa associação, sr. Spade. — Hesitou um pouco. — Posso reaver minha pistola?

— Pois não. Tinha me esquecido dela. — Spade tirou a pistola do bolso do paletó e estendeu-a a Cairo.

Cairo apontou a arma para o peito de Spade. — Por favor, conserve as suas mãos sobre a escrivaninha — man­dou com gravidade. — Pretendo revistar seus escritórios.

— Essa não — disse Spade. Depois riu. — Muito bem. Continue. Não o interromperei.

 

                     O PEQUENO ESPIÃO

Durante meia hora, após a partida de Joel Cairo; Spade se conservou sentado à escrivaninha, imóvel e carrancudo. Depois disse alto, no tom de quem afasta um problema: — Bem, eles estão pagando para isso —, e tirou uma garrafa de coquetel Manhattan e um copo de papel de uma gaveta do armário. Encheu dois terços do copo, bebeu, tornou a colo­car a garrafa no armário, atirou o copo no cesto de papéis, pôs o chapéu e o sobretudo, apagou as luzes e desceu para a rua iluminada. Um rapaz de pequena estatura, de uns vinte, vinte e um anos, com sobretudo e boné cinza, muito limpos, estava parado ociosamente na esquina, abaixo do prédio de Spade.

Spade subiu a Sutter Street em direção à Kearny, onde entrou num bar, para comprar dois pacotes de Buli Durham. Quando saiu, o rapaz fazia parte das quatro pessoas que estavam esperando um bonde, na esquina fronteira. Spade jantou no Grill Herbert, na Powell Street. Quando deixou o Grill, às quinze para as oito, o rapaz estava olhando a vitri­na de uma loja de armarinhos próxima. Spade dirigiu-se ao Hotel Belvedere, perguntando pelo sr. Cairo na portaria. Disseram-lhe que Cairo não estava. O rapaz sentou-se em uma cadeira num canto afastado do saguão. Spade foi ao Geary Theatre, não viu Cairo no saguão, e postou-se na beira da calçada oposta, de frente para o teatro. O rapaz misturou-se aos vadios em frente ao restaurante Marquard, mais abaixo.

Dez minutos depois das oito, Joel Cairo apareceu, su­bindo a Geary Street com passinhos miúdos e cadenciados. Aparentemente, não enxergou Spade senão quando este lhe tocou no ombro. Pareceu um pouco surpreso, por um instan­te) depois disse: — Ah, sim, naturalmente o senhor viu o bilhete de entrada.

— Hum-hum. Tenho uma coisa para lhe mostrar. — Spade fez Cairo recuar em direção à beira da calçada, um pouco distante dos espectadores que estavam à espera. — O garoto de boné, embaixo, junto ao Marquard.

Cairo murmurou: — Vou ver —, e olhou o relógio. Depois olhou para o lado de cima da Geary Street e em se­guida para um cartaz na sua frente, no qual George Arliss estava vestido de Shylock, e então seus olhos escuros des­lizaram para o lado, nas órbitas, até encontrarem o garoto de boné e o seu rosto pálido e sereno, de sobrancelhas curvas que encobriam os olhos baixos.

— Quem é? — perguntou Spade.

Cairo olhou-o e sorriu. — Não o conheço.

— Anda me seguindo pela cidade.

Cairo molhou o lábio inferior e perguntou: — Acha que é prudente deixar que nos veja juntos?

— Como posso saber? De qualquer forma, já viu. Cairo tirou o chapéu e alisou o cabelo com a mão enluvada, colocou de novo o chapéu cuidadosamente, e disse com todas as mostras de inocência: — Dou-lhe minha pala­vra de que não o conheço, sr. Spade. Dou-lhe minha pala­vra de que nada tenho a ver com ele. Não pedi o auxílio de ninguém a não ser o seu, sob minha palavra de honra.

— Então ele é um dos outros?

— Pode ser.

— Queria apenas saber, porque, se ele se tornar um estorvo, talvez eu tenha de agredi-lo.

— Faça como achar melhor. Não é amigo meu.

— Ótimo. O pano vai levantar. Boa noite. — Dizendo isso, Spade atravessou a rua para tomar um bonde que ia para oeste. O rapaz de boné tomou o mesmo bonde.

Spade desceu a Hyde Street e dirigiu-se ao seu aparta­mento. Seus cômodos não estavam muito remexidos, mas apresentavam inequívocos sinais de terem sido revistados. Depois de se lavar e mudar de camisa e colarinho, saiu de novo, subiu em direção à Sutter Street e tomou outro bonde em direção a oeste. O rapaz tomou-o também. A uma meia dúzia de quarteirões do Coronet, Spade desceu e entrou no vestíbulo de um alto prédio de apartamentos, de cor parda. Apertou três botões de campainha ao mesmo tempo. A fe­chadura da porta da rua zuniu. Spade entrou, passou pelo elevador e pela escada, atravessou um corredor de paredes amarelas em direção à parte posterior do edifício, encontrou uma porta traseira fechada com fechadura Yale e saiu para um pátio estreito. O pátio dava para uma escura rua tra­seira, pela qual Spade andou dois quarteirões. Então atra­vessou-a em direção à Califórnia Street, e foi para o Coronet. Ainda não eram nove e meia.

 

A alegria com que Brigid O'Shaughnessy o recebeu dava a entender que ela não tinha absoluta certeza da sua vinda. Pusera um vestido de cetim azul, de uma tonalidade chamada artoise nessa estação, com alças de calcedônias, meias e sapatos também artoise. A sala de estar vermelha e creme fora arrumada e alegrada com flores, colocadas em vasos chatos de cerâmica, pintados de negro e prata. Três pequenas achas de casca grossa ardiam na lareira. Spade observava-as queimar, enquanto ela guardava o chapéu e o sobretudo.

— Boas notícias? — perguntou a moça, ao voltar de novo à sala. A ansiedade transparecia no seu sorriso, e ela tinha a respiração difícil.

— Não precisamos tornar público o que ainda está oculto.

— A polícia não terá que ser informada a meu respeito?

— Não.

Ela suspirou, feliz, e sentou-se no sofá de nogueira. Seu rosto distendeu-se, assim como o seu corpo, e ela sorriu para ele com admiração. — Como conseguiu isso? — per­guntou, mais espantada que curiosa.

— Muitíssima coisa em San Francisco pode ser com­prada ou conquistada.

— E o senhor não se verá em dificuldades? Sente-se aqui. — E deu-lhe um lugar no sofá.

— Não me importo com uma quantidade razoável de dificuldades — disse ele sem muita complacência, conservando-se junto à lareira, olhando-a com olhos que estuda­vam, pesavam, julgavam, sem esconder que a estavam estu­dando, pesando, julgando. Ela corou um pouco sob a fran­queza do seu exame, mas parecia mais segura de si do que antes, apesar de os olhos conservarem uma certa timidez que lhes assentava bem. Ele demorou-se no mesmo lugar até ficar bem claro que pretendia ignorar o convite para sentar-se ao seu lado, depois atravessou a sala em direção ao sofá.

Você não é — perguntou, enquanto se sentava — exata­mente a espécie de pessoa que finge ser, não?

— Não estou entendendo — disse ela na sua voz calma, olhando-o um pouco perplexa.

— Essas maneiras de colegial — explicou ele —, ga­guejando e corando, e tudo o mais. . .

Ela corou e replicou, apressada, sem fitá-lo: — Eu lhe contei esta tarde que tenho sido má. . . pior do que o senhor pode imaginar.

— É isso o que quero dizer. Você me contou isso esta tarde, com as mesmas palavras, no mesmo tom. É um dis­curso que decorou.

Após um momento, durante o qual ela se mostrou confusa quase até as lágrimas, riu e disse: — Muito bem, então, sr. Spade: não sou, de forma alguma, a pessoa que finjo ser. Tenho oitenta anos de idade, sou incrivelmente perversa, uma falsária de profissão. Mas, se essa é uma pose à qual me acostumei, não vai esperar que eu a abandone completamente, não é?

— Ah, está muito bem! — asseverou-lhe ele. — Não daria certo se você fosse realmente assim inocente. Nunca chegaríamos a coisa alguma.

— Não serei inocente — prometeu, com uma das mãos sobre o coração.

— Vi Joel Cairo esta noite — disse ele, em tom de conversação cortês.

A alegria abandonou o rosto da moça. Seus olhos, fixos no perfil de Spade, tornaram-se primeiro assustados, depois cautelosos. Ele tinha estendido as pernas, e estava olhando para os pés cruzados. Seu rosto não indicava que estivesse pensando em nada. Fez-se uma longa pausa, antes que ela perguntasse, inquieta: — O senhor. . . o senhor o conhece?

— Vi-o esta noite. — Spade não levantou os olhos, e conservou o seu tom de conversação ligeira. — Ele ia ver George Arliss.

— Quer dizer que falou com ele?

— Apenas um ou dois minutos, até que tocasse a cam­painha, indicando que o pano ia subir.

Brigid levantou-se do sofá e dirigiu-se à lareira para atiçar o fogo. Depois mudou um pouco a posição de um enfeite sobre a prateleira da chaminé, atravessou a sala para pegar um maço de cigarros sobre uma mesa, num canto, endireitou uma cortina e voltou ao seu lugar. Seu rosto estava agora calmo e sem ansiedade. Spade sorriu-lhe de lado e disse: — Você é divertida. É muito divertida.

Seu rosto não mudou. Ela perguntou calmamente: — Que disse ele?

— Sobre o quê?

Ela hesitou: — Sobre mim.

— Nada. — Spade virou-se para aproximar a ponta do cigarro do isqueiro. Seus olhos brilhavam, num rosto Juro, diabólico.

— Bem, que disse ele? — tornou a perguntar, com uma petulância um pouco brincalhona.

— Ofereceu-me cinco mil dólares pelo pássaro preto.

Ela estremeceu, seus dentes cortaram a ponta do cigar­ro e seus olhos, depois de um olhar rápido e alarmado para Spade, afastaram-se dele.

— Você não vai andar por aí de novo, atiçando o fogo e arrumando a sala, não é? — perguntou fleumaticamente.

Ela deu uma risada cristalina e divertida, deixou cair o cigarro mutilado no cinzeiro e fitou-o com olhos límpidos e alegres. — Não vou — prometeu. — E qual foi sua resposta?

— Cinco mil dólares é dinheiro à beca.

Ela sorriu. Porém, como ele a olhou gravemente em vez de sorrir, seu sorriso tornou-se tímido, confuso, e des­vaneceu-se. Substituiu-o um olhar aflito, perturbado. — Sem dúvida o senhor não está levando isso realmente a sério — disse.

— Por que não? Cinco mil dólares são uma boa soma em dinheiro.

— Mas, sr. Spade, o senhor prometeu me ajudar. — Ela colocara as mãos sobre o braço dele. — Eu confiei no senhor. O senhor não pode. . . — Ela interrompeu-se, tirou as mãos da manga dele e apertou uma contra a outra.

Spade sorriu afavelmente para seus olhos perturbados.

— Não tentemos imaginar o quanto você confiou em mim. Prometi ajudá-la, não há dúvida, mas você não me disse nada a respeito de nenhum pássaro preto.

— Mas o senhor devia saber, ou. . . ou não teria me falado sobre ele. Agora o senhor sabe. Não vai. . . não pode.. . tratar-me dessa forma. — Seus olhos azul-cobalto estavam cheios de súplicas.

— Cinco mil dólares — disse Spade pela terceira vez — são uma boa soma.

Ela levantou os ombros e as mãos e deixou-os cair, num gesto de quem aceita a derrota. — Sim — concordou, com uma voz frágil e desanimada. — É muito mais do que eu poderia lhe oferecer, se me fosse preciso pleitear a sua lealdade.

Spade riu, uma risada breve e um pouco amarga. — Isso soa bem, vindo de você. O que você me deu, além de dinheiro? Alguma confiança? Um pouco de verdade? Algum auxílio para eu poder ajudá-la? Não tentou comprar minha lealdade apenas com dinheiro? Bem, se estou pondo essa lealdade em leilão, por que não a cederia àquele que fizesse a maior oferta?

— Dei-lhe todo o dinheiro que tinha. — Brilhavam lágrimas nos seus olhos orlados de branco, e sua voz estava rouca, trêmula. — Eu mesma me coloquei à mercê do senhor, contei-lhe que, sem o seu auxílio, estaria irreme­diavelmente perdida. Que mais posso fazer? — Repentina­mente, achegou-se a ele, no sofá, e bradou, irritada: — Posso comprá-lo com o meu corpo?

Seus rostos estavam distantes apenas alguns centíme­tros. Spade tomou-lhe a face entre as mãos e beijou-lhe violentamente a boca, com insolência. Depois endireitou-se, dizendo: — Vou pensar nisso. — Seu rosto tinha uma expressão dura e furiosa.

Ela conservou o rosto entorpecido no mesmo lugar em que as mãos dele o tinham deixado. Ele levantou-se e disse: — Porra! Isto é absurdo. — Deu dois passos em direção à lareira e parou, olhando com raiva a lenha incandescente, rilhando os dentes.

Ela não se moveu. Ele voltou-se para olhá-la. As duas rugas verticais sobre o nariz dele eram fendas profundas entre vergões vermelhos. — Não dou um níquel pela sua honestidade — disse, tentando falar calmamente. — Não me importa a espécie de trapaças que você está praticando, nem quais são os seus segredos, mas preciso de alguma coisa que me prove que você sabe o que está fazendo.

— Eu sei. Por favor, acredite que eu sei, e que é tudo pelo melhor, e. . .

— Prove — ordenou ele. — Eu estou querendo aju­dá-la. Fiz o que podia fazer. Se for necessário, continuarei de olhos vendados, mas não posso ir adiante sem ter mais confiança em você do que tenho agora. Você tem que me convencer de que sabe do que se trata, que não está sim­plesmente agindo por conjeturas e confiando na sorte, espe­rando que no fim tudo dê certo.

— O senhor não pode confiar em mim um pouco mais?

— Esse pouco, quanto é? E o que você está esperando?

Ela mordeu o lábio e olhou para o chão. — Preciso falar com Joel Cairo — disse, em voz quase inaudível.

— Pode vê-lo esta noite — disse Spade, olhando para o relógio. — Seu espetáculo logo estará terminado. Podemos chamá-lo ao telefone, no hotel.

Ela levantou os olhos, assustada. — Mas ele não pode vir aqui. Não posso consentir que ele saiba onde estou. Tenho medo.

— Em minha casa — sugeriu Spade.

Ela hesitou, apertando os lábios, depois perguntou: — Acha que ele iria lá?

Spade meneou a cabeça em sinal afirmativo. — Muito bem! — exclamou ela, pondo-se em pé de chofre, com os olhos grandes e brilhantes. — Vamos já?

Ela entrou no quarto vizinho. Spade dirigiu-se à mesa do canto e abriu silenciosamente a gaveta. Ali estavam dois maços de baralho, um bloco de marcadores para bridge, um parafuso de latão, um pedaço de cordão vermelho e uma lapiseira de ouro. Acabara de fechar a gaveta e estava acen­dendo um cigarro quando ela voltou com um chapeuzinho escuro e um casaco de pele cinzento, trazendo-lhe o sobre­tudo e o chapéu.

O carro que tomaram parou atrás de um sedã escuro que estacionava bem em frente à porta de Spade. Iva Archer estava sozinha no seda, sentada à direção. Spade levantou o chapéu, cumprimentando-a, e entrou com Brigid O'Shaughnessy. No saguão, junto a um dos bancos, parou e pergun­tou: — Não se incomoda de esperar um momento aqui? Não me demoro.

— Está bem — disse Brigid O'Shaughnessy, sentan­do-se. — Não precisa se apressar.

Spade saiu e dirigiu-se ao seda. Quando abriu a porta do carro, Iva disse rapidamente: — Preciso lhe falar, Sam. Não posso entrar? — Seu rosto estava pálido.

— Agora não.

Iva cerrou os dentes e perguntou asperamente: — Quem é ela?

— Tenho apenas um minuto, Iva — disse Spade com paciência. — O que é?

— Quem é ela? — repetiu a mulher, acenando com a cabeça em direção à porta.

Ele afastou dela o olhar, dirigindo-o para a rua. Em frente a uma garagem, na esquina próxima, um rapaz baixo, de vinte, vinte e um anos, com sobretudo e boné cinza bem limpos, estava parado ociosamente, encostado à parede. Spade franziu as sobrancelhas e voltou de novo o olhar para o rosto insistente de Iva.

— Que é que há? — perguntou. — Aconteceu alguma coisa? Você não devia estar aqui, a estas horas da noite.

— Estou começando a acreditar nisso — lamentou-se ela. — Disse-me que não devia ir ao escritório, e agora eu não devia vir aqui. Quer dizer que não devo andar cor­rendo atrás de você? Se é isso, por que não diz de uma vez?

— Ora, Iva, você não tem o direito de tomar essa atitude.

— Sei que não tenho. Não tenho direito algum, ao que parece, no que concerne a você. Pensei que tivesse. Pensei que o seu pretenso amor por mim me desse. . .

— A hora não é própria para estarmos discutindo isso, meu amor — disse Spade, enfadado. — Por que você queria me ver?

— Não posso lhe falar aqui, Sam. Não posso entrar?

— Agora não.

— Por que não?

Spade não respondeu. Ela apertou a boca até torná-la uma linha delgada, endireitou-se atrás do volante e pôs o motor em movimento, com os olhos irritados fixos à sua frente. Quando o seda começou a mover-se, Spade disse: — Boa noite, Iva —, fechou a porta, e conservou-se à beira da calçada, com o chapéu na mão, até o carro desaparecer. Então, tornou a entrar no edifício.

Brigid O'Shaughnessy levantou-se, sorrindo alegremen­te, e subiram para o apartamento dele.

 

                   G NO AR

No seu quarto de dormir, transformado agora em sala de estar por se achar levantado o leito embutido, Spade tirou o chapéu e o casaco de Brigid O'Shaughnessy, acomo­dou-a numa cadeira de balanço estofada e telefonou ao Hotel Belvedere. Cairo ainda não tinha voltado do teatro. Spade deixou o número do telefone com o pedido de que Cairo o chamasse assim que chegasse. Depois sentou-se numa cadeira de braços ao lado da mesa e, sem preâmbulos, sem qualquer observação introdutória, começou a contar à moça um fato sucedido alguns anos antes, no noroeste. Falava com voz firme, sem ênfase ou pausas, apesar de re­petir de vez em quando uma frase ligeiramente modificada, como se fosse importante relatar cada detalhe exatamente como havia sucedido. No começo, Brigid O'Shaughnessy ouvia com pouca atenção, indubitavelmente mais surpresa por ele estar contando a história do que interessada nela, mais curiosa pela sua decisão de contá-la, do que pela histó­ria em si; mas, dentro em pouco, à medida que a narração continuava, foi se interessando cada vez mais e ficou imóvel e atenta.

Um homem chamado Flitcraft deixou um dia o escri­tório de sua empresa de carvão, em Tacoma, para tomar um lanche, e nunca mais voltou. Faltou a um compromisso para jogar golfe nessa tarde, depois das quatro horas, apesar de ter sido marcado por sua iniciativa menos de meia hora antes de sair para o lanche. Sua mulher e os filhos nunca tornaram a vê-lo. Ele e a mulher pareciam estar nas melho­res relações. Tinha dois filhos, meninos, um de cinco anos, outro de três. Possuía casa própria, num subúrbio de Ta­coma, um Packard novo, e tudo o mais que faz parte da vida de um americano em próspera situação.

Flitcraft herdara setenta mil dólares de seu pai, e devido ao seu êxito com o carvão, estava com cerca de duzen­tos mil dólares, quando sumiu. Seus negócios se achavam em ordem, apesar de haver alguns incompletos, em número suficiente para indicar que não os estivera arrumando de propósito, com o fim de desaparecer. Uma transação que lhe daria um lucro sedutor, por exemplo, estava para ser concluída no dia seguinte ao do seu desaparecimento. Nada indicava que tivesse consigo mais do que cinqüenta ou ses­senta dólares, quando sumiu. Seus hábitos, nos meses ante­riores, podiam ser estimados como muito metódicos, para justificar qualquer suspeita de vícios ocultos, ou mesmo de outra mulher em sua vida. Assim, qualquer dessas hipóte­ses era quase impossível. — Ele sumiu — disse Spade — como um punho, quando se abre a mão.

Quando ele chegou a esse ponto da história, o telefone tocou. — Alô — disse Spade ao aparelho. — Cairo?. . . Aqui é Spade. Pode vir à minha casa, na Post Street, agora?. . . Sim, acho que é. — Olhou para a moça, apertou os lábios, e disse rapidamente: — A srta. O’Shaughnessy está aqui e quer vê-lo.

Brigid O'Shaughnessy contraiu as sobrancelhas, estre­meceu na cadeira, mas não disse nada. Spade pôs o fone no gancho e informou: — Estará aqui em poucos minutos. Bem, isso foi em 1922. Em 1927, eu trabalhava numa das grandes agências de detetives de Seattle. A sra. Flitcraft nos procurou e nos contou que alguém vira um homem em Spokane que se parecia muito com o seu marido. Dirigi-me para lá. Era Flitcraft, realmente. Vivia em Spokane, havia alguns anos, como Charles (era esse o seu primeiro nome) Pierce. Tinha um negócio de automóveis que estava lhe ren­dendo de vinte a vinte e cinco mil dólares líquidos por ano, uma esposa, um filhinho, possuía uma casa em um subúr­bio de Spokane, e normalmente saía para jogar golfe depois das quatro horas da tarde, durante a temporada.

Spade não tinha sido muito bem instruído sobre o que devia fazer, quando achou Flitcraft. Conversaram no quarto de Spade, no Davenport. Flitcraft não se sentia culpado. Tinha deixado sua primeira família bem amparada, e o que fizera parecia-lhe perfeitamente justo. A única coisa que o aborrecia era a dúvida de que pudesse demonstrar isso a Spade. Nunca contara a sua história a ninguém, e assim não se vira obrigado a tentar essa demonstração. Tentou nessa ocasião. — Compreendi perfeitamente — asseverou Spade a Brigid O'Shaughnessy —, mas a sra. Flitcraft nunca conseguiu entender. Achava absurdo. Talvez fosse. De qual­quer maneira, tudo acabou bem. Ela não queria escândalo, » depois da peça que ele lhe pregou, no seu modo de ver, também não o queria mais. Assim, divorciaram-se sem ba­rulho, e tudo ficou bem.

— Veja o que lhe aconteceu. No caminho para o lan­che, passou por um prédio em construção. Um andaime, ou coisa parecida, caiu de uns oito ou dez andares, e arreben­tou o passeio ao seu lado, passando muito próximo dele, mas sem acertá-lo, apesar de um estilhaço do passeio atin­gir-lhe o rosto. Arrancou-lhe apenas um pouco da pele, mas tinha ainda a cicatriz, quando eu o vi, e ele a esfregou com o dedo, carinhosamente, quando me falou nela. Ficou bas­tante assustado, disse, mas mais chocado do que realmente amedrontado. Sentia-se como se alguém tivesse tirado a tampa da vida, e o deixasse ver o seu funcionamento.

Flitcraft fora um bom cidadão, bom marido e pai, não por influência estranha, mas simplesmente porque era um homem que se sentia melhor quando de acordo com o ambiente. Tinha sido criado assim. Todos os seus amigos também. A vida que ele conhecia era uma coisa sã, limpa, ordenada, cheia de responsabilidades. Mas um andaime que caiu mostrou-lhe que a vida, fundamentalmente, não era nada disso. Ele, o bom cidadão, marido e pai, podia ter sido varrido para fora entre o escritório e o restaurante, pela queda acidental de um andaime. Ficou então sabendo que se podia morrer assim por acaso, e viver apenas enquan­to a sorte cega nos poupasse. Não era, em princípio, a injus­tiça disso o que o perturbava: ele a aceitou, após o primeiro choque. O que o perturbava era a descoberta de que, ordenando sensatamente suas ocupações, saíra do ritmo da vida, em vez de se manter nele. Disse que teve consciência, antes de se afastar uns cinco metros do andaime caído, de que nunca teria tranqüilidade de novo, enquanto não tivesse se reajustado a essa nova concepção de vida. Ao acabar de tomar o lanche, tinha achado os meios de se ajustar. A vida podia terminar para ele, por acaso, sob um andaime; ele transformaria a vida, por acaso, simplesmente partindo. Amava a família, disse ele, tanto quanto supunha, mas sabia que a deixava convenientemente amparada, e que seu amor por ela não era de tal espécie que tornasse sua ausên­cia dolorosa.

— Dirigiu-se a Seattle nessa tarde — continuou Spade — e daí veio de navio a San Francisco. Durante alguns anos errou por aqui, e então rumou de volta ao noroeste, estabeleceu-se em Spokane, e casou-se. Sua segunda mulher não era igual à primeira, mas eram mais parecidas do que diferentes. Você sabe, dessa espécie de mulheres que jogam corretamente golfe e bridge, e gostam de receitas novas de salada. Ele não se arrependia do que tinha feito. Parecia-lhe bastante justo. Penso que nem mesmo tinha consciência de que tornara a se estabelecer nas mesmas bases das quais tinha fugido de Tacoma. Mas essa é a parte da história que sempre me agradou. Ele se ajustou aos andaimes que caem, e então não caiu mais nenhum, e ele se ajustou aos andai­mes que não caem.

— Que história extraordinária! — disse Brigid O'Shaughnessy. Deixou a cadeira e aproximou-se dele, postando-se na sua frente. Seus olhos estavam dilatados e pro­fundos. — Não preciso lhe dizer em que extrema desvan­tagem estarei, com Cairo aqui, se o senhor fizer a sua escolha.

Spade sorriu levemente, sem descerrar os lábios. — Não, não precisa me dizer — concordou.

— E saiba que eu nunca teria me colocado nesta posi­ção, se não tivesse confiado plenamente no senhor. — Seu polegar e seu indicador torceram um botão preto no paletó azul dele.

— Isso, de novo! — disse Spade com zombeteira resignação.

— Mas o senhor sabe que é verdade — insistiu ela.

— Não, não sei. — Acariciou a mão que estava tor­cendo o botão. — Eu lhe pedi as explicações das razões pelas quais eu pudesse confiar em você; por isso, estamos aqui. Não confundamos as coisas. De qualquer forma, você não precisará confiar em mim, enquanto puder me conven­cer a confiar em você.

Ela perscrutou-lhe o rosto. Suas narinas tremeram. Spade riu, acariciando-lhe de novo a mão: — Não se preocupe com isso agora. Cairo estará aqui dentro de um momento. Resolva seu negócio com ele, e então veremos como ficamos.

— E o senhor me deixará proceder... à minha vontade?

— Decerto.

Ela virou a mão sob a de Spade, a fim de que seus dedos apertassem os dele. Então disse suavemente: — O senhor é um enviado de Deus.

— Não exagere.

Ela o olhou com uma expressão de censura, embora sorridente, e voltou para a cadeira de balanço estofada.

 

Joel Cairo estava agitado. Seus olhos escuros pareciam ter apenas íris, e as palavras já estavam pulando para fora, na sua voz fina e aguda, antes que Spade entreabrisse a porta. — O rapaz está aí fora vigiando a casa, sr. Spade, aquele que o senhor me mostrou, ou a quem o senhor me mostrou, em frente ao teatro. Que devo deduzir disso, sr. Spade? Vim aqui de boa fé, sem pensar em ardis.

— O senhor foi chamado de boa fé. — Spade franziu pensativamente as sobrancelhas. — Mas eu devia ter imagi­nado que ele podia aparecer. Ele o viu entrar?

— Naturalmente. Eu podia ter continuado o caminho, mas pareceu-me desnecessário, uma vez que o senhor já tinha permitido que ele nos visse juntos.

Brigid 0'Shaughnessy veio ao hall de entrada, por trás de Spade, e perguntou, ansiosa: — Que rapaz?

Cairo tirou o chapéu preto, inclinou-se, empertigado, e disse com voz afetada: — Se não sabe, pergunte ao sr. Spade. Não sei nada a esse respeito, a não ser por inter­médio dele.

— Um garoto que tem tentado me seguir através da cidade durante toda a noite — disse Spade em tom des­preocupado, por sobre o ombro, sem se voltar para olhar a moça. — Entre, Cairo. Não adianta ficar falando aqui, para todos os vizinhos ouvirem.

Brigid O'Shaughnessy agarrou o braço de Spade e perguntou:

— Ele o seguiu ao meu apartamento?

— Não. Livrei-me dele antes disso. Suponho que tenha vindo aqui outra vez para tentar me apanhar de novo.

Cairo, apertando o chapéu preto sobre a barriga com as duas mãos, tinha entrado no hall. Spade fechou a porta do corredor atrás dele, e entraram na sala de estar. Aí Cairo inclinou-se, novamente empertigado, e disse: — Estou encantado por vê-la outra vez, srta. O'Shaughnessy.

— Tinha certeza de que ficaria, Joel — replicou ela, dando-lhe a mão. Ele fez um cumprimento cortês sobre a mão da moça e largou-a rapidamente.

Ela se sentou na cadeira estofada que ocupara antes. Cairo sentou-se na cadeira de braços, junto à mesa. Spade, pois de ter pendurado o chapéu e o sobretudo de Cairo no armário, tomou lugar no canto do sofá em frente às janelas, e começou a enrolar um cigarro. Brigid O'Shaughnessy disse a Cairo: — Sam contou-me da sua oferta pelo falcão. Quando pode arrumar o dinheiro?

As sobrancelhas de Cairo se contraíram. Ele sorriu. — Já arrumei. — Continuou sorrindo ainda um pouco para a moça, depois de ter falado, e então olhou para Spade. Spade estava acendendo o cigarro. Tinha o rosto tranqüilo.

— Em dinheiro? — perguntou a moça.

— Claro — replicou Cairo.

Ela franziu as sobrancelhas, pôs a língua entre os lábios, retirou-a e perguntou: — Está pronto a nos dar cinco mil dólares agora, se lhe dermos o falcão?

Cairo levantou a mão, agitando-a. — Desculpe-me — disse ele. — Eu me expressei mal. Não quis dizer que tenho o dinheiro aqui no bolso, mas sim que estou pronto a arranjá-lo em poucos minutos, durante o expediente bancário.

— Ah! — Ela olhou para Spade.

Spade soprou o fumo caído na frente do colete e disse: — Provavelmente é verdade. Ele tinha apenas algumas cen­tenas no bolso, quando o revistei esta tarde. — Ao se arregalarem os olhos dela, ele sorriu.

Joel Cairo fez uma mesura da sua cadeira, sem poder impedir que a alegria transparecesse nos seus olhos e na voz. — Posso estar preparado para dar-lhes o dinheiro, diga­mos, às dez e meia da manhã. Serve?

Brigid O'Shaughnessy sorriu-lhe: — Mas ainda não tenho o falcão.

O rosto de Cairo ensombreceu-se com um fluxo de des­contentamento. Ele pôs as mãos disformes uma em cada braço da cadeira, conservando o corpo ereto e teso entre elas. Seus olhos escuros mostravam-se irritados, mas ele não disse uma palavra. A moça fez-lhe, com ar zombeteiro, um trejeito apaziguador. — Vou tê-lo dentro de uma semana, no máximo — disse ela.

— Onde está ele? — Cairo usava uma atitude polida para expressar incredulidade.

— Onde Floyd o escondeu.

— Floyd Thursby? Ela fez que sim.

— E você sabe onde é?

— Acho que sei.

— Então, por que precisamos esperar uma semana?

— Talvez não uma semana inteira. Para quem você o está comprando, Joel?

Cairo levantou as sobrancelhas. — Já disse ao sr. Spade. para o seu proprietário.

A surpresa iluminou o rosto da moça. — Então você voltou a ele?

— Naturalmente que sim.

Ela deu uma risadinha gutural. — Gostaria de ter visto isso.

Cairo encolheu os ombros. — Era o seguimento lógico.

—Esfregou as costas de uma das mãos na palma da outra.

Suas pálpebras superiores desceram, sombreando-lhe os olhos.

—Por que, se posso lhe fazer uma pergunta, está querendo vendê-lo a mim?

— Estou com medo — disse ela simplesmente —, de­pois do que aconteceu a Floyd. É por isso que não está co­migo agora. Tenho receio de tocá-lo, a não ser para dá-lo diretamente a outra pessoa. — Spade apoiou-se sobre um cotovelo, no sofá, observando-os e ouvindo-os com impar­cialidade. Na confortável lassidão do seu corpo, na calma imobilidade da sua fisionomia, não havia indício de curiosi­dade ou impaciência.

— O que aconteceu realmente a Floyd? — perguntou Cairo, abaixando a voz. A ponta do indicador direito de Brigid O'Shaughnessy traçou um rápido G no ar.

— Compreendo — disse Cairo, mas seu sorriso era um pouco incrédulo. — Ele está aqui?

— Não sei. — Ela falava com impaciência. — Que diferença faz?

A dúvida acentuou-se no sorriso de Cairo. — Podia fazer uma diferença enorme — disse ele, e reacomodou as mãos no colo de modo a, intencionalmente ou não, ficar com o indicador rombudo apontando para Spade.

A moça olhou para o dedo apontado e fez um gesto impaciente. — Ou eu — disse — ou você.

— Muito bem. Certamente podemos acrescentar o rapaz lá fora, não?

— Sim — concordou, e riu. — A não ser que seja aquele que você tinha em Constantinopla.

— Uma onda de sangue cobriu de manchas o rosto de Cairo. Com voz aguda e enraivecida, bradou: — Aquele que você não pôde seduzir?

Brigid O'Shaughnessy pulou da cadeira. Seu lábio inferior estava apertado entre os dentes, e os olhos, sombrios e desmesuradamente abertos no rosto pálido e tenso. Deu dois passos rápidos em direção a Cairo. Ele começou a se levantar. A mão da moça ergueu-se e estalou asperamente contra o rosto dele, deixando impressos os sinais dos dedos. Cairo grunhiu e deu-lhe uma bofetada, fazendo-a cambalear e arrancando-lhe um grito rápido e abafado.

Spade, com a fisionomia impassível, levantara-se do sofá e estava junto deles. Pegou Cairo pelo pescoço e sacudiu-o. Cairo gorgolejou e enfiou a mão no paletó. Spade agar­rou-lhe o pulso, afastou-o com violência do paletó, for­çou-o para o lado e apertou-o até que os dedos grossos e flácidos se abriram e deixaram cair o revólver preto sobre o tapete. Brigid O'Shaughnessy apanhou-o rapidamente.

Cairo, falando com dificuldade por causa dos dedos que lhe apertavam o pescoço, disse: — É a segunda vez que o senhor me agride. — Seus olhos, apesar de saltados pela pressão sufocante no pescoço, estavam ameaçadores.

— Sim — rosnou Spade. — E, quando for esbofeteado, vai suportar sem reclamar. — Soltou então o pulso de Cairo e, espalmando a mão vigorosa, golpeou-lhe a cara com vio­lência três vezes. Cairo tentou cuspir-lhe no rosto, mas a secura da boca permitiu-lhe apenas um gesto irritado. Spade esbofeteou-lhe a boca, ferindo-lhe o lábio inferior.

A campainha da porta tocou. Os olhos de Cairo salta­ram em direção ao hall que conduzia à porta do corredor. Ficaram repentinamente mansos e receosos. A moça respirava com dificuldade, e voltara-se para olhar também o hall, com uma expressão assustada. Spade olhou, sombrio, por um mo­mento o sangue gotejando do lábio de Cairo, depois retroce­deu, tirando-lhe a mão do pescoço. — Quem é? — sus­surrou a moça, aproximando-se de Spade; e os olhos de Cairo voltaram-se rápidos para fazer a mesma pergunta.

Spade respondeu, irritado: — Não sei.

A campainha tocou de novo, com mais insistência.

— Bem, fiquem quietos — disse Spade, e saiu da sala, fechando a porta atrás de si.

Acendeu a luz do hall e abriu a porta do corredor. O te­nente Dundy e Tom Polhaus estavam lá.

— Alô, Sam — disse Tom. — Pensamos que você talvez ainda não estivesse deitado. — Dundy meneou a ca­beça confirmando, mas não disse nada.

Spade respondeu, bem-humorado: — Alô. Vocês esco­lhem ótimas horas para fazer visitas. O que há, desta vez?

Dundy falou então com calma: — Só queremos bater um papo, Spade.

— E então? — Spade conservou-se na porta, obstruindo-a. — Continuem, e falem.

Tom Polhaus adiantou-se, dizendo: — Não vamos ser obrigados a ficar aqui em pé, não é?

— Vocês não podem entrar — disse Spade, conservando-se na porta. Seu tom traduzia uma leve desculpa.

O rosto rude de Tom, no mesmo nível do de Spade, tomou uma expressão de zombaria amistosa, conservando porém uma centelha brilhante nos olhos pequenos, e pene­trantes. — Que diabo, Sam! — protestou, e pôs galhofeiramente a mão enorme sobre o peito de Spade.

Este fez pesar o corpo contra a mão que o empurrava, sorrindo arrogantemente: — Vai me forçar, Tom?

Tom rosnou: — Ah, pelo amor de Deus! —, e retirou a mão.

Dundy cerrou os dentes e disse, através deles: — Dei­xe-nos entrar.

O lábio de Spade tremeu sobre o dente canino. — Vocês não vão entrar. Que preferem? Tentar entrar? Ou falar aqui? Ou ir à merda?

Tom rosnou. Dundy, falando ainda entre dentes, disse: — Você gosta de brincar conosco, Spade. Já se livrou de muitas, mas não vai continuar sempre assim.

— Prendam-me quando puderem — replicou Spade com arrogância.

— E o que farei. — Dundy pôs as mãos para trás e levantou o rosto severo para o detetive. — Corre o boato de que você e a mulher de Archer o enganavam.

Spade riu. — Isso me soa como invenção sua.

— Então não é verdade?

— Não.

— Segundo o boato — continuou Dundy —, ela ten­tou conseguir o divórcio para poder se casar com você, mas ele não quis dar. É verdade?

— Não.

— Também corre o boato — prosseguiu fleumaticamente — que é por isso que acabaram com ele.

Spade parecia um pouco divertido. — Não seja idiota — disse. — Você não devia tentar me acusar de mais de um assassinato de cada vez. Sua primeira idéia, de que eu tinha matado Thursby porque ele assassinou Miles, cai por terra, se me culpa de ter assassinado Miles também.

— Você não devia tentar me acusar de mais de um assassinato, Dundy. — E o único que está falando sempre nisso. Mas suponha que eu tivesse dito. Você podia ter liqui­dado os dois. Há um meio de arredondar o caso.

— Hum-hum. Eu podia ter sacrificado Miles para ficar com a mulher dele e depois Thursby, para poder culpá-lo da morte de Miles. E um sistema para lá de bom, ou será, quando eu puder acabar com mais alguém que leve a culpa da morte de Thursby. E até quando devo continuar com isso? Ou você vai me acusar de tudo quanto é assassinato que ocor­rer em São Francisco de agora em diante?

— Ora, chega de palhaçada, Sam — disse Tom. — Você bem sabe que gostamos disso menos ainda que você, mas é a nossa obrigação.

— Tomara que vocês arranjem mais o que fazer além de aparecer aqui toda madrugada para fazer um monte de per­guntas idiotas.

— E receber respostas mais idiotas ainda — acrescentou Dundy, deliberadamente.

— Calma... — advertiu Spade.

Dundy olhou-o de cima a baixo e depois firmou o olhar no dele. — Se disser que não havia nada entre você e a mulher de Archer, você é um mentiroso, e sou eu quem diz.

Um olhar de espanto brilhou nos olhinhos de Tom. Spade umedeceu os lábios com a ponta da língua e perguntou: — Foi este o palpite errado que os trouxe aqui a esta maldita hora da noite?

— Este foi um deles.

— E os outros?

— Dundy repuxou os cantos da boca. — Deixe-nos en­trar. — Acenou significativamente para a porta em que Spade se encontrava.

Spade carregou o cenho e sacudiu a cabeça. Os cantos da boca de Dundy ergueram-se num sorriso de satisfação imper­tinente. — Deve haver qualquer coisa de verdade — disse a Tom.

Tom trocou os pés, e sem olhar para nenhum deles, resmungou: — Só Deus sabe.

— Que é isso? — perguntou Spade. — Uma charada?

— Muito bem, Spade, nós vamos embora. — Dundy abotoou o sobretudo. — Viremos vê-lo de vez em quando. Talvez você tenha razão em nos despachar. Pense nisso.

— Hum-hum — fez Spade, sorrindo. — Prazer em vê-lo sempre, tenente, e quando eu não estiver ocupado, permitirei que entre.

Nisto, veio um grito da sala de estar: — Socorro! Socorro! Polícia! Socorro! — A voz aguda, fina e penetrante, era de Joel Cairo.

O Ten. Dundy parou quando já se ia afastando da porta, defrontou Spade de novo, e disse decidido: — Parece que vamos entrar. — O ruído de uma luta breve, de uma pancada, ou de um grito abafado, chegou até eles.

O rosto de Spade torceu-se num sorriso, não muito satis­feito. — Parece que sim — e afastou-se do caminho. Depois que os detetives policiais entraram ele fechou a porta do cor­redor, e seguiu-os de volta à sala de estar.

 

                   CONVERSA FIADA

Brigid O'Shaughnessy estava encolhida na cadeira de braços junto à mesa, com os braços sobre o rosto e os joelhos levantados a ponto de ocultarem a parte inferior do mesmo. Tinha os olhos, como sempre, orlados de branco, só que aterrorizados. Joel Cairo conservava-se na sua frente, incli­nado sobre ela, segurando numa das mãos o revólver que Spade o fizera derrubar torcendo-lhe a mão, e conservando a outra aberta sobre a testa. O sangue escorria-lhe entre os dedos dessa mão, e descia por eles até os olhos. Um filete menor saindo do seu lábio cortado fazia três linhas ondulantes sobre o queixo. Cairo não percebeu a entrada dos detetives. Olhava furioso para a moça encolhida na sua frente. Seus lábios moviam-se em espasmos, mas nenhum som coerente saía deles.

Dundy, o primeiro dos três a entrar, aproximou-se rapi­damente de Cairo colocando-se ao seu lado, levou uma das mãos ao quadril por baixo do sobretudo, pôs-lhe a outra sobre o pulso e grunhiu: — O que está havendo aqui?

Cairo tirou a mão manchada de vermelho da testa e brandiu-a junto ao rosto do tenente. Assim descoberta, sua testa mostrava um talho de quase dez centímetros. — Foi isto que ela fez —gritou.

A moça desceu os pés para o chão e olhou cautelosamente de Dundy, que segurava o pulso de Cairo, para Tom Polhaus, em pé um pouco atrás deles, e para Spade, encostado ao batente da porta. O rosto de Spade estava calmo. Quando seu olhar encontrou o dela, seus olhos amarelo-pardos brilharam por um instante com malícia, e depois tornaram-se de novo inexpressivos. — Foi você que fez isso? — perguntou Dundy à moça, mostrando com a cabeça a testa ferida de Cairo.

Ela olhou de novo para Spade, que não correspondeu absolutamente ao apelo dos seus olhos. Encostado ao batente, observava os circunstantes com o ar educado e desprendido de um espectador desinteressado. A moça voltou de novo os olhos para Dundy. Estavam dilatados, sombrios, e veementes. — Fui obrigada — disse numa voz baixa e arquejante. — Está­vamos sozinhos aqui, quando ele me atacou. Não pude... Tentei conservá-lo afastado. Eu... eu não tive coragem de alvejá-lo.

— Oh. mentirosa! — bradou Cairo tentando inutilmente desprender o braço que segurava o revólver fora do alcance de Dundy. — Oh, mentirosa vil e suja! — Torceu-se para encarar Dundy de frente. — Ela está mentindo vergonhosamente. Vim aqui de boa-fé e fui atacado por ambos, e quando os senhores chegaram ele saiu para lhes abrir a porta, dei­xando-a aqui com este revólver, e então ela disse que iam me matar depois que os senhores se retirassem, e eu pedi socorro; assim não me deixariam aqui para ser assassinado, e aí ela me agrediu com o revólver.

— Vamos, me dê isso — disse Dundy, e tomou o revólver da mão de Cairo. — Agora, vamos esclarecer as coisas. Por que veio aqui?

— Ele mandou me chamar. — Cairo torceu a cabeça para encarar provocadoramente Spade. — Chamou-me ao tele­fone e pediu-me que viesse aqui. — Spade pestanejou sono­lentamente para o oriental e não disse nada.

— Para quê? — perguntou Dundy.

Cairo reteve a resposta até ter enxugado a testa e o queixo ensanguentados com um lenço de seda com barra de alfa­zema. A essa altura, grande parte de sua indignação fora substituída por cautela. — Disse que queria... que eles que­riam... me ver. Não sei por que motivo.

Tom Polhaus inclinou a cabeça, aspirou o cheiro de "chypre" que o lenço deixara no ar, e voltou a cabeça para fazer a Spade uma carranca interrogativa. Spade piscou-lhe e continuou a enrolar um cigarro. — Bem, e que aconteceu então? — perguntou Dundy.

— Então eles me atacaram. Ela me agrediu primeiro, e então ele me sufocou e me tirou o revólver do bolso. Não sei o que fariam depois, se os senhores não tivessem chegado nesse momento. Atrevo-me a dizer que teriam me assassinado aqui mesmo. Quando ele saiu para atender a campainha, deixou-a aqui com o revólver para me vigiar.

Brigid O'Shaughnessy pulou da cadeira gritando: — Por que não o obriga a dizer a verdade? — e esbofeteou Cairo no rosto. Cairo deu um uivo inarticulado.

Dundy empurrou a moça de novo para a cadeira com a mão que estava livre, e rosnou: — Nada disso, agora.

Spade, acendendo o cigarro, sorriu afavelmente através da fumaça, e disse a Tom: — Ela é impulsiva.

— E — concordou Tom.

Dundy fez uma carranca em direção à moça, e pergun­tou; _ O que você quer nos impingir como verdade?

— Nada do que ele disse. Nem uma palavra dele. Vol­tou-se para Spade. — É verdade?

— Como quer que eu saiba? — respondeu Spade. — Eu estava lá dentro, na cozinha, batendo uma omelete, quando o fato se deu, não foi? — Ela enrugou a testa, estudando-o com os olhos anuviados pela perplexidade.

Tom resmungou, aborrecido. Dundy, ainda carrancudo, ignorou o discurso de Spade e perguntou: — Se ele não está falando a verdade, como foi ele e não você que deu o grito de socorro?

— Oh, ele ficou morrendo de medo quando eu bati nele

— replicou ela, olhando com desdém para o oriental.

O rosto de Cairo ficou vermelho nos lugares onde não estava sujo de sangue.

— Outra mentira! — exclamou.

Ela lhe deu um pontapé na perna, o salto alto do seu sapato acertando-o bem por baixo do joelho. Dundy afastou Cairo enquanto o corpulento Tom se punha junto dela, ros­nando: — Comporte-se, dona. Isso não são modos.

— Então, faça-o dizer a verdade — disse ela, provo­cante.

— Deixe conosco. Mas não seja grosseira.

Dundy, olhando para Spade com os olhos verdes, duros, brilhantes e satisfeitos, dirigiu-se ao seu subordinado: — Bem, Tom, acho que não faremos mal recolhendo a turma toda. — Tom acenou a cabeça concordando, de rosto carregado.

Spade deixou a porta e adiantou-se para o centro da sala, deixando cair o cigarro num cinzeiro sobre a mesa, ao passar. Seu sorriso e sua atitude eram amáveis. — Não se apressem — disse. — Tudo pode ser explicado.

— Quero ver — disse Dundy, escarninho.

Spade inclinou-se para a moça. — Srta. O'Shaughnessy

— disse — permita-me que lhe apresente o Ten. Dundy e o detetive-sargento Polhaus. — Inclinou-se então para Dundy.

A Srta. O'Shaughnessy é uma funcionária a meu serviço. Joel Cairo disse indignado: — Não é verdade. Ela...

Spade interrompeu-o com voz forte, mas afável: — Con­tratei-a muito recentemente, ontem. Este é o Sr. Joel Cairo, um amigo... um conhecido, em todo o caso... de Thursby. Procurou-me esta tarde e tentou contratar-me para encontrar qualquer coisa que se supunha Thursby trouxesse com ele, quando foi ferido. Pareceu-me esquisito, da maneira como me expôs o caso, e eu não quis aceitar. Então puxou um revól­ver... bem, não façam caso, enquanto não chegar ao ponto de se atacarem mutuamente. De qualquer forma, depois de con­versar a respeito com a Srta. 0'Shaughnessy, pensei que talvez pudesse tirar dele qualquer coisa sobre os assassinatos de Miles e de Thursby, e então pedi-lhe para vir até aqui. Talvez o tenhamos interrogado um pouco bruscamente, mas não estava ferido, pelo menos o suficiente para gritar por socorro. Eu já tinha precisado tirar-lhe novamente a arma. — Enquanto Spade falava, a ansiedade apossara-se da face aver­melhada de Cairo. Seus olhos moviam-se em espasmos para cima e para baixo, inquietos, transferindo seu foco do chão para o rosto afável de Spade.

Dundy encarou Cairo, e perguntou bruscamente: — Bem, que diz a isso?

Cairo ficou silencioso quase um minuto, com os olhos pregados no peito do tenente. Quando os levantou, estavam atentos e cautelosos. — Não sei o que possa dizer — mur­murou. Seu embaraço parecia real.

— Experimente contar os fatos — sugeriu Dundy.

— Os fatos? — Os olhos de Cairo estavam inquietos, apesar de não terem deixado os do tenente. — Que garantia posso ter de que vocês acreditem neles?

— Deixe de contar lorotas. Tudo que você tem a fazer é apresentar queixa de que eles o agrediram, e o escrivão dará bastante crédito para emitir uma ordem que nos permitirá botá-los em cana.

Spade falou, em tom divertido: — Continue, Cairo. Faça-o feliz. Diga-lhe que fará isso, e então prestaremos jura­mento contra você, e ele nos porá a todos em cana.

Cairo pigarreou e olhou nervosamente em volta da sala, sem fixar os olhos em ninguém.

Dundy respirou forte pelo nariz, quase bufando, e orde­nou: — Peguem os chapéus.

Os olhos de Cairo, inquietos e interrogativos, encontra­ram o olhar zombeteiro de Spade. Este piscou-lhe, e sentou-se no braço da cadeira de balanço. — Muito bem, rapazes e moça — disse, sorrindo para Cairo e para ela, deixando trans­parecer satisfação na voz e no sorriso — alcançamos bem o nosso intento.

O rosto quadrado e severo de Dundy acabou de se assombrear. Repetiu peremptoriamente: — Peguem os chapéus.

Spade voltou o seu sorriso para o tenente, torceu-se to­mando uma posição mais cômoda sobre o braço da cadeira, e perguntou com despreocupação: — Vocês não percebem quando estão sendo embrulhados?

O rosto de Tom Polhaus tornou-se vermelho e brilhante. O de Dundy, assombreando-se ainda mais, estava imóvel, exceto os lábios que se moveram rígidos, para dizer: — Não, mas deixaremos isso de lado até chegarmos ao tribunal.

Spade levantou-se e pôs as mãos nos bolsos das calças. Conservou-se ereto, de forma a poder olhar de cima para o tenente. Seu sorriso era um insulto, e a confiança transparecia em cada linha da sua atitude. — Desafio-o a que nos leve para lá, Dundy. Nós o ridicularizaremos em todos os jornais de São Francisco. Você não acha que qualquer de nós vá apresentar alguma queixa contra os outros, não é? Acorde. Você foi embrulhado. Quando a campainha tocou, eu disse à Srta. O'Shaughnessy e a Cairo: "São esses malditos tiras de novo. Estão ficando insuportáveis. Vamos fazê-los de bobos. Quan­do perceberem que eles se retiram, um de vocês grita, e vere­mos até onde podemos zombar deles, antes que se man­quem". E...

Brigid O'Shaughnessy inclinou-se na cadeira e começou a rir histericamente. Cairo teve um sobressalto, e sorriu. Não havia vida no seu sorriso, mas ele o manteve firme.

Tom, animando-se, rosnou: — Pare com isso, Sam.

Spade deu uma gargalhada. — Mas foi assim. Nós...

— E o ferimento na cabeça e na boca dele? — perguntou Dundy com desdém. — De onde vieram?

— Pergunte a ele — sugeriu Spade. — Talvez ele mesmo se cortasse ao fazer a barba.

Cairo falou depressa, antes de ser interrogado, e os mús­culos do seu rosto tremeram com esforço para conservar o sorriso, enquanto falava. — Eu caí. Nós fingimos estar lu­tando pelo revólver quando entrassem, mas eu caí. Tropecei na ponta do tapete e caí, enquanto fingíamos lutar.

— Conversa fiada — disse Dundy.

— Está certo, Dundy — tornou Spade — acredite se quiser. O caso é que essa é a nossa história, e nós nos agar­raremos a ela. Os jornais a publicarão, e de um jeito ou de outro será divertido, ou mais do que isso. E que fará você? Não é crime burlar um tira, ou é? Você não conseguiu nada de ninguém aqui. Tudo que lhe dissemos fazia parte da brinca­deira. Que fará você?

Dundy virou as costas para Spade e agarrou Cairo pelos ombros. — Você não pode sair dessa assim — rosnou, sacu­dindo-o. — Você pediu socorro, e tem que recebê-lo.

— Não, senhor — disse Cairo rapidamente. — Foi uma brincadeira. Ele disse que eram amigos seus, e que compren-deriam.

Spade riu. Asperamente Dundy fez Cairo virar-se, segu­rando-o agora por um dos pulsos e pela nuca. — Vai preso por porte de armas, mesmo assim. E os outros também, para ver quem ri da brincadeira.

Os olhos alarmados de Cairo enviesaram-se para focali­zar o rosto de Spade, que aconselhou: — Não seja idiota, Dundy. O revólver fazia parte do plano. É um dos meus. — Riu. — Pena que seja apenas um trinta e dois, senão você podia achar que foi aquele com que foram alvejados Thursby e Miles.

Dundy soltou Cairo, girou nos calcanhares, e seu punho direito estalou no queixo de Spade. Brigid 0'Shaughnessy soltou um gritinho.

O sorriso de Spade desapareceu no instante do choque, mas voltou imediatamente, um pouco vago. Firmou-se dando um passo curto para trás, e os seus ombros robustos e abau­lados contorceram-se sob o paletó. Antes que seu punho se pudesse erguer Tom Polhaus se tinha posto entre os dois homens, de frente para Spade, atrapalhando-lhe os braços com a proximidade da barriga tipo barril, e com seus próprios braços.

— Não, não! — pediu Tom.

Após um longo momento de imobilidade, os músculos de Spade se distenderam. — Então tire-o daqui depressa — disse. Seu sorriso desaparecera de novo, deixando-lhe o rosto taciturno, e um pouco pálido.

Tom, em pé junto de Spade, conservando os braços sobre os dele, voltou a cabeça para olhar o Ten. Dundy por sobre os ombros. Seus olhos pequenos continham uma censura. Dundy tinha os punhos cerrados diante do corpo e os pés plantados firmes sobre o chão, um pouco separados, mas a truculência de seu rosto achava-se modificada por pequenas orlas brancas entre as íris verdes e as pálpebras superiores. — Tome os nomes e endereços — ordenou.

Tom olhou para Cairo, que disse rapidamente: — Joel Cairo, Hotel Belvedere.

Antes que Tom pudesse interrogar a moça, Spade infor­mou: — Você pode se comunicar a qualquer momento com a Srta. O'Shaughnessy, por meu intermédio.

Tom olhou para Dundy. Este grunhiu: — Tome o ende­reço dela.

_ Seu endereço é aos cuidados do meu escritório —

respondeu Spade.

Dundy adiantou-se um passo, parando em frente à moça. —Onde mora? — perguntou.

Spade dirigiu-se a Tom. — Leve-o daqui. Estou cheio disso.

Tom olhou Spade nos olhos, um olhar severo e faiscante, e resmungou: — Agüente firme, Sam. — Depois abotoou o paletó e voltou-se para Dundy, perguntando numa voz que simulava indiferença. — Bem, é só isso? — e deu um passo em direção à porta. A carranca de Dundy não conseguiu esconder a indecisão.

Cairo adiantou-se repentinamente para a porta, dizendo:

— Também vou, se o Sr. Spade tiver a bondade de me dar o chapéu e o sobretudo.

— Por que essa pressa? — perguntou Spade.

Dundy disse irritado: — Era tudo brincadeira, mas mes­mo assim, tem medo de ser deixado aqui, em companhia deles.

— Absolutamente — replicou Cairo inquietando-se, sem olhar para nenhum deles — mas já é muito tarde e... e eu vou indo. Irei com os senhores, se não se incomodam.

Dundy apertou os lábios e não disse nada. Uma luz bri­lhava nos seus olhos verdes. Spade dirigiu-se ao armário, no hall, e trouxe o chapéu e o sobretudo de Cairo. Seu rosto estava inexpressivo, assim como a voz, quando ele se afastou após ter ajudado Cairo a vestir o sobretudo, e disse a Tom:

— Diga-lhe que deixe a arma.

Dundy tirou o revólver de Cairo do bolso do seu sobre­tudo e deixou-o sobre a mesa. Ele saiu primeiro, com Cairo nos seus calcanhares. Tom parou em frente de Spade, mur­murando: — Deus queira que você saiba o que está fazendo.

— Não recebeu resposta, suspirou, e seguiu os outros. Spade acompanhou-os até o arco do hall, onde se conservou até Tom ter fechado a porta do corredor.

 

                   BRIGID

Spade voltou à sala de estar e sentou-se numa ponta do sofá, com os cotovelos nos joelhos, o rosto entre as mãos, olhando para o chão, e não para Brigid O'Shaughnessy, que lhe sorria brandamente da cadeira de braços. Seus olhos estavam em brasa. As rugas entre as sobrancelhas, sobre o nariz, eram profundas. Suas narinas contraíam-se e dilata­vam-se com a respiração. Brigid 0'Shaughnessy, quando compreendeu que ele não ia olhar para ela, parou de sorrir e olhou-o com crescente mal-estar.

Uma raiva violenta subiu-lhe repentinamente ao rosto e ele começou a falar numa voz áspera, gutural. Segurando o rosto enfurecido nas mãos, com o olhar relampejante voltado para o chão, amaldiçoou Dundy durante cinco minutos sem parar, amaldiçoou-o com repetidos palavrões.

Depois tirou o rosto de entre as mãos, olhou para a moça e sorriu acanhado. — Infantilidade, hem? Eu sei, mas por Deus, detesto apanhar sem devolver os golpes. — Apalpou o queixo com dedos cautelosos. — Não que fosse um soco daqueles. — Então riu e pôs-se à vontade no sofá, cruzando as pernas. — Um preço bem barato a pagar pela vitória. — Suas sobrancelhas se aproximaram numa carranca passageira. — Apesar disso, não vou esquecer.

A moça, sorrindo de novo, deixou a cadeira e sentou-se no sofá ao lado dele. — Você é decididamente a pessoa mais violenta que já conheci — disse ela. — Sempre se comporta assim, despoticamente?

— Deixei que ele me agredisse, não?

— Oh, sim, mas um policial.

— Não foi por isso — explicou Spade. — Foi porque perdendo a cabeça e esmurrando-me, Dundy arriscou uma cartada. Se eu tivesse reagido, então ele não teria retrocedido. Teria levado adiante a contenda, e seríamos obrigados a con­tar ao delegado essa história absurda. — Spade fitou pensativamene a moça, e perguntou: — O que você fez a Cairo?

— Nada. — O rosto dela ruborizou-se. — Tentei as­sustá-lo para conservá-lo quieto até que eles se retirassem, e ele, ou ficou muito amedrontado, ou obstinado, e gritou.

— Então você o agrediu com a arma?

— Foi preciso. Ele me atacou.

— Você não sabe o que está fazendo. — O sorriso de Spade não ocultava seu descontentamento. — É exatamente o que eu lhe disse: está tateando a esmo, agindo por conjeturas e confiando na sorte.

— Sinto muito, Sam — disse ela, com o rosto e a voz suaves de arrependimento.

— Naturalmente. — Ele tirou fumo e papel do bolso e começou a fazer um cigarro. — Agora que já conversou com Cairo, pode conversar comigo.

Ela pôs a ponta do dedo à boca, olhou distraidamente em volta com os olhos bem abertos, depois, apertando-os, lançou um olhar rápido a Spade. Ele estava absorto na confecção do seu cigarro. — Oh, sim — começou ela — realmente. — Tirou o dedo da boca e alisou o vestido azul sobre os joelhos, franzindo as sobrancelhas para eles.

Spade lambeu o cigarro, fechou-o, e perguntou-lhe: — Que mais? — enquanto procurava o isqueiro.

— Mas não tive tempo de acabar minha conversa com ele — disse ela, parando entre as palavras, como se as esti­vesse escolhendo com muito cuidado. Parou de fazer carranca para os joelhos, e fitou Spade com olhos cândidos e puros. — Fomos interrompidos antes quase de começarmos.

Spade acendeu o cigarro e riu soltando a fumaça pela boca. — Quer que lhe telefone e peça para voltar?

Ela sacudiu a cabeça, sem sorrir. Seus olhos moveram-se de um lado para outro entre as pálpebras enquanto sacudia a cabeça, mantendo-se fitos nos de Spade, com uma expressão interrogativa. Spade passou-lhe um braço ao redor das costas, envolvendo em sua mão o ombro macio e nu. Ela recostou-se na curva do seu braço. — Vamos, estou escutando — insistiu ele.

Ela torceu a cabeça para sorrir com brincalhona inso­lência, perguntando: — É preciso pôr o braço aí, para isso?

— Não. — Tirou-lhe a mão do ombro e deixou o braço cair por trás dela.

— Você é completamente imprevisível — murmurou ela. Ele concordou com a cabeça, e disse amavelmente:

— Continuo escutando.

— Olhe a hora! — exclamou a moça, torcendo um dedo para o despertador empoleirado sobre o livro, marcando duas e cinqüenta com seus ponteiros desajeitados.

— Hum-hum, foi uma noite trabalhosa.

— Preciso ir. — Levantou-se do sofá. — Isto é horrível. Spade continuou sentado. Sacudiu a cabeça. — Não

antes de me haver contado.

— Mas olhe a hora — protestou — e levaria outras tantas para contar.

— Terá que levá-las, então.

— Sou uma prisioneira? — perguntou ela alegremente.

— Além disso, lá fora está o garoto. Talvez ele ainda não tenha ido embora.

Sua alegria desvaneceu-se. — Será que ele ainda está lá?

— É provável.

Ela estremeceu. — Como podemos saber?

— Eu podia descer para ver.

— Oh... quer fazer isso?

Spade observou-lhe por um momento o rosto ansioso e então levantou-se do sofá, dizendo: — Pois não — e tirou um chapéu e um sobretudo do armário. — Levarei uns dez mi­nutos.

— Tenha cuidado — pediu ela, e seguiu-o ate à porta do corredor.

— Claro.

A Rua Post estava vazia quando Spade saiu. Andou um quarteirão na direção leste, atravessou a rua, andou dois quarteirões para oeste, pelo lado oposto, tornou a atravessar, e voltou ao seu prédio sem ter visto nada, a não ser dois mecânicos trabalhando num carro, em uma garagem. Quando abriu a porta do seu apartamento, Brigid estava em pé no arco do hall, segurando o revólver de Cairo na mão pendida ao lado. — Ainda está lá — disse Spade.

Ela mordeu o lábio por dentro e virou-se vagarosamente, de volta à sala de estar. Spade seguiu-a, pôs o chapéu e o sobretudo sobre uma cadeira e disse: — Assim teremos tempo para conversar — e dirigiu-se à cozinha. Já tinha posto a cafeteira sobre o fogão quando a moça chegou à porta, e estava cortando uma fatia fina de pão francês. Ela parou na porta e observou-o com olhos preocupados. Os dedos de sua mão esquerda acariciavam negligentemente a coronha e o cano do revólver, que conservava ainda na mão direita. A toalha está aí — disse ele, apontando com a faca de pão um bufete que era mesa de almoço, num canto apropriado.

Ela pôs a mesa enquanto ele passava patê de fígado ou punha carne fria entre as pequenas fatias ovais que cortara. Depois coou o café, juntou-lhe aguardente de um vidro chato, e sentaram-se à mesa, lado a lado em um dos bancos. Ela pôs o revólver na ponta do banco, ao seu lado. — Pode começar agora, enquanto come — disse ele.

Ela fez um muxoxo: — Você é a criatura mais insistente — e mordeu um sanduíche.

— Sim, e violento, e imprevisto. Que pássaro é esse, esse falcão, por causa do qual andam todos malucos?

Ela mastigou o pão com carne que tinha na boca, engo­liu-o, e olhou atentamente o pequeno crescente que ficara na beira do sanduíche, perguntando: — Suponhamos que eu não queira contar? Suponhamos que eu não queira contar nada absolutamente a esse respeito? Que faria?

— Está se referindo ao pássaro?

— Estou me referindo a tudo.

— Não me surpreenderia muito — disse ele, com um sorriso tão largo que se viam as pontas dos seus molares — por saber como proceder então.

— E que seria? — Ela transferiu a atenção do sanduíche para o rosto dele. — É isso que eu quis perguntar: que faria então?

Ele sacudiu a cabeça. Ela teve um sorriso mesclado de zombaria. — Qualquer coisa violenta e imprevista?

— Talvez. Mas não vejo o que você ganha em ocultá-lo agora. De qualquer forma, está aparecendo pouco a pouco. Há uma porção de coisas que não sei, mas há algumas que sei, e outras mais que posso adivinhar; dêem-me mais um dia como o de hoje, e logo saberei coisas que você ignora.

— Suponho que já sabe — disse ela, olhando de novo para o sanduíche, com expressão séria. — Mas... estou tão cansada disto, e detesto tanto falar a esse respeito. Não seria... não seria a mesma coisa esperar que você as vá descobrindo como diz que irá?

Spade riu. — Não sei. Você tem que verificar isso sozi­nha. Meu modo de descobrir é meio destrambelhado. Para mim está ótimo, se você tem a certeza de que nenhum dos estilhaços a irá ferir.

Ela moveu os ombros nus um pouco inquieta, mas con­servou-se calada. Durante alguns minutos comeram em silên­cio, ele, fleumaticamente, ela, pensativa. Então Brigid disse em voz abafada: — Estou com medo de você, essa é que é a verdade.

— Não é verdade.

— É — insistiu ela na mesma voz abafada. — Conheço dois homens dos quais tenho medo, e vi os dois esta noite.

— Compreendo que esteja com receio de Cairo. Ele está fora do seu alcance.

— E você não está?

— Não no mesmo sentido — disse ele, e sorriu.

Ela corou. Pegou uma fatia de pão coberta de patê cin­zento, e a pôs no prato. Depois enrugou a testa alva, dizendo:

— É uma figura preta, lisa e brilhante, de um pássaro, um açor ou falcão, desta altura mais ou menos. — Pôs as mãos uns trinta centímetros afastadas uma da outra.

— O que o torna importante?

Ela sorveu o café com aguardente antes de sacudir a cabeça. — Não sei. Nunca me disseram. Prometeram-me quinhentas libras se os ajudasse a consegui-lo. Então Floyd disse depois, após termos deixado Joel, que me daria setecen­tas e cinqüenta.

— Então deve valer mais do que sete mil e quinhentos dólares?

— Oh, muito mais. Eles não fingiram estar repartindo igualmente comigo. Estavam simplesmente me contratando para auxiliá-los.

— Para auxiliá-los como?

Ela levou de novo a xícara aos lábios. Spade, sem tirar do rosto da moça o olhar dominador, começou a fazer um ci­garro. Atrás dele, no fogão, a cafeteira começou a ferver.

— Para auxiliá-los a tirá-lo do homem em cuja posse estava — disse ela devagar quando descansou a xícara — um russo chamado Kemidov.

— Como?

— Isso não tem importância — objetou ela — e não me serviria de auxílio — sorriu com imprudência — e sem dúvida não é da sua conta.

— Isso foi em Constantinopla?

Hesitou, aquiesceu com a cabeça, e disse: — Mármara.

Ele acenou-lhe com o cigarro: — Continue. Que aconteceu então?

— Mas é só isso. Já lhe contei. Prometeram-me qui­nhentas libras para auxiliá-los, o que fiz, e então descobrimos que Joel Cairo queria nos deixar, levando o falcão e nos deixando sem nada. Então fizemos isso exatamente com ele, antes que fizesse conosco. Mas não fiquei em melhores condi­ções do que estava antes, porque Floyd não tinha a mínima intenção de me pagar as setecentas e cinquenta libras que me prometera. Tinha descoberto isso, quando chegamos aqui.

Ele disse que iríamos a Nova Iorque, onde o venderia e me daria a minha parte, mas eu via que não estava dizendo a verdade. — A indignação escurecera-lhes os olhos, tornando-os cor de violeta. — E foi por isso que o procurei para que me auxiliasse a descobrir onde estava o falcão.

— E suponhamos que você o encontrasse? Que faria?

— Então eu estaria em posição de discutir condições com Floyd Thursby.

Spade olhou-a de soslaio, e sugeriu: — Mas você não saberia aonde levá-lo para conseguir mais dinheiro do que Floyd lhe teria dado, a grande soma pela qual você sabia que ele esperava vendê-lo?

— Não sabia.

Spade olhou carrancudo para as cinzas que derrubara no prato. — O que o torna tão valioso? — perguntou. — Você deve ter uma idéia, ou pelo menos uma base para conjetura.

— Não tenho a mínima idéia.

Ele virou para ela o rosto carrancudo. — De que é feito?

— Porcelana ou pedra preta. Não sei. Nunca toquei nele. Vi-o apenas uma vez, por alguns minutos. Floyd só me deixou olhá-lo, quando o pegamos pela primeira vez.

Spade esmagou a ponta do cigarro no prato, e tomou um gole de café com aguardente. Sua carranca tinha desapare­cido. Enxugou os lábios com o guardanapo, amarrotou-o sobre a mesa, e disse em tom indiferente: — Você é uma mentirosa.

Ela levantou-se e conservou-se na ponta da mesa, olhan­do-o de cima, com olhos sombrios e embaraçados no rosto que se avermelhava. — Sou uma mentirosa. Sempre fui uma mentirosa.

— Não faça alarde disso. É criancice. — Sua voz mos­trava-se bem-humorada. Ele saiu de entre a mesa e o banco. — Havia qualquer coisa de verdade afinal, nesse conto de fadas?

Ela deixou pender a cabeça. A umidade brilhou nas suas pestanas escuras. — Alguma — murmurou.

— Quanta?

— Não muita.

Spade pôs-lhe a mão sob o queixo e suspendeu-lhe a cabeça. Riu nos seus olhos úmidos: — Temos a noite toda à nossa frente. Vou misturar mais um pouco de aguardente com café, e tentaremos de novo.

As pálpebras da moça se abaixaram. — Oh, estou tão cansada — disse em voz tremula — tão cansada disso tudo, de mim mesma, de mentir e inventar mentiras, e de não saber o que é mentira e o que é verdade. Desejava poder... — Ela pôs

as mãos nas faces de Spade, encostou violentamente a boca entreaberta na dele, com o corpo colado ao seu. Os braços de Spade envolveram-na apertando-a, com os seus músculos sa­lientes sob as mangas azuis, uma das mãos acariciando-lhe a cabeça, os dedos meio perdidos entre o cabelo vermelho, a outra movendo os dedos tateantes sobre as costas esbeltas. Seus olhos despediam uma chama amarelada.

 

                   O DIVÃ DO BELVEDERE

O dia nascente reduzira a noite a uma tênue neblina, quando Spade se ergueu. Ao seu lado, a respiração suave de Brigid O'Shaughnessy tinha a regularidade de um sono per­feito. Spade levantou-se silenciosamente da cama, saiu do quarto, e fechou a porta. Vestiu-se no banheiro. Depois exa­minou as roupas da moça adormecida, tirou do bolso do casaco dela uma chave chata de latão, e saiu.

Dirigiu-se ao Coronet, penetrando no edifício e no apar­tamento dela, com o auxílio da chave. A primeira vista, não havia nada furtivo na sua entrada; ele penetrou resolutamente e sem rodeios. Para o ouvido, foi quase imperceptível: ele fez o menor ruído possível. Ao entrar no apartamento da moça, acendeu todas as luzes. Depois revistou-o por todos os cantos. Seus olhos e seus dedos grossos moviam-se sem pressa apa­rente, e sem nunca se retardar, titubear ou voltar atrás, centí­metro por centímetro, sondando, experimentando, exami­nando com hábil segurança. Cada gaveta, armário, escani­nho, caixa, saco, mala — trancada ou não — era aberto, e seu conteúdo submetido a exame de olhos e dedos. Cada peça de roupa era apalpada por mãos que procuravam saliências com­prometedoras e ouvidos que procuravam escutar o dobrar do papel entre os dedos compressores. Tirou as roupas de cama. Olhou em baixo dos tapetes e da parte inferior de cada móvel. Desceu as persianas, para ver se nada havia sido enrolado nelas com o fim de ficar oculto. Inclinou-se sobre as janelas, para certificar-se de que não havia nada pendurado nelas pelo lado de fora. Remexeu com um garfo os depósitos de pó e de creme na mesa de toilette. Ergueu pulverizadores e frascos contra a luz. Examinou pratos e panelas, e mantimentos e depósitos de mantimentos. Esvaziou a lata de lixo sobre folhas abertas de jornal. Abriu o alto da caixa de descarga, no ba­nheiro, esvaziou a caixa, e olhou dentro. Examinou e experi­mentou os ralos de metal sobre os canos da banheira, do lava­tório, da pia e da máquina de lavar.

Mas não achou o pássaro preto. Não achou nada que parecesse ter qualquer relação com um pássaro preto. O único pedaço de papel escrito que encontrou foi um recibo datado de uma semana antes, relativo ao aluguel mensal do aparta­mento, que Brigid tinha pago. A única coisa que encontrou que lhe despertou interesse suficiente para retardar a busca en­quanto o examinava, foi um grande punhado de jóias finas em uma caixa policroma, numa gaveta trancada da mesa de toilette.

Quando terminou, fez café e tomou uma xícara. Então destrancou a janela da cozinha, arranhou um pouco a beirada do ferrolho com o canivete, abriu a janela — sobre a escada de incêndio — pegou o chapéu e o sobretudo de sobre o sofá, na sala de estar, e saiu do apartamento como tinha entrado. No caminho para casa parou em um armazém que estava sendo aberto por um merceeiro gordo, de olhos inchados e todo tiritante, e comprou laranjas, ovos, pãezinhos, manteiga e creme.

Spade entrou silenciosamente no seu apartamento, mas antes de ter fechado a porta do corredor Brigid gritou:

— Quem é?

— O jovem Spade trazendo o café da manhã.

— Oh, você me assustou!

A porta do quarto, que ele tinha fechado, estava aberta. A moça achava-se sentada à beira da cama, tremula, com a mão direita invisível, em baixo do travesseiro. Spade pôs os pacotes sobre a mesa da cozinha, e entrou no quarto. Sentou-se ao lado dela, na cama, beijou-lhe o ombro macio, e disse:

— Eu queria ver se aquele garoto estava ainda de serviço, e trazer material para o almoço.

— E está?

— Não.

Ela suspirou e encostou-se nele. — Acordei e não o encontrei aqui, e aí ouvi alguém entrando. Fiquei aterrori­zada. — Spade penteou-lhe os cabelos vermelhos para trás, com os dedos, descobrindo-lhe o rosto. — Sinto muito, anjo. Pensei que estivesse dormindo.Você conservou essa arma em­baixo do travesseiro durante toda a noite?

— Não. Você sabe que não. Eu pulei e peguei-a quando me assustei.

Ele preparou o café e... escorregou de novo a chave chata de latão no casaco dela, enquanto a moça tomava banho e se vestia. Ela saiu do banheiro assobiando "En Cuba". — Ar­rumo a cama? — perguntou.

— Seria ótimo. Os ovos levam ainda alguns minutos. O almoço estava na mesa quando ela voltou à cozinha.

Sentaram-se no mesmo lugar da noite anterior, e comeram com apetite. — E agora, sobre o pássaro? — sugeriu Spade enquanto comiam.

Ela descansou o garfo e fitou-o. Depois aproximou as sobrancelhas e apertou firmemente a boca. — Você não me pode pedir que lhe fale nisso justamente esta manhã — pro­testou. — Não quero falar e não vou falar.

— Que menina teimosa e malcriada — disse ele triste­mente, e enfiou um pedaço de pãozinho na boca.

 

O rapaz que tinha seguido Spade não estava à vista quando este e Brigid atravessaram o passeio em direção ao táxi. O táxi não foi seguido. Não se via nem ele, nem outro vagabundo qualquer, nas proximidades do Coronet, quando o táxi chegou lá. Brigid não quis que Spade entrasse com ela. — Chega já o fato de eu chegar em casa a esta hora com vestido de soirée, e sem outra companhia. Espero não encontrar nin­guém.

— Jantar esta noite?

— Sim.

Beijaram-se. Ela entrou no Coronet. Ele disse ao chofer: — Hotel Belvedere.

Quando chegou ao Belvedere, Spade viu o rapaz que o vinha seguindo sentado no saguão, em um divã de onde se enxergavam os elevadores. Parecia estar lendo um jornal. Na secretaria Spade soube que Cairo não estava. Franziu as sobrancelhas e beliscou o lábio inferior. Pontos de luz amare­lada começaram a dançar em seus olhos. — Obrigado — disse em voz afável ao escriturário, e afastou-se.

Com passos distraídos atravessou o saguão em direção ao divã de onde se viam os elevadores, e sentou-se perto — a mais ou menos meio metro de distância — do jovem que parecia estar lendo um jornal. O rapaz não levantou os olhos da folha. Visto a essa pequena distância, parecia ter indubitavelmente menos de vinte anos. Seus traços eram miúdos, de acordo com a estatura, e regulares. Tinha a pele muito clara. A brancura de suas faces achava-se tão pouco prejudicada pela barba escassa, quanto pelo rubor do sangue. Suas roupas não eram nem novas nem de boa qualidade, mas tanto elas como a sua maneira de usá-las estavam caracterizadas por um rigoroso apuro.

Spade perguntou em tom indiferente — Onde está ele? — enquanto espalhava fumo sobre um papel pardo, arqueado para recebê-lo.

O rapaz abaixou o jornal e olhou em volta, movendo-se com uma lentidão propositada, como reprimindo uma certa rapidez natural. Fixou no peito de Spade os pequenos olhos cor de noz sob as pestanas longas e curvas, e disse numa voz tão incolor, sossegada e fria como o seu rosto jovem: — O quê?

— Onde está ele? — Spade estava ocupado com o seu cigarro.

— Quem?

— A fada.

Os olhos cor de nogueira subiram do peito de Spade para o nó da sua gravata marrom, e aí se fixaram. — Que é que você está querendo, cara? — perguntou o rapaz. — Tentando me embrulhar?

— Eu lhe direi, quando estiver. — Spade lambeu o cigarro e sorriu amavelmente para o menino. — É de Nova Iorque, não é?

O rapaz conservava o olhar fito na gravata de Spade e não falou. Este fez um gesto de aquiescência com a cabeça, como se o outro tivesse dito que sim, e perguntou: — Fugiu do internato?

O rapaz continuou fixando ainda por um momento a gravata de Spade, depois ergueu o jornal e voltou a atenção de novo para ele. — Dá o fora — disse com o canto da boca.

Spade acendeu o cigarro, recostou-se confortavelmente no divã, e falou com uma negligência bem-humorada: — Você terá que conversar comigo antes de chegar ao fim, filho. Alguns de vocês terão, e pode contar a G que eu disse isso.

O rapaz abaixou rapidamente o jornal e voltou-se para Spade, com o olhar cortante na gravata do detetive e com as mãos pequenas espalmadas sobre a própria barriga. — Conti­nue procurando e você vai encontrar bastante — disse ele. Sua voz era baixa, formal e ameaçadora. — Já lhe disse para dar o fora. Suma-se.

Spade esperou até que um homem baixo e reforçado, de óculos, e uma moça loira, de perna fina, estivessem fora do alcance da sua voz. Então deu uma gargalhada: — Isso faria efeito na Sétima Avenida. Mas você não está em Romeville. Está no meu pedaço. — Ele aspirou a fumaça e expeliu-a em uma longa nuvem pálida. — Bem, onde está ele?

O rapaz mandou-o tomar em algum lugar.

— Há quem tenha perdido os dentes dizendo isso. — A voz de Spade conservava-se amável, apesar do seu rosto ter-se tornado rígido. — Se quiser andar me rodeando, tem que ser delicado.

O rapaz repetiu as palavras.

Spade jogou o cigarro num vaso alto de pedra ao lado do divã e levantando a mão chamou a atenção de um homem que estava parado havia algum tempo a um canto da estante de cigarros. O homem fez com a cabeça um sinal de assenti­mento e veio em direção a eles. Era de meia-idade, estatura mediana, rosto redondo e descorado, sólida compleição, cor-retamente vestido. — Alo, Sam — disse ao chegar.

— Alo, Luke.

Apertaram as mãos, e Luke disse: — Que desgraça o que aconteceu a Miles.

— Hum-hum, falta de sorte. — Spade indicou com a cabeça o rapaz ao seu lado, no divã. — Para que você deixa esses criminosos baratos rodeando o seu saguão, com suas ferramentas aparecendo por baixo da roupa?

— Sim? — Luke examinou o rapaz com os olhos pardos e astutos incrustados num rosto subitamente endurecido. — Que quer aqui? — perguntou.

O rapaz levantou-se. Spade imitou. O rapaz olhou para as suas gravatas, primeiro uma, depois a outra. A gravata de Luke era preta. O menino parecia um colegial, em pé em frente deles. Luke disse: — Bom, se não quer nada, suma-se e não volte mais.

— Não me esquecerei de vocês, caras — respondeu, e saiu.

Os dois o observaram enquanto se retirava. Spade tirou o chapéu e com o lenço enxugou a testa úmida. O detetive do hotel perguntou: — O que é?

— Diabos se eu sei — replicou Spade. — Apenas o observei. Sabe alguma coisa a respeito de Joel Cairo, do seis­centos e trinta e cinco?

— Oh, esse! — O detetive teve um olhar malicioso.

— Há quanto tempo está aqui?

— Quatro dias. Este é o quinto.

— Que acha dele?

— Não vi nada contra ele, a não ser que é meio esquisito.

— Pode saber se ele voltou ao hotel na noite passada?

— Vou tentar — prometeu o detetive, e afastou-se. Spade sentou-se no divã, até à sua volta. — Não — informou Luke. — Não dormiu no quarto. O que há?

— Nada.

— Explique-se. Você sabe que não abrirei a boca, mas se há qualquer coisa errada nós devíamos saber, a fim de poder­mos colher novas informações...

— Nada disso — assegurou Spade. — A verdade é que estou fazendo um serviço por conta dele. Eu lhe teria dito, se houvesse alguma coisa contra Cairo.

— Seria melhor. Quer que eu fique de olho nele?

— Obrigado Luke. Não seria mau. Hoje em dia nunca se sabe demais a respeito dos homens para quem se trabalha.

 

Passavam vinte e um minutos das onze no relógio sobre as portas dos elevadores, quando Joel Cairo chegou da rua. Trazia a testa enfaixada, e suas roupas guardavam o leve amarrotado de muitas horas de uso consecutivo. Tinha o rosto empastado, a boca e as pálpebras descaídas. Spade encon­trou-se com ele em frente à escrivaninha. — Bom dia — sau­dou Spade calmamente.

Cairo retesou o corpo cansado e as linhas descaídas do seu rosto se enrijeceram. — Bom dia — respondeu sem entu­siasmo. Houve uma pausa. — Vamos a algum lugar onde possamos conversar — propôs Spade.

Cairo levantou o queixo. — Queira desculpar-me. Nossas conversações em particular não têm sido de tal ordem que eu esteja ansioso por continuá-las. Perdoe a minha grosseria, mas é a verdade.

— Refere-se à última noite? — Spade fez um gesto impaciente com a cabeça e com as mãos. — O que eu podia fazer? Pensei que tivesse compreendido isso. Se você ferra uma briga com ela, ou deixa que ela ferre uma consigo, eu tenho que entrar ao lado dela. Não sei onde está esse maldito pássaro. Você também não sabe. Ela sabe. Como vamos conseguir essa merda se eu não proceder de acordo com ela?

Cairo hesitou e disse indeciso: — O senhor tem sempre pronta uma explicação plausível, é preciso que eu o diga.

Spade fez uma carranca. — Que quer que eu faça? Que aprenda a gaguejar? — Bem, nós podemos falar aqui. — Encaminhou-se para o divã. Quando estavam sentados, per­guntou: — Dundy levou-o ao delegado?

— Levou.

— Por quanto tempo eles o baratinaram?

— Até há pouquinho, e muito contra o meu desejo. — Angústia e indignação misturavam-se no rosto e na voz de Cairo — Vou sem dúvida entregar o caso ao Consulado Geral da Grécia, e a um advogado.

— Vá, e veja o que isso lhe acarretará. Que foi que deixou a polícia arrancar de você?

Havia uma alegria afetada no sorriso de Cairo. — Nada, absolutamente. Segui o rumo que o senhor tinha indicado no seu apartamento. — Seu sorriso desvaneceu-se. — Ainda que muito desejasse que o senhor tivesse inventado uma história mais razoável. Senti-me decididamente ridículo, ao repeti-la. Spade sorriu, zombeteiro. — Claro, mas é o absurdo que a torna boa. Tem certeza de que não revelou nada?

— Pode ficar descansado, Sr. Spade, não revelei.

Spade tamborilou com os dedos sobre o assento de couro, entre os dois. — Terá novas notícias de Dundy. Conserve-se mudo com ele, e irá muito bem. Não se preocupe com o absurdo da história. Outra mais aceitável teria dado conosco na geladeira. — Levantou-se. — Deve estar a fim de dormir, se ficou a noite inteira sob interrogatório. Mais tarde nos veremos.

 

Effie Perine estava dizendo: — Não, ainda não — no telefone, quando Spade entrou na sala externa do escritório. Ela volta os olhos para ele e seus lábios formularam em silêncio uma palavra: — Iva. — Ele sacudiu a cabeça. — Sim, direi que a chame, assim que chegue — disse alto, e colocou o receptor no gancho. — E a terceira vez que telefona esta manhã — disse a Spade.

Ele deu uma espécie de grunhido impaciente. A moça moveu os olhos castanhos indicando a sala interna. — A sua Srta. O'Shaughnessy está aí. Está à sua espera desde as nove.

Spade aquiesceu com a cabeça, como se estivesse espe­rando por isso, e perguntou: — Que mais?

— O Sarg. Polhaus telefonou. Não deixou recado.

— Chame-o para mim.

— E G chamou.

Os olhos de Spade brilharam. Perguntou: — Quem?

— G. Foi o que ele disse. — Seu ar de indiferença pessoal em relação ao assunto era perfeito. — Quando lhe respondi que não estava, pediu: — Quando ele chegar, diga-lhe, por favor, que G recebeu o seu recado, telefonou, e tele­fonará de novo.

Spade juntou os lábios como se estivesse provando qual­quer coisa que lhe agradasse. — Obrigado, meu bem. Veja se consegue encontrar Tom Polhaus. — Abriu a porta interna e entrou no seu escritório particular, fechando-a de novo.

Brigid O'Shaughnessy, vestida como na sua primeira visita ao escritório, levantou-se de uma cadeira ao lado da escrivaninha e acercou-se dele rapidamente. — Esteve alguém no meu apartamento — exclamou. — Está tudo revirado, tudo remexido.

Ele pareceu pouco surpreendido. — Levaram alguma coisa?

— Acho que não. Não sei. Tive medo de ficar lá. Troquei de roupa o mais depressa que pude, e vim aqui. Oh, você decerto deixou que aquele rapaz o seguisse!

Spade sacudiu a cabeça. — Não, anjo. — Tirou do bolso uma primeira edição de um vespertino, abriu-o, e mostrou-lhe uma quarta coluna com o cabeçalho "Ladrão posto em fuga por gritos". Uma moça, de nome Carolina Beale, que vivia sozinha num apartamento na Rua Sutter, fora acordada às quatro dessa manhã com o ruído de alguém movendo-se no seu quarto. Ela gritou. O estranho tinha fugido. Duas outras mulheres que viviam sozinhas no mesmo prédio tinham desco­berto mais tarde, pela manhã, indícios de ter sido o seu apar­tamento visitado pelo ladrão. Não fora roubado nada, de nenhuma delas.

— Foi onde me livrei dele — explicou Spade. — Entrei no edifício, e escapei pela porta traseira. É por isso que todas as três eram mulheres que viviam sozinhas. Ele experimentou os apartamentos que tinham nomes de mulher no registro do vestíbulo, procurando por você, sob um nome falso.

— Mas ele estava vigiando sua casa quando estávamos lá — objetou ela.

Spade encolheu os ombros. — Não há motivo para pen­sar que esteja trabalhando sozinho. Ou talvez ele tenha vol­tado à Rua Sutter quando começou a pensar que você iria ficar a noite toda em minha casa. Há uma porção de talvez, mas eu não o guiei ao Coronet.

Ela não estava satisfeita. — Ele o descobriu, ou então foi algum outro.

— Claro. — Spade franziu o cenho, olhando para os pés da moça. — Estou pensando se poderia ter sido Cairo. Ele passou a noite toda fora do hotel, e não voltou senão há poucos minutos. Contou-me que esteve agüentando um inter­rogatório a noite inteira. Admira-me. — Virou-se, abriu a porta, e perguntou a Effie Perine: — Ainda não encontrou Tom?

— Ele não está. Tentarei de novo, daqui a pouco.

— Obrigado. — Fechou a porta e voltou-se para Brigid. Ela olhou-o com os olhos anuviados. — Você foi ver Joel

esta manhã? — perguntou.

— Fui.

Ela hesitou: — Por quê?

— Por quê? — Sorriu-lhe. — Porque, meu amor, eu tenho que me conservar em contato com todas as pontas soltas deste desconcertante negócio, se quiser conseguir pôr-lhe pés e cabeça. — Passou-lhe um braço ao redor dos ombros, e conduziu-a em direção à cadeira giratória. Beijou-lhe de leve a ponta do nariz, e sentou-a na cadeira. Depois sentou-se na escrivaninha em frente dela, e disse: — Agora temos que lhe arranjar um novo lar, não é?

Ela assentiu inclinando a cabeça, com ênfase: — Eu é que não volto lá.

Ele deu umas palmadinhas sobre a escrivaninha, ao lado das coxas, e assumiu uma expressão pensativa. — Acho que encontrei — disse então. — Espere um minuto. — E saiu para a sala externa, fechando a porta.

Effie Perine alcançou o telefone, dizendo: — Vou tentar de novo.

— Depois. A sua intuição feminina ainda lhe diz que ela é Virgem Maria, ou coisa parecida?

Ela olhou-o com severidade: — Eu acredito ainda que, não importa a espécie de dificuldade em que se tenha metido, ela é correta, se é isso o que quer dizer.

— É isso o que quero dizer. Será que você é suficien­temente forte, para prestar-lhe um auxílio?

— Como?

— Poderia alojá-la durante alguns dias?

— Quer dizer, em minha casa?

— Sim. Ela está alquebrada. É o segundo atentado que sofreu, nesta semana. Seria melhor para ela, se não estivesse sozinha. E auxiliaria muito, se pudesse tê-la com você.

Effie Perine inclinou-se, perguntando com ar grave: — Ela está realmente em perigo, Sam?

— Acho que sim...

Ela arranhou o lábio com a unha. — Isso assustaria mamãe e lhe produziria um acesso de raiva. Terei que lhe dizer que é uma testemunha-surpresa, ou qualquer coisa assim, que você está guardando em segredo até o último mo­mento.

— Você é um amor — disse Spade. — É melhor levá-la já para lá. Vou ficar com a chave dela, e levar-lhe o que for preciso do seu apartamento. Deixe ver. Vocês não devem ser vistas saindo daqui juntas. Você vai já. Tome um táxi, mas certifique-se de que não está sendo seguida. Provavelmente não será, mas certifique-se. Eu a mandarei logo depois, asse­gurando-me também de que não está sendo seguida.

 

                   O HOMEM GORDO

A campainha do telefone estava tocando quando Spade voltou ao escritório, após ter despachado Brigid O'Shaugh-nessy para a casa de Effie Perine. Ele se dirigiu ao telefone. — Alo... Sim, é Spade... Sim, recebi. Estive esperando notí­cias suas... Quem?... Sr. Gutman? Oh, sim, pois não!... Agora, quanto antes melhor... Doze C... Digamos quinze mi­nutos... Certo.

Spade sentou-se no canto da sua escrivaninha ao lado do telefone e enrolou um cigarro. Sua boca tomara a forma de um V firme e complacente. Seus olhos, observando os dedos fazerem o cigarro, brilhavam por cima das pálpebras infe­riores, puxadas para cima. A porta abriu-se e Iva Archer entrou. — Alo, meu bem — disse Spade numa voz tão pou­co amável quanto a sua fisionomia se tornara repentinamen­te.

— Oh, Sam, perdoe-me! Perdoe-me! — exclamou ela numa voz sufocada, parando junto à porta, do lado de dentro, apertando um lenço orlado de preto nas mãozinhas enluva­das, espreitando-lhe o rosto com os olhos vermelhos e dila­tados, cheios de medo.

Ele não se levantou do seu assento, no canto da escriva­ninha. Disse apenas: — Decerto. Está tudo bem. Esqueça-se disso.

— Mas, Sam — choramingou — eu mandei aqueles tiras lá. Eu estava louca, doida de ciúmes, e telefonei-lhes que, se fossem lá, descobririam alguma coisa sobre o assassinato de Miles.

— Por que pensou isso?

— Oh, não pensei! Mas estava alucinada, Sam, e queria feri-lo.

— Foi um transtorno infernal. — Ele pôs-lhe o braço em volta, e aproximou-a de si. — Mas está tudo certo agora, apenas não arranje mais idéias absurdas como essa.

— Não arranjarei, nunca — prometeu. — Mas você não foi delicado comigo, na noite passada. Estava frio e distante, e queria se desembaraçar de mim, quando eu tinha ido lá e esperado tanto para preveni-lo, e você...

— Prevenir-me sobre o quê?

— Sobre Phil. Ele descobriu o... descobriu o nosso amor, e Miles tinha lhe contado que eu queria o divórcio, apesar de, naturalmente, ele nunca ter chegado a saber por quê, e agora Phil pensa que nós... que você matou o irmão dele, porque não queria me conceder o divórcio a fim de nós podermos casar. Ele disse-me que acreditava nisso, e ontem foi dar parte à polícia.

— Ótimo — disse Spade afavelmente. — E você me veio prevenir, e como eu estava ocupado, você ficou uma vara e ajudou esse maldito Phil Archer a transtornar as coisas.

— Sinto muito — choramingou ela. — Eu sei que você nunca me perdoará. Eu... eu sinto muito, muito, muito.

— Deve sentir, tanto por sua causa quanto pela minha. Dundy foi vê-la depois que Phil fez a sua intriga? Ou alguém do comissariado?

— Não. — O susto dilatara-lhe os olhos e a boca.

— Eles irão, e seria bom não deixar que a encontrem aqui. Você lhes disse quem era, quando telefonou?

— Oh, não! Disse apenas que se fossem já ao seu apar­tamento descobririam alguma coisa sobre o assassinato, e desliguei.

— De onde você telefonou?

— Da farmácia acima da sua casa. Oh, Sam querido, eu...

Ele deu-lhe uma palmadinha no ombro, e disse jovial­mente: — Foi um ardil imprudente, sem dúvida, mas está feito. Você faria melhor em ir já para casa, e estudar o que dirá à polícia, pois vai ter notícias dela. Talvez seja melhor negar logo tudo. — Ele franziu as sobrancelhas, com o olhar vago. — Ou talvez fosse melhor você ver Sid Wise primeiro. — Puxou o braço que a envolvia, tirou um cartão do bolso, rabiscou três linhas nas costas, e entregou-lhe — Pode contar tudo a Sid. — Tornou a franzir as sobrancelhas. — Ou quase tudo. Onde estava você, na noite em que Miles foi morto?

— Em casa — replicou ela sem hesitar. Ele sacudiu a cabeça, sorrindo. — Estava — insistiu ela.

— Não — disse ele — mas se essa é a sua história está bem, quanto a mim. Vá ver Sid. E, subindo, na primeira esquina, o prédio cor-de-rosa. sala oitocentos e vinte e sete.

Seus olhos azuis tentaram sondar os dele. — O que o faz pensar que eu não estava em casa? — perguntou devagar.

— Nada, exceto eu saber que não estava.

— Mas eu estava, eu estava. — Seus lábios torceram-se e a raiva escureceu-lhe os olhos. — Effie Perine contou-lhe isso

— disse indignada. — Eu a vi olhando para minhas roupas, e espreitando em volta. Você sabe que ela não gosta de mim. Sam. Por que acredita nas coisas que ela lhe conta quando sabe que faria tudo para me pôr em embaraços?

— Deus, vocês, mulheres — disse Spade com brandura. Olhou para o relógio, no pulso. — Você tem que ir andando, amor. Estou atrasado para uma entrevista. Faça o que quiser, mas se eu fosse você contaria a Sid a verdade, ou então não contaria nada. Quero dizer, deixe fora as coisas que não quiser contar, mas não invente nada para pôr no lugar delas.

— Eu não estou mentindo, Sam — protestou.

— Aposto que não está — disse ele, e levantou-se.

Ela ficou nas pontas dos pés para se pôr junto a ele.

— Não acredita em mim? — murmurou.

— Não acredito.

— E não me perdoará pelo... pelo que fiz?

— Decerto que sim. — Ele inclinou a cabeça e beijou-lhe a boca. — Está tudo bem. Agora, vá depressa.

Ela rodeou-o com os braços. — Não quer ir comigo ver o Sr. Wise?

— Não posso, e apenas os atrapalharia. — Bateu-lhe de manso nos braços, afastou-os de si, e beijou-lhe o pulso es­querdo, entre a luva e a manga. Depois pôs as mãos sobre os seus ombros, voltou-a de frente para a porta, e soltou-a com um pequeno impulso. — Suma-se — ordenou.

 

A porta de mogno do apartamento 12-C no Hotel Ale­xandria foi aberta pelo rapaz com quem Spade tinha falado no saguão do Belvedere. Spade disse — Alô — bem-humorado. O rapaz não respondeu. Conservou-se de lado, segu­rando a porta aberta.

Spade entrou. Um homem gordo veio ao seu encontro. O homem gordo era de uma gordura flácida, com bulbosas faces rosadas, e lábios, e queixo, e pescoço, com um grande ovo mole por barriga, o qual formava todo o seu tronco, e cones pendentes por braços e pernas. Enquanto se adian­tava para encontrar Spade todos os seus bulbos se levanta­vam, sacudiam, e caíam separadamente a cada passo, como um amontoado de bolhas de sabão ainda não desprendidas do canudo através do qual foram sopradas. Seus olhos, tornados pequenos pelas pregas de gordura à sua volta, eram escuros e luzentes. Anéis negros mal cobriam a sua larga careca. Vestia um fraque preto, colete preto, gravata preta de cetim Ascot tendo presa uma pérola rosada, calças de lã cinza, listadas, e sapatos de verniz. Sua voz era um rom-rom gutu­ral. — Ah, Sr. Spade — disse com entusiasmo, e estendeu a mão parecida com uma estrela gorda e rosada.

Spade tomou a mão e sorriu: — Como vai, Sr. Gutman?

Segurando a mão de Spade, Gutman virou-se junto dele, pôs a outra mão no cotovelo do detetive, e conduziu-o por sobre um tapete verde para uma cadeira estofada de verde, junto a uma mesa onde estavam um sifão, alguns copos e uma garrafa de uísque "Johnnie Walker" sobre uma bandeja, uma caixa de charutos "Coronas dei Ritz", dois jornais, e uma caixinha amarela e chata de pedra-sabão. Spade sentou-se na cadeira verde. O gordo começou a encher dois copos com o conteúdo da garrafa, e sifão. O rapaz desaparecera. As portas situadas em três das paredes da sala estavam fechadas. A quarta parede, por trás de Spade, tinha duas janelas abrindo sobre a Rua Geary.

— Começamos bem, senhor — ronronou o homem gor­do, virando-se com um copo da bebida na mão. — Desconfio do homem que diz chega. Se precisa ter cautela para não beber demais, é porque não se pode confiar nele, quando bebe.

Spade pegou o copo e, sorrindo, esboçou uma mesura.

Gutman ergueu o copo segurando-o contra a luz da ja­nela, meneou a cabeça aprovativamente para as bolhas que subiam, e disse: — Bem, bebamos à palavra franca e ao claro entendimento.

Beberam e pousaram os copos. O gordo voltou para Spade um olhar penetrante, e perguntou: — O senhor é um homem pouco comunicativo?

Spade sacudiu a cabeça. — Gosto de falar.

— Cada vez melhor! — exclamou. — Desconfio do ho­mem calado. Geralmente escolhe as horas inconvenientes para falar, e diz coisas inconvenientes. Falar é uma coisa que não se pode fazer judiciosamente, se não se estiver sempre exerci­tando. — Inclinou-se jovialmente sobre o copo. — Nós nos entenderemos, nós nos entenderemos. — Colocou o copo so­bre a mesa e estendeu a caixa de "Coronas dei Ritz" para Spade. — Um charuto?

Spade pegou um charuto, cortou-lhe a ponta, e acen­deu-o. Enquanto isso o gordo aproximou outra cadeira estofada de verde a conveniente distância, em frente de Spade, e colocou uma mesinha de fumar ao alcance das duas cadeiras. Então pegou o seu copo da mesa, tirou um charuto da caixa, e deixou-se cair na cadeira. Seus bulbos pararam de sacudir e descansaram flacidamente. Suspirou satisfeito: — Agora con­versaremos, se quiser. E eu lhe direi desde já que sou um homem que gosta de conversar com outro que também gosta.

— Ótimo. Falaremos sobre o pássaro preto?

O gordo riu, e seus bulbos chocalharam com a risada. — Falaremos? — perguntou, e ele mesmo respondeu: — Falaremos — Seu rosto rosado brilhava de prazer. — O senhor é um homem feito para mim, um homem talhado de acordo com os meus próprios moldes. Vai direto ao fim, sem rodeios. "Falaremos sobre o pássaro preto?" Falaremos. Gosto disso. Gosto desse modo de tratar negócios. Falaremos sobre o pássaro preto, sem dúvida, mas primeiro responda-me uma pergunta, por favor, apesar de talvez ser desnecessária, mas assim nós nos entenderemos desde o começo. O senhor está aqui como representante da Srta. O'Shaughnessy?

Spade soprou a fumaça sobre a cabeça do homem gordo, numa longa pluma oblíqua. Depois contraiu pensativamente as sobrancelhas olhando para a ponta do charuto, coberta de cinza. Então ponderou: — Não posso dizer que sim, nem que não. Não há nada certo ainda a esse respeito. — Levantou os olhos para Gutman e desenrugou a testa. — Isso depende.

— Depende de...?

Spade sacudiu a cabeça. — Se eu soubesse de que de­pende, podia dizer sim ou não.

Gutman sorveu um trago, engoliu-o, e sugeriu: — Talvez dependa de Cairo?

A resposta pronta de Spade — Talvez — foi inexpressiva. Ele bebeu.

O gordo inclinou-se até onde a barriga lhe permitiu. Seu sorriso era insinuante, assim como sua voz ronronante. — Po­deria dizer, então, que a questão é qual dos dois o senhor representa?

— Pode pôr nesses termos.

— Seria um, ou outro?

— Não disse isso.

Os olhos de Gutman brilharam. Sua voz baixou a um murmúrio gutural, perguntando: — Quem mais está envol­vido?

Spade apontou o charuto ao próprio peito. — Eu — disse.

Gutman recostou-se na cadeira, deixou o corpo se dis­tender, e exalou o ar dos pulmões num sopro lento e satisfeito.

—Isso é magnífico — ronronou. — Isso é magnífico. Gosto do homem que diz sem rodeios que está tratando dos seus próprios interesses. Não tratamos todos nós? Não confio no homem que diz o contrário. E desconfio mais ainda do ho­mem que fala a verdade quando diz que não está falando, porque é um asno que vai de encontro a todas as leis da natureza.

Spade exalou a fumaça. Seu rosto conservava-se polida­mente atento. Ele disse: — Hum-hum. Agora falemos sobre o pássaro preto.

Gutman sorriu com benevolência. — Falemos. — Aper­tou tanto os olhos que as pregas de gordura, juntando-se, não deixaram visível nada deles, a não ser uma centelha escura. — Sr. Spade, tem qualquer noção de quanto dinheiro poderá render esse pássaro preto?

— Não.

Inclinou-se de novo para a frente e pôs a mão inchada e cor-de-rosa sobre o braço da cadeira de Spade. — Bem, se eu lhe dissesse, por Deus, se eu lhe dissesse a metade, o senhor me chamaria de mentiroso!

Spade sorriu: — Não — disse — nem mesmo se o pen­sasse. Mas se não quer correr esse risco, diga-me apenas o que é, e eu calcularei os lucros.

O gordo riu-se. — Não poderia fazê-lo. Ninguém que não tivesse um mundo de experiência em coisas dessa espécie poderia fazê-lo, e — fez uma pausa impressionante — não existe outra coisa dessa espécie. — Seus bulbos chocaralharam-se uns nos outros, enquanto se ria de novo. De re­pente, parou. Seus lábios carnudos penderam abertos, ao serem abandonados pelo riso. Então encarou Spade com uma intensidade que sugeria miopia, e perguntou: — O senhor quer dizer que não sabe o que é? — O assombro baniu o tom gutural da sua voz.

Spade fez um gesto despreocupado com o charuto. — Ora, — disse em tom negligente. — Eu sei qual é a sua suposta forma. Sei o valor que vocês lhe dão. Mas não sei o que é.

— Ela não lhe contou?

— A Srta. O'Shaughnessy?

— Sim. Uma moça encantadora.

— Hum-hum. Não.

Os olhos de Gutman eram faíscas escuras emboscadas atrás de dobras de carne cor-de-rosa. Ele disse com voz indis­tinta: — Ela deve saber — e em seguida: — E Cairo, também não?

— Cairo é finório. Está querendo comprá-lo, mas não se quer arriscar a me contar nada que eu já não saiba.

O homem gordo umedeceu os lábios com a língua.

— Por quanto está ele querendo comprá-lo? — perguntou.

— Dez mil dólares.

Gutman riu-se com desprezo. — Dez mil, e dólares ain­da, veja bem, nem mesmo libras. Isso é uma fraude contra o senhor. E que lhe respondeu?

— Respondi-lhe que se o entregasse a ele, esperava rece­ber os dez mil.

— Ah, sim, se! Bem falado, senhor. — A testa do gordo contraiu-se numa carranca mal distinta, devido ao excesso de carnes. — Eles devem saber — disse a meia-voz, e depois:

— Eles sabem? Sabem o que é o pássaro? Qual foi a sua impressão?

— Não posso auxiliá-lo nisso — confessou Spade. — Não há muito por que me orientar. Cairo não disse que sabia, nem que não sabia. Ela disse que não sabia, mas eu dei de barato que estava mentindo.

— Não foi mal julgado — disse, mas seu pensamento estava visivelmente longe de suas palavras. Coçou a cabeça e franziu as sobrancelhas até a testa ficar marcada por rugas de um vermelho vivo. Depois remexeu-se na cadeira, tanto quan­to seu tamanho e o tamanho da cadeira permitiam. Então fechou os olhos, abriu-os de repente, arregalados, e disse a Spade: — Talvez não saibam. — Seu rosto bulboso e rosado perdeu aos poucos o ar preocupado e então, com mais rapi­dez, tomou uma expressão de inefável felicidade. — Se não sabem — exclamou, e de novo: — Se não sabem, sou eu o único no mundo que sabe!

Spade comprimiu os lábios, apertando um sorriso. — Es­tou contente por ter vindo à fonte limpa.

O gordo também sorriu, mas um pouco vagamente. A expressão de felicidade desaparecera-lhe da fisionomia, ape­sar de continuar sorrindo, e os olhos se tornaram cautelosos. O rosto se fizera uma máscara risonha e vigilante, suspensa entre Spade e os seus pensamentos. Os olhos, evitando os de Spade, moviam-se do copo para o cotovelo do detetive. Seu rosto assumiu uma expressão jovial. — Por Deus — disse ele

— seu copo está vazio. — Levantou-se, dirigiu-se à mesa, e fez tinir compôs, sifão e garrafa, preparando dois drinques.

Spade continou imóvel na cadeira, até Gutman, com um floreio, uma reverência, e um ar galhofeiro — Ah, esta quali­dade de remédio não lhe fará mal! — lhe tivesse dado o copo novamente cheio. Então levantou-se, e aproximou-se do gordo olhando-o de cima para baixo, com os olhos duros e brilhantes, e levantou o copo. Sua voz saiu pausada, provocante: — À palavra franca, e ao claro entendimento.

Gutman deu uma gargalhada, e beberam. Então ele sen­tou-se, segurando o copo contra a barriga com as duas mãos, e sorriu para Spade: — Bem, senhor, é surpreendente, mas pode ser de fato que nenhum deles saiba exatamente o que é esse pássaro, e que ninguém em todo este mundo vasto e ameno o saiba, salvo e exceto apenas Dom Gaspar Gutman.

— Ótimo. — Spade conservava-se em pé, com as pernas abertas, uma das mãos no bolso da calça, a outra segurando o copo. — Quando me tiver contado, seremos apenas dois a saber.

— Matematicamente certo — os olhos do homem gordo piscaram — mas — seu sorriso abriu-se — não tenho certeza de que vá lhe contar.

— Não seja tolo — disse Spade pacientemente. — O senhor sabe o que é. Eu sei onde está. E por isso que estamos aqui.

— Bem, onde está ele?

Spade ignorou a pergunta. O gordo curvou os lábios, levantou as sobrancelhas, e empertigou um pouco a cabeça para a esquerda. — Veja bem, — disse afavelmente — eu tenho que lhe contar o que sei, mas o senhor não me contará o que sabe. Isso não é justo. Não, não, acho que não podemos negociar nessa base.

O rosto de Spade tornou-se pálido e inflexível, e ele falou rapidamente, em voz baixa e furiosa: — Pense de novo, e pense depressa. Eu disse àquele seu moleque que você teria que falar comigo antes de chegar ao fim. Digo-lhe agora que falará hoje, ou terá chegado ao fim. Para que está desperdi­çando o meu tempo? Você e o seu sórdido segredo! Sei muito bem que preciosidades são essas guardadas em tesouros sub­terrâneos, mas que me adianta isso? Posso me arranjar bem sem você. Vá à merda! Talvez tivesse podido chegar ao fim sem o meu auxílio, se tivesse se conservado livre de mim. Agora não pode mais. Pelo menos em São Francisco. Entrará no jogo ou sairá dele, e vai fazer isso hoje!

Spade voltou-se, e arremessou com raiva e pouco caso o copo sobre a mesa. Este bateu na madeira, estourou em pedaços, e espirrou o conteúdo junto com fragmentos bri­lhantes sobre a mesa e sobre o chão. Spade, surdo e cego ao estrondo, rodou nos pés para defrontar de novo Gutman. Este não deu mais atenção ao destino do copo do que o fizera Spade: com os lábios apertados, as sobrancelhas levantadas, a cabeça um pouco empertigada para a esquerda, conservara a expressão afável na face rosada durante o discurso irritado

de Spade, e continuava a conservá-la agora. Spade, ainda fu­rioso, disse: — E outra coisa, não quero...

A porta à esquerda de Spade abriu-se, dando passagem ao rapaz que o fizera entrar. Fechou a porta, conservou-se em frente dela com as mãos espalmadas sobre os flancos, e olhou para Spade. Tinha os olhos dilatados e escuros, com as pu­pilas aumentadas. Seu olhar correu sobre o corpo de Spade desde os ombros até aos joelhos e subiu de novo para pousar no lenço cuja barra marrom espreitava fora do bolso do paletó pardo.

— Outra coisa — repetiu Spade, fuzilando o olhar para o rapaz: — Conserve esse moleque longe de mim, enquanto estiver refletindo. Eu o mato. Não gosto dele. Põe-me nervoso. Mato-o, a primeira vez que se puser no meu caminho. Não lhe darei a mínima oportunidade. Não lhe darei uma chance. Mato-o. — Os lábios do rapaz tremeram num sorriso som­brio. Ele não levantou os olhos, nem falou.

Gutman disse, tolerante: — Bem, meu senhor, é preciso que lhe diga que tem um gênio violento.

— Gênio? — Spade deu uma gargalhada. Depois atra­vessou a sala em direção à cadeira onde tinha posto o chapéu, pegou-o e colocou-o na cabeça. Estendeu então um braço longo, que terminava num indicador grosso apontado para a barriga do gordo. Sua voz irritada encheu a sala. — Reflita, mas reflita bem. Dou-lhe tempo até as cinco e meia para fazer isso. Depois entrará no jogo ou sairá dele, de uma vez. — Deixou cair o braço, franziu por um momento a testa para o homem gordo e afável, franziu-a em seguida para o rapaz e dirigiu-se para a porta pela qual tinha entrado. Ao abri-la virou-se, e disse asperamente — Cinco e meia... depois, desce o pano.

O rapaz, com os olhos fitos no peito de Spade, repetiu as palavras que dissera no saguão do Belvedere. Sua voz não era alta. Era amarga. Spade saiu batendo a porta.

 

                   CARROSSEL

Spade desceu do andar de Gutman por um elevador. Seus lábios estavam secos e ásperos, ao contrário do rosto, pálido e úmido. Quando tirou o lenço para enxugar o rosto, viu que a mão estava tremendo. Sorriu ao olhá-la, e disse: — Uau! — tão alto, que o ascensorista voltou a cabeça por sobre o ombro, e perguntou: — Senhor?

Desceu a Rua Geary em direção ao Palace Hotel, onde tomou lanche. Seu rosto tinha perdido a palidez, os lábios, a secura, e a mão, o tremor, quando se sentou. Comeu com apetite mas sem pressa, e depois dirigiu-se ao escritório de Sid Wise. Quando entrou Sid estava roendo uma unha e olhando pela janela. Tirou a mão da boca, deu volta à cadeira a fim de ficar de frente para Spade, e disse: — Oi. Puxe uma cadeira.

Spade pôs uma cadeira ao lado da grande escrivaninha carregada de papéis, e sentou-se. — A Sra. Archer veio? — perguntou.

— Veio. — Uma luzinha imperceptível tremulou nos olhos de Wise. — Vai casar com a moça, Sammy?

Spade fungou irritado. — Agora vem você com isso! — rosnou.

Um sorriso breve e cansado levantou os cantos da boca do advogado. — Se não vai, vai ter trabalho.

Spade levantou os olhos do cigarro que estava fazendo, e falou com azedume: — Você quer dizer que você terá tra­balho? Bem, esse é o seu serviço. Que lhe disse ela?

— Sobre você?

— Sobre tudo que devo saber.

Wise correu os dedos entre o cabelo, espalhando caspa sobre os ombros. — Ela me contou que tentou obter um di­vórcio de Miles a fim de poder...

— Tudo isso eu sei — interrompeu Spade. — Pode pular essa parte. Vá ao que eu não sei.

— Como posso saber o quanto ela...?

— Deixe de contar lorotas, Sid. — Spade chegou a chama do isqueiro à ponta do cigarro. — Que lhe contou ela, que não queria que eu soubesse?

Wise lançou um olhar de censura a Spade. — Ora, Sammy — começou ele — isso não é...

Spade olhou para o teto, como se olhasse para o céu, e rosnou: — Bom Deus, ele é meu advogado, enriqueceu à minha custa, e tenho que me ajoelhar e pedir-lhe que me conte as coisas! — Abaixou-se então para Wise. — Por que pensa que a mandei aqui?

Wise fez uma careta de enfado. — Mais um cliente como você — lamentou-se — e eu estaria num sanatório... ou na cadeia, em San Quentin.

— Estaria com a maior parte dos seus clientes. Ela lhe contou onde estava, na noite em que ele foi assassinado?

— Contou.

— Onde?

— Seguindo-o.

Spade endireitou-se na cadeira e pestanejou. Depois ex­clamou, incrédulo: — Estas mulheres! — Então riu, afrouxou o corpo, e perguntou: — Bem, o que ela viu?

Wise sacudiu a cabeça. — Pouca coisa. Quando ele foi para casa jantar, nessa noite, contou-lhe que tinha um encon­tro com uma moça no São Marcos, irritando-a, dizendo-lhe que era a sua oportunidade de obter o divórcio que queria. A princípio ela pensou que ele estava querendo enganá-la.

— Conheço a história da família — disse Spade. — Pule isso. Conte-me o que ela fez.

— Contarei, se você me deixar. Depois do marido sair ela começou a pensar que talvez ele tivesse mesmo esse en­contro. Você conhecia Miles. Seria bem dele...

— Pode pular também o caráter de Miles.

— Eu não devia contar-lhe mais nada — disse o advo­gado. — Então ela tirou o carro da garagem e dirigiu-se ao São Marcos, conservando-se do lado oposto da rua. Viu-o quando saiu do hotel e que estava seguindo um homem e uma moça (ela diz que viu a mesma moça com você a noite pas­sada) que tinham saído precisamente na frente dele. Viu então que ele estava trabalhando, e que a estivera burlando. Supo­nho que ficou decepcionada e desatinada, era o que parecia, quando me contou o fato. Acompanhou então Miles o sufi­ciente para se certificar de que ele estava seguindo o casal, e então veio ao seu apartamento. Você não estava.

— Que horas eram?

— Quando ela procurou você? Entre nove e meia e dez, da primeira vez.

— Da primeira vez?

— É. Ela andou rodando de automóvel durante uma meia hora, mais ou menos, depois tentou de novo. Isso faria, digamos, dez e meia. Você ainda estava fora, então ela desceu de novo para a cidade e entrou num cinema a fim de matar o tempo até depois da meia-noite, quando pensava que o encon­traria em casa.

Spade franziu a testa. — Ela foi ao cinema às dez e meia?

— Assim diz ela... aquele da Rua Powell, que fica aberto até uma da manhã. Não queria voltar para casa, porque não queria estar lá quando Miles chegasse. Isso sempre o enrai­vecia, parece, especialmente se fosse por volta da meia-noite. Ficou, pois, no cinema, até que este fechasse. — As palavras de Wise saíam mais vagarosas agora, e havia um brilho sardônico nos seus olhos. — Diz que tinha decidido então não voltar de novo à sua casa; que não sabia se você gostaria que aparecesse assim tão tarde. Por isso dirigiu-se ao "Tait", aquele da Rua Ellis, comeu alguma coisa e voltou para casa... sozinha. — Wise recostou-se na cadeira inclinando-a para trás, e esperou que Spade falasse.

O rosto de Spade mostrava-se inexpressivo. — Você acre­dita nela? — perguntou.

— Você não acredita? — replicou Wise.

— Como posso saber? Como posso saber que não há nada combinado entre vocês para me contarem?

Wise sorriu. — Você não desconta muitos cheques para estranhos, não, Sammy?

— Não muitos. Bem, e aí? Miles não estava em casa. Eram então pelo menos duas da manhã... deviam ser... e ele estava morto.

— Miles não estava — disse Wise. — Isto parece tê-la enraivecido de novo, o fato de ele não ter chegado primeiro, para se enraivecer por ela não estar em casa. Então tirou outra vez o carro, e voltou à sua casa.

— E eu não estava. Eu estava olhando o cadáver de Miles. Que ótima cirandinha. E daí?

— Ela voltou para casa, e o marido ainda não tinha chegado, e enquanto se estava despindo, chegou a sua mensa­geira com a notícia da morte dele.

Spade não falou enquanto não acabou de enrolar e acen­der com muito cuidado outro cigarro. Então disse: — Acho a explicação aceitável. Parece coincidir com a maior parte dos fatos conhecidos. Devia pegar.

Os dedos de Wise, correndo de novo entre os cabelos, pentearam mais caspa sobre os ombros. Estudou o rosto de Spade com olhos curiosos. — Mas você não acredita nela? — perguntou.

Spade puxou o cigarro de entre os lábios. — Eu não acredito nem deixo de acreditar, Sid. Não sei nada a esse respeito.

Um sorriso oblíquo retorceu a boca do advogado. Enco­lheu frouxamente os ombros, dizendo: — Está bem... estou traindo você. Por que não arranja um advogado honesto... em quem possa confiar?

— Esse homem não existe. — Spade levantou-se, olhan­do para Wise com uma expressão zombeteira. — Ficando melindroso, hem? Eu já não tenho muito em que pensar: agora preciso também ser delicado com você. O que eu fiz? Esqueci-me de ajoelhar, quando entrei?

Sid Wise sorriu envergonhado. — Você é um patife, Sammy — disse ele.

Effie Perine estava em pé no centro da sala de entrada de Spade, quando este chegou. Olhou-o com os olhos castanhos assustados, e perguntou: — O que aconteceu?

O rosto de Spade endureceu-se. — O que aconteceu onde?

— Por que ela não foi?

Spade deu dois passos longos e pegou Effie Perine pelos ombros. — Ela não chegou lá? — bradou ele junto ao seu rosto amedrontado.

Ela sacudiu violentamente a cabeça de um lado para o outro. — Esperei, esperei, e ela não veio, e não consegui falar com você no telefone, por isso vim aqui.

Spade tirou-lhe as mãos dos ombros, enfiou-as até o fundo dos bolsos das calças, disse: — Outra cirandinha — em voz alta e raivosa, e entrou a passos longos no seu escritório particular. Depois tornou a sair.

— Telefone a sua mãe — ordenou. — Veja se ela ainda não chegou.

Ele andou de um lado para o outro no escritório, en­quanto a moça usava o telefone. — Não — disse ela ao termi­nar. — Você... você a mandou num táxi?

Seu grunhido provavelmente queria dizer sim.

— Tem certeza que ela... Alguém deve tê-la seguido!

Spade parou de andar. Pôs as mãos nos quadris e fuzilou o olhar sobre a moça. Dirigiu-se a ela numa voz alta e feroz. —Ninguém a seguiu. Pensa que sou um colegial? Assegurei-me disso antes de pô-la no carro, fui com ela uns doze quar­teirões para me certificar melhor, e observei-a outra meia dúzia de quarteirões depois que a deixei.

— Bem, mas...

— Mas ela não chegou lá. Já me contou isso. Eu acre­dito. Ou acha que penso que ela chegou?

Effie Perine fungou. — Você está inegavelmente agindo como um colegial — disse ela.

Spade fez um ruído áspero na garganta, e dirigiu-se à porta do corredor. — Vou sair e descobri-la, mesmo que tenha de atravessar os canos de esgoto. Fique aqui até que eu volte ou que lhe dê notícias. Pelo amor de Deus, vamos fazer alguma coisa certa. — Saiu, fez meio caminho em direção ao elevador, e voltou. Effie Perine estava sentada à escrivaninha, quando ele abriu a porta. — Você devia saber que não me deve dar atenção quando falo assim — disse.

— Se acha que lhe estou dando atenção, está maluco — replicou a moça — apenas — cruzou os braços e apalpou os ombros, e sua boca teve um estremecimento vacilante — não poderei usar um vestido de noite durante umas duas semanas, seu estúpido.

Ele sorriu humildemente: — Eu sou intolerável, meu bem — fez um cumprimento exagerado, e saiu de novo.

Dois táxis estavam no ponto da esquina ao qual Spade se dirigiu. Os choferes conversavam juntos. — Onde está o cho­fer loiro e de rosto vermelho que estava aqui ao meio-dia? — perguntou.

— Teve um serviço — respondeu um deles.

— Vai voltar?

— Acho que sim.

O outro chofer inclinou a cabeça em direção a leste. — Aí vem ele.

Spade dirigiu-se à esquina e ficou parado na beira da calçada até que o chofer loiro e de rosto vermelho tivesse estacionado o automóvel e descido. Então dirigiu-se a ele, dizendo: — Entrei no seu automóvel com uma senhora, por volta do meio-dia. Fomos pela Rua Stockton e subimos Sacra­mento em direção a Jones, onde eu desci.

— Sem dúvida, me lembro.

— Disse-lhe que a levasse a um número da Nona Ave­nida. Você não a levou lá. Aonde a levou?

O chofer coçou o rosto e olhou indeciso para Spade.

— Não me lembro.

— Está bem — assegurou Spade, dando-lhe um dos seus cartões. — Se quiser dizer a verdade, senão podemos ir ao seu escritório e cassar a licença da sua frota.

— Está bem. Levei-a ao armazém do cais.

— Ela pediu?

— Claro.

— Não a levou a nenhum outro lugar, primeiro?

— Não. Foi assim: depois que você desceu, continuei por Sacramento, e quando chegamos a Polk ela bateu no vidro e disse que queria comprar um jornal; então parei na esquina e assobiei para um garoto, e ela comprou o jornal.

— Que jornal?

— O Call. Daí segui um pouco mais por Sacramento, e assim que cruzamos Van Ness ela bateu de novo no vidro e disse para levá-la ao armazém do cais.

— Ela estava excitada, ou qualquer coisa assim?

— Não que eu visse.

— E quando você chegou ao armazém do cais?

— Pagou e fui embora, só isso.

— Alguém estava esperando lá, por ela?

— Não vi ninguém.

— Por onde foi ela?

— No cais? Não sei. Talvez subisse, ou fosse em direção à escada.

— Levou o jornal com ela?

— Levou, ela o tinha dobrado debaixo do braço, quando me pagou.

— Com a folha cor-de-rosa para fora, ou uma das bran­cas?

— Pô, patrão, não posso me lembrar disso.

Spade agradeceu ao chofer, disse: — Compre um maço de cigarros — e deu-lhe um dólar de prata.

Depois comprou um exemplar do Call e levou-o para o vestíbulo de um edifício de escritórios, a fim de examiná-lo longe do vento. Seus olhos percorreram rapidamente os títulos da primeira página e os da segunda e terceira. Demoraram-se por um momento sob o título "Suspeito detido como falsário" na quarta página, e de novo na página cinco sob o título "Jovem perseguido procura a morte com uma bala". As pági­nas seis e sete não traziam nada que o interessasse. Na oito, "3 rapazes presos como ladrões, depois de tiroteio" prendeu a sua atenção por um momento, e depois disso nada mais até chegar à página trinta e cinco, que trazia notícias sobre o tempo, navegação, produção, finanças, divórcios, nascimen­tos, casamentos e falecimentos. Leu a lista de óbitos, passou por sobre as páginas trinta e seis e trinta e sete — notícias sobre finanças — não achou nada que lhe atraísse o olhar na página trinta e oito, que era a última, suspirou, dobrou o jornal, colocou-o no bolso do paletó, e enrolou um cigarro.

Durante cinco minutos Spade conservou-se aí no vestí­bulo do edifício, fumando com ar amuado e olhar vago. Então subiu em direção à Rua Stockton, tomou um táxi, e foi ao Coronet. Entrou no prédio e em seguida no apartamento de Brigid 0'Shaughnessy, com a chave que ela lhe dera. O vestido azul que a moça usara na noite anterior estava pendu­rado nos pés da cama. As meias e sapatos azuis estavam no assoalho, no quarto de dormir. A caixa policroma que contivera jóias, na gaveta da mesa de toilette, estava agora vazia sobre a mesma mesa. Spade franziu a testa ao vê-la, passou a língua pelos lábios, deu uma volta pelos cômodos olhando tudo mas sem tocar em nada, depois deixou o Coronet e desceu de novo para a cidade.

Na porta do prédio do escritório de Spade, ele se en­controu face a face com o rapaz que deixara no apartamento de Gutman. O rapaz colocou-se no seu caminho, bloqueando a entrada, e disse: — Venha comigo. Ele quer vê-lo. — As mãos do menino estavam nos bolsos do sobretudo. Estes apresentavam um volume maior do que elas deviam produzir.

Spade sorriu zombeteiramente: — Não o esperava antes das cinco e vinte e cinco. Sinto muito se o fiz esperar.

O rapaz levantou os olhos para a boca de Spade e falou na voz cansada de alguém sofrendo uma dor física — Continue a me ridicularizar, e logo estará tirando chumbo do seu um­bigo.

Spade deu uma gargalhada. — Quanto mais reles o escroque mais fiada a conversa — disse alegremente. — Bem, vamos lá. — Subiram a Rua Sutter lado a lado. O rapaz conservava as mãos nos bolsos do sobretudo. Andaram um pouco mais de um quarteirão em silêncio. Então Spade per­guntou jovialmente: — Há quanto tempo você deixou o colo da babá, filho? — O rapaz não mostrou ter ouvido a per­gunta. — Você alguma vez... — começou Spade, e parou. Uma luz suave principiou a brilhar nos seus olhos amarelados. Não se dirigiu mais ao rapaz.

Entraram no Alexandria, subiram ao décimo segundo andar, e percorreram o corredor em direção ao apartamento de Gutman. O corredor estava deserto. Spade se atrasou um pouco, assim que, quando chegaram à distância de cinco me­tros da porta de Gutman, ele estava um passo atrás do rapaz. Repentinamente inclinou-se para o lado, e agarrou o menino por trás, pelos dois braços, logo abaixo dos cotovelos, for­çando-o tanto para diante que as mãos, enfiadas nos bolsos, levantaram o sobretudo na frente. O rapaz lutou e torceu-se, mas estava impotente sob as garras do homenzarrão. Então escoiceou, mas seus pés estavam entre as pernas abertas de Spade. Este levantou-o do solo, e o pôs violentamente em pé, de novo. O choque fez pouco ruído, sobre o tapete espesso. No momento do baque, as mãos de Spade escorregaram e agar­raram os pulsos do rapaz, que com os dentes cerrados, não cessava de se torcer contra as mãos enormes; mas não se pôde soltar, nem pôde impedir aquelas mãos de deslizarem sobre as suas. Podia-se ouvir o ranger dos dentes do menino, fazendo um ruído que se misturava ao ruído da respiração de Spade, enquanto lhe comprimia as mãos. Ficaram tensos e imóveis durante um longo momento. Então os braços do rapaz se afrouxaram. Spade soltou-o, e deu um passo atrás. Em cada uma das mãos, ao saírem dos bolsos do sobretudo, trazia uma pesada pistola automática.

O rapaz voltou-se e ficou de frente para Spade. Seu rosto estava de uma palidez cadavérica, e ele conservava as mãos nos bolsos do sobretudo. Olhou para o peito de Spade, e não disse uma palavra. Este pôs as pistolas nos bolsos e riu zombeteiramente. — Vamos — disse. — Isto o deixará em bons termos com o seu patrão.

Aproximaram-se da porta de Gutman, e Spade bateu.

 

                     A DÁDIVA DO IMPERADOR

Gutman abriu a porta. Um alegre sorriso iluminava seu rosto rechonchudo. Estendeu a mão dizendo: — Ah, entre, senhor! Muito obrigado por ter vindo. Entre.

Spade apertou-lhe a mão e entrou. O rapaz entrou atrás. Gutman fechou a porta. Spade tirou as pistolas dos bolsos e estendeu-as a ele. — Tome. Não devia deixá-lo andar por aí com isso. Pode se machucar.

O homem riu alegremente e pegou as pistolas. — Bem, bem — disse — que é isto? — e olhou de Spade para o rapaz.

— Um aleijado tomou as armas dele, mas eu o obriguei a devolvê-las. — disse Spade.

O rapaz pálido tirou as pistolas das mãos de Gutman e colocou-as novamente no bolso, sem falar. Gutman riu de novo. — Por Deus — disse a Spade — o senhor é um indi­víduo digno de ser conhecido, uma criatura extraordinária. Entre. Sente-se. Dê-me o seu chapéu. — O rapaz deixou a sala pela porta à direita da entrada.

Gutman instalou Spade numa cadeira de pelúcia verde junto à mesa, forçou-o a aceitar um charuto, acendeu-o, mis­turou uísque e soda, pôs um copo na mão de Spade e segu­rando o outro, sentou-se em frente dele. — Agora, espero que me permita pedir desculpas por...

— Não se incomode — disse Spade. — Falemos sobre o pássaro preto.

O gordo empertigou a cabeça para o lado esquerdo, e fitou Spade com olhos indulgentes. — Está bem — concor­dou. — Falemos. — Tomou um gole do copo que tinha na mão. — Será a coisa mais assombrosa de que já tenha ouvido

falar, e digo isso sabendo que um homem do seu calibre, na sua profissão, deve ter tido conhecimento de coisas espanto­sas.

Spade assentiu polidamente com a cabeça. O homem apertou os olhos e perguntou: — Que sabe o senhor sobre a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, mais tarde chamada Os Cavaleiros de Rodes, e outros títulos?

Spade acenou com o charuto. — Não muito... apenas o que me lembro de história na escola... Cruzados, ou qualquer coisa assim.

— Muito bem. Então não se lembra que Solimão, o Magnífico, expulsou-os de Rodes em 1523?

— Não.

— Bem, expulsou-os, e eles se estabeleceram em Creta. E aí ficaram durante sete anos, até 1530, quando persuadiram o Imperador Carlos V a dar-lhes — levantou três dedos roliços e contou neles — Malta, Gozo e Trípoli.

— Sim.

— Sim, mas com estas condições: deviam pagar ao im­perador, todos os anos, o tributo de um — ele ergueu um dedo — falcão, como reconhecimento de que Malta estava ainda sob o domínio da Espanha, e de que, se eles algum dia dei­xassem a ilha, ela reverteria à Espanha. Compreendeu? Ele lhes dava a ilha, mas enquanto a estivessem usando não a poderiam dar ou vender a ninguém mais.

— Sim.

O homem gordo olhou por sobre os ombros para as três portas fechadas, aproximou alguns centímetros a sua cadeira da de Spade, e reduziu a voz a um murmúrio rouco: — Tem o senhor alguma idéia da enorme, da imensurável riqueza da Ordem, por esse tempo?

— Se bem me lembro — disse Spade — estavam indo muito bem de vida.

Gutman teve um sorriso indulgente. — Muito bem, é uma designação moderada. — Seu murmúrio tornou-se mais baixo e mais ronronante. — Estavam nadando na riqueza. O senhor não pode fazer idéia. Ninguém pode fazer idéia. Du­rante anos eles tinham saqueado os sarracenos, tinham pi­lhado não se sabe quantos despojos de pedras e metais precio­sos, sedas, marfins, a nata das natas do Leste. Isto pertence à História. Todos nós sabemos que as Guerras Santas para eles, como para os Templários, eram em grande parte um negócio de saque. Bem, então, o Imperador Carlos V deu-lhes Malta, e todo o tributo que lhes pede é um insignificante pássaro por ano, uma simples formalidade. Que haveria de mais natural para esses Cavaleiros imensamente ricos do que procurarem um meio de expressar sua gratidão? Bem, foi exatamente o que fizeram, e apegaram-se à feliz idéia de mandar a Carlos, como primeiro tributo anual, não um insignificante pássaro vivo, mas um magnífico falcão de ouro incrustado da cabeça aos pés com as mais finas jóias dos seus tesouros. E — lem­bre-se, senhor — eles tinham jóias finíssimas, as mais finas saídas da Ásia. — Gutman parou de cochichar. Seus olhos escuros e suaves examinaram o rosto de Spade, que se conser­vava calmo. E perguntou: — Bem, que pensa disso?

— Não sei.

Sorriu complacente. — São fatos, fatos históricos, não histórias de livro de escola, não a história do Sr. H. G. Wells, mas História apesar de tudo. — Inclinou-se para a frente. — Os arquivos da Ordem, desde o século XII, estão ainda em Malta. Não estão intactos, mas os que restam contêm não menos de três — levantou três dedos — referências que não podem ser relativas a nada mais a não ser a esse falcão feito de jóias. Em "Les Archives de 1'Ordre de Saint-Jean", de J. Dela-ville Le Roulx, há uma referência a ele, indireta, sem dúvida, mas, ainda assim, uma referência. E no suplemento ao "Dell' origine ed instituto dei sacro militar ordine", de Paoli, iné­dito, por não estar terminado ao tempo da sua morte, há uma clara e inegável exposição dos fatos que lhe estou contando.

— Muito bem — disse Spade.

— Muito bem. O Grão-Mestre Villiers de l’Isle d'Adam fez executar esse precioso pássaro de 30 centímetros de altura por escravos turcos no Castelo de Santo Ângelo, e mandou-o a Carlos, que estava na Espanha. Mandou-o em uma galera comandada por um cavaleiro francês chamado Cormier ou Corvere, um membro da Ordem. — Sua voz desceu de novo a um sussurro. — Ele nunca chegou à Espanha. — Sorriu com os lábios cerrados, e perguntou: — Ouviu falar de Barba-rossa, Barba-roxa, Khair-ed-Din? Não? Um famoso almi­rante de piratas com base em Argel, nessa ocasião. Bem, ele tomou a galera do Cavaleiro, e também o pássaro. O pássaro foi para Argel. Isto é um fato. É um fato que o historiador francês Pierre Dan mencionou em uma das suas cartas de Argel. Ele escreveu que o pássaro ficou lá mais de cem anos, até ser levado por Sir Francis Verney, o aventureiro inglês que esteve durante algum tempo com os piratas argelinos. Talvez não fosse, mas Pierre Dan acredita que foi, e para mim é o suficiente.

"Verdade é que não há referência nenhuma ao pássaro nas 'Memórias da Família Verney durante o Século Dezessete' de Lady Francês Verney. Eu procurei. E é mais que certo que Sir Francis não o tinha quando morreu num hospital de Messina, em 1615. Ele estava na miséria. Mas, não há como negar que o pássaro foi para a Sicília. Esteve lá, e lá caiu em poder de Vítor Amadeu II, algum tempo depois que se tornou rei, em 1713, e foi um dos seus presentes à esposa quando se casou em Chambéry, após abdicar. Isto é verdade. Carutti, o autor da 'Storia dei Regno di Vittorio Amadeo II', atestou-o ele mesmo.

"Talvez eles, Amadeu e sua mulher, o levassem consigo para Turim, quando tentaram revogar sua abdicação. Seja como for, ele passou em seguida para as mãos de um espanhol que estivera com o exército que tomou Nápoles em 1734, o pai de Don José Monino y Redondo, Conde de Florida-blanca, primeiro-ministro de Carlos III. Não há nada que prove que não ficou nessa família até pelo menos o fim da Guerra Carlista. em 40. Então apareceu em Paris exatamente no tempo em que Paris estava cheia de carlistas que tinham sido obrigados a deixar a Espanha. Um deles deve tê-lo tra­zido consigo, mas fosse quem fosse, é provável que não sou­besse nada sobre o seu valor real. Ele fora, sem dúvida, como uma precaução durante a agitação carlista na Espanha, pin­tado ou esmaltado exteriormente, de forma a não parecer mais do que uma estatueta preta, mais ou menos interessante. E nesse disfarce, ela foi, pode-se dizer, chutada através de Paris durante setenta anos por proprietários particulares e negociantes estúpidos demais para verem o que estava por baixo da casca."

Gutman parou para sorrir e sacudir a cabeça, pesaroso. Depois continuou: — Durante setenta anos, este maravilhoso objeto foi, como se pode dizer, uma bola de futebol nas sarjetas de Paris, até 1911, quando um negociante grego, chamado Charilaos Konstantinides o achou em uma loja obs­cura. Charilaos não demorou muito para ver o que era e para adquiri-lo. Não havia espessura de esmalte que pudesse enco­brir valor aos seus olhos e ao seu nariz. Bem, Charilaos foi o homem que retraçou quase toda a sua história e que o identi­ficou tal qual era então. Isso chegou aos meus ouvidos, e finalmente arranquei dele a maior parte da história, apesar de me ter achado depois em condições de lhe acrescentar alguns detalhes. Charilaos não tinha pressa de converter imediata­mente em dinheiro o seu achado. Sabia que enorme como era o seu valor intrínseco, um preço muito maior, um preço fan­tástico, podia ser obtido por ele, desde que sua autenticidade pudesse ser estabelecida além de qualquer dúvida. Ele teria possivelmente planejado negociar com um dos modernos des­cendentes da velha ordem: a Ordem Inglesa de São João de Jerusalém, a Prussiana Johanniterorden, ou as "langues" da Ordem Soberana de Malta, italiana ou alemã, todas riquís­simas. — Levantou o copo, sorriu ao vê-lo vazio, e ergueu-se para enchê-lo, assim como o de Spade. — Começa a me acreditar um pouco? — perguntou, enquanto fazia funcionar o sifão.

— Não disse que não acreditava.

— Não. — Gutman deu uma gargalhada. — Mas que ar tinha o senhor. — Sentou-se, bebeu copiosamente, e enxugou a boca com um lenço branco. — Bem, para tê-lo em segu­rança enquanto prosseguia a busca na sua história, Charilaos tinha re-esmaltado o pássaro, aparentemente, como ele está agora. Exatamente no dia em que fez um ano que o tinha adquirido, isso foi talvez uns três meses depois que obtive a sua confissão, eu peguei o Times em Londres e li que o seu estabelecimento tinha sido roubado e ele assassinado. No dia seguinte eu estava em Paris. — Sacudiu a cabeça com tristeza.

— O pássaro tinha desaparecido. Por Deus, fiquei alucinado. Não acreditava que ninguém mais soubesse a sua história. Não acreditava que ele a tivesse contado a ninguém mais, senão a mim. Fora roubada uma grande quantidade de mer­cadorias. Isso me fez pensar que o ladrão tinha simplesmente levado o pássaro com o resto do roubo, sem saber o que era. Porque eu lhe asseguro que um ladrão que conhecesse o seu valor não se sobrecarregaria com mais nada, pelo menos com mais nada que valesse menos do que as jóias da coroa.

Fechou os olhos e sorriu complacente a um pensamento íntimo. Depois abriu-os e disse: — Isso foi há dezessete anos. Levei dezessete anos para localizar esse pássaro, mas loca­lizei-o. Eu o queria, e não sou um homem que desanime facilmente quando quero alguma coisa. — Seu sorriso se alar­gou. — Eu o queria, e o descobri. Eu o quero, e vou possuí-lo.

— Ele esvaziou o copo, enxugou de novo os lábios, e tornou a pôr o lenço no bolso. — Segui a sua pista até a casa de um general russo, um tal Kemidov, num subúrbio de Constanti­nopla, que não sabia nada a respeito. Para ele, não era mais do que uma estatueta esmaltada de preto, mas seu natural espírito de contradição, o espírito de contradição de um gene­ral russo, impediu-o de me vendê-lo, quando lhe fiz uma oferta. Talvez na minha ânsia eu tenha sido um pouco inábil, mas apenas um pouco. Não sei. Mas eu sabia que o queria, e tinha medo que esse soldado estúpido começasse a pesquisar a sua propriedade, que pudesse arrancar um pouco do esmalte. Então mandei alguns... digamos... agentes para consegui-lo. Bem, eles o conseguiram, e eu não. — Levantou-se e levou o copo vazio para a mesa. — Mas vou consegui-lo. O seu copo, senhor.

— Então o pássaro não pertence a nenhum dos senho­res? — perguntou Spade — mas a um General Kemidov?

— Pertencer? — disse o homem gordo jovialmente. — Bem, o senhor poderia dizer que ele pertence ao rei da Espanha, mas não vejo como pode sinceramente conceder a mais ninguém incontestável título a ele, a não ser por direito de posse.— Deu uma gargalhada. — Um objeto desse valor, que passou de mão em mão por tais meios, é claramente propriedade de quem o puder agarrar.

— Então é a Srta. O'Shaughnessy, no momento?

— Não senhor, a não ser como minha agente. Spade fez um — Oh! — irônico.

Gutman, olhando pensativamente para a rolha da gar­rafa de uísque que tinha na mão, perguntou: — Não há nenhuma dúvida de que esteja com ela agora?

— Não muita.

— Onde?

— Não sei com exatidão.

O homem gordo bateu a garrafa sobre a mesa. — Mas o senhor disse que sabia — protestou.

Spade fez um gesto negligente com a mão. — Eu quis dizer que sei onde encontrá-lo quando chegar a ocasião.

Os bulbos cor-de-rosa, sobre a face de Gutman, ajusta­ram-se melhor. — E o senhor o fará? — perguntou.

— Farei.

— Onde?

Spade sorriu: — Deixe isso comigo.

— Quando?

— Quando eu estiver pronto.

O gordo apertou os lábios e, sorrindo com uma leve inquietação, perguntou: — Sr. Spade, onde está a Srta. 0'Shaughnessy agora?

— Nas minhas mãos, bem escondida.

Gutman sorriu, aprovando. — Confio inteiramente no senhor, a esse respeito. Bem, agora, antes de combinarmos os preços, responda-me isto: quando pode o senhor, ou, quando quer o senhor, mostrar o falcão?

— Dentro de alguns dias.

— Isso é suficiente. Nós... Mas esqueci-me do nosso alimento.

— Virou-se para a mesa, despejou uísque, esguichou nele água carregada, pôs um copo junto de Spade, e levantou alto o seu. — Bem, bebamos a uma transação leal, e a lucros com­pensadores para nós dois.

Beberam. O homem gordo sentou-se. — Qual é a sua idéia de uma transação leal? — perguntou Spade.

Gutman levantou o copo contra a luz, olhou-o afetuosa-mente, tomou outro longo trago, e disse: — Tenho duas pro­postas a fazer-lhe, e qualquer delas é leal. Dar-lhe-ei vinte e cinco mil dólares quando me entregar o falcão, e outros vinte e cinco mil assim que chegue a Nova Iorque; ou dar-lhe-ei um quarto, vinte e cinco por cento, do que apurar pelo falcão. Aí tem, senhor: cinquenta mil dólares quase imediatamente, ou uma soma imensamente maior dentro, digamos, de alguns meses.

Spade bebeu e perguntou: — Maior, quanto?

— Imensamente — repetiu. — Quem sabe quanto? Po­derei dizer cem mil, ou um quarto de um milhão? Acredi­tar-me-ia, se eu pronunciasse a soma que parece o mínimo provável?

— Por que não?

— Que diria o senhor de meio milhão? — murmurou numa voz ronronante, estalando os lábios.

Spade estreitou os olhos. — Pensa então que o bibelô vale dois milhões?

Gutman sorriu serenamente. — Com suas próprias pala­vras, por que não? — perguntou.

Spade esvaziou o copo e colocou-o sobre a mesa. Pôs o charuto na boca, tirou-o, olhou para ele, e o pôs de novo na boca. Seus olhos amarelo-pardos estavam ligeiramente úmidos. Disse: — Isso é um mundo de dinheiro.

O gordo concordou: — Ê um mundo de dinheiro. — In­clinou-se e bateu de manso no joelho de Spade. — Essa é a absoluta base mínima, ou Charilaos Konstantinides era um bobo-alegre, e ele não era.

Spade tirou de novo o charuto da boca, olhou-o franzindo a testa com repugnância, e o pôs na mesinha de fumar. Então fechou os olhos com força, e abriu-os de novo. A umidade tinha aumentado. — O... mínimo, hem? E o máximo? — Um inconfundível "ch" acompanhou o x de máximo, quando ele o pronunciou.

— O máximo? — Gutman estendeu a mão vazia, com a palma para cima. — Recuso-me a fazer conjeturas. Pensaria que estou louco. Não sei. Não se pode dizer a que alturas poderia chegar, e esta é a única verdade das verdades a respeito dele.

Spade encolheu o lábio inferior descaído, apertando-o contra o superior, e sacudiu a cabeça impaciente. Uma cen­telha de inteligência e de temor despertou em seus olhos... e foi sufocada pela umidade crescente. Levantou-se, firmando-se com as mãos nos braços da cadeira. Sacudiu a cabeça de novo e deu um passo hesitante para a frente. Riu-se pesada­mente e murmurou: — Puta que pariu.

Gutman pulou, empurrando a cadeira para trás. Seus globos de gordura dançaram. Os olhos eram buracos escuros num rosto rosado e oleoso. Spade balançou a cabeça de um lado para outro até os olhos pesados ficarem apontados, senão focalizados, para a porta. Deu outro passo cambaleante. O homem gordo chamou em voz aguda: — Wilmer! — Um porta abriu-se e o rapaz entrou.

Spade deu um terceiro passo. Seu rosto agora estava cin­zento, com os músculos do queixo saltados como tumores, sob suas orelhas. As pernas não se firmaram mais depois desse quarto passo, e os olhos turvos estavam quase cobertos pelas pálpebras. Deu o quinto passo. O rapaz se adiantou e postou-se perto, um pouco na sua frente, mas não precisamente entre ele e a porta. Trazia a mão direita dentro do paletó, sobre o coração, e os cantos da boca tremiam. Spade ensaiou o sexto passo. A perna do menino atravessou-se na frente da dele. Spade tropeçou sobre a perna interferente e caiu com estrondo com o rosto voltado para o chão. O rapaz, conservando a mão direita dentro do paletó, olhou para ele. Tentou levantar-se. Então o menino recuou bem para trás o pé direito, e deu-lhe um pontapé na têmpora, fazendo-o rolar sobre um dos lados. Ele tentou levantar-se mais uma vez, não pôde, e caiu no sono.

 

                   LA PALOMA

Spade, saindo de trás do canto do elevador, alguns mi­nutos depois das seis da manhã, viu uma luz amarela bri­lhando através do vidro fosco da porta do seu escritório. Parou de chofre, apertou os lábios, olhou para cima e para baixo, e avançou rápido em direção à porta, com passos largos e silen­ciosos.

Ao alcançá-la pôs a mão sobre o trinco, e virou-o com um cuidado que impedia qualquer ruído. Virou-o, até não poder mais: a porta estava trancada. Segurando ainda o trinco trocou de mão, prendendo-o agora com a esquerda. Com a direita tirou cuidadosamente as chaves do bolso, a fim de que não pudessem tilintar uma contra a outra. Separou a do escri­tório, e juntando-as na mão, enfiou na fechadura a que tinha separado, sem fazer ruído. Então balançou-se sobre as plan­tas dos pés, encheu os pulmões, deu volta à lingüeta, e entrou.

Effie Perine estava dormindo sentada, com a cabeça sobre os braços, e estes sobre a escrivaninha. Estava de ca­saco, e tinha um dos sobretudos de Spade enrolado à sua volta, à maneira de capa. Spade respirou numa risada aba­fada, fechou a porta atrás de si e dirigiu-se à porta interna. A outra sala estava vazia. Voltou então para a moça e pôs-lhe a mão no ombro.

Ela estremeceu, levantou a cabeça sonolenta, e suas pál­pebras se agitaram. Subitamente endireitou-se, abrindo muito os olhos. Nisso viu Spade, sorriu, encostou-se na cadeira e esfregou os olhos com os dedos. — Então, você voltou, final­mente? — disse ela. — Que horas são?

— Seis horas. Que está fazendo aqui?

Ela tiritou, achegou mais ao corpo o sobretudo de Spade, e bocejou. — Você disse-me que ficasse aqui até voltar, ou telefonar.

— Ah, você é irmã do rapaz que ficou no tombadilho incendiado?

— Eu não estava para... — Interrompeu-se bruscamente e se pôs em pé, deixando o sobretudo dele escorregar para trás, sobre a cadeira, fitou os olhos perturbados e sombrios na têmpora de Spade, sob a aba do chapéu, e exclamou: — Oh, sua cabeça! Que foi que aconteceu? — A têmpora direita estava escura e inchada.

— Não sei se caí, ou se fui agredido. Acho que não tem muita importância, mas dói como o diabo. — Ele mal tocou o lugar com os dedos, vacilou, transformou a careta num sorriso disforme, e explicou: — Fui fazer uma visita, narcotizaram-me e passei doze horas esparramado em um soalho.

Ela pegou o chapéu e tirou-o. — Está horrível — disse.

— Tem que procurar um médico. Você não pode andar por aí com a cabeça assim.

— Não é tanto como parece, exceto a dor de cabeça, e essa pode ser mais do narcótico. — Dirigiu-se ao gabinete, no canto do escritório, e molhou o lenço na torneira de água fria.

— Aconteceu alguma coisa depois que saí?

— Você achou a Srta. O'Shaughnessy, Sam?

— Ainda não. Aconteceu alguma coisa depois que saí?

— Telefonaram do escritório do Comissário. Ele quer vê-lo.

— Ele mesmo?

— Sim, foi o que entendi. E um rapaz veio com um re­cado... que o Sr. Gutman gostaria de falar com você, antes das cinco e meia.

Spade fechou a torneira, torceu o lenço, e saiu do gabi­nete segurando-o sobre o ferimento. — Esse eu recebi — disse. — Encontrei o menino lá em baixo; conversar com Gutman deu nisto.

— É esse o G que telefonou, Sam?

— É.

— E o que...?

Spade fitou o olhar além da moça, e falou como que aproveitando as palavras para ordenar os pensamentos: — Ele quer uma coisa que acha que eu posso conseguir. Convenci-o de que podia impedi-lo de obtê-la, se não fizesse o negócio comigo antes das cinco e meia. Então, hum-hum, não há dúvida, foi depois que eu lhe disse que tinha de esperar alguns dias que ele me deu a droga. Não é provável que tenha querido me matar. Ele sabia que eu estaria de pé e em atividade dentro de dez ou doze horas. Assim, talvez a resposta seja que ele se afigurou poder obtê-la, sem o meu auxílio, durante esse tempo, se eu estivesse imobilizado e não pudesse me introme­ter. — Spade fez uma carranca. — Espero que tenha se enga­nado. — Seu olhar tornou-se menos distante. — Você não recebeu notícia alguma da 0'Shaughnessy?

A moça fez que não com a cabeça e perguntou: — Isso tem alguma coisa a ver com ela?

— Alguma.

— Essa coisa que ele quer, pertence a ela?

— Ou ao rei da Espanha. Coração, você não tem um tio que ensina História na Universidade?

— Um primo. Por quê?

— Se nós lhe alegrássemos a vida com um pretenso se­gredo histórico, da idade de quatro séculos, podíamos confiar que ele o conservaria oculto por enquanto?

— Oh, sim, ele é legal.

— Ótimo. Pegue o lápis e o bloco.

Ela pegou e sentou-se. Spade molhou de novo o lenço e, apertando-o de encontro à pisadura, pôs-se em frente dela e ditou a história do falcão como a tinha ouvido de Gutman, desde a concessão da ilha por Carlos V aos Cavaleiros da Ordem de São João até — mas só até — a chegada do pássaro esmaltado a Paris ao tempo da afluência carlista. Tropeçava nos nomes dos autores e trabalhos que Gutman mencionara, mas conseguiu chegar a uma espécie de semelhança fonética. Quanto ao resto da história, repetiu-a com a exatidão de um entrevistador experimentado. Quando terminou, a moça fe­chou o bloco de apontamentos, e levantou para ele o rosto corado e sorridente. — Oh, não é emocionante? — disse ela. — É...

— Sim, ou ridículo. Agora, quer pegar o bloco e lê-lo para o seu primo e perguntar-lhe o que pensa disso? Per­gunte-lhe se soube alguma vez de qualquer coisa que possa ter alguma analogia com isso. Será uma coisa provável? Será possível, mesmo que apenas um pouco? Ou será uma misti­ficação? Se ele quiser mais tempo para analisá-lo, está bem, mas arranque-lhe uma opinião qualquer agora. E pelo amor de Deus, faça-o ficar de boca fechada.

— Eu vou já, e você vá mostrar essa cabeça a um mé­dico.

— Vamos almoçar primeiro.

— Não, almoçarei em Berkeley. Não posso esperar mais para saber o que Ted pensa disto.

— Bem, não comece a choramingar se ele gozar você.

Após um relaxante almoço no Palace, durante o qual leu os dois jornais da manhã, Spade dirigiu-se a casa, barbeou-se, tomou banho, esfregou gelo na têmpora machucada, e vestiu roupas limpas. Rumou então ao apartamento de Brigid 0'Shaughnessy, no Coronet. Não havia ninguém no aparta­mento. Nada estava mudado, desde a sua última visita. Foi em seguida ao Hotel Alexandria. Gutman não estava, nem nenhum dos outros ocupantes do seu apartamento. Spade ficou sabendo que esses ocupantes eram o secretário dele, Wilmer Cook, e sua filha Rhea, uma moça franzina, de cabe­los loiros e olhos castanhos, de dezessete anos, que o gerente disse ser bonita. Contaram-lhe que o grupo de Gutman tinha chegado ao hotel procedente de Nova Iorque dez dias antes, e não tinha partido ainda. Spade dirigiu-se ao Belvedere e achou o detetive comendo no café do hotel.

— Bom dia, Sam. Sente-se e coma um ovo. — O detetive do hotel encarou a fronte de Spade. — Por Deus, amassa­ram-no pra valer.

— Obrigado, já almocei — disse Spade sentando-se, e depois, referindo-se ao ferimento: — Parece pior do que é. Como tem se portado o nosso Cairo?

— Ele saiu há uma meia hora, no máximo, depois de você, ontem, e desde então não o vi mais. Não dormiu aqui de novo, a noite passada.

— Está adquirindo maus hábitos.

— Bem, um rapaz como ele, sozinho numa cidade gran­de. Quem lhe carimbou a cara, Sam?

— Não foi Cairo. — Spade olhou atentamente a pequena cúpula lustrosa cobrindo a torrada de Luke. — Quais são as possibilidades de dar uma olhada no quarto dele, enquanto ele está fora?

— Pode dar. Você sabe que estou com você e não abro.

— Luke empurrou o café, pôs os cotovelos sobre a mesa, e virou os olhos para Spade. — Mas tenho um pressentimento de que você não está me abrindo o jogo. Qual é a verdade sobre esse tipo, Sam? Você não terá que me censurar. Sabe que sou leal.

Spade levantou os olhos da campânula prateada. Eles se mostravam cândidos e puros. — E, sem dúvida — disse.

— Não estou dissimulando. Disse-lhe a verdade. Estou fa­zendo um serviço para ele, mas ele tem amigos que não me parecem corretos, e estou um pouco desconfiado a seu respeito.

— O garoto que expulsamos ontem era um dos seus amigos?

— Sim, Luke, era.

— E foi um deles que assassinou Miles?

Spade sacudiu a cabeça. — Thursby matou Miles.

— E quem matou Thursby?

— Isso deve ficar em segredo, mas, confidencialmente, fui eu, segundo a polícia — sorriu Spade.

Luke grunhiu e levantou-se, dizendo: — Você é difícil de entender. Venha, vamos dar essa olhada.

Pararam na secretaria o tempo suficiente para Luke "en­contrar jeito de que tenhamos um aviso se ele chegar" e subi­ram ao quarto de Cairo. A cama estava arrumada, a colcha direita, mas os papéis no cesto, as persianas mal puxadas e um par de toalhas em desordem no banheiro mostravam que a arrumadeira não tinha ainda estado lá, nessa manhã. A baga­gem de Cairo consistia em uma mala quadrada, uma valise, e uma mala sanfona. O armário do banheiro estava cheio de cosméticos: caixas, latas, potes e frascos de pós, cremes, ungüentos, perfumes, loções e tônicos. Dois ternos e um sobre­tudo estavam pendurados no armário embutido, por cima de três pares de sapatos cuidadosamente alinhados contra a pa­rede. A valise e a maleta não estavam fechadas a chave. Luke tinha aberto a mala quando Spade terminou a sua busca nos outros lugares.

— Tudo limpo — disse Spade, enquanto remexiam a mala.

Não acharam nada que lhes interessasse.

— Estamos procurando alguma coisa em particular? — perguntou Luke, enquanto trancava de novo a mala.

— Não. Supõe-se que ele tenha vindo de Constantinopla para cá. Eu gostaria de saber se veio. Não vi nada que prove o contrário.

— Qual é a profissão dele?

Spade sacudiu a cabeça. — É outra coisa que eu gostaria de saber. — Atravessou o quarto e inclinou-se sobre a cesta de papéis. — Bem, este é o nosso último cartucho.

Spade tirou um jornal da cesta. Seus olhos brilharam quando viu que era o Call do dia anterior. Estava dobrado, com a página dos anúncios classificados para fora. Abriu-a, examinou-a, e não encontrou nada que lhe atraísse a atenção. Virou o jornal e olhou a página que ficara dobrada para dentro, e que trazia as notícias sobre finanças, navegação, tempo, nascimentos, casamentos, divórcios e falecimentos. Do canto inferior esquerdo tinha sido tirado um pouco mais do que uns cinco centímetros da base da segunda coluna. Imediatamente acima da parte rasgada estava um pequeno cabeçalho "Chegaram hoje" seguido por:

 

           12:20 a. m. — Capac de Astória

           5:05 a. m. — Helen P. Drew de Greenwood

           5:06 a. m. — Albarado de Bandom

 

O rasgão passava através da linha seguinte, deixando das suas letras apenas o suficiente para tornar presumível de Syd­ney.

Spade pôs o Call sobre a escrivaninha e olhou de novo na cesta. Achou um pequeno pedaço de papel de embrulho, outro de barbante, duas ligas, uma nota de venda de casa de armarinho, relativa a meia dúzia de pares de meias, e, no fundo da cesta, um pedaço de jornal, enrolado como uma bolinha. Abriu-o com cuidado, alisou-o sobre a secretária, e ajustou-o na parte rasgada do Call. O encaixe nas beiradas estava certo, mas entre o alto do fragmento amarrotado e o presumível de Sydney faltavam uns dois centímetros, espaço suficiente para o anúncio da chegada de seis ou sete navios. Então virou a página e viu que o outro lado da parte arran­cada podia conter apenas um canto sem importância do anún­cio de um corretor de seguros.

Luke, inclinando-se sobre o seu ombro, perguntou: — O que há?

— Parece que o cavalheiro está interessado em um navio.

— Bem, não há lei nenhuma contra isso, não? — disse Luke, enquanto Spade estava dobrando a página rasgada e juntando-lhe o pedaço amassado, e pondo-os no bolso do paletó. — Você já acabou aqui?

— Acabei. Muito obrigado, Luke. Quer me telefonar, assim que ele chegue?

— Pois não.

Spade dirigiu-se ao escritório do Call, comprou um exem­plar da edição do dia anterior, abriu-o na página de notícias de navegação, e confrontou-a com a página tirada da cesta de Cairo. A parte que faltava dizia:

 

         5:17 a. m. — Tahiti de Sydney e Papeete

         6:05 a. m. — Admirai Peoples de Astória

         8:07 a. m. — Caddopeak de San Pedro

         8:17 a. m. — Silverado de San Pedro

         8:05 a. m. — La Paloma de Hong-Kong

         9:03 a. m. — Daisy Gray de Seattle.

 

Leu devagar a lista e quando acabou sublinhou "Hong-Kong" com a unha, separou a lista das chegadas com o cani­vete, pôs o resto do jornal e a folha de Cairo na cesta de papéis, e voltou ao seu escritório. Aí sentou-se à sua escriva­ninha, procurou um número na lista telefônica, e ligou o tele­fone. — Kearny um quatro zero um, por favor... Onde está ancorado o "Paloma", chegado ontem cedo de Hong-Kong? — Repetiu a pergunta. — Obrigado. — Então prendeu por um momento o gancho do receptor, soltou-o, e pediu: — Davenport dois zero dois zero, por favor... Gabinete de investi­gações, por obséquio... O Sarg. Polhaus está?... Obrigado... Alô, Tom, aqui é Sam Spade... Sim, tentei falar-lhe ontem à tarde... Sem dúvida, suponhamos que você tome um café comigo... Certo. — Conservou o receptor no ouvido enquanto o polegar manejava de novo o gancho. — Davenport zero um sete zero, por favor... Alô, aqui é Samuel Spade. Minha secre­tária recebeu ontem um recado telefônico de que o Sr. Bryan quer me ver. Quer perguntar-lhe qual a hora mais conveniente para ele?... Sim, Spade, S-p-a-d-e. — Uma longa pausa.

— Sim... Duas e meia? Muito bem. Obrigado. — Então chamou um quarto número: — Alô, meu bem, posso falar com Sid?... Alô, Sid... Sam. Tenho um encontro com o pro­motor às duas e meia desta tarde. Quer me dar uma telefo­nada, aqui ou lá, por volta das quatro, para ver se não estou em dificuldades?... Foda-se o seu golfe de sábado à tarde: sua obrigação é me conservar fora das grades... Muito bem, Sid. Até logo.

Spade empurrou o telefone, bocejou, espreguiçou-se, apalpou a têmpora machucada, olhou o relógio, enrolou e acendeu um cigarro. Fumou sonolentamente, até Effie Perine entrar.

Ela entrou sorrindo, de olhos brilhantes e face rosada.

— Ted diz que podia ser — informou — e espera que seja. Diz que não é um especialista nesse assunto, mas os nomes e as datas estão certos, e pelo menos nenhuma das suas autori­dades ou seus livros são inventados. Ele está todo entusias­mado.

— Isso é ótimo, contanto que não fique por demais entu­siasmado a ponto de investigar se não é mistificação.

— Oh, ele não faria isso... Ted não! É hábil demais na sua profissão para isso.

— Hum-hum, toda a insigne família Perine é maravi­lhosa, incluindo você e a mancha de fuligem no seu nariz.

— Ele não é Perine, é Christy. — A moça abaixou a cabeça para olhar o nariz no espelhinho do estojo de pó de arroz. — Acho que peguei isso do fogo. — Esfregou a mancha com a ponta do lenço.

— O entusiasmo dos Perine-Christy está incendiando Berkeley? — perguntou ele.

Ela fez-lhe uma careta enquanto empoava o nariz com um pequeno pufe cor-de-rosa. — Havia um navio em chamas, quando voltei. Estava sendo rebocado para fora do cais, e a fumaça soprava sobre toda a nossa barca.

Spade pôs as mãos sobre os braços da cadeira. — Você estava a distância suficiente para ver o nome do navio? — perguntou.

— Estava. "La Paloma". Porquê?

Spade sorriu pesaroso. — Diabos me levem se sei, filha.

 

                     OS MALUCOS

Spade e o sargento-detetive Polhaus comeram mocotó em conserva numa das mesas do grande John, no States Hof Brau. Polhaus, balançando a gelatina clara e brilhante a meio caminho entre o prato e a boca, disse: — Ei, ouça, Sam! Esqueça a outra noite. Ele agiu muito mal, mas você sabe, ninguém é responsável por perder a cabeça, sendo ridicula­rizado daquela forma.

Spade olhou pensativamente para o detetive. — Era para isso que você queria me ver? — perguntou.

Polhaus assentiu com a cabeça, pôs a garfada de geléia na boca, engoliu-a, e especificou: — Em grande parte.

— Foi mandado por Dundy?

Polhaus fez um muxoxo de desagrado. — Você sabe que não. Ele é tão cabeçudo como você.

Spade sorriu e sacudiu a cabeça. — Não, não é, Tom — disse. — Mas pensa que é.

Tom fez uma carranca e atacou o mocotó com a faca. — Você nunca vai criar juízo? — rosnou. — Que ganhou em aborrecê-lo? Você chegou ao máximo. Que adianta transfor­mar isso numa rixa? Você apenas está se prejudicando.

Spade juntou com cuidado a faca e o garfo sobre o prato, e pôs as mãos, uma de cada lado dele, na mesa. Teve um sorriso pálido e inexpressivo. — Com cada tira da cidade tentando me aprontar dificuldades, um pouco mais não fará mal. Não dou nem bola.

A vermelhidão de Polhaus aumentou. — E uma bela coisa para me dizer — disse.

Spade pegou a faca e o garfo e começou a comer. Polhaus imitou-o. Logo Spade perguntou: — Viu o navio em chamas, na baía?

— Vi a fumaça. Seja razoável, Sam. Dundy agiu mal, e sabe disso. Por que não dá tudo por acabado?

— Acha que eu devo procurá-lo e dizer-lhe que espero que o meu queixo não lhe tenha machucado o punho? — Polhaus enfiou ferozmente a faca no mocotó. — Phil Archer fez novas denúncias? — perguntou Spade.

— Porra! Dundy não pensou que você matou Miles, mas o que podia ele fazer senão investigar? Você teria feito a mesma coisa no lugar dele.

— É? — No olhar de Spade brilhava a malícia. — O que o fez pensar que não fui eu? O que faz com que você pense da mesma forma? Ou você não pensa?

O rosto rosado de Polhaus avermelhou de novo. — Thurs-by matou Miles — disse.

— Você pensa que foi ele.

— Foi ele. Aquele Webley era dele, e o ferimento de Miles provinha dessa arma.

— Tem certeza?

— Toda — respondeu o detetive policial. — Nós pega­mos um garoto, um empregado no hotel de Thursby, que a tinha visto no quarto dele exatamente naquela manhã. Cha­mou-lhe em particular a atenção porque nunca tinha visto outra igual. Eu também nunca vi. Você diz que não se fabri­cam mais. Não é provável que haja outra por aqui e, de qualquer forma, se essa não fosse a arma de Thursby, onde está a dele? E essa é a arma de que proveio o ferimento de Miles. — Tom parou para pôr um pedaço de pão na boca, retirou-o, e perguntou: — Você disse que já os vira antes: onde foi isso? — E pôs o pão na boca.

— Na Inglaterra, antes da Guerra.

— Sem dúvida é isso.

Spade aquiesceu com a cabeça: — Assim, fica apenas Thursby para eu ter matado.

Polhaus torceu-se na cadeira, com o rosto vermelho e brilhante.

— Pelo amor de Deus, você nunca se esquecerá disso? — queixou-se, aflito. — Isso está acabado. Você sabe tão bem quanto eu. Chego a pensar que você não é um investigador, de tão rabugento. Quer me convencer de que nunca emprega os truques que empregamos com você?

— Você quer dizer que vocês tentaram empregar co­migo, Tom... apenas tentaram. — Polhaus praguejou baixo e investiu contra os restos do mocotó. — Muito bem. Você e eu sabemos que está acabado. E Dundy, que sabe ele? --continuou Spade.

— Ele sabe que está acabado.

— O que o fez mudar de opinião?

— Oh, Sam, ele nunca pensou seriamente que você ti­nha... — O sorriso de Spade deteve Polhaus. Deixou a frase incompleta, e disse: — Nós conseguimos uma folha de ante­cedentes de Thursby.

— Sim? Quem era ele?

Os olhos castanhos de Polhaus, pequenos e astutos, estu­daram o rosto de Spade. Este exclamou irritado: — Gostaria de saber sobre esse negócio a metade do que vocês, criaturas imaginosas, pensam que eu sei!

— E eu gostaria que nós todos soubéssemos — rosnou Polhaus. — Bem, a primeira informação a seu respeito é que ele era um malandro em São Luís. Foi preso uma porção de vezes por isto ou por aquilo, mas pertencia à quadrilha de Egan, por isso nunca lhe fizeram grande coisa. Não sei como foi que deixou esse asilo, mas pegaram-no uma vez em Nova Iorque por assassinato numa briga de jogo: sua namorada o entregou e esteve preso um ano, até que Fallon o soltou. Alguns anos depois passou umas férias em Joliet por atirar em outra companheira que o tinha acusado, mas depois disso juntou-se a Dixie Monahan e não teve mais dificuldades em sair cada vez que ia preso. Isso foi quando Dixie era quase tão impor­tante como Nick, o Grego, nas rodas de jogo de Chicago. Esse Thursby era guarda-costas de Dixie e fugiu com ele, quando Dixie se indispôs com os companheiros por causa de algumas dívidas que não pôde ou não quis pagar. Isso foi há alguns anos, ao tempo em que o Newport Beach Boating Club foi fechado. Ignoro se Dixie teve qualquer participação nisso. De qualquer jeito, esta foi a primeira vez que ele ou Thursby foram vistos, desde então.

— Dixie foi visto? — perguntou Spade.

Polhaus sacudiu a cabeça. — Não. — Seus olhos peque­nos tornaram-se penetrantes, observadores. — A não ser que você, ou alguém que você conheça, o tenha visto.

Spade recostou-se na cadeira e começou a fazer um ci­garro. — Eu não o vi — disse com brandura. — Isso tudo é novidade para mim.

— Acho que sim. — bufou Polhaus.

Spade sorriu-lhe: — Onde você colheu todas essas novi­dades a respeito de Thursby?

— Algumas estão nos registros. O resto, bem, juntamos aqui e ali.

— De Cairo, por exemplo? — Agora eram os olhos de Spade que tinham o olhar observador.

Polhaus descansou a xícara e sacudiu a cabeça. — Nem uma palavra sobre isso. Você envenenou esse camarada para nós.

Spade riu. — Você quer dizer que um par de canas de alta classe como você e Dundy baratinaram essa açucena durante toda a noite e não puderam tirar nada dele?

— O que você quer dizer com toda a noite? — protestou Polhaus. — Nós o apertamos menos de duas horas. Vimos que não estávamos chegando a coisa alguma e o mandamos em­bora.

Spade riu de novo e olhou o relógio, fez sinal a John e pediu a conta. — Tenho uma entrevista com o D. A. (comis­sário distrital) esta tarde — disse a Polhaus enquanto espe­ravam pelo troco.

— Ele mandou chamá-lo?

— Mandou.

Polhaus afastou a cadeira e pôs-se em pé, ostentando a sua figura de homem alto e barrigudo, sólido e impassível.

— Você não me fará nenhum favor — disse a Spade — se lhe contar o que eu disse.

 

Um rapaz magro e de orelhas salientes introduziu Spade no escritório do comissário distrital. Spade entrou sorrindo com desembaraço, e com desembaraço disse: — Alô, Bryan!

O comissário distrital Bryan levantou-se e estendeu-lhe a mão sobre a escrivaninha. Era um homem loiro, de estatura mediana, contando uns quarenta e cinco anos, talvez, com agressivos olhos azuis por trás do pince-nez preso a uma fita preta, uma boca rasgada de orador, e um queixo largo, com covinhas. — Como vai, Spade? — Sua voz vibrava de autori­dade latente. Apertaram as mãos e sentaram-se.

O comissário distrital pôs o dedo em um dos botões de madrepérola de uma maquininha com quatro botões, sobre a sua mesa, disse ao rapaz magro que abriu de novo a porta:

— Peça ao Sr. Thomas e Healy para virem aqui — e então, recostando-se na cadeira e inclinando-a para trás, dirigiu-se alegremente a Spade: — Você e a polícia não andam se entendendo muito bem, não é?

Spade fez um gesto negligente com os dedos da mão direita. — Coisa sem importância — disse em tom despreo­cupado. — Dundy fica muito exaltado.

A porta abriu-se para dar entrada a dois homens. Aquele a quem Spade disse — Alô, Thomas! — era atarracado, de uns trinta anos, queimado de sol, de traje e cabelos desarrumados. Bateu no ombro de Spade com a mão sardenta, e perguntou: — Como vão os negócios? — e sentou-se ao seu lado. O outro era mais moço e inexpressivo. Sentou-se um pouco afastado dos demais, balançando sobre os joelhos um bloco de estenógrafo, e segurando sobre ele um lápis verde.

Spade olhou em sua direção, deu uma gargalhada, e per­guntou a Bryan: — Qualquer coisa que eu diga, será utilizada contra mim?

O comissário sorriu. — Isso sempre é bom. — Tirou o pince-nez, examinou-o, e o pôs de novo sobre o nariz. Olhou para Spade através dos vidros. — Quem matou Thursby? — perguntou.

— Não sei — retrucou Spade.

Bryan esfregou a fita preta do pince-nez entre o polegar e os outros dedos, e disse pensativamente: — Talvez não sai­ba, mas podia apresentar sem dúvida uma excelente hipó­tese.

— Talvez, mas não a apresentaria. — O comissário er­gueu as sobrancelhas. — Eu não a apresentaria — repetiu, calmo. — Minha hipótese poderia ser excelente, ou poderia ser péssima, mas a Sra. Spade não criou nenhum filho tão maluco que fosse apresentar hipóteses diante de um comissá­rio distrital, um auxiliar e um estenógrafo.

— Por que não faria isso, se não tem nada a esconder?

— Todo mundo — respondeu Spade afavelmente — tem alguma coisa a esconder.

— E você tem...?

— Minhas hipóteses, por exemplo.

O comissário baixou os olhos para a escrivaninha, depois levantou-os para Spade, firmou melhor o pince-nez sobre o nariz, e disse: — Se prefere que o estenógrafo não esteja presente, podemos dispensá-lo. Foi apenas por uma questão de conveniência que o chamei aqui.

— Ele não me incomoda absolutamente — replicou Spade. — Estou pronto a consentir que escreva tudo o que eu disser, e assino embaixo.

— Não temos a intenção de lhe pedir que assine coisa nenhuma — assegurou Bryan. — Desejaria que não conside­rasse isto absolutamente como um interrogatório formal. E por favor não pense que eu dê algum crédito, e muito menos tenha convicção, nessas teorias que a polícia parece haver formado.

— Não?

— Nem um tostão.

Spade suspirou e cruzou as pernas. — Isso me satisfaz. — Procurou fumo e papel nos bolsos. — Qual é a sua teoria?

Bryan inclinou-se para a frente, na cadeira, com os olhos tão duros e brilhantes como as lentes que os cobriam. — Con­te-me para quem Archer estava seguindo Thursby e eu lhe contarei quem matou Thursby.

— Spade teve uma risada breve e zombeteira. — O senhor está tão enganado quanto Dundy.

— Não interprete mal minhas palavras, Spade — disse Bryan, batendo sobre a mesa com os nós dos dedos. — Não estou dizendo que o seu cliente matou Thursby ou que man­dou matá-lo, mas digo que, sabendo quem é o seu cliente, ou quem era, muito depressa saberei quem matou Thursby.

Spade acendeu o cigarro, tirou-o dos lábios, soltou a fu­maça, e falou como se estivesse embaraçado: — Não estou compreendendo bem.

— Não? Então faça de conta que ponho as coisas deste jeito: onde está Dixie Monahan?

O rosto de Spade conservou o ar perplexo: — Pondo desse jeito não adianta muito — disse. — Ainda não estou entendendo.

O comissário distrital tirou o pince-nez, agitou-o para dar força às palavras, e disse: — Nós sabemos que Thursby era o guarda-costas de Monahan, e partiu em companhia dele, quando Monahan achou prudente desaparecer de Chi­cago. Sabemos que Monahan cometeu um furto de uns duzen­tos mil dólares, fruto de apostas, quando desapareceu. Não sabemos... não sabemos ainda... quem eram seus credores. — Pôs o pince-nez de novo e teve um sorriso impertinente. — Mas todos nós sabemos o que costuma acontecer a um jogador que rouba, e ao seu guarda-costas, quando seus credores o descobrem.

Spade passou a língua pelos lábios e arreganhou-os sobre os dentes, num sorriso disforme. Seus olhos brilhavam sob as sobrancelhas descidas. O pescoço avermelhado formava uma saliência sobre a borda do colarinho. Sua voz saiu baixa, rouca e veemente. — Bem, o que é que o senhor acha? Que o matei a mando dos seus credores? Ou que apenas o descobri, e deixei que cometessem o assassinato?

— Não, não! — protestou o comissário. — Você me en­tendeu mal.

— Assim espero — disse Spade.

— Ele não quis dizer isso — interveio Thomas.

— Então o que ele quis dizer?

Bryan acenou com a mão. — Quis dizer que você podia ter sido envolvido nisso sem saber do que se tratava. Isso podia...

— Estou vendo — zombou Spade. — O senhor não acha que sou mau. Acha apenas que sou burro.

— Absurdo — insistiu Bryan: — Suponha que alguém o procurasse e o contratasse para encontrar Monahan, dizendo-lhe que tinha motivos para supor que ele estivesse na cidade. Esse alguém podia contar-lhe uma história completamente falsa, qualquer uma entre uma dúzia, ou mais, poderia servir, ou dizer que ele era um devedor que havia fugido, sem lhe dar qualquer detalhe. Como o senhor poderia dizer o que se es­condia por trás disso? Como poderia saber que não era um trabalho comum de detetive? E sob essas circunstâncias o senhor não podia ser tornado responsável pela sua partici­pação no crime a não ser — sua voz desceu a um tom mais impressivo e suas palavras saíram destacadas e distintas — que o senhor se tenha feito cúmplice ocultando o seu conhe­cimento da identidade dos assassinos, ou alguma informação que possa conduzi-los à prisão.

A irritação ia abandonando o rosto de Spade, e não transparecia mais na sua voz, quando perguntou: — Foi isso que quis dizer?

— Exatamente.

— Muito bem. Então não há ressentimentos. Mas o senhor está enganado.

— Prove.

Spade sacudiu a cabeça. — Não posso provar nada agora. Posso apenas contar.

— Então conte.

— Ninguém me« contratou para fazer qualquer coisa relativa a Dixie Monahan.

Bryan e Thomas trocaram um olhar. Os olhos de Bryan fixaram-se de novo em Spade, e ele disse: — Mas, como o senhor mesmo admite, alguém o contratou para fazer alguma coisa com relação ao seu guarda-costas Thursby.

— Sim, com relação ao seu ex-guarda-costas Thursby.

— Ex?

— Sim, ex.

— O senhor sabe que Thursby não estava mais associado a Monahan? Sabe disso, com certeza?

Spade estendeu a mão e deixou cair o toco do cigarro em um cinzeiro sobre a escrivaninha. Depois falou despreocupa-damente: — Não sei nada de positivo a não ser que o meu cliente não estava nem nunca esteve interessado em Monahan. Ouvi dizer que Thursby levou Monahan para fora do Oriente e perdeu-o.

O comissário distrital e seu auxiliar trocaram olhares de novo. Thomas, em um tom cuja naturalidade não escondia

completamente a excitação, disse: — Isso descobre um outro ângulo. Os amigos de Monahan podiam ter assassinado Thursby por ter este eliminado Monahan.

— Jogadores profissionais mortos não têm amigos — disse Spade.

— Isso abre duas novas pistas — considerou Bryan. Recostou-se na cadeira e fitou o teto durante largos segundos, depois endireitou-se rapidamente. Sua fisionomia de orador estava iluminada. — E reduz tudo a três coisas. Número um: Thursby foi assassinado pelos jogadores profissionais que Mo­nahan lesara em Chicago. Sem saber que Thursby tinha eli­minado Monahan, ou sem acreditar nisso, eles o mataram por ter estado associado a Monahan, ou para afastá-lo do cami­nho a fim de poderem chegar a Monahan, ou porque ele se tivesse recusado a conduzi-los até Monahan. Número dois: ele foi morto por amigos de Monahan. Ou número três: ele vendeu Monahan aos inimigos, depois frustrou a combinação, e eles o mataram.

— Ou número quatro — sugeriu Spade com um sorriso jovial: — ele morreu de velhice. O senhor não está falando sério, está?

Os dois homens fitaram os olhos em Spade, mas nenhum deles falou. Spade sorriu de um para o outro e sacudiu a cabeça com uma piedade zombeteira. — O senhor está com Arnold Rothstein na cabeça — disse.

Bryan fez estalar as costas da mão esquerda na palma da direita. — A solução está em uma dessas três categorias. — A autoridade de sua voz não era mais latente. A mão direita, que formaria um punho se não estivesse o indicador esten­dido, subiu e desceu para parar de chofre, quando o dedo atingiu a altura do peito de Spade. — E o senhor pode dar-nos a informação que nos habilitará a determinar a categoria.

— Sim? — disse Spade muito vagarosamente. Seu rosto estava sombrio. Tocou o lábio inferior com um dedo, olhou-o e coçou a nuca com ele. Pequenas rugas irritadas tinham aparecido em sua testa. Então respirou pesadamente pelo nariz, e sua voz transformou-se num rosnar mal-humorado.

— Você não desejaria a informação que lhe posso dar, Bryan. Não lhe seria de nenhuma utilidade. Ela reviraria todo esse cenário de vingança de jogadores.

Bryan empertigou-se na cadeira e endireitou os ombros. Sua voz era severa, sem ser ameaçadora. — Você não é o juiz dessa questão. Certo ou errado, não deixo de ser comissário distrital.

O lábio erguido de Spade deixou à mostra o seu canino.

— Pensei que fosse uma conversa sem formalidades.

— Sou um funcionário da justiça durante as vinte e quatro horas do dia — disse Bryan — e nenhuma formalidade ou ausência de formalidade justifica que você oculte de mim a prova de um crime, exceto, é claro — acenou significativa­mente com a cabeça — em alguns terrenos constitucionais.

— Quer dizer, se isso me pudesse comprometer? — per­guntou Spade. Sua voz estava calma, quase divertida, mas não o rosto. — Bem, eu tenho melhores terrenos que esse, ou terrenos que me convêm mais. Meus clientes têm direito a uma razoável soma de segredos. Talvez eu possa ser obrigado a falar diante do Tribunal ou mesmo diante do Chefe de Investigações, mas não fui chamado ainda a comparecer dian­te de nenhum deles, e é indubitável que não vou tornar públicos os negócios dos meus clientes, enquanto não for obrigado a isso. E depois, tanto o senhor como a polícia me acusaram de estar envolvido nos assassinatos da outra noite. Já tenho tido aborrecimentos com ambos. Pelo que estou vendo, minha melhor chance de me livrar das dificuldades que estão tentando me criar, é trazer os assassinos... derro­tados. E minha única probabilidade de apanhá-los e derrotá-los para trazê-los aqui é conservar-me afastado do senhor e da polícia, porque ninguém parece saber de que diabo se trata.

— Levantou-se e virou a cabeça por cima do ombro, para dirigir-se ao estenógrafo: — Pegando direito, filho? Ou estou indo muito depressa?

O estenógrafo fitou-o com olhos espantados, e replicou:

— Não, senhor, estou pegando bem.

— Continue assim — disse Spade, e voltou-se de novo para Bryan. — Agora, se quiser ir ao tribunal dizer-lhes que estou obstruindo a justiça e pedir-lhes que cassem minha li­cença, corra lá. Já tentou uma vez e não conseguiu nada exceto ser posto em ridículo por aí. — Pegou o chapéu.

— Mas olhe aqui... — começou Bryan.

— E não quero mais essas conversas sem formalidades. Não tenho nada para contar ao senhor ou à polícia, e estou exausto de ser insultado por todo maluco que seja funcionário municipal. Se quiser me ver mande me prender, ou mande me intimar, ou qualquer coisa, e eu virei com o meu advogado. — Pôs o chapéu e disse: — Nos veremos no inquérito, talvez — e saiu pisando duro.

 

                     O TERCEIRO ASSASSINATO

Spade entrou no Hotel Sutter e telefonou para o Alexan­dria. Gutman não estava, e não estava nenhum dos com­ponentes do seu grupo. Telefonou para o Belvedere. Cairo não estava, não tinha vindo durante todo o dia.

Dirigiu-se então ao escritório. Um homem tisnado e sujo, vestido de modo estranho, estava esperando na sala de en­trada. Effie Perine, indicando-o, disse: — Esse senhor deseja vê-lo, Sr. Spade.

Spade sorriu, cumprimentou, e abriu a porta interna: — Entre. — antes de acompanhar o homem, perguntou a Effie Perine: — Alguma notícia sobre o outro negócio?

— Não, senhor.

O homem tisnado era proprietário de um cinema, na Rua Market. Suspeitava que um dos caixas e um porteiro se ha­viam combinado para lesá-lo. Spade o fez apressar o fim da história, prometeu "incumbir-se do caso", pediu e recebeu cinquenta dólares, e livrou-se dele em menos de meia hora.

Quando a porta do corredor se fechou sobre o empresá­rio, Effie Perine entrou no escritório interno. Seu rosto mo­reno do sol estava inquieto e inquiridor. — Não a encontrou ainda? — perguntou.

Ele sacudiu a cabeça e continuou alisando de leve e em círculos, com as pontas dos dedos, a têmpora contundida.

— Como vai isso? — perguntou ela.

— Bem, mas tenho muita dor de cabeça.

Ela deu a volta por trás dele, abaixou-lhe a mão, e ali­sou-lhe a fronte com os dedos delgados. Ele encostou-se para trás até que a parte posterior da cabeça, ultrapassando a borda da cadeira, descansasse contra o peito da moça. — Você é um anjo — disse.

Ela inclinou a cabeça sobre a dele e olhou-o bem no rosto. — Você tem que achá-la, Sam. Já faz mais de um dia e ela...

Ele se revolveu na cadeira e interrompeu-a impaciente:

— Eu não tenho que fazer nada, mas se você me deixar descansar esta maldita cabeça por um ou dois minutos, irei descobri-la.

— Pobre cabeça — murmurou ela, e alisou-a em silêncio durante algum tempo. Depois perguntou: — Sabe onde ela está? Tem alguma idéia?

A campainha do telefone tocou. Spade pegou o aparelho:

— Alo... Sim, Sid, foi tudo bem, obrigado... Não... Sim. Ele engrossou mas eu também engrossei... Está alimentando o sonho de uma guerra entre jogadores profissionais... Bem, não nos beijamos ao n'os despedirmos. Disse-lhe o que pen­sava e saí... É alguma coisa com que você se preocupar... Está bem. Até logo. — Spade pousou o fone e recostou-se de novo na cadeira.

Effie Perine saiu detrás dele e colocou-se ao seu lado, perguntando: — Você acha que sabe onde ela está, Sam?

— Sei aonde ela foi — replicou mal-humorado.

— Aonde? — Ela estava agitada.

— Desceu ao navio que você viu incendiando.

Os olhos da moça se abriram até o centro castanho ficar cercado de branco. — Você esteve lá. — Não era uma per­gunta.

— Não estive — disse Spade.

— Sam — exclamou Effie Perine irritada — ela pode estar...

— Ela desceu lá — disse ele em voz áspera. — Não foi forçada. Foi lá, em vez de ir à sua casa, quando soube que o navio tinha chegado. Bem, o que há de mais? Devo andar correndo atrás dos meus clientes a implorar-lhes que me deixem auxiliá-los?

— Mas, Sam, quando eu lhe contei que o navio estava em chamas!

— Isso foi ao meio-dia, e eu tinha um encontro com Polhaus e outro com Bryan.

Ela fuzilou-lhe um olhar através das pálpebras semicerradas. — Sam Spade, você é o homem mais desprezível do mundo, quando quer. Só porque ela fez alguma coisa sem confiar em você, você fica aqui imóvel, sem fazer nada, quando sabe que ela está em perigo, quando sabe que ela podia ser...

O rosto de Spade avermelhou. Ele disse, obstinado: — Ela pode cuidar de si mesma, e sabe aonde vir procurar auxí­lio quando acha que precisa, e quando lhe convém.

— Isso é despeito — bradou a moça — só despeito! Está aborrecido porque ela agiu como lhe deu na telha, sem con­sultá-lo. Por que o consultaria? Você não é assim tão infle­xivelmente honesto, e não tem sido tão leal com ela, para que ela devesse confiar completamente em você.

— Chega desse assunto — disse Spade.

Seu tom de voz trouxe aos olhos irritados da moça uma passageira expressão de embaraço, mas ela empertigou a cabeça e essa expressão desapareceu. Tinha os lábios aperta­dos, quando disse: — Se você não for imediatamente, Sam, irei eu, e levarei junto a polícia. — Sua voz tremeu, quebrou-se, e se tornou frágil e chorosa. — Oh, Sam, vá!

Ele levantou-se, praguejando contra ela. Depois disse:

— Porra! Será um alívio maior para minha cabeça, do que ficar aqui sentado ouvindo você cacarejar. — Olhou o relógio.

— Você também pode fechar o escritório e ir para casa.

— Não vou. Vou esperar aqui até que você volte.

— Faça como quiser. — Pôs o chapéu, arrependeu-se, tirou-o de novo, e saiu levando-o na mão.

Uma hora e meia mais tarde, vinte minutos depois das cinco, Spade voltou. Estava alegre. Entrou, perguntando:

— O que a torna tão difícil de viver em harmonia, meu amor?

— Eu?

— Sim, você. — Pôs um dedo na ponta do nariz de Effie Perine, e achatou-o. Em seguida colocou as mãos sob os coto­velos da moça, levantou-a, e beijou-lhe o queixo. Desceu-a e perguntou: — Fez alguma coisa enquanto estive fora?

— Luke... como é o seu nome?... do Belvedere, chamou-o há uma meia hora, para lhe contar que Cairo voltou.

Spade mordeu os lábios com a boca fechada, virou-se com um passo longo e dirigiu-se para a porta. — Você a encontrou? — perguntou a moça.

— Quando voltar lhe conto — replicou ele sem parar, e saiu apressado.

 

Um táxi levou Spade ao Belvedere dentro de dez minutos, após a sua partida do escritório. Encontrou Luke no saguão. O detetive do hotel veio para ele sorrindo e sacudindo a cabeça. — Quinze minutos atrasado. O seu pássaro voou.

Spade disse um palavrão.

— Foi-se embora, com armas e bagagem — disse Luke. Tirou depois do bolso do colete uma agenda usada, mo­lhou o polegar na língua, virou as páginas e estendeu para Spade o livro aberto. — Aqui está o número do táxi que o levou. Foi o que pude fazer por você.

— Obrigado. — Spade copiou o número nas costas de um envelope. — Algum endereço?

— Não. Ele entrou apenas carregando uma valise, subiu, arrumou as malas e desceu com a bagagem, pagou a conta e tomou um táxi, e se mandou, sem ninguém conseguir ouvir o que disse ao chofer.

— E a mala dele?

O lábio inferior de Luke pendeu. — Caramba! — disse — Esqueci disso! Venha.

Subiram ao quarto de Cairo. A mala estava lá. Fechada, mas não à chave. Levantaram a tampa. Estava vazia. — Feliz viagem! — disse Luke.

Spade não disse nada.

 

Quando o detetive voltou ao seu escritório, Effie Perine olhou-o interrogativamente.

— Não o encontrei mais — rosnou Spade, e passou ao seu escritório particular.

Ela o seguiu. Ele sentou-se e começou a enrolar um cigarro. Também ela se sentou, na sua frente, sobre a escri­vaninha, e apoiou as pontas dos pés num canto da cadeira dele. — E sobre a Srta. O'Shaughnessy? — perguntou.

— Também não a encontrei mais, mas ela tinha estado lá.

— No "La Paloma"?

— "No La" é uma combinação horrível — disse ele.

— Não torre, Sam. Conte-me tudo.

Ele chegou fogo ao cigarro, pôs o isqueiro no bolso, deu-lhe umas palmadinhas nas pernas. — Sim, no "La Pa­loma". Ela desceu ontem lá, um pouco depois do meio-dia. — Contraiu as sobrancelhas. — Isso significa que ela foi direto para lá, após ter deixado o carro, no armazém do cais. É apenas alguns pilares adiante. O capitão não estava a bordo. Seu nome é Jacobi, e ela o procurou pelo nome. Ele estava na cidade, tratando de negócios. Isso significa que não a espe­rava, ou pelo menos não a esperava àquela hora. Ela esperou até à sua volta, às quatro. Passaram o tempo daí até à hora da refeição no camarote dele, e comeram juntos. — Spade as­pirou e exalou a fumaça, virou a cabeça de lado para cuspir um fragmento amarelo de fumo que lhe ficara preso ao lábio, e continuou: — Depois da refeição o Capitão Jacobi recebeu mais três visitantes. Um deles foi Gutman, o outro Cairo, e o terceiro foi o garoto que deu ontem a você o recado de Gutman. Os três chegaram juntos enquanto Brigid estava lá, e os cinco reunidos tiveram uma longa conversação no camarote do capitão. É difícil arrancar alguma coisa da tripulação, mas eles tiveram uma briga, e ali por volta das onze da noite houve um tiro na cabina do capitão. O vigia bateu lá, mas o capitão foi encontrá-lo do lado de fora, e disse-lhe que ia tudo bem. Há um buraco recente de bala em um canto do camarote, bastante alto para parecer provável que ela não tenha atingido ninguém. Pelo que pude saber, houve apenas um tiro. Mas não foi grande coisa o que pude saber. — Fez uma carranca e tragou novamente. — Bem, retiraram-se ali pela meia-noite, o capitão junto com os quatro visitantes, e todos eles pareciam estar caminhando sem dificuldade. Soube isso pelo vigia. Não consegui apanhar os guardas da alfândega, que na ocasião estavam de serviço lá. E é só. O capitão não voltou depois disso. Não compareceu a um encontro que tinha ao meio-dia com uns agentes de navegação, nem o encontraram para o avisar do incêndio.

— E o incêndio? — perguntou ele.

Spade encolheu os ombros. — Não sei. Foi descoberto no porão, do lado da popa, na parte posterior, já de manhã. As probabilidades são de ter começado ontem, a qualquer hora. Eles o extinguiram completamente, apesar de ter causado bastante dano. Ninguém quis falar muito sobre isso, enquanto o capitão está ausente. E o...

A porta do corredor abriu-se. Spade fechou a boca. Effie Perine pulou da escrivaninha, mas um homem abriu a porta de comunicação antes que ela pudesse alcançá-la.

— Onde está Spade? — perguntou o homem. Sua voz fez Spade endireitar-se na cadeira, vigilante. Era uma voz áspera e rascante de agonia, e se esforçava para evitar que as palavras fossem sufocadas pelo gorgolejar que se misturava a elas.

Effie Perine, assustada, saiu do caminho. Ele parou na porta, com o chapéu mole amassado entre a cabeça e a parte superior do batente: tinha mais de dois metros de altura. Um sobretudo preto, longo e justo, abotoado do pescoço aos joelhos, exagerava sua magreza. Os ombros sobressaíam, al­tos, finos, angulosos. O rosto ossudo, maltratado pelo tempo, envelhecido, tinha a cor da areia úmida, e estava molhado de suor nas faces e no queixo. Seus olhos estavam sombrios e congestionados, e alucinados, sobre as pálpebras inferiores, que pendiam mostrando a membrana vermelha por dentro. Apertado contra o lado esquerdo do peito por um braço ves­tido de preto e terminando numa garra amarelada, tinha um volume embrulhado em papel pardo e amarrado com um barbante, um elipsóide um pouco menor que uma bola de fu­tebol.

O homem alto conservou-se na porta, e nada demons­trava que tivesse visto Spade. Disse: — Você sabe — e um gorgolejo subiu-lhe à garganta e afogou as outras palavras. Pôs a mão livre sobre a que segurava o pacote. Conservando o corpo obstinadamente ereto, sem estender as mãos para amortecer a queda, tombou para a frente, como uma árvore.

Spade, rápido e com o rosto impenetrável, pulou da ca­deira e amparou-o na queda. Quando o segurou, a boca abriu-se dando passagem a um pequeno jato de sangue, e o embrulho de papel pardo escapou-lhe das mãos e rolou pelo assoalho até bater num pé da escrivaninha. Então seus joelhos se dobraram e ele vergou sobre a cintura, e o corpo magro afrouxou dentro do sobretudo, pendendo de tal forma nos braços de Spade que este não pôde mais mantê-lo. Spade abaixou-o cautelosamente até ficar deitado no chão, sobre o lado esquerdo. Os olhos do homem, sombrios e congestiona­dos, mas não mais alucinados, estavam muito parados e aber­tos. Tinha a boca aberta como quando o sangue jorrara, mas não saía mais sangue, e todo o seu longo corpo estava tão imóvel como o chão em que jazia. — Tranque a porta — disse Spade.

Enquanto Effie Perine, batendo os dentes, procurava tateando a fechadura da porta do corredor, Spade ajoelhou-se ao lado do homem, virou-o de costas, e correu a mão por dentro do seu sobretudo. Quando a retirou, ela saiu man­chada de sangue. A vista desse sangue não trouxe a menor nem mais passageira modificação ao rosto de Spade. Levan­tando a mão ensangüentada para que em nada tocasse, tirou com a outra o isqueiro do bolso, acendeu-o, e chegou a chama primeiro junto de um, depois do outro olho do homem. Os olhos, pálpebras, retina, íris e pupilas continuaram insensí­veis, imóveis. Spade apagou a chama, e tornou a pôr o is­queiro no bolso. De joelhos rodeou o morto até ficar ao seu lado. e usando a mão limpa desabotoou e abriu o sobretudo. A parte interna estava molhada de sangue e o colete azul, de peito duplo, por dentro, estava encharcado. As lapelas do colete, onde cruzavam sobre o peito, e ambos os lados do paletó, imediatamente abaixo desse ponto, estavam furados por buracos úmidos e dilacerados. Spade levantou-se e foi ao lavatório, na sala interna.

Effie Perine, pálida e tremula, mantendo-se firme graças à mão apoiada no trinco da porta do corredor e às costas contra o vidro, murmurou: — Está... ele está... ?

— Sim. Alvejado no peito, talvez uma meia dúzia de vezes. — Spade começou a lavar as mãos.

— — Nós não devíamos...? — começou ela, mas ele cortou:

— É tarde demais agora para um médico, e tenho que pensar antes de fazermos qualquer coisa. — Acabou de lavar as mãos e começou a lavar a pia. — Ele não podia ter vindo de muito longe com isso dentro do corpo. Se ele... Por que não pôde resistir o suficiente para dizer alguma coisa? — Spade franziu as sobrancelhas olhando para a moça, lavou de novo as mãos, e pegou uma toalha. — Reanime-se. Não vá me adoecer agora! — Então atirou a toalha, e correu os dedos pelo cabelo.

— Vamos dar uma olhada nesse pacote.

Spade entrou de novo no escritório interno, pulou por sobre as pernas do morto, e apanhou o embrulho de papel pardo. Quando sentiu o peso, seus olhos brilharam. Colo­cou-o sobre a escrivaninha, virando-o de forma que o nó do barbante ficasse para cima. O nó estava duro e apertado. Tirou o canivete e cortou a corda. A moça deixara a porta e desviando-se do corpo do homem, com o rosto virado para o outro lado, aproximou-se de Spade. Enquanto ali estava — com as mãos sobre um canto da escrivaninha — vendo-o puxar o barbante solto e afastar o papel pardo, a excitação começou a suplantar a repugnância no seu rosto. — Você pensa que é? — sussurrou.

— Logo saberemos — disse Spade, os enormes dedos ocupados com o invólucro interno de grosso papel cinzento, da espessura de três folhas, que a remoção do papel pardo tinha revelado. Seu rosto estava duro e sombrio. Os olhos brilhavam. Quando acabou de se desembaraçar do papel cin­zento tinha entre as mãos um embrulho de papel sanfonado, no feitio de um ovo, formando um acolchoado bem apertado. Seus dedos rasgaram o acolchoado e então apareceu a figura de um pássaro, de 30 centímetros de altura, preto como carvão e brilhante nos lugares onde o verniz não estava deslus­trado pela farinha da madeira ou pelos fragmentos do papel sanfonado.

Spade riu-se. Pôs uma das mãos por baixo do pássaro. Seus dedos separados revelavam direito de propriedade no modo de se curvarem. Colocou então o outro braço em volta de Effie Perine, e apertou-lhe o corpo contra o seu. — Con­quistamos a maldita coisa, anjo — disse.

— Ai! — gemeu ela — você está me machucando.

Ele retirou o braço, pegou o pássaro com as duas mãos, e sacudiu-o para despregar os fragmentos de papel aderentes. Então recuou, segurando-o na sua frente, e soprou-lhe a poei­ra, olhando-o com ar triunfante.

Effie Perine fez uma careta de horror e deu um grito agudo apontando para o pé de Spade. Ele olhou para o pé. Seu último passo ao recuar pusera o calcanhar esquerdo em contato com a mão do morto, apertando um pedaço de carne, de um lado da palma, entre o calcanhar e o chão. Spade puxou o pé com uma contração rápida. A campainha do tele­fone tocou.

Ele fez um sinal com a cabeça para a moça. Ela voltou-se para a escrivaninha, e tomou o fone. — Alo... Sim... Quem?... Oh, sim! — Seus olhos se arregalaram. — Sim... sim... Não desligue... — Sua boca de repente se escancarou numa expressão de susto. Gritou: — Alô! Alô! Alô! — Depois levantou e abaixou ruidosamente o gancho e gritou — Alô! — duas vezes. Então teve um soluço e rodou nos calcanhares para encarar Spade, que estava agora bem junto dela. — Era a Srta. O'Shaughnessy — disse com violência. — Ela precisa de você. Está no Alexandria... em perigo. Sua voz estava... oh, estava horrível, Sam! E aconteceu-lhe qualquer coisa an­tes que pudesse terminar. Vá ajudá-la, Sam!

Spade pôs o falcão sobre a mesa e enrugou a testa com ar sombrio. — Tenho que cuidar deste camarada primeiro — disse, apontando o polegar para o cadáver magro sobre o assoalho.

Ela bateu-lhe no peito com os punhos, gritando: — Não, não! Você tem que ir socorrê-la. Você não compreende, Sam? Ele tinha o objeto, que era dela, e veio procurar você, tra­zendo-o. Você não está compreendendo? Ele a estava auxi­liando e foi morto por eles e agora ela está... Oh, você tem que ir!

— Está bem. — Spade afastou-se e curvou-se sobre a escrivaninha, pôs de novo o pássaro preto no ninho de papel sanfonado, enrolou-o no papel, trabalhando com rapidez, fazendo um pacote maior e malfeito. — Assim que eu sair, telefone à polícia. Conte-lhes como aconteceu, mas não cite nomes. Você não sabe. Eu recebi o telefonema e disse a você que tinha que sair, mas não disse aonde ia. — Praguejou contra o barbante, endireitou-o com um puxão, e começou a amarrar o pacote. — Esqueça este objeto. Conte como acon­teceu, mas esqueça que ele tinha um embrulho. — Mordeu o lábio inferior. — A não ser que a apanhem de surpresa. Se parecerem ter conhecimento do assunto, você terá que admi­tir. Mas não é provável. Nesse caso, eu levei o embrulho comigo, sem abri-lo. — Acabou de atar o nó e endireitou-se com o pacote sob o braço esquerdo. — Entenda bem. Tudo como aconteceu, mas sem este bibelô, a não ser que já tenham conhecimento dele. Não negue nada, só não o mencione. E fui eu que recebi o telefonema, não foi você. E você não sabe nada a respeito de ninguém que tenha qualquer relação com este camarada. Você não sabe nada sobre ele, e não pode falar sobre os meus negócios antes de me ver. Compreendeu?

— Compreendi, Sam. Quem... você sabe quem é ele? Spade sorriu ferozmente. — Não, mas eu diria que é o

Capitão Jacobi, comandante do "La Paloma". — Pegou o chapéu e o pôs na cabeça, olhou pensativamente para o morto, primeiro, depois pela sala.

— Vá depressa, Sam — pediu a moça.

— Sim — disse ele abstraído — já vou. Não seria mau tirar esses pedaços de papel do chão, antes de a polícia chegar.

. E talvez fosse bom tentar segurar Sid. Não. — Coçou o queixo. — Nós o deixaremos fora por enquanto. Seria melhor. Eu conservaria a porta trancada até eles chegarem. — Tirou a mão do queixo e alisou-lhe a face. — Você é um homem e tanto, querida — disse, e saiu.

 

                   NOITE DE SÃBADO

Carregando displicentemente o embrulho sob o braço, com o andar rápido, denotando apenas precaução na inces­sante mobilidade dos olhos, Spade dirigiu-se, em parte por uma viela e um beco estreito, do edifício do seu escritório nas Ruas Kearny e Post, onde pegou um táxi que passava. O táxi levou-o à estação terminal Pickwick na Rua Cinco. Lá regis­trou o pássaro na Sala de Volumes, pôs o talão de registro em um envelope selado, escreveu nele "M. F. Holland" e o nú­mero de uma caixa postal de São Francisco, fechou-o, e o jogou numa caixa do correio. Do ponto terminal outro táxi levou-o ao Hotel Alexandria.

Subiu ao apartamento 12-C e bateu na porta. Esta foi aberta, quando ele bateu a segunda vez, por uma mocinha de cabelos loiros, trajando um vestido de soirée amarelo bri­lhante — uma mocinha com o rosto pálido e embaraçado, e que se agarrou desesperadamente ao trinco interno da porta com as duas mãos, e disse ofegante: — Sr. Spade?

— Sim — disse Spade, e segurou-a quando ela pendeu.

Seu corpo curvou-se para trás sobre o braço dele, e a cabeça descaiu tanto que o cabelo loiro ficou pendurado, e o colo esguio se tornou uma curva firme do queixo ao peito. Spade escorregou o braço que a amparava mais para cima, nas suas costas, e inclinou-se para passar o outro braço sob os seus joelhos, mas ela estremeceu, resistindo, e entre os lábios que mal se moviam, as palavras saíram indistintas: — Não! Faç... me and..!

Spade a fez andar. Deu um pontapé na porta, fechando-a, e a fez ir e voltar na sala atapetada de verde, de uma parede à outra. Com um dos braços rodeando o corpo franzino, a mão sob a axila, a outra mão agarrando-lhe o outro braço, firmando-a quando tropeçava, impedindo-a de se dobrar, animando-a para a frente, fez as pernas vacilantes suportarem todo o peso de que eram capazes. Andaram e tornaram a andar, a moça titubeante, com passos desordenados, Spade firme nas plantas dos pés, sem perder o equilíbrio com os cambaleios dela. O rosto da moça estava branco como giz e o olhar turvo, o dele carrancudo; tinha os olhos aguçados, para observarem tudo ao mesmo tempo.

Ele falou-lhe numa voz monótona: — Esse é o remédio. Esquerda, direita, esquerda, direita. Esse é o remédio. Um, dois, três, quatro, um dois, três, direita, volver. — Sacudiu-a, quando viraram junto à parede. — Vire de novo. Um, dois, três, quatro, levante a cabeça. Este é o remédio. Isso mesmo. Esquerda, direita, esquerda, direita. Agora vire de novo. — Sacudiu-a outra vez. — É isso. Andar, andar, andar, andar. Um, dois, três, quatro. Agora vamos dar a volta. — Sacudiu-a com mais força, e aumentou o passo. — É este o truque. Es­querda, direita, esquerda, direita. Nós temos pressa. Um, dois, três...

Ela teve um estremecimento de repugnância, e engoliu com ruído. Spade começou a esfregar-lhe o braço e o lado, e pôs a boca mais perto do seu ouvido. — Muito bem. Vai indo muito bem. Um, dois, três, quatro. Mais depressa, mais depressa, mais depressa. Isso. Anda, anda, anda, anda. Le­vanta e abaixa. Esse é o remédio. Agora vira. Esquerda, di­reita, esquerda, direita. O que eles fizeram, narcotizaram-na? Com a mesma droga que me deram?

Suas pálpebras se levantaram por um instante com uma contração, descobrindo os olhos embaçados de cor castanho-dourada, e ela conseguiu dizer a palavra — Sim — sem a consoante final.

Continuaram andando, a moça quase correndo agora para acompanhar Spade, Spade dando palmadas e fazendo massagem na sua carne através da seda amarela, com as duas mãos, falando sempre, enquanto seus olhos continuavam pe­netrantes, atentos e distantes. — Esquerda, direita, esquerda, direita, vire. Isso. Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro. Levante o queixo. Esse é o remédio. Um, dois... — Suas pálpebras subiram de novo, uma escassa fração de centí­metro, e sob elas seus olhos se moveram debilmente de um lado para o outro. — Muito bem — disse ele em voz enérgica, abandonando o tom monótono. — Conserve-os abertos. Abra-os bastante, bastante! — Sacudiu-a. Ela teve um queixume de protesto, mas suas pálpebras subiram mais apesar dos olhos se conservarem apagados. Levantou a mão e bateu-lhe nas faces uma meia dúzia de vezes, numa sucessão rápida. Ela gemeu de novo e tentou fugir-lhe. O braço dele segurou-a e arrastou-a ao seu lado de uma parede à outra. — Continue andando — ordenou em voz ríspida, e depois: — Quem é você?

O "Rhea Gutman" que ela disse saiu pastoso mas inte­ligível.

— A filha?

— Sim. — Agora já conseguia dizer a palavra completa.

— Onde está Brigid?

Ela torceu-se convulsivamente nos seus braços e pegou uma das mãos entre as suas. Ele puxou a mão com rapidez e olhou-a. Através das suas costas estava um arranhão fino e vermelho, de uns cinco centímetros de comprimento. — Que é isso? — grunhiu e examinou-lhe as mãos. A esquerda estava vazia. Na direita, quando ela a forçou a abrir, encontrava-se um alfinete de dez centímetros, de aço, com cabeça de jade. — Que é isso? grunhiu de novo, e ergueu o alfinete em frente aos olhos dela.

Quando ela viu o alfinete, choramingou e abriu o vestido. Afastou o casado de pijama, de cor creme, que estava por baixo, e mostrou o corpo sob o seio esquerdo — a carne branca atravessada por linhas finas e rubras, salpicada de pontos vermelhos, onde o alfinete a tinha arranhado e pon­tilhado. — Para ficar acordada... andar... até o senhor vir... Ela disse que o senhor viria... demorou tanto. — E pendeu.

Spade apertou o braço à sua volta e disse: — Ande.

Ela lutou contra o braço dele, virando-se para encará-lo de novo. — Não... contei-lhe... dormir... salve-a...

— Brigid? — perguntou ele.

— Sim... levaram-na... Bur-Burlingame... vinte e seis Ancho... depressa... tarde demais... — A cabeça pendeu-lhe sobre o ombro.

Spade levanta-a com rispidez. — Quem a levou para lá? Seu pai?

— Sim... Wilmer... Cairo. — Ela se retorceu e suas pál­pebras palpitaram, mas não se abriram — ... matá-la. — Sua cabeça caiu de novo e de novo ele a levantou.

— Quem atirou em Jacobi?

Ela não pareceu ouvir a pergunta. Tentou penosamente conservar a cabeça erguida, abrir os olhos. Depois resmungou entre dentes: — Vá... ela...

Ele sacudiu-a brutalmente. — Fique acordada até o mé­dico chegar.

O medo abriu-lhe os olhos e afastou por um momento as sombras do seu rosto. — Não, não — exclamou com voz pastosa — meu pai... me mata... juro que não... ele ficaria sabendo... eu fiz... por ela... prometa... não quero... dor­mir. .. tudo bem... amanhã cedo...

Ele sacudiu-a de novo. — Você tem certeza de que pode eliminar o narcótico sem dificuldade?

— Sim. — Sua cabeça pendeu outra vez.

— Onde está sua cama?

Ela tentou levantar a mão, mas o esforço tornou-se-lhe excessivo antes mesmo de sair da direção do tapete. Com um suspiro de criança cansada deixou o corpo todo afrouxar, e se abater. Spade suspendeu-a nos braços quando caía desfale­cida e segurando-a sem dificuldade contra o peito, dirigiu-se à mais próxima das três portas. Virou o trinco o suficiente para soltar a lingüeta, empurrou a porta com o pé, e entrou num corredor que dava para um quarto de dormir, passando pela porta do banheiro. Ao passar olhou para dentro, viu que estava vazio, e carregou a moça para o quarto. Não havia ninguém. As roupas que estavam à vista e os objetos sobre a cômoda diziam que era um quarto de homem. Spade carregou de novo a moça para a sala atapetada de verde, e experi­mentou a porta oposta. Passou através dela para outro corre­dor, passou por outro banheiro vazio, e entrou num quarto com acessórios femininos. Aí puxou as roupas da cama e deitou a moça, tirou-lhe os sapatos, levantou-a um pouco para fazer escorrer o vestido amarelo de soirée fora do corpo, pôs-lhe um travesseiro por baixo da cabeça, e cobriu-a. Então abriu as duas janelas do quarto e ficou de costas voltadas para elas olhando a moça adormecida. Sua respiração era pesada, mas não perturbada. Ele enrugou a testa e olhou em volta, apertando os lábios. O crepúsculo ia escurecendo o quarto.

Conservou-se aí, na luz esmorecente, por uns cinco minu­tos, talvez. Finalmente sacudiu com impaciência os ombros robustos e abaulados e saiu, deixando destrancada a porta externa do apartamento.

Dirigiu-se à estação da Pacific Telephone and Telegraph Company, na Rua Powell, e chamou Davenport 2020. — Hospital de Emergência, por favor... Alo, há uma moça no apartamento doze C no Hotel Alexandria, que foi narcoti­zada... Sim, é melhor mandar alguém vê-la... Aqui é o Sr. Hooper, do Alexandria.

Pôs o fone no gancho, e riu. Chamou outro número: — Alô, Frank. Aqui é Sam Spade... Pode me arranjar um carro com um chofer que saiba ficar de bico calado?... Para descer já a península... Apenas umas duas horas... Muito bem. Mande-o me pegar no John, na Rua Ellis, assim que puder. — Depois chamou um outro número, o do seu escri­tório, segurou o receptor no ouvido por um pouco de tempo sem dizer nada, e tornou a colocá-lo no gancho.

Dirigiu-se então ao grill do John, fez o garçom apressar o seu pedido de costeletas, batatas assadas e rodelas de tomates, comeu apressadamente, e estava fumando um cigarro e to­mando o café, quando um moço entroncado, de boné escocês posto de través sobre os olhos claros e com um rosto teimoso e vivo, entrou no grill e dirigiu-se à sua mesa. — Tudo pronto, Sr. Spade. O carango está cheio de gasolina e louco pra rodar.

— Ótimo. — Spade esvaziou a xícara, e saiu em compa­nhia do homem entroncado. — Sabe onde fica a avenida, ou estrada, ou bulevar Ancho, em Burlingame?

— Não, mas se existe, nós achamos.

— Vamos então — disse Spade sentando-se ao lado do chofer no Cadillac escuro. — Vinte e seis é o número, e quanto mais depressa melhor, mas não podemos parar na porta.

— Certo.

Andaram uma meia dúzia de quarteirões em silêncio. Então o chofer disse: — Seu sócio foi assassinado, Sr. Spade?

— Hum-hum.

O chofer deu uma gargalhada. — É uma profissão dura. Pode crer no que digo.

— Bom, choferes de praça também não vivem toda a vida.

— Talvez seja verdade, mas assim mesmo será uma sur­presa para mim se eu não viver.

Spade olhou para a frente sem fixar os olhos em ponto algum, e daí por diante respondeu apenas por monossílabos distraídos, até o chofer se cansar de procurar conversa.

Numa farmácia de Burlingame ensinaram como chegar à Avenida Ancho. Dez minutos depois, o chofer parou o seda perto de uma esquina escura, apagou as luzes, e acenou com a mão para o quarteirão seguinte. — Aí está ela — disse. — Deve ser do outro lado, talvez a terceira ou quarta casa.

— Muito bem — disse Spade, e saltou do carro. — Con­serve o motor em movimento. Talvez precisemos partir às pressas.

Atravessou a rua e subiu do outro lado. Ao longe, bri­lhava uma luz isolada. Luzes mais vivas pontilhavam a noite de um lado e do outro, onde as casas eram na proporção de uma meia dúzia por quarteirão. Uma lua alta e fina estava tão fria e débil como aquela distante luz da rua. Um rádio zumbia através das janelas abertas de uma casa, do outro lado.

Em frente à segunda casa a partir da esquina, Spade parou. Num dos pilares salientes, fora de toda a proporção com a cerca que os ladeava, um 2 e um 6 de metal branco absorviam toda a luz à sua volta. Um cartaz branco e qua­drado estava pregado por cima deles. Chegando o rosto pró­ximo, Spade pôde ver que tinha a indicação "Para Vender ou Alugar". Não havia portão entre os pilares. Percorreu o pas­seio de cimento em direção à casa, e ficou parado junto aos degraus do alpendre durante um longo momento. Nenhum ruído se ouvia dentro. Ela estava toda escura, com exceção de um outro cartaz claro e quadrado, pregado na porta. Spade subiu até à porta e escutou. Não ouviu nada. Tentou enxergar através do vidro da porta. Não havia cortina para impedir-lhe o olhar, mas havia a escuridão interna. Levantou-se nas pontas dos pés junto a uma janela, depois junto a outra. Elas, assim como a porta, estavam vedadas apenas pela escuridão. Então experimentou as duas janelas. Estavam fechadas. Experi­mentou a porta. Estava trancada.

Spade deixou o alpendre e, andando cautelosamente so­bre campo desconhecido e escuro, passou entre o mato, em volta da casa. As janelas laterais eram altas demais para serem alcançadas do chão. A porta e a única janela dos fundos que pôde alcançar estavam trancadas. Voltou para o pilar e, protegendo a chama com as mãos, suspendeu o isqueiro até a indicação de "Para Vender ou Alugar". Trazia impresso o nome e o endereço de um negociante de carvão de San Mateo, e mais uma linha a lápis azul: "Chaves no 31".

Spade voltou para o seda e perguntou ao chofer: — Tem uma lanterna?

— Tenho. — Deu a Spade. — Posso ajudar em alguma coisa?

— Talvez. — Spade entrou no seda. — Vamos ao número trinta e um. Pode acender as luzes.

O número 31 era uma casa quadrada e cinzenta, do lado oposto, mas um pouco mais acima do 26. Brilhavam luzes nas janelas de baixo. Spade subiu ao alpendre e tocou a campai­nha. Uma menina de cabelos escuros, de quatorze ou quinze anos, abriu a porta. Spade, inclinando-se e sorrindo, disse: — Eu desejava a chave do número vinte e seis.

— Vou chamar papai — respondeu ela, e entrou cha­mando: — Papai!

Um homem gordo e vermelho, calvo e de grandes bigo­des, apareceu trazendo um jornal.

— Eu desejava a chave do vinte e seis — falou Spade.

O homem gordo pareceu indeciso. Disse: — Não tem luz. O senhor não pode enxergar nada.

Spade apalpou o bolso: — Tenho uma lanterna.

O outro pareceu indeciso. Tossiu embaraçado, e amar­rotou o jornal que tinha na mão. Spade mostrou-lhe um dos seus cartões profissionais, colocou-o de novo no bolso, e disse em voz baixa: — Tivemos uma denúncia de que pode haver alguma coisa oculta lá.

A voz e o rosto do gordo mostraram-se mais alegres.

— Espere um minuto — disse. — Eu vou junto.

Um momento depois ele voltou trazendo uma chave de latão, presa a uma argola preta e Vermelha. Spade fez sinal com a cabeça para o chofer quando passaram pelo carro, e o chofer alcançou-os. — Alguém esteve vendo a casa ultima­mente? — perguntou Spade.

— Não que eu saiba. Há uns dois meses que ninguém me procura para pedir as chaves. — Caminhou na frente com a chave, até terem subido ao alpendre. Então enfiou a chave na mão de Spade, resmungou — Isso aí — e afastou-se.

Spade abriu a porta e empurrou-a. Estava tudo silencioso e escuro. Segurando a lanterna na mão esquerda sem acendê-la, o detetive entrou. O chofer entrou logo atrás, e depois, a uma pequena distância, o homem gordo seguiu-os. Revista­ram a casa de cima a baixo, primeiro cautelosamente, depois, não encontrando nada, audaciosamente. A casa estava vazia — inegavelmente vazia — e não havia nada que indicasse ter sido visitada desde muitas semanas.

 

Dizendo — Obrigado, é só isso — Spade deixou o seda em frente ao Alexandria. Entrou no hotel e dirigiu-se à escri­vaninha, onde um moço alto, de rosto moreno e grave o cum­primentou: — Boa noite, Sr. Spade.

— Boa noite. — Spade conduziu o moço para um canto.

— Esses Gutman, lá em cima no doze C, estão aí?

O moço replicou — Não — lançando um olhar rápido para Spade. Depois afastou os olhos, hesitou, olhou de novo para Spade, e murmurou: — Aconteceu uma coisa engraçada com relação a eles esta noite, Sr. Spade. Alguém telefonou ao Hospital de Emergência e disse-lhes que havia uma moça doente lá em cima.

— E não havia?

— Oh, não, não havia ninguém lá em cima. Eles saíram cedo, à noite.

— Bem, esses engraçadinhos precisam se divertir. Obri­gado.

Dirigiu-se a uma cabina telefônica, chamou um número:

— Alô... Sra. Perine?... Effie está?... Sim, por obséquio... Obrigado... Alô, anjo! Quais são as boas novas?... Ótimo! Espere. Eu estarei aí em vinte minutos... Muito bem...

 

Meia hora mais tarde Spade tocou, a campainha de uma casa de tijolos, de dois andares, na Nona Avenida. Effie Perine abriu a porta. Seu rosto juvenil estava fatigado e sorri­dente. — Alo, chefe — disse. — Entre. — E avisou em voz baixa: — Se mamãe lhe disser qualquer coisa, Sam, tenha paciência com ela. Ela está desorientada. — Spade sorriu tranqüilizando-a e dando-lhe umas palmadinhas no ombro. Ela pegou-lhe no braço. — Srta. O'Shaughnessy?

— Não. Caí numa armadilha. Tem certeza que era a voz dela?

— Tenho.

Ele fez uma careta de desagrado. — Bem, era uma cilada.

Ela conduziu-o a uma alegre sala de estar, suspirou e escorregou para o canto de um sofá, sorrindo-lhe alegremente por entre o cansaço. Ele sentou-se ao seu lado e perguntou: — Tudo correu bem? Nada dito sobre o pacote?

— Nada. Contei-lhes o que você me disse para contar, e pareceram acreditar que o telefonema tinha relação com isso, e que você estava fora, esclarecendo a coisa.

— Dundy esteve lá?

— Não. Hoff e O'Garr e alguns outros que eu não co­nhecia. Falei também com o capitão.

— Levaram você ao comissariado?

— Levaram sim, e me fizeram um mundo de perguntas, mas era tudo, você sabe, formalidade.

Spade esfregou as mãos. — Ótimo — disse, e depois enrugou a testa — apesar de eu achar que eles inventam uma porção delas para me fazerem quando nos encontrarmos. Pelo menos esse maldito Dundy vai fazê-las, e Bryan também. — Encolheu os ombros. — Alguém que você conheça, fora a polícia, esteve lá?

— Esteve. — Ela endireitou-se no sofá. — Aquele rapaz, o que trouxe o recado de Gutman, estava lá? Não entrou, mas a polícia deixou a porta do corredor aberta e vi-o parado aí.

— Você não disse nada?

— Oh, não. Você me preveniu que não dissesse. Assim não lhe dei atenção, e quando olhei outra vez, ele já tinha saído.

— Que sorte para você, filha, que os policiais tivessem chegado primeiro — sorriu Spade.

— Por quê?

— É um miserável aquele rapaz, um perverso. O morto era Jacobi?

— Era.

Ele apertou-lhe as mãos e levantou-se. — Vou-me em­bora. Você faria melhor indo para a cama. Está exausta. Ela levantou-se. — Sam, o que é... ? Ele atalhou as palavras pondo-lhe a mão sobre a boca.

— Dê um tempo até segunda-feira. Quero cair fora antes que sua mãe me apanhe e me censure por estar arrastando sua ovelhinha através das sarjetas.

 

Passavam alguns minutos da meia-noite quando Spade chegou a sua casa. Pôs a chave na fechadura da porta da rua. Ouviu-se o tique-taque rápido de saltos de sapato no passeio, atrás dele. Largou a chave e virou. Brigid O'Shaughnessy subiu correndo os degraus em sua direção. Pôs os braços em sua volta e pendurou-se a ele, ofegante: — Oh, pensei que você nunca chegasse! — Seu rosto estava perturbado, desvai­rado, agitado pelos tremores que a sacudiam dos pés à ca­beça. Com a mão livre ele procurou a chave de novo, abriu a porta, e quase a carregou para dentro.

— Esteve esperando? — perguntou.

— Estive. — Os arquejos espaçavam-lhe as palavras.

— Em uma... porta... subindo a... rua.

— Pode ir sozinha? Ou preciso carregá-la?

Ela sacudiu a cabeça contra o seu ombro. — Ficarei... boa... quando... chegar onde... possa... me sentar.

Subiram pelo elevador para o andar de Spade, e dirigi­ram-se ao seu apartamento. Ela largou-lhe o braço e ficou ao seu lado — arquejando, com as duas mãos sobre o peito — enquanto ele abria a porta. Spade acendeu a luz do hall. Entraram. Fechou a porta e rodeando-a de novo com o braço, levou-a em direção à sala de estar. Quando estavam a menos de um passo da porta, a luz acendeu-se dentro da sala.

A moça gritou e agarrou-se a Spade. Bem na entrada, do lado interno da sala, o gordo Gutman sorria-lhes com benevo­lência. O jovem Wilmer saiu da cozinha atrás deles. As pis­tolas pareciam gigantescas nas suas mãos pequenas. Cairo saiu do banheiro. Também trazia uma pistola. Gutman falou:

— Bem, estamos todos aqui, como pode ver. Agora entremos, sentemo-nos, e vamos conversar.

 

                     O BODE EXPIATÓRIO

Spade, com os braços em volta de Brigid O'Shaughnessy, sorriu frouxamente por sobre a cabeça da moça e disse: — Pois não, vamos conversar. — Os bulbos de Gutman cho­calharam enquanto ele dava três passos balançados para trás, afastando-se da porta.

Spade e a moça entraram junto. O rapaz e Cairo os seguiram. Este parou na porta. Aquele guardou uma das pis­tolas e seguiu Spade de perto. Spade virou a cabeça o mais que pôde para olhá-lo por sobre o ombro, e ordenou: — Sai daí. Não quero ser roubado por você.

— Pare. Cale a boca — respondeu o rapaz.

As narinas de Spade palpitavam com a força da respi­ração. Sua voz não subiu de nível. — Saia daí. Ponha a sua pata em mim, e eu o obrigarei a usar essa arma. Pergunte ao seu patrão se ele quer que eu seja alvejado antes de conver­sarmos.

— Esqueça, Wilmer — disse Gutman, depois fez uma carranca indulgente para Spade. — O senhor é sem dúvida uma criatura obstinada. Bem, vamos nos sentar.

— Avisei-o de que não gosto desse moleque — disse Spade levando Brigid 0'Shaughnessy para o sofá próximo às janelas. Sentaram-se muito juntos, ela com a cabeça sobre o ombro esquerdo dele, ele com o braço esquerdo em volta dos ombros dela. Ela tinha parado de tremer e de arquejar. A aparição de Gutman e seus companheiros parecia tê-la pri­vado dessa liberdade de movimento físico e emocional própria dos animais, deixando-a viva, consciente, mas imóvel como uma planta. Gutman deixou-se cair na cadeira estofada de balanço. Cairo escolheu a cadeira de braços junto a mesa. Wilmer não se sentou. Ficou de pé na porta onde Cairo tinha estado, deixando a única pistola visível pender ao seu lado, olhando sob as pestanas curvas para o corpo de Spade. Cairo pôs a pistola sobre a mesa, junto dele. Spade tirou o chapéu e atirou-o no canto oposto do sofá, e sorriu para Gutman. A frouxidão do lábio inferior e a inclinação das pálpebras supe­riores combinavam com os VV do rosto para tornarem o sorriso lascivo como o de um sátiro. — Aquela sua filha tem uma bonita barriga — disse ele — bonita demais para ser arranhada com alfinetes. — O sorriso de Gutman era afável, apesar de um pouco velhaco. O rapaz da porta deu um passo curto à frente, levantando a pistola à altura do quadril. Todos na sala olharam para ele. Nas expressões diferentes com que Brigid O'Shaughnessy e Joel Cairo o olharam, havia uma censura singularmente.semelhante. O rapaz corou, puxou o pé estendido, firmou as pernas, desceu a arma e voltou à posição anterior, olhando para o peito de Spade por baixo das pestanas que lhe encobriam os olhos. O rubor era fraco, e durou apenas um instante, mas parecia estranho em seu rosto habitualmente tão calmo e indiferente.

Gutman voltou de novo o seu sorriso untuoso para Spade. Sua voz era um suave ronronar. — Sim, senhor, foi uma pena, mas deve concordar que serviu ao fim desejado.

As sobrancelhas de Spade se contraíram. — Qualquer pretexto teria servido — disse ele. — Naturalmente desejava vê-lo assim que estivesse de posse do falcão. Uma audiência, por que não? Dirigi-me a Burlingame esperando encontrar uma reunião dessa ordem. Não sabia que estavam andando feito tontos, meia hora mais tarde, tentando afastar-me do caminho a fim de encontrarem Jacobi de novo, antes que ele me encontrasse.

Gutman deu uma gargalhada. Essa gargalhada parecia conter apenas satisfação. — Bem — disse ele — em todo o caso estamos realizando a nossa pequena reunião, se é isso o que desejava.

— É isso o que eu desejava. Quando estará o senhor pronto a fazer o primeiro pagamento e a tirar o falcão das minhas mãos?

Brigid endireitou-se no sofá e olhou para Spade com os olhos azuis cheios de surpresa. Ele deu-lhe distraidamente umas palmadinhas no ombro. Seus olhos estavam fixos nos de Gutman, que piscou alegremente entre as pregas protetoras, dizendo: — Bem, quanto a isso — e pôs uma das mãos por dentro do paletó. Cairo, com as mãos nas coxas, inclinou-se para a frente, respirando por entre os lábios macios e meio abertos. Seus olhos escuros tinham o brilho do verniz. Eles mudavam cautelosamente o seu foco do rosto de Gutman para o de Spade. Gutman repetiu: — Bem, quanto a isso — e tirou do bolso um envelope branco. Dez olhos, os do rapaz agora obscurecidos apenas até à metade, pelas pestanas, olharam para o envelope. Voltando-o para cima nas mãos inchadas, Gutman observou por um momento a sua frente branca e sem letras, e depois as costas descoladas, com a beira enfiada para dentro. Depois levantou a cabeça, sorriu amavelmente, e arre­messou-o ao colo de Spade.

O envelope, embora não fosse volumoso, tinha o peso suficiente para atingir o alvo. Bateu na parte inferior do peito de Spade e caiu-lhe sobre as pernas. Levantou-o vagarosa­mente, vagarosamente abriu-o, usando as duas mãos, depois de tirar o braço esquerdo do ombro da moça. O conteúdo eram notas de mil dólares, lisas, esticadas e novas. Spade tirou-as e contou-as. Eram dez. Levantou os olhos sorrindo, e disse em voz afável: — Estávamos falando sobre uma impor­tância maior do que esta.

— Sim, senhor, estávamos — concordou Gutman — mas estávamos falando, então. Isto é dinheiro real, moeda legítima do país. Com um dólar destes o senhor pode comprar mais do que com dez dólares de conversa. — Uma risada silenciosa sacudiu-lhe os bulbos. Quando voltaram à calma, ele disse com mais gravidade, mas não completamente sério ainda. — Há mais alguém agora para ser levado em conta. — Fez um movimento com os olhos pestanejantes e com o rosto gordo, para indicar Cairo. — E... bem, em resumo, a situação mudou.

Enquanto Gutman falava Spade tinha acertado as mar­gens das dez notas e pusera-as de novo no envelope, enfiando a beirada por cima delas. Agora, com os antebraços sobre os joelhos, estava curvado para a frente, balançando entre as pernas o envelope levemente seguro por um canto, pelo pole­gar e o indicador. Sua resposta foi despreocupada: — Claro. Vocês agora estão unidos, só que eu tenho o falcão.

Joel Cairo falou. Com as mãos disformes apertando os braços da cadeira inclinou-se para a frente, e disse com afetação na voz fina e aguda: — Eu não julgaria necessário recordar-lhe, Sr. Spade, que embora o falcão esteja em seu poder, o senhor sem dúvida está em nosso poder.

Spade sorriu. — Estou tentando afastar essa preocupa­ção do espírito — disse. Endireitou-se, pôs o envelope ao seu lado, no sofá, e dirigiu-se a Gutman: — Voltaremos depois ao dinheiro. Há outra coisa da qual precisamos tratar primeiro. Temos que arranjar um bode expiatório. — Gutman enrugou a testa sem compreender, mas antes que pudesse falar já Spade explicava: — A polícia precisa de uma pessoa, alguém que possa responder por esses três assassínios. Nós...

Cairo, falando, em voz levemente excitada, interrompeu-o. — Dois, apenas dois, assassínios, Sr. Spade. Thursby indubitavelmente matou seu sócio.

— Muito bem, dois — rosnou Spade. — Que diferença faz? O importante é que temos que fornecer à polícia al­guma...

Então Gutman interrompeu-o, sorrindo confiante, fa­lando com segurança cheia de bom humor: — Bem, pelo que vimos e ouvimos a seu respeito, não acho que nos devamos preocupar com isso. Podemos perfeitamente deixar a seu cargo lidar com a polícia. O senhor não precisa absolutamente do nosso inexperiente auxílio.

— Se é isso o que está pensando — disse Spade — então não viu nem ouviu o suficiente.

— Ora vamos, Sr. Spade. O senhor não vai esperar que nós acreditemos agora que está com o mínimo receio da polí­cia, ou que não é capaz de lidar...

Spade fungou o nariz e arranhou a garganta. Inclinou-se apoiando outra vez os antebraços nos joelhos, e interrompeu Gutman em tom irritado: — Não tenho um pingo de receio e sei como lidar com eles. É isso que estou tentando explicar-lhe. O jeito de lidar com eles é jogar-lhes uma pessoa, alguém em quem eles possam descarregar as culpas.

— Bem, admito que isso seja um dos meios, mas...

— Mas, porra! — disse Spade. — É o único meio. — Seus olhos mostravam-se violentos e coléricos, sob a testa que se avermelhava. A contusão da sua fronte estava cor de fí­gado. — Sei o que estou dizendo. Já passei por isso tudo e espero conseguir passar de novo. De vez em quando tenho precisado mandar para o inferno todos os do Supremo Tri­bunal, e tenho mandado. Tenho mandado porque nunca me permito esquecer que o dia de um ajuste de contas está che­gando. Nunca me esqueço que quando esse dia chegar quero estar preparado para entrar no quartel-general empurrando um culpado na minha frente, e dizendo: — Aqui está o crimi­noso, seus idiotas. Enquanto puder fazer isso, posso dar uma banana para todas as leis dos livros. A primeira vez que não puder fazer isso, eu mudo de nome. Não houve ainda uma primeira vez. E não vai ser esta. Está na cara.

Os olhos de Gutman pestanejaram e sua brandura tor­nou-se dúbia, mas ele conservou as outras feições dentro de sua benevolente máscara bulbosa, rosada e sorridente, e não transparecia nenhuma inquietação em sua voz. E disse: — É um sistema que tem muito a recomendá-lo, por Deus, se tem! E se fosse de qualquer forma praticável neste caso, eu teria sido o primeiro a dizer: "Agarre-se a ele com todas as forças". Mas acontece ser este um caso em que isso não é possível. É o que se dá com os melhores sistemas. Vem uma ocasião em que são necessárias exceções, e um homem avisado apressa-se em fazê-las. Bem, é isso que se dá com este caso, e não receio dizer-lhe que acho que está sendo muito bem pago para fazer uma exceção. Talvez o senhor tenha um pouco mais de difi­culdades do que se tivesse um culpado para entregar à polícia, mas — riu e esfregou as mãos — o senhor não é um homem que receie algumas dificuldades. Sabe fazer as coisas e sabe que se manterá de pé, aconteça o que acontecer. — Encolheu os lábios e fechou parcialmente um olho. — O senhor arran­jará isso.

Os olhos de Spade tinham perdido o calor. O rosto estava sombrio e carregado. — Sei o que estou dizendo — disse em tom baixo e propositadamente paciente. — Esta é a minha cidade, e a minha profissão. Poderia conseguir me manter em pé, sem dúvida, desta vez, mas na primeira ocasião que tentasse fazer uma gracinha eles me deteriam tão depressa que me fariam engolir os dentes. Vão todos à merda. Vocês estariam em Nova Iorque ou em Constantinopla ou em qual­quer outro lugar. Mas eu trabalho aqui.

— Não há dúvida — começou Gutman — o senhor pode...

— Eu não posso — disse Spade com violência. — E não vou fazer isso. É o que estou dizendo. — Endireitou-se no sofá. Um sorriso agradável iluminou-lhe o rosto, apagando a sua sombria rudez. Então falou rapidamente, em um tom agradável, persuasivo: — Escute, Gutman. Estou-lhe indi­cando o que é melhor para nós todos. Se não dermos à polícia um bode expiatório, há dez probabilidades contra uma de que mais cedo ou mais tarde eles tropecem com alguma infor­mação sobre o falcão. Então você terá que se esconder com ele, não importa o lugar onde esteja. Isso não o ajudará a fazer uma fortuna por meio dele. Dê-lhes um bode expiatório, e eles param aí.

— Bem, é esse exatamente o ponto — replicou Gutman e só nos seus olhos havia ainda um traço de inquietação. — Pa­rarão aí? Ou não será o bode expiatório uma nova chave que com muita probabilidade os conduzirá a alguma informação sobre o falcão? E, por outro lado, não poderíamos dizer que eles estão quietos agora, e que o que temos a fazer é deixar tudo como está?

Uma veia bifurcada começou a inchar na testa de Spade

— Porra! Você não sabe qual das alternativas — disse em tom reprimido. — Eles não estão dormindo, Gutman. Estão quie­tos, esperando. Tente compreender. Eu estou enterrado até o pescoço, e eles sabem disso. Está tudo muito bem, enquanto eu puder fazer alguma coisa, quando chegar a hora. Mas não estará bem, se eu não puder fazer nada. — Sua voz tornou-se de novo persuasiva. — Ouça, Gutman, nós temos absoluta­mente que lhes dar uma vítima. Não há outro jeito. Vamos entregar o moleque. — Spade acenou amavelmente com a cabeça em direção ao rapaz na porta. — Ele efetivamente matou dois deles: Thursby e Jacobi, não é verdade? De qual­quer forma, também teve a sua parte. Vamos plantar a prova necessária contra ele e entregá-lo à polícia.

O rapaz apertou os cantos da boca, na sombra de um sorriso. A proposta de Spade pareceu não ter outro efeito sobre ele. Joel Cairo estava de boca aberta, de olhos arrega­lados, o rosto amarelado e cheio de espanto. Respirou pela boca, seu peito redondo e efeminado levantou-se e desceu, enquanto olhava boquiaberto para Spade. Brigid O'Shaughnessy tinha se afastado de Spade e torceu-se no sofá para encará-lo. Por trás da perplexidade cheia de espanto do seu rosto, transparecia a sombra de uma risada histérica.

Gutman continuou imóvel e inexpressivo durante um longo momento. Então decidiu-se a rir. Teve uma risada gos­tosa e demorada, sem se interromper enquanto a alegria não se transmitiu aos seus olhos afáveis. Então parou de rir e disse: — Pelo amor de Deus, o senhor é um gênio, se é! — Tirou um lenço branco do bolso e enxugou os olhos. — Sim senhor, ninguém pode imaginar o que vai dizer ou fazer, mas pode-se ter a certeza de que é qualquer coisa assombrosa.

— Não há nada de engraçado nisso. — Spade não se mostrava ofendido com a risada e nem um pouco impressio­nado. Falou como alguém que está persuadindo um amigo recalcitrante, mas não sem razão. — E a nossa melhor jogada. Com ele nas mãos a polícia terá...

— Mas, meu caro senhor — objetou Gutman — então não compreende? Se mesmo por um momento eu pensasse em fazer isso... mas é absurdo demais. Meus sentimentos em relação a Wilmer são como se ele fosse meu próprio filho. Não é mentira. Porém, mesmo se por um momento eu pensasse em fazer o que propõe, o que pensa o senhor que poderia impedir Wilmer de contar à polícia todos os detalhes sobre o falcão e sobre todos nós?

Spade sorriu com uma expressão obstinada nos lábios.

— Se fosse preciso — disse em voz afável — poderíamos

obrigá-lo a morrer por resistência à prisão. Mas não preci­saríamos ir tão longe. Deixe-o falar quanto quiser. Eu lhe prometo que ninguém fará nada a esse respeito. Isso é fácil de conseguir.

A carne vermelha que cobria a testa de Gutman arras­tou-se formando uma carranca. Abaixou a cabeça amassando um queixo sobre o outro, por cima do colarinho, e perguntou:

— Como? — Então, com uma impetuosidade que fez tremer e chocalhar uns contra os outros todos os seus bulbos, levantou a cabeça, retorceu-se para olhar o rapaz, e riu-se ruidosa­mente. — Que acha disto, Wilmer? É engraçado, hem?

Os olhos do menino eram duas frias e cintilantes avelãs, sob as pestanas. Ele disse em voz baixa e distinta: — Sim, é engraçado, seu filho da...

Spade estava se dirigindo a Brigid: — Como se sente agora, anjo? Melhor?

— Sim, muito melhor, apenas — ela abaixou tanto a voz de modo que as últimas palavras só pudessem ser ouvidas a meio metro de distância — tenho medo.

— Não tenha... — disse ele negligentemente, e pôs-lhe a mão sobre o joelho coberto pela meia cor de tijolo. — Não acontecerá nada de mal. Quer um drinque?

— Agora não, obrigada. — Sua voz baixou de novo. — Tenha cuidado, Sam.

Spade sorriu e olhou para Gutman, que o estava obser­vando. Gutman sorriu com naturalidade, conservou-se calado por um momento, e então perguntou: — Como?

Spade espantou-se: — Como, o quê?

Gutman julgou necessário rir mais, então, e explicou:

— Bem, se realmente fala sério sobre isso, essa sua sugestão, o mínimo que podemos fazer, por delicadeza, é ouvi-lo. Ora, como vai conseguir que Wilmer — parou para rir de novo — não seja capaz de nos prejudicar?

Spade sacudiu a cabeça. — Não — disse ele — eu não me aproveitaria da educação de ninguém, mesmo uma educação comum, como essa. Esqueça isso.

Gutman franziu os bulbos faciais. — Ora vamos, vamos

— protestou — o senhor me deixa decididamente embara­çado. Eu não devia ter rido, e peço desculpas humilde e since­ramente. Não quis achar ridículo nada do que o senhor suge­riu, Sr. Spade, não obstante o muito que discordo da sua opinião, pois deve saber que tenho o maior respeito e admi­ração pela sua astúcia. Agora entenda, não vejo como essa sua sugestão possa ser viável, mesmo deixando de lado o fato de que eu não poderia estimar mais a Wilmer se ele fosse minha própria carne e meu próprio sangue, mas considerarei como

um favor pessoal, assim como uma prova de que o senhor aceitou minhas desculpas, se continuar a esboçar o resto do plano.

— Muito justo — disse Spade. — Bryan é como a maio­ria dos comissários distritais. Está mais interessado na im­pressão que o seu relatório produzirá depois de escrito, do que em qualquer outra coisa. Preferiria abandonar um caso duvi­doso, a levá-lo avante e vê-lo voltar-se contra si. Que eu saiba, ele nunca acusou uma pessoa que julgasse inocente, mas não posso imaginá-lo forçando-se a acreditar na inocência de al­guém se pudesse reunir ou amoldar provas do seu crime. Para estar certo da culpa de um homem ele deixaria escapar uma meia dúzia de cúmplices, igualmente culpados, caso a tenta­tiva de provar o crime de todos pudesse atrapalhar o seu julga­mento. Essa é a alternativa que lhe daremos e ele a engolirá. Não quererá saber do falcão. Ele ficará louco tentando se convencer de que tudo que o moleque lhe contar é apenas um paliativo, e uma tentativa para embrulhar as coisas. Deixe comigo esse final. Eu o farei ver que se começar a andar às tontas, tentando juntar tudo, ele vai ter um caso intrincado ao qual nenhum júri será capaz de pôr pés nem cabeça, enquanto que, se se agarrar ao moleque, pode obter uma condenação sensacional.

Gutman acenou de lado com a cabeça, num gesto vaga­roso e sorridente de benévola desaprovação. — Não, senhor — disse ele — receio que isso não dê absolutamente resultado. Não vejo mesmo como esse seu comissário distrital possa ligar Thursby e Jacobi e Wilmer juntos sem ter que...

— O senhor não conhece os comissários distritais — tor­nou Spade, — O caso de Thursby é fácil. Era um criminoso, assim como é o seu moleque. Bryan tem teoria firmada a esse respeito. Não haverá investigações desse lado. Bem, pelo amor de Deus, eles só podem enforcar o moleque uma vez. Por que hão de processá-lo pelo assassinato de Jacobi depois de conde­nado pelo de Thursby? Encerrarão o relatório acusando-o simplesmente dele, e ficará nisso. Se ele usou a mesma arma contra os dois, as balas serão iguais. Isso contentará a todos.

— Sim, mas... — Gutman parou e olhou para o rapaz. Este adiantou-se com andar firme, as pernas separadas, até ficar entre Gutman e Cairo, mais ou menos no centro da sala. Parou então, fazendo uma pequena inclinação a partir da cintura, com os ombros levantados para a frente. A pistola que conservava na mão pendia-lhe ainda do lado, mas os nós dos dedos estavam brancos da força com que a pressionava. A outra mão pendia do lado oposto, formando um punho pequeno e apertado. A indelével juventude do seu rosto dava um cunho indescritivelmente vicioso e desumano ao ódio rubro-branco e à gelada malevolência da sua expressão. Ele disse a Spade numa voz convulsionada pela cólera: — Você, seu filho da puta, levante-se e pegue o revólver!

Spade sorriu-lhe. Não foi um sorriso rasgado, mas um sorriso genuína e francamente divertido.

O menino repetiu: — Você, filho da puta, levante-se e atire, se tiver coragem. Estou cansado de suportá-lo.

O sorriso de Spade tomou uma expressão mais divertida. Olhou para Gutman, e disse: — Jovem Oeste Selvagem. — Sua voz rivalizava com o seu sorriso. — Talvez o senhor deva contar-lhe que seria mau negócio me matar antes de pôr as mãos sobre o falcão.

A tentativa que Gutman fez para sorrir foi infrutífera, mas ele conservou sobre o rosto manchado a careta resultante desse esforço, e lambeu os lábios secos com a língua seca. Sua voz estava rouca e áspera demais para o tom da paternal admoestação que tentou compor. — Ora, ora, Wilmer — disse — deixe disso. Você não deve dar tanta importância a essas coisas. Você...

O rapaz, sem tirar os olhos de Spade, falou numa voz reprimida, pelo canto da boca. — Faça-o deixar-me em paz, então. Eu o mato se continuar, e nada vai me impedir de fazê-lo.

— Ora, Wilmer — disse Gutman, voltando-se para Spade. Tinha o rosto e a voz controlados, agora. — Seu plano, como lhe disse de começo, não é exeqüível. Não falemos mais nisso.

Spade olhou de um para outro. Parara de sorrir. Tinha o rosto completamente inexpressivo. — Só digo o que me apraz — avisou.

— Sem dúvida — disse rapidamente Gutman — e essa é uma das qualidades que sempre admirei no senhor. Mas este negócio é, como digo, impraticável, portanto não há a mínima vantagem em discuti-lo mais, como o senhor mesmo pode ver.

— Não estou vendo nada — disse Spade — e o senhor ainda não me fez ver, e não acho que possa fazê-lo. — Franziu as sobrancelhas para Gutman. — Vejamos isto direito. Será que estou perdendo tempo em falar? Pensei que fosse esta a sua oportunidade. Será melhor falar ao moleque?

— Não — replicou Gutman — o senhor faz bem em tratar comigo.

— Muito bem. Tenho outra sugestão. Não tão boa como a primeira,, mas melhor que nada. Quer ouvi-la?

— Pois não.

— Vamos entregar Cairo.

Cairo rapidamente pegou a pistola de sobre a mesa e segurou-a fortemente sobre o colo, com as duas mãos, conser­vando a boca da arma apontada para o chão, um pouco para o lado do sofá. Seu rosto se tornara de novo amarelado. Os olhos pretos dardejavam chispas de um rosto ao outro. A opa­cidade deles fazia-os parecerem chatos, bidimensionais.

Gutman, parecendo não poder acreditar no que ouvira, perguntou: — Fazer o quê?

— Entregar Cairo à polícia.

Gutman pareceu estar a ponto de desatar a rir, mas não o fez. Finalmente exclamou: — Por Deus, senhor! — em um tom indeciso.

— Não é tão bom como dar-lhes o moleque — disse Spade.

— Cairo não é um criminoso e carrega uma arma menor do que aquela com que foram alvejados Thursby e Jacobi. Teremos mais dificuldades engaiolando-o, mas é melhor do que não dar ninguém à polícia.

Cairo gritou, numa voz estridente de indignação: — Su­ponhamos que nós entreguemos o senhor, Sr. Spade, ou a Srta. O'Shaughnessy, se faz questão de lhes entregar alguém?

Spade sorriu para ele sem se alterar: — Vocês querem o falcão. Ele está comigo. Um bode expiatório é uma parte do preço que estou pedindo. Quanto à Srta. 0'Shaughnessy — seu olhar calmo dirigiu-se para o rosto pálido e perplexo da moça e voltou de novo a Cairo, e seus ombros subiram e desceram uma fração de centímetro — se acha que ela é ade­quada ao caso, estou pronto a discutir esse ponto.

A moça levou as mãos à garganta, deu um gritinho aba­fado e afastou-se dele. Cairo, com o rosto e o corpo trémulos de excitação, exclamou: — O senhor parece se esquecer que não está em situação de impor coisa alguma.

Spade riu, com uma espécie de bufo áspero e escarne-cedor. Gutman, numa voz que procurava aparentar firmeza, disse: — Vamos, cavalheiros, conservemos nossa discussão em base amistosa: mas há, sem dúvida — dirigia-se a Spade — alguma verdade no que Cairo está dizendo. O senhor precisa levar em consideração que...

— Imagine se preciso. — Spade atirou as palavras com uma espécie de brutal indiferença, que lhes dava mais força do que poderiam lograr de uma enfática dramatização, ou da elevação da voz. — Se me matarem, terão o pássaro? Se eu sei que não me podem matar enquanto não estiverem de posse dele, como vão conseguir que eu o entregue por meio de inti­midações?

Gutman empertigou a cabeça para o lado esquerdo e ponderou essas questões. Seus olhos brilharam entre as pál­pebras cerradas. Então deu uma resposta cordial: — Bem, há outros meios de persuasão além da morte e ameaça de morte.

— Claro — concordou Spade — mas não são muito efi­cazes enquanto permanecer a ameaça de morte por trás deles, para manter a vítima amarrada. Entende o que quero dizer? Se tentar qualquer coisa que não me agrade, eu não aceitarei. Isso a transformará numa questão de, ou o senhor desistir, ou me matar, sabendo que a minha morte é contrária aos seus interesses.

— Entendo o que quer dizer. — Gutman deu uma gar­galhada. — Esta é uma atitude que exige o mais delicado julgamento de ambos os lados, porque, como o senhor sabe, os homens estão sujeitos a esquecer, no calor da ação, onde reside o seu maior interesse, e deixam-se levar pelas emoções.

Spade também era todo brandura sorridente. — Esse é o meu truque, tornar meu jogo bastante forte para amarrá-lo, mas não tanto que o enlouqueça a ponto de me matar, contra o seu bom senso.

— Por Deus, o senhor é um gênio! — disse Gutman. Joel Cairo pulou da cadeira e deu a volta por trás do rapaz e por trás da cadeira de Gutman. Abaixou-se sobre o encosto e, protegendo a boca e o ouvido de Gutman com a mão livre, cochichou. Gutman ouviu com atenção, fechando os olhos. Spade sorriu para Brigid. Os lábios dela sorriram debilmente em resposta, mas não houve mudança nos seus olhos; eles não perderam o brilho entorpecido. Spade voltou-se para o menino: — Dois contra um que eles o estão ven­dendo, meu filho.

O menino não disse nada. Uma tremura nos joelhos co­meçou a agitar os joelhos das calças. Spade dirigiu-se a Gut­man: — Espero que não se esteja deixando influenciar pelas armas que esse bandido livro de bolso está brandindo.

Gutman abriu os olhos. Cairo parou de cochichar e endi­reitou-se atrás da cadeira. Spade disse: — Já me habituei a tirá-las de ambos, assim, desse lado, não haverá dificuldades. O moleque está...

Em uma voz terrivelmente sufocada pela comoção o me­nino gritou: — Muito bem! — e levantou a pistola à altura do peito. Gutman lançou a mão gorda ao pulso do rapaz, pren­dendo-o, e conservou-o com a pistola para baixo, enquanto o seu corpo gordo levantava-se às pressas da cadeira de balanço. Joel Cairo correu para o outro lado do rapaz e agarrou-lhe o outro braço. Lutaram com ele, forçando-lhe os braços para baixo, mantendo-os nessa posição, enquanto se debatia inutilmente contra os dois. Brotavam palavras do grupo contendor: fragmentos do discurso incoerente do menino —ah, é?... vá... filho da puta... atiro. — Os "Ora, ora, Wilmer!" de Gutman, repetidos muitas vezes; e os "Não, por favor, não", e "Não faça isso, Wilmer", de Cairo.

De rosto imóvel, olhar distraído, Spade levantou-se do sofá e dirigiu-se ao grupo. O rapaz, impedido de enfrentá-lo com a arma, cessara de lutar. Cairo, segurando ainda o braço do menino, conservava-se um pouco à sua frente, falando-lhe carinhosamente. Spade afastou-o com delicadeza e investiu o punho esquerdo contra o queixo do menino, cuja cabeça foi arremessada para trás, até onde o permitiram os braços pre­sos, e depois voltou. Gutman começou com um precipitado

— Que é? — Spade lançou o punho direito contra o queixo do menino.

Cairo soltou-lhe o braço, deixando-o cair contra a enorme barriga de Gutman, e investiu contra Spade, arranhando-lhe o rosto com os dedos curvos das duas mãos. Spade respirou com força e empurrou Cairo que de novo investiu contra ele. Havia lágrimas nos seus olhos, e os lábios vermelhos agi­tavam-se furiosos, formando palavras, mas nenhum som saiu através deles. Spade riu e rosnou: — Você é irritante, rapaz!

— e esbofeteou-lhe uma das faces com a mão aberta, derru­bando-o contra a mesa. Cairo equilibrou-se e investiu pela terceira vez contra Spade, que atalhou, estendendo as duas mãos abertas nos braços rígidos e longos, contra o seu rosto. Cairo, não conseguindo alcançar o rosto de Spade, espancou-lhe os braços. Spade rosnou: — Olha que eu o machuco!

— Oh, seu covarde! — gritou Cairo, e afastou-se dele.

Spade abaixou-se para apanhar do chão a pistola de Cairo, e depois a do rapaz. Endireitou-se então, trazendo-as na mão esquerda, penduradas de cima para baixo no indicador. Gutman tinha posto o rapaz sobre a cadeira de balanço, e ficou a observá-lo com os olhos perturbados, no rosto ligeira­mente enrugado. Cairo ajoelhou-se ao lado da cadeira e co­meçou a esfregar uma das mãos frouxas do menino. Spade apalpou-lhe o queixo com os dedos. — Nada quebrado — disse. — Vamos estendê-lo no sofá. — Passou o braço direito por baixo do braço do rapaz, rodeando-lhe as costas, pôs o antebraço esquerdo sob os joelhos, levantou-o sem esforço aparente, e carregou-o para o sofá.

Brigid O'Shaughnessy ergueu-se rapidamente, e Spade deitou o menino. Com a mão direita apalpou-lhe as roupas, achou a segunda pistola, juntou-a às duas que tinha na mão esquerda, e voltou as costas para o sofá. Cairo já estava sentado ao lado da cabeça do garoto.

Spade fez tilintar as pistolas na mão, e sorriu alegre­mente para Gutman. — Bem — disse — aqui está o nosso bode expiatório.

O rosto de Gutman estava cinzento, e seus olhos som­brios. Não olhou para Spade. Olhou para o chão, e não res­pondeu.

— Não seja idiota outra vez — disse Spade. — O senhor deixou Cairo cochichar no seu ouvido, e segurou o rapaz enquanto o empastelei. Não pode negar isso, e provavelmente se consumirá tentando fazê-lo. — Gutman moveu o pé sobre o tapete e não disse nada. Spade continuou: — E por outro lado, ou o senhor concorda imediatamente ou eu entregarei o falcão e todo o seu maldito bando.

Gutman levantou a cabeça e murmurou entre dentes:

— Não gosto disso.

— Pode não gostar — disse Spade. — E aí?

O gordo suspirou, fez uma careta, e replicou tristemente:

— Pode ficar com Wilmer.

— Ótimo — concluiu Spade.

 

                   A MÃO DO RUSSO

O rapaz estava deitado de costas no sofá, uma pequena figura que parecia um cadáver se não fosse a respiração. Joel Cairo sentou-se ao seu lado, inclinando-se sobre ele, esfre­gando-lhe as faces e os pulsos, alisando-lhe o cabelo para trás, e espreitando ansiosamente o rosto branco e imóvel. Brigid O'Shaughnessy postou-se em um canto entre a mesa e a parede. Uma das mãos estava espalmada sobre a mesa, a outra sobre o peito. Apertou o lábio inferior entre os dentes, e olhava furtivamente para Spade quando não a estava obser­vando. Quando ele voltava os olhos para ela, olhava para Cairo e para o moleque. O rosto de Gutman tinha perdido a expressão perturbada e começava a ficar rosado de novo. Ele tinha posto as mãos nos bolsos das calças e conservava-se encarando Spade, observando-o sem curiosidade. Spade, fa­zendo tilintar negligentemente o seu punhado de pistolas, indicou com a cabeça as costas arqueadas de Cairo e pergun­tou a Gutman: — Será que ele está de acordo?

— Não sei — replicou este calmamente. — Essa parte ficará estritamente a seu cargo.

O sorriso de Spade tornou mais saliente o seu queixo em forma de V. Ele chamou: — Cairo.

O oriental torceu o rosto moreno e inquieto por sobre o ombro. — Deixe-o descansar por enquanto — disse Spade. — Vamos entregá-lo à polícia. Devemos ter todos os detalhes acertados antes que ele volte a si.

— Não acha que já lhe fez demais, sem entregá-lo? — perguntou Cairo com amargura.

— Não — disse Spade.

Cairo deixou o sofá e aproximou-se de Gutman. — Por favor, não faça isso, Sr. Gutman — pediu. — O senhor precisa ver que... — Spade interrompeu-o: — Isso já está acertado. A única dúvida é o que o senhor vai fazer? Entrar nesta, ou ficar de fora?

Apesar do seu sorriso um pouco triste, pensativo mesmo, a seu modo, Gutman anuiu com a cabeça. — Não é por meu gosto também — disse — mas não podemos fazer mais nada. Não podemos realmente.

— Que vai fazer, Cairo? Fica ou sai? — perguntou Spade.

Cairo molhou os lábios e voltou-se lentamente para enca­rar Spade. — Suponhamos — disse ele, e engoliu. — Tenho eu... ? Posso escolher?

— Pode — assegurou-lhe Spade com seriedade — mas deve saber desde já que se a resposta for fora, nós o entre­garemos à polícia junto com o seu amigo.

— Ora, vamos, Sr. Spade — protestou Gutman.

— Diabos me levem se nós deixarmos que ele nos aban­done. Ou entra nisto, ou vai preso. Não podemos ter uma porção de pontas soltas a penderem dos lados. — Então fez uma carranca para Gutman, e berrou irritado: — Ê esta a primeira coisa que vocês roubam, seus águias? Vocês são um belo bando de babacas! E que vão fazer depois, ajoelhar-se e rezar? — Virou a carranca para Cairo. — Bem? E aí?

— O senhor não me dá alternativa. — Os ombros estrei­tos de Cairo encolheram-se num movimento de desânimo. — Estou nessa.

— Bom — disse Spade, olhando para Gutman e para Brigid 0'Shaughnessy. — Sentem-se.

A moça sentou-se devagarinho na ponta do sofá, aos pés do menino desmaiado. Gutman voltou para a cadeira de balanço estofada, e Cairo para a cadeira de braços. Spade pôs o punhado de pistolas sobre a mesa e sentou-se num canto dela, a seu lado. Então olhou para o relógio de pulso, e disse: — Duas horas. Não posso ter o falcão até o amanhecer, ou talvez até às oito da manhã. Temos muito tempo para acertar tudo.

Gutman pigarreou. — Onde está ele? — perguntou, e acrescentou apressado: — Isso não me importa. O que eu tinha em mente é que seria melhor para todos os interessados que não nos separássemos das vistas um do outro até nosso negócio ter sido concluído. — Olhou para o sofá e depois de novo para Spade, com olhar penetrante. — O senhor está com o envelope?

Spade sacudiu a cabeça olhando para o sofá e em seguida para a moça, sorriu com os olhos: — Está com a Srta. O'Shaughnessy.

— Sim, está comigo — murmurou ela, pondo a mão dentro do casaco. — Apanhei-o quando...

— Está muito bem — disse-lhe Spade. — Guarde-o.

— E dirigiu-se a Gutman: — Não teremos que perder de vista uns aos outros. Posso conseguir que o falcão seja trazido aqui.

— Será ótimo — ronronou Gutman. — Então, em troca dos dez mil dólares e de Wilmer, o senhor nos dará o falcão e uma hora ou duas de vantagem; assim não estaremos na cidade quando o entregar às autoridades.

— Não terão que se esconder. O negócio será impene­trável.

— Pode ser, mas não obstante nós nos sentiremos mais seguros longe da cidade, quando Wilmer estiver sendo inter­rogado pelo comissário distrital.

— Como quiserem. Posso prendê-lo o dia todo, se o desejarem. — Começou a enrolar um cigarro. — Vamos acertar os detalhes. Por que ele alvejou Thursby? E por que e onde ele matou Jacobi?

Gutman sorriu com indulgência, sacudindo a cabeça e ronronando: — Ora, vamos, o senhor não pode esperar por isso. Nós lhe demos o dinheiro e Wilmer. É essa a nossa parte do contrato.

— Eu espero por isso, disse Spade. — Chegou o isqueiro ao cigarro. — Um bode expiatório foi o que pedi, e ele não será um bode expiatório se não houver uma explicação para ser preso. Ora, para explicar isso, tenho que saber a verdade.

— Contraiu as sobrancelhas. — Do que estão se queixando? Não ficarão muito em segurança se o deixarem com uma escapatória.

Gutman inclinou-se e acenou com o dedo gordo para as pistolas sobre a mesa, ao lado das pernas de Spade. — Há prova ampla do seu crime. Ambos foram alvejados com essas armas. É um trabalho muito simples para os peritos policiais determinarem que as balas que mataram os dois saíram des­sas armas. O senhor sabe disso; o senhor mesmo já o mencio­nou. E isso, parece-me, é uma prova ampla do crime.

— Talvez — concordou Spade — mas a coisa é mais complicada e eu tenho que saber o que aconteceu para ter a certeza de preencher as partes que não combinem.

Os olhos de Cairo estavam redondos e irritados. — Apa­rentemente o senhor esqueceu que nos afirmou ser um negócio muito simples — disse ele, e voltou o rosto moreno e excitado para Gutman. — Avisei-o de que não fizesse isso. Não acho...

— Não faz um pingo de diferença o que qualquer dos dois acha — disse Spade rudemente. — Agora é tarde demais para isso. Por que foi que ele matou Thursby?

Gutman trançou os dedos sobre a barriga e balançou a cadeira. Sua voz, como seu sorriso, estava visivelmente ma­goada. — O senhor é uma pessoa difícil de se lidar. Começo a crer que fizemos um erro em não deixá-lo em paz desde o princípio. Por Deus que acho!

Spade moveu a mão despreocupadamente: — Não se saiu assim tão mal. Mantém-se fora das grades, e vai ter o falcão. Que mais quer? — Pôs o cigarro num canto da boca, e disse de lado: — De qualquer forma, o senhor sabe em que pé está agora. Por que ele matou Thursby?

Gutman parou de balançar. — Thursby era um assassino notório e aliado da Srta. O'Shaughnessy. Nós sabíamos que removendo-o dessa forma faríamos com que ela parasse e pensasse que talvez fosse melhor consertar suas diferenças conosco, apesar de tudo, além de livrá-la de um protetor tão violento. O senhor vê que estou sendo sincero.

— Sim. Continue assim. O senhor não pensou que ele podia estar com o falcão?

Gutman sacudiu a cabeça com tanta força que suas faces redondas tremeram. — Não pensamos isso nem por um mi­nuto — replicou. Sorriu com indulgência. — Nós tínhamos a vantagem de conhecer demais a Srta. O'Shaughnessy para pensar isso, e conquanto não soubéssemos então que ela tinha dado o falcão ao Capitão Jacobi, em Hong-Kong, para ser trazido pelo "Paloma", enquanto eles tomavam um navio mais rápido, mesmo assim, nem por um minuto pensamos que, se apenas um deles soubesse onde o falcão estava, esse único fosse Thursby.

Spade concordou pensativamente e perguntou: — Não tentaram fazer um acordo com ele, antes de matá-lo?

— Sim, tentamos, naturalmente. Eu mesmo falei com ele aquela noite. Wilmer tinha-o localizado dois dias antes e vinha tentando segui-lo até onde ele costumava se encontrar com a Srta. 0'Shaughnessy; mas Thursby era astuto demais para isso, mesmo que não soubesse que estava sendo vigiado. Assim, nessa noite Wilmer dirigiu-se ao hotel dele, soube que ele não estava, e ficou esperando fora. Suponho que Thursby voltou imediatamente após ter assassinado o seu sócio. Seja como for, Wilmer o trouxe para me ver. Não conseguimos nada com ele. Era inteiramente leal à Srta. O'Shaughnessy. Bem, Wilmer seguiu-o de volta ao hotel, e fez o que fez.

Spade refletiu por um momento. — Isso parece razoável. Agora Jacobi.

Gutman olhou para Spade com olhar grave: — A morte de Jacobi foi por culpa da Srta. 0'Shaughnessy.

A moça arquejou "Oh!" e levou a mão à boca.

A voz de Spade veio pesada e monótona: — Não leve isso agora em consideração. Só me conte o que aconteceu.

Após um olhar penetrante para Spade, Gutman sorriu.

— Como o senhor está dizendo... Bem, Cairo, como sabe, entrou em contato comigo, eu mandei procurá-lo depois que deixou a central da polícia na noite, ou manhã, em que esteve aqui. Nós reconhecemos a mútua vantagem de con­jugar as forças. — Endereçou um sorriso ao oriental. — O Sr. Cairo é um homem de discernimento. O "Paloma" foi idéia sua. Ele viu a notícia da chegada nos jornais, nessa manhã, e lembrou-se de ter ouvido em Hong-Kong que Jacobi e a Srta. O'Shaughnessy tinham sido vistos juntos. Isso foi quando ele estava tentando encontrá-la por lá, e pensou a princípio que ela tinha partido no "Paloma", mas soube mais tarde que não. Bem, quando viu a notícia da chegada no jornal adivinhou exatamente o que tinha acontecido: ela tinha dado o pássaro a Jacobi para trazê-lo aqui. Jacobi não sabia o que era, naturalmente. A Srta. 0'Shaughnessy é discreta demais para isso.— Lançou um olhar à moça, balançou a cadeira duas vezes e continuou: — Cairo, Wilmer e eu fomos visitar o Capitão Jacobi, e tivemos bastante sorte em chegar enquanto a Srta. O'Shaughnessy estava lá. Foi uma conferên­cia difícil, sob muitos aspectos, mas finalmente, pela meia-noite, tínhamos persuadido a Srta. O'Shaughnessy a chegar a um acordo, ou assim pensamos. Então abandonamos o navio e nos pusemos a caminho do hotel, onde eu devia pagar a Srta. 0'Shaughnessy e receber o falcão. Bem, nós, simples homens, devíamos ter sido mais finos e não nos supormos capazes de competir com ela. En route, ela, o Capitão Jacobi, e o falcão escorregaram completamente por entre nossos dedos. — Riu alegremente. — Por Deus, foi um trabalho bem feito.

Spade olhou para a moça. Os olhos dela, grandes e cheios de súplica, encontraram os seus. Ele perguntou a Gutman:

— Vocês incendiaram o navio antes de partir?

— Intencionalmente não — replicou Gutman — embora eu julgue que nós, ou Wilmer pelo menos, fomos responsáveis pelo fogo. Ele estivera fora tentando encontrar o falcão en­quanto nós estávamos conversando no camarote, e sem dúvida não teve cuidado com os fósforos.

— Isso é ótimo — disse Spade. — Se algum deslize tornar necessário acusá-lo do assassinato de Jacobi, podemos

também fazer-lhe a acusação de incendiário. Agora, sobre o crime.

— Bem, nós corremos a cidade durante todo o dia ten­tando descobri-los, e só o conseguimos ao entardecer. A prin­cípio, não tínhamos a certeza de os ter encontrado. Só sabía­mos que tínhamos achado o apartamento da Srta. O'Shaugh-nessy. Mas quando escutamos à porta ouvimos se mexerem dentro, e ficamos certos de tê-los apanhado, e tocamos a cam­painha. Quando ela perguntou quem éramos e nós lhe disse­mos, através da porta, ouvimos levantar uma janela. Sabía­mos o que isso queria dizer, naturalmente; então Wilmer desceu correndo o mais que pôde, e rodeou os fundos do edifício, a fim de cobrir a escada de incêndio. E quando ele virou na viela, caiu em cheio e com violência sobre o Capitão Jacobi que fugia com o falcão em baixo do braço. Era uma situação difícil, mas Wilmer fez o melhor que pôde. Atirou em Jacobi, mais de uma vez, mas este era muito tenaz para der­rubar ou largar o falcão, e estava próximo demais para se conservar fora do caminho de Wilmer. Ele derrubou Wilmer, e correu. E isto foi em plena luz do dia, compreende o senhor, à tarde. Quando Wilmer se levantou, viu um policial vindo do quarteirão de baixo, e então teve que desistir. Evadiu-se por uma porta que encontrou aberta nos fundos do edifício vizi­nho ao Coronet, atravessou a rua, e subiu a fim de nos encontrar, e foi muito feliz em fazer tudo isso sem ser visto. Bem, aí estávamos nós, tolhidos de novo. A Srta. O'Shaugh-nessy nos tinha aberto a porta depois de ter fechado a janela sobre Jacobi, e ela... — interrompeu-se para sorrir a uma lembrança. — Nós a persuadimos, este é o termo, a nos contar que tinha mandado Jacobi levar o falcão ao senhor. Parecia muito improvável que ele tivesse vida para chegar até lá, mesmo que a polícia não o prendesse, mas era a única chance que nos restava. E assim, mais uma vez, convencemos a Srta. O'Shaughnessy a nos auxiliar um pouco. Nós, bem, a conven­cemos a telefonar ao seu escritório, na tentativa de afastá-lo antes de Jacobi chegar, e mandamos Wilmer no encalço dele. Infelizmente, levamos muito tempo a decidir e a persuadir a Srta. 0'Shaughnessy a...

O rapaz gemeu e se virou de lado, no sofá. Seus olhos se abriram e se fecharam diversas vezes. A moça levantou-se e postou-se de novo no canto entre a parede e a mesa.

— ... cooperar conosco — concluiu Gutman — e assim o senhor recebeu o falcão antes que pudéssemos entrar em contato consigo.

O rapaz pôs um pé no chão, levantou-se sobre um coto­velo, arregalou os olhos, desceu o outro pé, sentou-se e olhou em volta. Quando seus olhos focalizaram Spade, perderam o seu alheamento. Cairo deixou a cadeira de braços e dirigiu-se a ele, pôs o braços sobre os seus ombros e começou a dizer qualquer coisa. O menino levantou-se rapidamente, derru­bando o braço de Cairo. Vagueou os olhos pela sala, e depois fixou-os de novo em Spade. Seu rosto tinha os traços endu­recidos e o corpo estava tão tenso, que parecia repuxado e contraído. Spade, sentado na ponta da mesa, sacudindo as pernas descuidadamente, disse: — Escute aqui, garoto. Se você vier aqui e começar com agressões, dou-lhe um pontapé na cara. Sente-se, cale-se e comporte-se, que viverá mais tempo.

O rapaz olhou para Gutman. Gutman sorriu-lhe com benevolência: — Bem, Wilmer, sinto muito perdê-lo, e quero que você saiba que não o estimaria mais se fosse meu próprio filho; mas... bem, por Deus, se se perde um filho é possível arranjar outro, ao passo que falcão maltês há apenas um. — Spade riu.

Cairo se ergueu e segredou no ouvido do menino. Este, conservando os olhos frios, cor de nogueira, sobre o rosto de Gutman, sentou-se de novo no sofá. O oriental sentou-se ao seu lado. O suspiro de Gutman não afetou a benevolência do seu sorriso. Ele disse a Spade: — Quando se é jovem, não se compreende certas coisas.

Cairo pusera de novo um braço sobre os ombros do menino e falava-lhe em segredo. Spade sorriu par Gutman e dirigiu-se a Brigid: — Acho que seria ótimo se procurasse alguma coisa na cozinha para comermos, com bastante café. Quer ir? Não me agrada tratar mal os meus hóspedes.

— Pois não — disse ela, e dirigiu-se para a porta. Gutman parou de balançar. — Um momento, minha querida. — Levantou a mão grossa. — Não seria melhor deixar aqui o envelope? Não há de querer sujá-lo.

Os olhos da moça interrogaram Spade. O detetive disse em tom indiferente: — É dele, ainda. — Ela pôs a mão dentro do casaco, tirou o envelope, e deu-o a Spade. Spade jogou-o no colo de Gutman, dizendo: — Sente-se sobre ele, se tem medo de perdê-lo.

— O senhor não me compreendeu — replicou Gutman com brandura. — Não é isso absolutamente, mas negócios precisam ser tratados como negócios. — Abriu a aba do envelope, tirou as notas de mil dólares, contou-as, e riu tanto que sua barriga sacolejou. — Por exemplo, aqui estão agora apenas nove notas. — Esparramou-as sobre as coxas e os joelhos gordos. — Havia dez quando as entreguei ao senhor, como sabe muito bem. — Seu sorriso era rasgado, jovial c triunfante.

Spade olhou para Brigid e perguntou: — É verdade? — Ela sacudiu a cabeça para os lados com ênfase, sem falar, apesar de os lábios se moverem levemente, como se tentasse fazê-lo. Seu rosto estava assustado. Spade estendeu a mão para Gutman, que pôs sobre ela o dinheiro. Spade contou-o — nove notas de mil dólares — e devolveu-o a Gutman. Então levantou-se, com o rosto calmo mas sombrio, pegou as três pistolas de sobre a mesa, e falou em voz natural. — Quero saber o que isto significa. Nós — indicou a moça com a cabeça, mas sem olhar para ela — vamos entrar no banheiro. A porta permanecerá aberta e eu a ficarei vigiando. A não ser que desejem uma queda de três andares, não há meios de sair daqui, exceto passando pela porta do banheiro. Não tentem fazê-lo.

— Realmente — protestou Gutman — não é necessário, e sem dúvida não é muito cortês de sua parte ameaçar-nos dessa maneira. O senhor deve saber que não temos o mínimo desejo de sair.

— Saberei uma porção de coisas, quando tiver termi­nado. — Spade mostrava-se paciente, mas resoluto. — Este truque transtorna as coisas. Tenho que encontrar a solução. Não demorará muito. — Tocou o cotovelo da moça. — Vamos.

No banheiro Brigid tornou a encontrar as palavras. Pôs as mãos espalmadas sobre o peito de Spade, chegou o rosto junto ao dele, e segredou: — Eu não tirei a nota, Sam.

— Não acho que você tirou — disse ele — mas preciso saber. Tire a roupa.

— Não acredita na minha palavra?

— Não. Tire a roupa.

— Não tiro.

— Muito bem. Voltaremos à outra sala, e eu a obrigo a tirar.

Ela recuou, com a mão sobre a boca. Seus olhos estavam redondos e horrorizados. — Você faria isso? — perguntou por entre os dedos.

— Farei — disse ele. — Tenho que saber o que foi feito dessa nota, e não vou ficar tolhido pelo pudor virginal de ninguém.

— Oh, não é isso. — Ela aproximou-se e pôs-lhe a mão de novo sobre o peito. — Não me envergonho por ficar nua na sua frente, mas, não está vendo? Não dessa forma. Você não vê que se me obrigar estará matando alguma coisa?

Ele não levantou a voz. — Não sei nada disso. Tenho que descobrir o que aconteceu à nota. Dispa-se.

Ela fitou os olhos imóveis, de cor amarelo-parda, e seu rosto tornou-se vermelho, depois branco de novo. Então endi­reitou-se em toda a sua estatura, e começou a se despir. Ele sentou-se na beirada da banheira, vigiando a ela e a porta. Nenhum ruído vinha da sala de estar. Ela tirou depressa as roupas, sem se atrapalhar, deixando-as cair sobre o chão, à volta dos pés. Quando acabou afastou-se delas, e ficou olhan­do para ele. Havia orgulho na sua atitude, sem desafio ou embaraço. Ele pôs as pistolas no banco de toilette e, de frente para a porta, firmou-se sobre um joelho em frente às peças de roupa, e examinou-as uma por uma, tanto com os dedos como com os olhos, sem achar a nota de mil dólares. Quando ter­minou, levantou-se estendendo-lhe as vestes. — Obrigado — disse. — agora eu sei.

Ela tirou-lhe as roupas sem dizer uma palavra. Ele pegou as pistolas e entrou na sala de estar, fechando a porta do banheiro atrás de si. Gutman sorriu-lhe amavelmente. — Achou?

Cairo, sentado no sofá ao lado do menino, ergueu para Spade os olhos baços e interrogativos. O menino não levantou as vistas. Estava inclinado para a frente, com a cabeça entre as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos, encarando o soa­lho entre os seus pés. Spade disse a Gutman: — Não, não achei. O senhor a escondeu.

Este deu uma gargalhada. — Eu a escondi?

— Escondeu — confirmou Spade fazendo tilintar as pis­tolas na mão. — Quer confessar, ou prefere sofrer uma busca?

— Sofrer uma...?

— O senhor vai confessar, ou eu o revisto. Não há outro jeito.

Gutman levantou os olhos para o rosto enérgico de Spade e deu gargalhadas. — Por Deus, senhor, acredito que o fi­zesse. Acredito realmente. O senhor é um gênio, se não se importa que eu o diga.

— O senhor a escondeu. — repetiu Spade.

— Sim, escondi. — Tirou uma nota amassada do bolso do colete, alisou-a sobre a coxa larga, tirou do bolso do paletó o envelope contendo as nove cédulas, e pôs a nota desenru­gada junto com as outras. — Preciso me divertir um pouco de vez em quando, e estava curioso por saber o que o senhor faria numa situação dessas. Devo dizer-lhe que passou triunfal-mente no exame. Nunca me ocorreu que acertasse com um meio tão simples e tão direto para descobrir a verdade.

Spade dirigiu-lhe um sorriso zombeteiro, isento de amar­gura. — Esse procedimento é daqueles que eu teria esperado de uma pessoa da idade do moleque. — Gutman deu uma gargalhada.

Brigid 0'Shaughnessy, vestida de novo mas sem casaco e sem chapéu, saiu do banheiro, deu um passo em direção à sala de estar, voltou-se, dirigiu-se à cozinha e acendeu a luz. Cairo se aproximou mais do rapaz, no sofá e começou a segredar-lhe ao ouvido outra vez. O menino encolheu os om­bros, exasperado. Spade, olhando para as pistolas que tinha nas mãos e depois para Gutman saiu para o hall, dirigindo-se ao armário que havia lá. Abriu a porta, pôs as pistolas dentro, em cima de uma mala, fechou a porta de novo, trancou-a, meteu a chave no bolso da calça, e dirigiu-se à porta da cozinha. Brigid estava enchendo uma cafeteira de alumínio.

— Achou tudo? — perguntou Spade.

— Achei — replicou num tom frio, sem levantar a ca­beça. Então pôs a cafeteira de lado e veio para a porta. Estava corada, com os olhos grandes, úmidos e cheios de censura.

— Não me devia ter feito isso, Sam — disse com brandu­ra.

— Eu tinha que descobrir, anjo. — Curvou-se, beijou-lhe a boca de leve, e voltou à sala de estar.

Gutman sorriu-lhe e ofereceu-lhe o envelope branco, di­zendo: — Isto logo será seu; pode muito bem já ficar com ele.

Spade não o pegou. Sentou-se na cadeira de braços, e disse:

— Há muito tempo para isso. Não acabamos de conver­sar sobre o resto do dinheiro. Eu preciso receber mais do que dez mil.

— Dez mil dólares é um mundo de dinheiro.

— O senhor está repetindo o que eu disse, mas não é todo o dinheiro do mundo.

— Não, senhor, não é. Dou-lhe razão. Mas é um mundo de dinheiro para ser obtido em tão poucos dias e com tanta facilidade como o senhor o está obtendo.

— Acha que é assim tão fácil? — perguntou Spade e encolheu os ombros. — Bem, talvez seja, mas isso é comigo.

— Sem dúvida — concordou Gutman. Revirou os olhos, moveu a cabeça indicando a cozinha, e abaixou a voz. — Vai repartir com ela?

— Isso também é comigo — respondeu Spade.

— Sem dúvida — tornou a concordar o gordo — mas...

— hesitou — gostaria de lhe dar um conselho.

— Continue.

— Ousou dizer que lhe dará algum dinheiro, em todo o caso, mas... se não lhe der tanto quanto ela acha que deve receber, meu conselho é: tenha cuidado.

Os olhos de Spade tomaram uma expressão zombeteira. Ele perguntou: — Geniosa?

— Geniosa — replicou o gordo.

Spade sorriu e começou a enrolar um cigarro.

Cairo, cochichando ainda no ouvido do rapaz, tinha-lhe posto de novo o braço sobre o ombro. Repentinamente o rapaz empurrou-lhe o braço e virou-se no sofá para encarar o orien­tal, com uma expressão de repugnância e raiva no rosto. Depois fechou a mão formando um pequeno punho, e golpeou com ele a boca de Cairo, que gritou feito mulher e retraiu-se para a ponta do sofá, tirou um lenço de seda do bolso, e levou-o à boca. O lenço saiu manchado de sangue. Levou-o de novo à boca, e olhou para o rapaz com ar de censura. O rapaz rosnou: — Fique longe de mim — e pôs novamente o rosto entre as mãos. O lenço de Cairo desprendeu o perfume de "chypre" pela sala.

Seu grito atraiu Brigid à porta. Spade, sorrindo, apontou o polegar para o sofá e disse-lhe: — E o que se chama de um grande amor. Como vai a comida?

— Está saindo — disse ela, e voltou para a cozinha. Spade acendeu o cigarro e dirigiu-se a Gutman: — Fa­lemos sobre dinheiro.

— De boa vontade e com todo o coração — replicou este

— mas posso dizer-lhe desde já, com toda a franqueza, que dez mil dólares é o máximo que posso arranjar.

Spade expeliu a fumaça. — Que tal vinte?

— Desejaria que pudesse. Eu lhe daria de bom grado, se os possuísse, mas dez mil dólares é tudo de quanto posso dispor, sob minha palavra de honra. Naturalmente, o senhor compreende que este é apenas o primeiro pagamento. De­pois...

Spade riu. — Eu sei que o senhor me dará milhões mais tarde, mas fixemos isto agora. Quinze mil?

Gutman sorriu, enrugou a testa, e sacudiu a cabeça.

— Sr. Spade, eu disse-lhe franca e sinceramente, e sob minha palavra de honra de cavalheiro, que dez mil dólares é tudo quanto tenho, até o último vintém, e tudo quanto posso arranjar.

— Mas não disse isso positivamente. Gutman riu, dizendo: — Positivamente.

Spade considerou de cenho carregado: — Não é muita coisa, mas se é o máximo que pode dar, me dê. — Gutman entregou-lhe o envelope. Spade contou as notas e estava pondo-as no bolso quando Brigid entrou trazendo uma ban­deja.

O rapaz não quis comer. Cairo tomou uma xícara de café. A moça, Gutman e Spade comeram os ovos mexidos, bacon, torradas e geléia, que ela tinha preparado, e beberam duas xícaras de café cada um. Então acomodaram-se para passar o resto da noite. Gutman fumou um charuto e leu os Célebres Casos Criminais da América, dando uma gargalhada de vez em quando ou comentando os trechos que o divertiam. Cairo conservou-se amuado no canto do sofá, alisando a boca. O rapaz permaneceu sentado, com a cabeça entre as mãos, até um pouco depois das quatro horas. Deitou-se então com os pés voltados para Cairo, virou o rosto para o lado da janela, e dormiu. Brigid O'Shaughnessy, na cadeira de braços, cochi­lava, ouvia os comentários do gordo, e mantinha de vez em quando ligeiras conversações com Spade. Este enrolava ci­garros e movimentava-se ao redor do quarto, sem impaciência ou nervosismo. Sentou-se algumas vezes no braço da cadeira da moça, no canto da mesa, no chão aos pés dela, ou numa cadeira de_ encosto reto. Estava bem acordado, alegre e cheio de vigor. Às cinco e meia, entrou na cozinha e fez mais café. Meia hora mais tarde o menino acordou e sentou-se, boce­jando. Gutman olhou o relógio e interrogou Spade: — Pode mandá-lo vir agora?

— Dê-me mais uma hora. Gutman aquiesceu e voltou ao livro.

Às sete horas Spade foi ao telefone e chamou o número de Effie Perine. — Alo, Sra. Perine?... Aqui é o Sr. Spade. Posso falar com Effie, por obséquio?... Sim, é isso... Obrigado. — Assobiou baixinho duas passagens de "En Cuba". — Alo, anjo. Sinto acordá-la... Sim, muito. Aqui está a incumbência: na nossa caixa "Holland" no Correio, você encontrará um envelope endereçado com minha letra. Há nele um talão de registro da sala da guarda de volumes da Estação Pickwick, relativo ao embrulho que recebemos ontem. Quer pegar o embrulho e trazer-mo aqui, imediatamente?... Sim, estou em casa... É isso, meu bem, vá depressa... Até logo.

A campainha da porta tocou quando faltavam dez minu­tos para as oito. Spade dirigiu-se ao telefone e apertou o botão que soltava o fecho. Gutman abandonou o livro e levan­tou-se, sorrindo. — Não se incomoda que o acompanhe até à porta? — perguntou.

— Pois não — concordou Spade.

Gutman seguiu-o à porta do corredor. Spade abriu-a. Nesse momento Effie Perine, carregando o embrulho de papel pardo, veio do elevador. Seu rosto juvenil estava alegre e brilhante e ela adiantou-se rapidamente, quase correndo. Após um olhar, a moça desviou os olhos de Gutman. Sorriu para Spade, e deu-lhe o pacote. Ele pegou-o, dizendo: — Mil graças, senhora. Sinto ter estragado o seu dia de descanso, mas isto...

— Não é o primeiro que estraga — replicou ela, rindo, e logo, quando se tornou visível que ele não a convidaria a entrar, perguntou: — Mais alguma coisa?

— Ele sacudiu a cabeça. — Não, obrigado.

— Até logo — disse ela, e voltou para o elevador. Spade fechou a porta e carregou o pacote para a sala de

estar. O rosto de Gutman estava vermelho e suas faces tre­miam. Cairo e Brigid 0'Shaughnessy aproximaram-se da mesa quando Spade largou o pacote sobre ela. Estavam exci­tados. O menino levantou-se, pálido e tenso, mas conservou-se junto ao sofá olhando para os outros, sob as pestanas curvas. Spade afastou-se da mesa, dizendo: Aí está.

Os dedos gordos de Gutman rapidamente se desemba­raçaram da corda, do papel e do papel sanfonado, e ele teve afinal o pássaro preto nas mãos. — Ah — disse com voz rouca — agora, depois de dezessete anos! — Seus olhos estavam úmidos. Cairo lambeu os lábios vermelhos e juntou as mãos. A moça mordia o lábio inferior. Ela e Cairo, assim como Gutman, Spade e o menino, respiravam pesadamente. O ar da sala estava frio e viciado, e pesado de fumaça. Gutman pôs o pássaro de novo sobre a mesa e remexeu num bolso. — É ele — disse — mas precisamos ter certeza. — O suor brilhava nas suas faces redondas. Seus dedos tremiam quando tirou um canivete, e o abriu.

Cairo e a moça conservaram-se junto dele, um de cada lado. Spade ficou um pouco para trás, de onde podia vigiar tanto o menino como o grupo junto à mesa. Gutman virou o pássaro de cabeça para baixo e raspou uma beira da base com o canivete. O esmalte preto saiu em anéis finos, deixando à vista o metal enegrecido por baixo. A lâmina do canivete penetrou no metal, tirando uma lasca delgada e curva. A parte interna da lasca e a estreita superfície que fora deixada pela remoção tinham o brilho cinzento e apagado do chum­bo. A respiração de Gutman sibilou entre os dentes. Seu rosto ficou entumescido pela cólera. Revirou o pássaro e raspou-lhe a cabeça. Aí também a lâmina do canivete pôs chumbo a descoberto. Então bateu com violência o pássaro e o canivete sobre a mesa, enquanto se virava para encarar Spade. — É falso — disse com voz rouca.

O rosto de Spade tinha se tornado sombrio. O movimento de cabeça que fez, concordando, foi lento, mas não havia lentidão em suas mãos ao se estenderem para prender o pulso de Brigid. Puxou-a para ele, e agarrou-lhe o queixo com a outra mão, levantando-lhe rispidamente o rosto. — Muito bem — rosnou-lhe no rosto. — Já fez a sua piada. Agora conte tudo.

— Não, Sam, não! Esse é o que tirei de Kemidov. Juro — gritou ela.

Joel Cairo arremessou-se entre Spade e Gutman e come­çou a emitir palavras numa torrente tumultuosa e penetrante.

— Ê isso! Foi o russo! Eu devia saber! Como nós o achamos idiota, e que idiotas ele fez de nós! — As lágrimas lhe corriam pelas faces, e ele dançava de um lado para o outro. — O senhor estragou tudo! — vociferou para Gutman. — O senhor e a sua estúpida tentativa de comprar dele! Seu tolo presu­mido! Deixou-o perceber que tinha valor, e ele descobriu quanto valor tinha, e fez uma duplicata para nós! Não admira que tivéssemos tão pouco trabalho para roubá-lo. Não admira que ele estivesse tão desejoso de me mandar correr o mundo para procurá-lo! Seu imbecil! Seu idiota presunçoso! — Levou as mãos ao rosto, e soluçou.

O queixo de Gutman pendeu. Piscou os olhos vagos. Sacudiu-se, então, e voltou a ser de novo — a essa altura seus bulbos tinham parado de sacudir — um gordo jovial. — Vamos — disse bem-humorado — não precisa continuar. Todo mundo erra de vez em quando, e pode ter a certeza de que é um golpe tão rude para mim como para qualquer um dos outros. Sim, é a mão do russo, não há dúvida nenhuma. Bem, o que sugere? Vamos ficar aqui derramando lágrimas e nos xingando uns aos outros? Ou vamos — ele parou, com um sorriso angelical — para Constantinopla?

Cairo tirou as mãos do rosto e seus olhos saltaram. Ga­guejou: — O senhor vai? — O espanto, chegando ao mesmo tempo que a compreensão, tirou-lhe a fala.

Gutman bateu as mãos gordas uma na outra. Seus olhos cintilaram. Sua voz tornou-se um afável ronronar gutural: — Durante dezessete anos tenho desejado esta peça e tentado consegui-la. Se me for preciso gastar mais um ano na pes­quisa, bem, será uma despesa adicional de tempo, de apenas — seus lábios moveram-se silenciosamente enquanto calcu­lava — cinco e cinco... dezessete avos por cento.

Cairo deu uma risadinha nervosa e gritou: — Eu vou junto!

Spade largou de repente o pulso da moça e olhou em redor da sala. O rapaz tinha desaparecido. Dirigiu-se ao hall. A porta do corredor estava aberta. Fazendo um muxoxo de descontentamento, fechou a porta e voltou à sala de estar. Encostou-se ao batente, e olhou para Cairo, e durante longo tempo para Gutman, aborrecido. Depois falou, arremedando o seu ronronar gutural: — Bem, devo dizer que são uma bela quadrilha de ladrões.

Gutman deu uma gargalhada. — Temos pouco de que nos orgulhar, isso é verdade — disse ele. — Mas, nenhum de nós foi preso ainda, e não há a mínima vantagem em pensar que o mundo se acabaria só porque caímos numa pequena reincidência. — Tirou a mão esquerda de trás das costas e estendeu-a a Spade, com a palma macia, rosada e carnu­da voltada para cima. — Precisarei pedir-lhe aquele enve­lope.

Spade não se moveu. Seu rosto estava rígido. Disse: — Eu cumpri a minha parte. O senhor recebeu o seu bibelô. É falta de sorte, sua, não minha, que ele não fosse o que o senhor queria.

— Ora vamos — disse Gutman persuasivamente — to­dos nós fracassamos, e não há razão para esperar que um de nós sofra as conseqüências, e — tirou a mão direita de trás das costas. Nela estava um revólver pequeno, com incrustações e embutidos de prata, ouro e madrepérola. — Em resumo, quero pedir-lhe que me devolva os meus dez mil dólares.

O rosto de Spade não se alterou. Encolheu os ombros e tirou o envelope do bolso, começou a estendê-lo a Gutman, hesitou, abriu-o, e tirou uma nota de mil dólares. Pôs a cédula no bolso da calça. Enfiou a aba do envelope sobre as outras notas, e estendeu-o a Gutman. — Isso será para pagar meu tempo e minhas despesas — disse.

Gutman, após uma pequena pausa, imitou o encolher de Spade e aceitou o envelope, dizendo: — Agora, nós lhe dire­mos adeus, a não ser que — as pregas de gordura em volta dos seus olhos se comprimiram — o senhor queira empreen­der a expedição a Constantinopla conosco. Não quer? Fran­camente eu gostaria de tê-lo em nossa companhia. O senhor é um homem do meu gosto, um homem de muitos recursos e bom discernimento. E porque sabemos que o senhor é um homem de bom discernimento, sabemos que lhe podemos dizer adeus com toda a certeza de que guardará em segredo os detalhes da nossa pequena empresa. Sabemos que podemos contar consigo para apreciar o fato de que, como estão as coisas, quaisquer dificuldades legais que surjam relacionadas a estes últimos dias, atingiriam igualmente e do mesmo modo o senhor e a encantadora Srta. O'Shaughnessy. O senhor é muito perspicaz para não reconhecer isso.

— Compreendo — replicou Spade.

— Tinha a certeza disso. Estou certo também de que agora o senhor conseguirá se arranjar de qualquer forma com a polícia, sem um bode expiatório.

— Eu me arranjarei — tornou Spade.

— Tinha a certeza disso. Bem, as melhores despedidas são as mais curtas. Adeus. — Fez um cumprimento majes­toso. — E para a senhora, Srta. O'Shaughnessy, adeus. Deixo-lhe a avis rara sobre a mesa, como uma pequena recor­dação.

 

                   SE ELES A ENFORCAREM

Durante uns cinco minutos após ter se fechado a porta ex­terna sobre Gaspar Gutman e Joel Cairo, Spade, imóvel, con­servou os olhos fixos no trinco da porta aberta da sala de estar. Seus olhos mantinham-se sombrios sob a testa enru­gada. Os sulcos na base do nariz estavam fundos e vermelhos. Os lábios pendiam frouxamente, formando um beiço. Ele recolheu-os fazendo um V inflexível, e dirigiu-se ao telefone. Não tinha ainda olhado para Brigid, que se conservara junto à mesa, observando-o com olhos apreensivos.

Pegou então o telefone, colocou-o de novo na prateleira, e abaixou-se para olhar o indicador pendente de um canto da mesma. Voltou as páginas rapidamente, até encontrar a que queria, correu o dedo por uma coluna, endireitou-se, e levan­tou de novo o telefone. Chamou um número: — Alo, o Sarg. Polhaus está?... Quer chamá-lo, por obséquio? Aqui é Sa­muel Spade... — Depois ficou com o olhar perdido no espaço esperando. — Alo, Tom, tenho uma coisa para você... Sim, muito. É isto: Thursby e Jacobi foram mortos por um rapaz chamado Wilmer Cook. — Descreveu-o minuciosamente. — Ele está trabalhando para um homem chamado Gaspar Gut­man. — Descreveu Gutman. — Aquele camarada Cairo, que você encontrou aqui, também está com eles... Sim, é isso. Gutman está hospedado no Alexandria, apartamento 12-C, ou estava. Eles acabaram de sair daqui e estão batendo a cidade, por isso você tem que andar depressa, mas não julgo que estejam receando uma prisão... Há uma moça também nisso, a filha de Gutman. — E descreveu Rhea Gutman — Tome cuidado quando enfrentar o garoto. Parece ser muito bom no tiro... Ê isso, Tom, e tenho uma coisa aqui para você. Acho que estou com as armas que ele usou... Muito bem. Ande depressa... e felicidades!

Spade lentamente recolocou o receptor no gancho, o tele­fone na prateleira. Depois umedeceu os lábios e olhou para as mãos. Tinham as palmas úmidas. Encheu de ar o peito pro­fundo. Seus olhos resplandeciam entre as sobrancelhas aper­tadas. Voltou-se e deu três passos longos e rápidos pela sala. Brigid 0'Shaughnessy, sobressaltada pelo imprevisto da sua aproximação, soltou a respiração num pequeno arquejo riso­nho. Spade, face a face com ela, muito próximo, alto, ossudo e musculoso, sorrindo friamente, de olhar duro e queixo enér­gico, disse: — Eles falarão, quando forem fisgados, sobre nós. Estamos sentados sobre dinamite e temos apenas alguns mi­nutos para nos aprontarmos, para receber a polícia. Diga-me tudo, depressa. Gutman mandou-a com Cairo para Constan­tinopla?

Ela fez menção de falar, hesitou, e mordeu o lábio.

Ele pôs-lhe a mão sobre o ombro. — Fale, porra! — disse. — Estamos os dois implicados nisto, e você não vai me enganar agora. Fale. Ele mandou-a para Constantinopla?

— Sim, mandou-me. Encontrei Joel lá e... e pedi-lhe para me ajudar. Então nós...

— Você pediu a Cairo para ajudá-la a subtrair o pássaro de Kemidov?

— Pedi.

— Para Gutman?

Ela hesitou de novo, revolveu-se sob o seu olhar severo e irritado, engoliu em seco e disse: — Não, não nessa ocasião. Pensamos que pudéssemos obtê-lo para nós.

— Muito bem. Depois?

— Oh, depois eu comecei a recear que Joel não fosse correto comigo, então... então pedi a Floyd Thursby para me ajudar.

— E ele ajudou. E aí?

— Bem, nós o conseguimos, e fomos para Hong-Kong.

— Com Cairo? Ou já o tinham suprimido antes disso?

— Já. Nós o deixamos em Constantinopla, na cadeia... por.um negócio de um cheque.

— Um negócio que vocês combinaram para prendê-lo lá?

Ela pareceu envergonhada e murmurou: — É.

— Muito bem. Agora você e Thursby estão em Hong-Kong com o pássaro.

— Sim, e então... eu não o conhecia muito bem... não sabia se podia confiar nele. Pensei que seria mais seguro... de

qualquer forma, encontrei o Capitão Jacobi e soube que seu navio vinha para cá, e pedi-lhe para me trazer um pacote, que era o pássaro. Eu não tinha a certeza de poder confiar em Thursby, ou esse Joel ou... ou que alguém sob as ordens de Gutman não estivesse no navio em que viemos, e esse parecia o plano mais seguro.

— Muito bem. Então você e Thursby tomaram um navio mais rápido. E depois?

— Depois... depois eu estava com medo de Gutman. Sabia que ele tinha gente, ligações, em toda parte, e logo ficaria sabendo o que tínhamos feito. E tinha medo que tivesse sabido que deixáramos Hong-Kong para vir a São Francisco. Ele estava em Nova Iorque e eu sabia que se tivesse aviso por cabograma, podia bem chegar aqui ao mesmo tempo que nós, ou até antes. Foi o que aconteceu. Eu não sabia disso então, mas receava-o, e precisava esperar até à chegada do navio do Capitão Jacobi. E tinha medo que Gutman me encontrasse, ou que encontrasse Floyd e o comprasse. Foi por isso que pro­curei você e lhe pedi para vigiá-lo a fim de...

— Isso é mentira — disse Spade. — Você tinha Thursby amarrado e sabia disso. Ele era um pateta com as mulheres. Sua ficha prova isso: as únicas derrotas que sofreu foram por causa de mulher. E bobo uma vez, bobo sempre. Talvez você não conhecesse a sua folha de antecedentes, mas sabia que o tinha preso. — Ela corou e olhou-o com timidez. Ele conti­nuou: — Você queria afastá-lo do caminho antes de Jacobi chegar com o produto do roubo. Qual era o seu plano?

— Eu... eu sabia que ele tinha deixado os Estados Uni­dos com um jogador profissional, após algumas complicações. Não sabia o que era, mas pensei que se fosse qualquer coisa grave, e se visse um detetive vigiando-o, julgaria que era a encrenca antiga, e ficaria amedrontado a ponto de se ir em­bora. Não pensei...

— Você contou-lhe que estava sendo seguida — disse Spade com firmeza. — Miles não era muito inteligente, mas não era tão inábil que fosse notado logo na primeira noite.

— Contei-lhe, sim. Quando saímos para dar um passeio essa noite, fingi descobrir o Sr. Archer nos seguindo e indi­quei-o a Floyd. — Ela soluçou. — Mas por favor, acredite, Sam, que eu não o teria feito se pensasse que Floyd o mataria. Julguei que ele se assustasse e deixasse a cidade. Nem por um minuto pensei que o matasse assim.

Spade sorriu ferozmente com os lábios, mas não com os olhos. E disse: — Se você pensou que Floyd não o mataria, pensou certo, anjo. — O rosto erguido da moça denunciava extremo espanto. Spade prosseguiu: — Thursby não o matou.

— A incredulidade misturou-se ao espanto, no rosto da moça. Ele continuou: — Miles não era muito inteligente, mas, porra, tinha muitos anos de experiência como detetive, para ser apa­nhado assim pelo homem que estava seguindo. Em um beco sem saída, com a arma guardada no quadril e o sobretudo abotoado? Não é possível. Era tão pouco inteligente como pode ser qualquer homem, mas tanto assim também não. As duas únicas saídas do beco podiam ser vigiadas da extremi­dade da Rua Bush, sobre o túnel. Você nos contou que Thursby era mau ator. Ele não podia ter atraído Miles para dentro do beco daquela forma, e não o podia ter levado à força. Miles era burro, mas não tão burro, assim.

Spade correu a língua sobre a parte interna dos lábios, e sorriu afetuosamente para a moça: — Mas ele teria ido com você, anjo, se tivesse a certeza de que não havia ninguém mais lá. Você era sua cliente, portanto não teria razão para não abandonar aquele que estava seguindo, se você lhe dissesse para fazê-lo, e se o atraísse e pedisse para subir lá, ele teria ido. Era bastante idiota para isso. Ele a teria examinado de cima a baixo, lambido os lábios, e caminhariam com risadinhas e cochichos, e então você podia ter parado junto dele, no escuro, e feito um buraco no seu corpo com a arma que tirara de Thursby nessa noite.

Brigid recuou tremendo, até que a beira da mesa a obri­gou a parar. Então olhou-o com olhos aterrados, e gritou:

— Não! Não me fale assim, Sam! Você sabe que não fui eu! Você sabe...

— Pare com isso. — Olhou para o relógio do pulso.

— A polícia chegará a qualquer momento, e nós estamos sentados sobre dinamite. Fale!

Ela levou as costas da mão à testa. — Oh, por que você me acusa de uma coisa tão terrível... ?

— Quer parar com isso? — perguntou ele em voz baixa e impaciente. — Este não é o lugar próprio para se fazer de menina de escola. Escute. Nós dois estamos sentados sobre o cadafalso. — Então agarrou-lhe os pulsos, e obrigou-a a ficar ereta na sua frente. — Fale!

— Eu... eu... Como você sabe que...! — ela lambeu os lábios e olhou.

Spade teve uma risada áspera. — Eu conhecia Miles. Mas não faça caso disso. Por que você o matou?

Ela retorceu os pulsos soltando-os dos dedos de Spade e rodeou-lhe a parte posterior do pescoço com as mãos, pu­xando-lhe a cabeça para baixo, até que toda a sua boca ficasse unida à dela. Seu corpo colava-se ao dele, desde os joelhos até

o peito. As pálpebras franjadas de pestanas escuras estavam semicerradas sobre olhos de veludo.

A voz saiu baixa, palpitante: — A princípio eu não queria fazer isso. Não queria mesmo. Meu plano era o que lhe contei, mas quando vi que Floyd não podia ser amedrontado eu...

Spade bateu-lhe no ombro, dizendo: — Isso é mentira. Você pediu a Miles e a mim que fôssemos nós mesmos. Queria ter a certeza de que o seguidor era alguém que você conhecia, e que a conhecia, assim a acompanharia. E tirou o revólver de Thursby nesse dia, nessa noite. Já tinha também alugado o apartamento no Coronet. Suas malas estavam lá, e não no hotel, e quando remexi o apartamento encontrei um recibo de aluguel datado de uns cinco ou seis dias antes da data de que me falou.

Ela engoliu com dificuldade, e falou com voz humilde. — Sim, é uma mentira, Sam. Eu pensava se Floyd... eu... eu não posso olhar para você e contar-lhe isto, Sam. — Então puxou-lhe mais a cabeça, até seu rosto ficar encostado ao dele, a boca junto ao seu ouvido, e segredou: — Eu sabia que Floyd não se intimidaria facilmente, mas pensei que se sou­besse que alguém o estava seguindo ou... Oh, eu não posso dizer isso, Sam! — Abraçou-se a ele, soluçando.

— Você pensou que Floyd se atracaria a ele, e um ou outro sucumbiria. Se esse um fosse Thursby, você estaria livre dele. Se fosse Miles, você podia providenciar para que Floyd fosse preso, e também ficaria livre dele. É isso?

— M... mais ou menos.

— E quando descobriu que Thursby não tencionava se atracar com Miles você tomou emprestado o revólver, e fez você mesma o serviço. Não foi?

— Sim... apesar de não ser exatamente assim.

— Mas mais ou menos. E você tinha esse plano desde o começo. Você achou que Floyd seria preso.

— Eu... eu pensei que eles o prenderiam pelo menos até depois do Capitão Jacobi ter chegado com o falcão e...

— E você não sabia então que Gutman estava aqui, à sua procura. Não suspeitou isso, ou não teria traído seu capanga. Você teve conhecimento de que Gutman estava aqui assim que soube que Thursby fora assassinado. Então veri­ficou que precisava de outro protetor, e voltou imediatamente para mim. Foi ou não foi?

— Sim, mas... oh, meu amor!... não foi só isso. Eu teria voltado para você mais cedo ou mais tarde. Desde o primeiro instante em que o vi tive a certeza...

Spade disse com voz terna: — Meu anjo! Bem, se você tiver sorte, sairá de San Quentin daqui a vinte anos, e pode então voltar para mim. — Ela afastou o rosto do dele, re­cuando a cabeça para encará-lo, sem compreender. Ele estava pálido. Continuou com ternura: — Espero em Deus que não a enforquem, meu bem, por causa desse lindo pescoço. — Fez então as mãos deslizarem subindo até à garganta da moça, para acariciá-la.

Em um instante ela estava fora dos seus braços, com as costas de encontro à mesa, encolhendo-se, as duas mãos es­palmadas sobre a garganta. Tinha os olhos alucinados, o ar assombrado. A boca seca abriu-se e fechou-se. Depois disse numa voz ressequida: — Você não vai... — Não pôde articu­lar outras palavras.

O rosto de Spade estava agora amarelado. A boca sorria, e havia rugas sorridentes em torno dos olhos brilhantes. A voz continuava suave, meiga. — Vou entregar você. Há possibi­lidades de que saia com vida. Isso quer dizer que estará livre de novo dentro de vinte anos. Você é um anjo. Prometo esperar. — Pigarreou. — E, se eles a enforcarem, sempre me lembrarei de você.

Ela deixou cair as mãos, e ficou ereta. Seu rosto tornou-se liso e calmo, excetuando-se apenas um leve brilho de incer­teza no olhar. Depois sorriu-lhe também, com meiguice. — Não, Sam, não diga isso nem por brincadeira. Oh, você me assustou por um momento! Pensei realmente que você... Você sabe, você faz coisas tão estranhas e imprevistas que... — Ela parou de repente, avançou o rosto e fitou-o bem dentro dos olhos. Sua face e sua boca estremeceram, e o medo voltou ao seu olhar. — O quê...? Sam! — Então levou as mãos à gar­ganta outra vez, e perdeu a atitude ereta.

Spade riu. Seu rosto amarelado estava úmido de suor, e apesar de conservar o sorriso, não pôde manter a suavidade da voz. E grasnou: — Não seja idiota. Você está sendo presa. Um de nós tem que ser, depois do falatório que aqueles camaradas hão de fazer. Eles me enforcariam, sem dúvida. Você com certeza terá melhor sorte. Bem?

— Mas... mas, Sam, você não pode! Não pode, depois do que fomos um para o outro. Você não pode...

— Vou à merda se não posso.

Ela tomou uma respiração funda e tremula. — Você esteve se divertindo comigo? Fingiu apenas que gostava de mim... para me apanhar? Você então não gostava? Você nunca... você não... me a... ama?

— Acho que amo — disse Spade. — E daí? — Os músculos que sustentavam o seu sorriso no lugar saltaram

como cabos. — Eu não sou Thursby. Nem Jacobi. Não vou bancar o idiota para você.

— Isso não é justo — gritou ela. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. — É desleal. É indigno de você. Você sabe que não era isso. Não pode dizer que era.

— Diabos me levem se não posso. Você dormiu comigo para acabar com as minhas perguntas. Você ontem me afas­tou com aquele pedido telefônico de socorro, para servir Gut­man. A noite passada você veio aqui com eles e esperou por mim lá fora, e entrou comigo, e estava em meus braços enquanto a armadilha se achava preparada; eu não poderia ter puxado uma arma, mesmo que a tivesse comigo, e não poderia ter transformado tudo numa luta, ainda que quisesse. E se eles não a levaram junto foi apenas porque Gutman tem muito senso para confiar em você a não ser em pequenos entreatos, quando tem muita necessidade, e porque ele pen­sou que eu bancaria o idiota para você e, não querendo atingi-la, eu não teria meios de o atingir.

Brigid O'Shaughnessy susteve as lágrimas. Deu um passo em direção a Spade e encarou-o nos olhos, direta e altiva. — Você me chamou de mentirosa — disse. — E agora está mentindo. Você mente se disser que não sabe, no fundo do seu coração que, a despeito de tudo quanto fiz, eu o amo.

Spade inclinou-se fazendo uma mesura curta e repentina. Seus olhos estavam ficando congestionados, mas não se per­cebia outra mudança no rosto amarelado e úmido, inalteravelmente sorridente. — Talvez saiba — disse ele. — E então? poderia confiar em você? Em você que preparou essa pequena peça para... para o meu predecessor, Thursby? Em você que assassinou Miles, um homem contra quem não tinha nada, a sangue-frio, exatamente como quem mata mosca, apenas para trair Thursby? Você que traiu Gutman, Cairo, Thursby: um, dois, três? Você que nunca foi sincera comigo durante meia hora, desde que a conheci? Poderia confiar em você? Não, não, meu bem. Não faria isso, mesmo que pudesse. Para quê?

Os olhos da moça estavam firmes sob os dele, e a sua voz abafada mostrava-se também firme quando replicou: — Se você esteve se divertindo comigo, se não me ama, não há res­posta para isso. Se me ama, não há necessidade de resposta.

O sangue raiava agora as pupilas de Spade e o sorriso tanto tempo sustentado tornara-se uma careta medonha. Ele desembaraçou com força a garganta e disse: — Discursos não adiantam nada, agora. — Pôs-lhe então a mão sobre o ombro. A mão tremia e balançava. — Não me importa quem ama, ou a quem ama. Não vou bancar o idiota para você. Não quero seguir os passos de Thursby, e quem sabe de quem mais. Você matou Miles e vai ser presa por isso. Eu podia tê-la ajudado, deixando os outros irem embora e evitando a polícia o melhor que pudesse. É tarde demais agora para isso. Não posso mais ajudá-la. E não a ajudaria, se pudesse.

Ela pôs a mão sobre a dele, no seu próprio ombro. — Não me ajude então — murmurou — mas não me prejudique. Deixe-me ir agora.

— Não — disse ele. — Estou perdido se não a tiver para entregar à polícia, quando vierem. Ê a única coisa que pode me impedir de afundar com os outros.

— Não quer fazer isso por mim?

— Não bancarei o idiota por você.

— Não diga isso, por favor. — Ela tirou a mão dele do seu ombro e encostou-a ao rosto. — Por que você precisa fazer isso, Sam? Sem dúvida o Sr. Archer não era para você tão importante...

— Miles — disse Spade com voz rouca — era um idiota. Descobri isso na primeira semana em que fizemos sociedade, e pretendia despachá-lo assim que terminasse o ano. Você não me fez o mínimo dano matando-o.

— Então por quê?

Spade puxou a mão que estava presa na dela. Não sorria mais, nem fazia mais careta. Seu rosto amarelo e úmido estava rígido, e com profundos sulcos. — Escute — disse. — Não adianta nada. Você nunca me compreenderá, mas tentarei mais uma vez, e depois não falaremos mais nisso. Quando o sócio de um homem é assassinado, presume-se que esse homem tome alguma providência, não importa o juízo que faça a seu respeito. Era seu sócio, e presume-se que ele faça alguma coisa. Ora, acontece que trabalhávamos como detetives. Bem, quando alguém dessa firma é assassinado, é mau negócio deixar escapar o assassino. É mau para todos: mau para a firma, mau para cada detetive isoladamente. Terceiro, eu sou um detetive, e esperar que eu subjugue os criminosos e depois os deixe sair em liberdade, é o mesmo que fazer um cachorro caçar um coelho e soltá-lo depois. Pode-se fazer, é verdade, e faz-se algumas vezes, mas não é normal. O único meio de eu deixá-la ir em liberdade, seria deixar Gutman e Cairo e o rapaz irem também. Isso é...

— Você não está falando sério — disse ela. — Você não vai esperar que eu pense que essas coisas que me está dizendo são razão suficiente para me mandar para a...

— Espere que eu acabe, e então você pode falar. Quarto, não importa o que eu desejasse fazer agora, seria absoluta­mente impossível para mim deixá-la fugir, sem ser por minha própria culpa arrastado à forca com os outros. Depois, não tenho razão nenhuma, neste mundo de Deus, para pensar que posso confiar em você, e se eu fizesse isto e depois você saísse livre, teria sempre uma arma contra mim, que poderia utilizar quando lhe aprouvesse. O sexto seria que, tendo eu também uma arma contra você, nunca teria a certeza de que você não decidiria me meter uma bala qualquer dia. Sétimo, não me agrada absolutamente a idéia de que poderia haver uma chance em cem, de que eu fosse um pateta. E oitavo... mas chega. Todas estas de um lado. Talvez algumas delas sejam sem importância. Não discutirei isso. Agora, do outro lado, que temos nós? Apenas o fato de que talvez você me ame, e talvez eu a ame.

— Você sabe — murmurou ela — se me ama ou não.

— Não sei. É muito fácil perder a cabeça por sua causa.

— Olhou-a com avidez dos cabelos aos pés, e voltou de novo até os seus olhos. — Mas eu não sei até onde vai isso. Sabe alguém, por acaso, nessas ocasiões? Mas suponha que eu saiba. Que adianta? Talvez no mês que vem já não a ame. Já tenho passado por isso, se é que durou tanto. E então? Então pensarei que banquei o idiota. E se o fizesse e fosse preso, então teria a certeza de que era um idiota. Bem, se a mandar presa, ficarei infinitamente triste, passarei algumas noites de­testáveis, mas isso passará. Escute. — Ele pegou-a pelos ombros e dobrou-a para trás, inclinando-se sobre ela. — Se isso não significa coisa alguma para você, esqueça, e vamos pôr a coisa nestes termos: eu não farei nada porque todo o meu ser quer que eu faça isso, quer que eu mande para o inferno as conseqüências e que o faça, e porque, Deus a cas­tigue, você contou com isso em relação aos outros. — Ele tirou as mãos dos ombros da moça e deixou-as pender dos lados.

Ela pôs as mãos no rosto dele e puxou-o de novo. — Olhe para mim — disse — e diga-me a verdade. Você me teria feito isso se o falcão fosse verdadeiro, e você tivesse recebido o seu dinheiro?

— Que diferença faz isso? Não fique muito convencida de que eu seja tão perverso como me supõe. Essa espécie de reputação pode ser um bom negócio, trazendo serviços lucra­tivos e tornando mais fácil de lidar com o inimigo. — Ela o olhou, sem dizer nada. Ele encolheu os ombros: — Bem, uma porção de dinheiro teria sido pelo menos um item a mais, do lado oposto da série.

Ela aproximou o rosto do dele. Sua boca estava ligeira­mente aberta, com os lábios um pouco salientes. Murmurou:

— Se você tivesse amor, não precisaria pôr mais nada desse lado.

Spade cerrou os dentes e disse através deles: — Não ban­carei o idiota para você.

Ela encostou a boca na dele, lentamente, rodeando-o com os braços, enquanto os braços dele a envolviam. Foi então que a campainha da porta tocou.

Spade, conservando o braço esquerdo em volta de Brigid 0'Shaughnessy, abriu a porta do corredor. O Ten. Dundy, o Sargento-detetive Tom Polhaus, e dois outros detetives es­tavam lá.

— Alo, Tom. Agarrou-os? — perguntou Spade.

— Agarrei-os.

— Ótimo. Entrem. Aqui tem outra para vocês. — Spade impeliu a moça para a frente. — Ela matou Miles. E tenho algumas provas: as pistolas do rapaz, uma de Cairo, uma estatueta preta que foi a causa da encrenca, e uma nota de mil dólares com a qual supunham ter me subornado. — Olhou para Dundy, contraiu as sobrancelhas, inclinou-se para es­preitar o rosto do tenente, e caiu na risada. — O que há com o seu parceiro, Tom? Parece desolado. — Riu de novo. — Aposto, porra, que quando ouviu Gutman, pensou que me apanhara, afinal!

— Chega, Sam — rosnou Tom. — Nós não pensamos...

— O diabo que ele não pensou — disse Spade, ale­gremente. — Veio aqui com água na boca, apesar de você ter tido o senso suficiente para saber que estive cozinhando Gut­man.

— Chega — rosnou Tom de novo, olhando de lado, constrangido, para o seu superior. — De qualquer forma, nós soubemos por Cairo. Gutman está morto. O garoto tinha aca­bado de matá-lo quando chegamos.

— Ele devia ter esperado por isso — disse Spade.

 

Effie Perine largou o jornal e pulou da cadeira de Spade quando este entrou no escritório, um pouco depois das nove, segunda-feira de manhã.

— Bom dia, anjo — saudou ele.

— É verdade o que dizem os jornais? — perguntou ela.

— Sim, senhora. — Descansou o chapéu sobre a escri­vaninha e sentou-se. Seu rosto tinha uma cor embaçada, mas estava cheio de energia e de bom humor e seus olhos, apesar de um pouco raiados de vermelho, mostravam-se brilhantes. Os olhos castanhos da moça estavam singularmente dilatados, e ela tinha a boca estranhamente retorcida. Postou-se ao lado dele, encarando-o. Ele levantou a cabeça, sorriu, e disse zom­beteiro: — Formidável, a sua intuição feminina!

A voz da moça estava estranha como a expressão do seu rosto. — Você fez isso, Sam, com ela?

Ele aquiesceu com a cabeça. — O seu Sam é um detetive.

— Depois olhou-a intensamente, rodeou-lhe a cintura com o braço, apoiando-lhe a mão sobre o quadril. — Ela assassinou Miles, anjo — disse com brandura — intempestivamente, assim. — E estalou os dedos.

Ela escapou-lhe do braço como se ele a tivesse magoado.

— Não, por favor, não me toque — disse em voz desfalecida. — Eu sei... eu sei que você tem razão. Você tem razão. Mas não me toque agora... não agora. — O rosto de Spade tor­nou-se branco como o seu colarinho. O trinco da porta do corredor rangeu. Effie Perine voltou-se rapidamente e entrou na sala externa, fechando a porta atrás de si. Quando voltou, tornou a fechá-la. E disse numa vozinha monótona: — Iva está aí.

Spade, com os olhos pregados na escrivaninha, fez uma inclinação quase imperceptível de cabeça. — Sim — disse com um estremecimento. — Bem, mande-a entrar.

 

                                                                                 Dashiell Hammett  

 

 

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