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Desejaria ardentemente obter uma narrativa completa do espírito de Thermutis, a filha do Faraó tão intimamente ligada à sorte do grande legislador hebreu e que a lenda chama de sua mãe adotiva. Mas a evocação é dolorosa ao seu espírito e muitos fatos lhe parecem sagrados para serem divulgados e talvez mesmo não fossem cridos:finalmente, tudo o que se refere à personalidade de Moisés é-lhe sumamente caro, sendo que a idéia que dele faz Mernephtah - que não pode guardar boa recordação do libertador de Israel - muito a entristece, embora esse julgamento seja imparcial.
Os espíritas sabem que a individualidade, livre do corpo material, conserva seus pendores, opiniões, princípios e, principalmente, a vontade; e assim sendo, compreenderão que devo, pois, submeter-me às restrições desejadas por Thermutis, a qual somente em consideração ao meu pedido e dos meus guias, e para não prejudicar a obra que tenho empreendido, consentiu em ditar-me alguns episódios da sua vida, reportando-se, principalmente, ao homem que tão caro custou ao Egito - episódios que ajudarão a esclarecer esse longínquo passado envolto no impenetrável véu dos séculos decorridos.
NARRATIVA DO ESPÍRITO DE THERMUTIS
Sob impressão dolorosa, acedo ao desejo de Rochester e dos seus Guias em narrar alguns episódios dessa longínqua existência terrena, de forma a provar, uma vez mais,
que o coração humano não muda e que uma elevada posição social não vos preserva, jamais, de sofrimentos morais comuns à humanidade.
Evocando dores e fraquezas que fazem esquecer a mulher oriunda de casta e preconceitos reais, confesso que minha repugnância provém, em parte, do temor desse preconceito,
soberano senhor da sociedade, de que nos fazemos escravos. Por isso, devo recordar aos espíritas que não existe entre os espíritos nem egípcios nem hebreus, e que
somente virtudes ou vícios formam eleitos ou réprobos.
Na época em que se inicia esta narrativa e onde se desenrolou o episódio que decidiu meu futuro, a Corte egípcia possuía sua sede em Tanis, particularmente apreciada
pelo meu irmão, o Faraó Ramsés II.
Eu era então moça e bela, alegre, despreocupada, indulgente, mas de caráter fraco. .Amada e bajulada, habituada a ver meu séquito submisso a todos os meus caprichos,
vivia feliz, orgulhosa da minha beleza e condição real, persuadida de que me aguardava um róseo porvir. Conservava livre o coração, porquanto não me agradava nenhum
daqueles homens que me cortejavam com as suas homenagens. Entre os que me admiravam obstinadamente, havia um jovem egípcio de família ilustre, chamado Chenefrés.
Belo moço de vinte e seis a vinte e sete anos, possuidor de imensa fortuna e simpático a Ramsés, junto ao qual desempenhava elevado cargo; sem embargo, não sei porque,
me inspirava desagradável impressão.
Certa feita, numa festa, senti-me fatigada e, desejando estar só, retirei-me para o jardim, acompanhada de longe, unicamente, por uma das minhas damas, dirigindo-me
rapidamente para um canteiro de acácias, próximo à ribeira, que era meu recanto favorito. Ao aproximar-me percebi, com espanto, Chenefrés deitado num banco de pedra
e aparentando profunda tristeza. Vendo-me, saltou nos calcanhares e quis fugir. Sua expressão desolada, entretanto, sensibilizou-me, e, dominando a íntima aversão
que sentia, perguntei-lhe a causa daquela tristeza e se poderia ajudá-lo a descobrir o verme que parecia roer-lhe o coração.
Perturbado, lançou-se a meus pés, beijou-me a fímbria do vestido e confessou seu amor, suplicando lhe dissesse se poderia confiar na realização dos nossos esponsais.
Já disse que estava longe de o amar; suas palavras, ainda que muito humildes, me desagradaram e, firmando-me no orgulho real, declarei que jamais me havia inspirado
outros sentimentos, além dos que uma filha de Faraó poderia experimentar por um funcionário e súdito fiel.
Ele se levantou e, cruzando os braços, inclinou-se respeitoso, suplicando lhe perdoasse a ousada loucura. Voltando-me, entretanto, pude notar que seus olhos negros
'demonstravam, um ódio implacável. Ah! essa inimizade, que eu então desprezava, deveria desempenhar um papel considerável na minha vida.
Menciono esta cena, para compreensão dos acontecimentos que se seguiram.
Durante minha permanência em Tanis, observei que minha melhor amiga e companheira de jogos, Asnath, mostrava-se triste e pensativa. Uma tarde, surpreendendo-a lacrimosa,
levei-a ao terraço, fi-la sentar a meu lado e tomando-lhe as mãos, disse:
- Querida, desde muito tempo noto tua tristeza e isso me aflige; conta-me a causa e talvez possa ajudar-te.
Sem responder, ela se rojou a meus pés e com a cabeça em meus joelhos desfez-se em lágrimas.
- Vamos, nada me ocultes - disse acariciando-lhe os cabelos - é impossível que não nos ocorra um remédio para teus pesares.
Beijou-me as mãos e respondeu em surdina:
- A ti somente, Thermutis, minha amiga é soberana, posso confessar: amo e sou amada, mas é um amor nefasto, que os deuses não abençoarão; conheces meu pai e sabes
como é orgulhoso, ríspido, e severo... Jamais me entregará ao meu eleito.
- A quem amas, pois? - perguntei espantada. - Alguém de casta impura, algum miserável amú? Mas, como poderia um tal homem ter-te agradado, a ti que podes escolher
entre os mais distintos da Corte?
- Não, não! - exclamou Asnath - amo a um egípcio, um grande, bom e belo artista, o escultor Apopi. Há tempos, ele trabalhou em Thebas, em casa do tio, que executa
para meu pai importantes obras para o túmulo da família, e em nosso palácio; foi lá que o conheci e amei. Agora, ele aqui reside no seu próprio atelier; já o encontrei
duas ou três vezes, sendo-me, entretanto, impossível falar-lhe, ou mesmo vê-lo de perto. Não posso inventar pretextos, porque temo suscitar suspeitas a meu pai,
que seria capaz de eliminá-lo sem compaixão.
- Enxuga essas lágrimas - disse alegremente - amanhã verás o teu amado; eu mesma irei à casa do escultor, para fazer algumas encomendas. De há muito desejo uma estátua
de Hator, esculpida em pedra verde mafkat: será Apopi o autor, assim como do busto da nossa saudosa companheira Senimuthís que, há algumas semanas apenas, Osíris
chamou a si. Providencia para que amanhã, antes do grande calor, estejam prontos a liteira e aqueles que devem acompanhar-me.
No dia seguinte, tomei a liteira e, assentando a trêmula Asnath a meu lado, mandei seguir para a casa do escultor Apopi.
A manhã estava radiosa e o longo passeio me deliciou, porque saímos fora da cidade até um subúrbio onde pararam os condutores, defronte de uma casa de aparência
modesta, circundada por copado jardim.
Avisado, sem dúvida, por meus batedores, o jovem artista, ruborizado pela emoção, mantinha-se no limiar da entrada. Ao aproximar-me, ajoelhou-se, suplicando em alta
voz aos deuses que abençoassem a sua casa com a chegada da irmã do seu soberano. Desci e disse a Asnath, toda confusa:
- Toma cuidado, é muito bonito o teu preferido.
Em seguida, manifestei desejo de visitar o atelier do escultor, a fim de julgar sua técnica, pois queria confiar-lhe algumas encomendas.
Apopi, precedendo-me respeitoso, levou-me a um imenso alpendre, aberto nas duas extremidades, onde se encontravam montões de blocos de pedra de diferentes tamanhos
bem como várias estátuas em vias de execução; no centro, junto a uma grande estátua de Osíris, estava um homem de pé sobre um cavalete de madeira, ocupado em polir
a pedra. De costas, inteiramente absorvido pelo trabalho, parecia nada ver nem ouvir.
- Ithamar! - exclamou Apopi, repreendendo-o - dar-se-á que os deuses te hajam enlouquecido? A filha de Faraó honra nossa tenda humilde com a sua presença e ficas
aí empolei r a d o, de costas para ela?
O homem assim apostrofado voltou-se rápido e saltou ao solo.
Depois de prostrar-se, permaneceu de pé, braços cruzados, imóvel qual a própria estátua de Osíris.
Fixei-o um instante, completamente fascinada; nunca vira criatura tão bela! Alto, esbelto, de uma plástica ideal, Ithamar encarnava o tipo semítico; os cabelos negros,
encaracolados, molduravam-lhe o rosto pálido, de traços regulares; o mais admirável, porém, eram os olhos negros e límpidos, reveladores de uma bondade e encantos
que num instante me fizeram tudo esquecer.
Arrancando-me dessa contemplação, fiz que tudo me fosse mostrado.
Apopi, auxiliado por Ithamar, franqueara-me o atelier e acabei encomendando entre outros trabalhos de que falei a Asnath, o meu e o busto de minha amiga, esclarecendo
que os modelos em gesso deveriam ser executados no palácio.
Ao retirar-me, procurei com os olhos o semita: ele estava de pé, a poucos passos e, num instante, seu olhar escaldante e estranho mergulhou no meu, fazendo-me bater
o coração violentamente; como em sonho, saí, retomando a liteira. Asnath, radiante, murmurava agradecimentos, que eu dificilmente percebia.
No dia seguinte veio Apopi, seguido de Ithamar e começaram a modelar os bustos encomendados. Muitas vezes, nessa ocasião, Asnath trocava olhares e expressões de
amor com Apopi. A presença do jovem hebreu causava-me uma opressão; faltava-me o ar, e seu olhar queimava-me como fogo.
Um dia Apopi veio só, e bem quisera eu indagar o paradeiro do auxiliar, mas o orgulho e a vergonha de um interesse inconfessável fizeram-me calar. No dia seguinte
o escultor ainda compareceu sozinho, e a inquietação me devorava, a ponto de não saber como me comportar. Foi então que Asnath, adivinhando meus pensamentos, perguntou
por Ithamar.
- Está doente - respondeu Apopi.
- Tem família ou alguém que o trate? - indaguei aliviada. .
- Mora com o cunhado Amram e tem os cuidados de sua irmã Jocabed; são pobres, porém bons e o estimam.
- Como te ligaste tão estreitamente a um amú? -perguntei.
- Eles são tantos em Tanis que não podemos desconhecê-los; de resto, Ithamar e eu nos conhecemos de longa data; sua grande vocação para a escultura e o excelente
caráter cimentaram nossa amizade.
- Asnath - disse eu - providencia para que mandem a Apopi uma cesta de frutas e uma ânfora do melhor vinho, para a convalescença do seu amigo enfermo.
Desde esse dia não tive mais sossego, experimentando uma espécie de vácuo interior. Faltava-me Ithamar, o timbre velado e melodioso da sua voz ressoava a meus ouvidos;
em sonhos, o belo rosto e os olhos fascinantes me perseguiam; era em vão, que dizia a mim mesma: ele é um miserável operário, filho de um povo desprezado. Desde,
porém, que a minha imaginação muito fiel me apresentava seu perfil e o sedutor sorriso, esquecia-lhe a origem e a vil condição e todo o preconceito se dissipava,
substituído pelo desejo irreprimível de revê-lo a qualquer preço.
Por fim, não pude iludir-me por mais tempo sobre o meu estado: estava insensatamente apaixonada por um réprobo, um impuro, de mim separado por um abismo; devoravam-me
raiva e vergonha; tinha medo e horror de mim mesma: teria um espírito mau se apossado de mim? Tornei-me grosseira e desconfiada para os que me rodeavam, porque receava
pudessem ler no meu rosto o terrível segredo. Inutilmente, para escapar a essa tortura, buscava distrações, visitava os templos realizando dádivas e sacrifícios,
passando horas a fio mergulhada em preces ardentes, suplicando aos invisíveis me libertassem da obsessão, varrendo para longe a imagem do semita.
Muitas vezes, surpreendi o olhar de Asnath angustiosamente cravado em mim, sem ousar falar-me.
Uma tarde em que nos encontrávamos a sós no jardim, num pequeno terraço fronteiro ao Nilo, apoiando os cotovelos na balaustrada, contemplava o rio absorta em sombrios
pensamentos; o sol desaparecia no horizonte, dourando com seus raios avermelhados a folhagem e a superfície cintilante das águas. Voltei-me para dizer qualquer coisa
a Asnath, quando de novo percebi nos seus olhos estranha inquietação.
- Que hábito tomaste de me fitar como se quisesses analisar-me? - disse-lhe aborrecida.
Como única resposta ela tomou-me as mãos e cobriu-as de beijos e lágrimas:
- Thermutis, isto não pode continuar assim. Alguma coisa de terrível se passa em teu íntimo; tu empalideces e definhas, o sono te abandona, teu rosto escalda, tens
as mãos sempre geladas... Sou indigna dá tua confiança, sei, mas amo-te tanto! À custa da própria vida, gostaria de provar-te minha gratidão; sei muito mais do que
pensas e não foi sem motivo que afastei tuas servas, velando sozinha o teu sono. Quando dormes, teus lábios traem a tortura do teu coração, pois muitas vezes pronunciaste
o nome de Ithamar. Oh! Thermutis, aceita meu auxílio e minha estima, para que possas ser mais forte e assim ocultes esse nome no mais íntimo recesso do teu ser,
a fim de que ele não se transforme em vergonha para ti e morte para o infeliz.
Eu estava aniquilada, sucumbida; tudo rodava diante dos meus olhos obscurecidos! Em sonho havia revelado o seu nome! Se outra, que não Asnath, houvesse percebido?
Oh! a morte, naquele momento, teria sido um benefício.
Com os braços cingi o pescoço da amiga de infância, encostando o meu rosto no seu; minhas lágrimas ardentes inundaram suas faces. Eu sofria tormentos infernais e
ninguém podia consolar-me, porque a origem do homem a quem amava era odiosa e desprezível, para a eternidade. Deveria, pois, esquecê-lo, banir sua imagem ou menosprezar
a mim mesma.
Passada a primeira emoção, conversamos. Asnath jurou-me absoluto segredo, e, fosse como fosse, sentia-me amparada, contava com uma confidente com quem podia desabafar
toda minha alma.
Decorreram vários dias de relativa calma; eu procurava todas as ocasiões para ficar só com Asnath. Por isso, logo ao deitar-me, despedia as aias e conversávamos
horas a fio.
Uma noite, assentamo-nos junto da janela aberta, aspirando o aroma do jardim. No palácio todos dormiam e apenas o brado das sentinelas interrompia o profundo silêncio
da noite quando de repente, ligeiro sussurro partiu de uma moita de roseiras, abaixo da janela. Um seixo amarrado a um pedaço de pergaminho caiu nós joelhos de Asnath,
que o segurou avidamente e procurou ler à luz do luar. Uma mensagem de Apopi - disse corando. Ithamar, já restabelecido, foi o portador e aguardará a resposta, aliás,
urgente. Vou utilizar tuas tabuinhas, se permites.
Respondi com um aceno de cabeça; o coração parecia-me estourar de tanto bater, pois ali, a alguns passos, estava Ithamar! Quis falar-lhe, obter pormenores sobre
seu estado de saúde; uma coisa tão inocente não poderia comprometer-me.
Quando Asnath voltou com as tabuinhas, manifestei-lhe esse desejo e ela não se opôs, mas, temendo, evidentemente, a presença de um homem próximo aos meus aposentos,
inclinou-se e disse a Ithamar para que deslizasse até um caramanchão, que indicou; depois, oferecendo-me o braço, ajudou-me a descer do terraço. Tremiam-me as pernas,
embora não receasse ser descoberta, pois mesmo que uma sentinela me visse passeando acompanhada de minha aia, não se admiraria, porque muitas vezes assim gozávamos
o frescor da noite, reservando as horas de calor diurno para repousar.
Já nos aproximávamos do canteiro de acácias, quando Asnath se lembrou que esquecera sobre a mesa um objeto que desejava enviar a Apopi, e, desculpando-se, retomou
célere o caminho do palácio. Pela primeira vez, vi-me sozinha junto de Ithamar, que, banhado pelo luar, se mantinha de pé a poucos passos, apoiado no banco de pedra.
Havia emagrecido e o seu belo rosto revelava tristeza e sofrimento.
Experimentei ardente desejo de o consolar, e, movida por essa idéia, avancei alguns passos, na direção do banco:
- Ithamar, que te falta? Já estás bom? Teu aspecto denota tristeza e sofrimento; poderei auxiliar-te? Ouvindo-me, ele estremeceu, fixou-me perplexo e ajoelhou-se
a meus pés.
- O sol fulgura muito alto para que seus raios atinjam e dissipem as brumas que obscurecem a alma de um mísero e impuro semita! Ilustre filha do Faraó, que os deuses
te abençoem e protejam! Que derramem sobre tua cabeça a felicidade, pelas palavras de terna compaixão que, do altíssimo trono, diriges a um homem mais ínfimo que
o pó calcado por tuas sandálias.
Aproximou-se e, tomando a fímbria do meu vestido, beijou-a, sôfrego.
- Condena-me, agora, oh! rainha, pela minha ousadia. De bom grado sacrificarei a vida pelo crime de haver tocado teu vestido.
Impossível descrever minha emoção. Engana-se profundamente quem supuser que, na antiguidade, o amor como o compreendeis, não existisse; a humanidade era a mesma,
e todos os sentimentos que fazem pulsar os vossos corações agitavam também os daquele tempo.
Repito: mal posso descrever o que sentia; aquela voz sussurrante, plena de paixão em recalque, embriagava-me; os olhos, fulgurantes de temor e exaltação, fascinavam-me.
Involuntariamente, coloquei a mão em sua cabeça e meus dedos desapareceram na espessa, sedosa e anelada cabeleira. Estremeci nesse contato, e, esquecendo prudência
e preconceitos, olvidando que tinha diante de mim um ser impuro, disse com a voz entremeada de lágrimas:
- Não és o único a sofrer. Que isso te seja um bálsamo! Lamento que a tua origem cave um abismo entre ti e a filha do Faraó Mernephtah. Por que haverias de nascer
semita?
Ouvindo tal, Ithamar, de um salto pôs-se de pé; olhos brilhantes, tomou-me as mãos, e, inclinando-se, lia avidamente em meus olhos o que me não fora possível dissimular.
Aturdida, apoiei a cabeça no seu ombro. Ele atraiu-me, estreitou-me nos braços, colou nos meus os lábios escaldantes, murmurando:
- Thermutis!
Quando, uma hora depois, voltei aos aposentos, sentia-me atordoada: Asnath, pálida e trêmula, ajudou-me a acomodar, mas não pude cerrar os olhos naquela noite memorável.
Sentia-me ébria de alegria e, não obstante, opressa e infeliz. Que diriam Ramsés e os sacerdotes, se descobrissem a verdade? Procurava repelir para bem longe essa
idéia. Por que não ser bem sucedida ocultando tudo?
Passaram-se algumas semanas. Protegida pela fiel Asnath, mais de uma noite encontrei-me com Ithamar e tremia à só conjetura de não poder mais vê-lo. Entretanto,
a inevitável separação se aproximava, pois a Corte se preparava para retornar a Thebas.
Empolgada por cega paixão, imaginei empregar Ithamar entre os meus servos, para levá-lo comigo. Na noite em que pretendia combinar com ele, definitivamente, os pormenores
desse projeto, não compareceu, vindo Apopi em seu lugar.
- Sei de tudo, princesa - disse - e venho suplicar, de joelhos, que cortes toda e qualquer relação com o semita, porque estamos jogando nossas cabeças e creio que
já somos espionados.
Opôs-se, formalmente à idéia de levar Ithamar, afirmando que ele próprio tinha razões bastantes para renunciar. Tive de anuir impondo, porém, a condição de revê-lo
ainda uma vez, em despedida.
Após minha áspera recusa, Chenefrés sempre se manteve a respeitosa distância. Um dia, entretanto, numa festa, surpreendi-o fixando-me com expressão que me gelou
o sangue nas veias: ódio, raiva, ironia misturavam-se naquele olhar, e o respeito de outrora desaparecera. Onde e como teria podido saber? Impossível! A consciência
criminosa fazia-me lobrigar fantasmas negros em toda parte.
Na véspera da partida, tive uma última entrevista com Ithamar. Sentindo a morte n'alma, desprendi-me de seus braços aos primeiros albores do dia clareando o horizonte.
Ainda uma vez, beijou-me a mão e desapareceu.
Triste, combalida, retornei a Thebas, mas, para afastar qualquer suspeita, fui forçada a retomar o curso de minha vida habitual. Por outro lado eu fiz, nessa ocasião,
uma descoberta que quase me enlouqueceu. Dessa vez, porém, não ousei sequer confiar-me à fiel confidente. Suor glacial cobriu meu corpo, a imaginar o que me aguardava.
Apenas um vago instinto me amparava para ganhar tempo; dissimulava, aparentando alegria, com esforço sobre-humano, sem descuidar a pintura das faces descoradas.
Uma tarde, despedindo os que me cercavam e ficando a sós com Asnath, sempre solícita em distrair-me com sua tagarelice, disse-me ela de chofre:
- Sabes? Meu irmão acaba de contar que hoje, durante a refeição, Ramsés falou a teu respeito. Ele te supõe vítima de algum mau olhado, que te compromete a saúde,
e por isso determinou ao grão-sacerdote do templo de Amon que enviasse amanhã um médico para te examinar; sem dúvida, o médico trará amuletos. Para dizer-te a verdade,
tua aparência é doentia; sei que teu amor pelo hebreu te atormenta, mas tu também sabes que é preciso esquecê-lo.
Nada respondi. Faltava-me o ar, é supus que o coração opresso ia estalar.
No dia seguinte viria o sacerdote e médico, enviado por Faraó; seria descoberta toda a verdade, o incrível mistério que me tirava o sossego! Sem dúvida minha fisionomia
se transformou, porque Asnath deu um grito ao fixar-me:
- Thermutis? Sentes-te mal?
Como única resposta atraí-a a mim; o coração me transbordava, aproximei a boca do seu ouvido e tudo revelei.
Pálida como um cadáver, ela cobriu o rosto com as mãos:
- Estamos perdidas! - murmurou. Que fizeste, Thermutis? E Ithamar, o infame, como se atreveu?
- Deixa-o, a culpa é só minha, respondi tapando-lhe a boca com a mão.
Passamos uma noite horrível e somente pela madrugada, exausta, consegui conciliar pesado sono de algumas horas. Despertada, preparei-me e fui para um pequeno terraço
coberto e ornado de flores. O ar estava fresco e agradável, mas o temor dava-me sensação de fogo devorador; mandei sair os circunstantes, exceto algumas aias para
abanar-me e fiquei com os olhos pregados na porta por onde deveria entrar o esperado sacerdote. Asnath, sentada a meu lado, manipulava um trabalho qualquer, mas
o medo lhe selava igualmente os lábios e fazia tremer-lhe as mãos.
A entrada do escudeiro avisando que Suanro, médico do templo de Amon, desejava falar-me, interrompeu-me o curso dos pensamentos e uma nuvem me turvou a vista quando
ele se aproximou e sentou-se a meu lado. Já o tinha visto mais de uma vez, sem lhe prestar maior atenção; agora, porém, naquele momento angustioso, seu perfil se
me gravou na mente em sobressalto.
Jovem ainda, fisionomia bela e calma, denotava grande bondade; os olhos, todavia, profundos e severos, pareciam ler no coração humano como em livro aberto.
Sem desviar o olhar, interrogou-me, colocando em seguida a mão no meu peito; não sei o que respondi, vendo apenas franzir-se pouco á pouco o sobrolho do sábio...
Asnath parecia transformada em estátua.
Por fim, ele se ergueu, e cruzando os braços, disse com autoridade:
- Saiam todos, vou pronunciar um exorcismo contra os maus espíritos que prejudicam a saúde da princesa!
Senti-me aliviada e, contudo, nunca um desses homens de longas vestes brancas me parecera tão temível.
Quando ficamos sós, voltou-se e seu olhar profundo, argutíssimo, revelou melhor que palavras tudo haver descoberto.
- Desventurada filha de rei, confessa toda a verdade ao médico e ao sacerdote, em quem deves depositar toda a confiança, como intermediário entre ti e os deuses.
Aquela voz continuava a martelar meus ouvidos, qual juizes do Averno. Involuntariamente, prosternei-me de mãos súplices, garganta cerrada e esforcei-me em balbuciar:
- Perdão!
Contemplou-me um instante e sua fisionomia como que se desassombrou:
- Pobre criança, que espécie de graça me pedes?
- O silêncio - respondi banhada em lágrimas.
Ergueu-me, reconduziu-me à cadeira e, sentando-se, disse:
- Exiges muito, mas, se me demonstrares uma confiança absoluta, talvez te atenda, pois essas lágrimas de profundo arrependimento me sensibilizaram. Fala, pois, Thermutis;
confessa sem reticências, porque preciso saber quem é o autor da tua desonra e tanto quanto sou verdadeiro servo do maior dos deuses, prometo guardar sigilo.
Ocultei o rosto nas mãos; minha confissão ia fazê-lo recuar, horrorizado; eu havia conspurcado todos os mandamentos da religião, maculando a honra, ao contato de
um impuro.
- Conta-me tudo, minha filha - disse, tomando-me a mão; - e nada temas; seja quem for, deves nomeá-lo.
Abafando soluços, atirei-me novamente de joelhos:
- Não posso pronunciar esse nome senão rojada ao pé e aos pés do representante da divindade.
Ele se inclinou compassivamente e, não sei como, dos lábios trêmulos, num sussurro, escapou-me toda a confissão.
O sacerdote saltou nos calcanhares e pôs as mãos na cabeça.
- Sim - disse, fitando-me com amargura e pavor - os deuses te arrebataram sua graça e o espírito mau de ti se apossou, perturbando-te a razão.
A esse olhar, levantei-me e desesperada resolução apoderou-se de mim.
- Tens razão - disse, exaltada - foi o espírito imundo que me inspirou um amor cego por esse homem impuro, porquanto lutei, para esquecê-lo. Orei em todos os templos
oferecendo sacrifícios, mas os imortais não se compadeceram de mim, abandonando-me à paixão que me torturava e oprimia, como se tivesse uma pirâmide sobre o peito.
Sei que sou culpada, merecedora de todos os martírios, e que os quarenta e dois juízes do mundo subterrâneo condenarão minha alma a uma terrível expiação; diga-me,
sacerdote de Amou, se a morte voluntária pode resgatar meu crime, que hoje mesmo darei fim a esta existência profana. Vida perdida, coração despedaçado, tudo me
é odioso...
Soluços convulsivos impediram-me de continuar.
O sacerdote fez-me sentar e colocando as mãos em minha cabeça orou, implorando aos deuses perdão e proteção para mim; depois, disse com bondade:
- Acalma-te, Thermutis, manterei minha promessa e farei o impossível para te salvar; jamais, porém, deverás revelar que eu soube a verdade; agora, vai repousar.
Volto para junto de Ramsés. Mandar-te-ei um amuleto que te dará forças contra os espíritos das trevas, responsáveis pelo feitiço.
Com lágrimas de reconhecimento, procurei a mão do generoso médico, que levei aos lábios, beijando-a.
Ele voltou à tarde, informando-me que tudo estava arranjado: o Faraó, ciente de que um espírito mau havia-se apoderado de mim, concordara com, todas as prescrições
do sacerdote, isto é, que eu abandonasse Thebas, acompanhada apenas das pessoas íntimas, retirando-me para Tanis, até que os sacerdotes e o tratamento determinado
me restabelecessem. Suanro prometeu visitar-me e não me abandonar no momento decisivo, jurando-lhe eu, por minha vez, não rever Ithamar, a pretexto algum.
Parti, pois, levando comigo Asnath, a ama de leite (conhecedora do segredo) e mais alguns servos e servas fiéis, instalando-me em Tanis.
Desfrutava vida calma e completamente isolada. Nunca mais revi Ithamar e era cheia de angústias que me recordava dele, como se fosse a encarnação do mal para me
perder; o que mais me oprimia, porém, era o destino do nascituro. Muitas vezes troquei idéias com Asnath, que, de uma feita, me disse:
- Avistei-me com Ithamar e Apopi, rogando-me aquele que te dissesse estar Jocabed, sua irmã, aguardando um filho mais ou menos na mesma época do teu, e disposta
a dizer que o parto foi duplo, adotando o que não podes conservar contigo.
Esse plano agradou-me extraordinariamente: pelo menos, o pobrezinho seria educado pelo pai, e, quanto à sua manutenção, eu poderia ajudar.
Devo ainda mencionar um fato, que só vim a saber mais tarde, mas aqui o consigno por parecer-me conveniente: trata-se de uma profecia terrível, feita nessa ocasião
por velho sacerdote de Heliópolis, célebre pelas suas revelações:
- "Dentro em breve - teria dito o profeta - nascerá de pai hebreu uma criança do sexo masculino, que, ao atingir a maioridade, cobrirá o país de desgraças; por sua
culpa, o Nilo sagrado será empestado; as cidades e campos cobertos de cadáveres, a nação arruinada, todos os primogênitos do Egito feridos do morte e o sarcófago
do Faraó que suceder a Ramsés, ostentando a coroa do Alto e Baixo Egito, permanecerá vazio para sempre, pois só haverá peixes no lugar em que o corpo do rei vai
ser sepultado".
Ramsés, sobremaneira impressionado, convocou um conselho secreto e discutiu os meios de conjurar tão horrorosas desgraças. Deliberaram ocultar ao povo a predição,
porque, tímido e supersticioso, poderia entregar-se a sanguinolentos excessos contra os semitas em geral. Por outro lado, porém, pretextando que os hebreus eram
muito prolíferos, resolveram eliminar, durante doze luas, todos os varões que lhes nascessem.
Repito: no meu retiro de Tanis, eu tudo ignorava, pois a ninguém encontrava, nem saía e apenas passeava nos jardins, ou, à noite, em barcos, pelo Nilo.
Aproximava-se o momento de dar à luz e aguardava de um momento para outro a chegada de Suanro, quando notei a estranha agitação de Asnath. Interpelei-a. A princípio,
ela nada quis dizer, mas, ordenando-lhe formalmente, acabou, por confessar o seu temor de um inimigo desconhecido, que devia estar perto, porque, já duas vezes,
milagrosamente, Ithamar escapara de ser assassinado. Apopi e os parentes suplicaram-lhe que se escondesse, abandonando Tanis, mas ele a ninguém queria ouvir, alegando
que não lhe interessava a vida e não abandonaria à cidade no momento em que deveria nascer a criança que se fosse do sexo masculino, corria grande perigo. Foi nessa
ocasião que Asnath me cientificou do sanguinário édito de Ramsés, já em plena execução.
Alarmei-me, naturalmente, pois não queria a morte de Ithamar. Ele me havia enfeitiçado e eu o temia, mas, apesar de tudo, amava-o com todas as forças de minha alma.
Assim, enviei-lhe Asnath, ordenando-lhe que desaparecesse. Não me atendeu.
- Dize a Thermutis que ficarei, e, se morrer por sua causa, julgar-me-ei imensamente feliz.
Meu coração bateu com violência. Então, considerei, só restava um meio: eu mesma lhe falaria e seria obedecida! Asnath em vão tentou dissuadir-me. Custasse o que
custasse, eu queria rever Ithamar. Comuniquei à minha ama, cegamente devotada, e combinamos o plano da arriscada aventura.
Chegada a noite, manifestei desejo de realizar um passeio pelo Nilo, como fizera mais de uma vez. Tomamos a barca, eu, a ama, e Asnath, dirigindo-nos para o quarteirão
dos estrangeiros, conduzidos por quatro remadores de confiança. A noite estava quente, embalsamada, magnífica. A um sinal convencionado com Asnath, mandei atracar,
para espairecer um pouco em terra. A barca ficou amarrada sob copado bosque de sicômoros, enquanto nos dirigíamos apressadas para a casa de Jocabed, que Asnath conhecia.
Paramos à frente da miserável choupana circundada por uma cerca. Batemos. Nenhuma resposta, mas, do interior, escapavam gemidos. Assaltada por triste pressentimento,
eu mesma empurrei a cancela, que não estava trancada, e apressadamente transpus o terreiro. Queria espreitar pela porta entreaberta... A cena que se me deparou tirou-me
interiormente a razão: no meio da sala miserável, fracamente iluminada jazia Ithamar numa poça de sangue, com um punhal enterrado ao peito, até o cabo. Duas mulheres
e um homem torciam as mãos e se lamentavam ao redor do cadáver.
Esquecendo tudo, arranquei o véu e caí de joelhos junto ao morto, rígido e frio. Inclinei-me para ele, mas tudo rodava em torno de mim; vi, como através de um nevoeiro,
mulheres judias me apontarem o dedo, e ouvi várias exclamações. Depois, perdi os sentidos.
Quando despertei, ainda me encontrava na cabana do semita e instantes após dei à luz uma criança. Minha ama e Asnath, pálidas e trêmulas de pavor, apenas me deram
tempo de beijar a fronte do recém-nascido. Auxiliada pela ama, mulher vigorosa, abandonei o recinto, carregada em seus braços, e minutos mais tarde repousava na
embarcação, esmagada de corpo e alma, enquanto os remadores retomavam o caminho do palácio.
Os raios da aurora iluminavam o horizonte, cintilando como rubis nas águas do rio.
- Poderosos deuses - murmurei - quanto tempo passamos lá?
- Cerca de três horas - respondeu Asnath, beijando-me as mãos - mas, acalma-te, Thermutis; agora tudo irá bem, ninguém suspeitará de teu parto e esta saída foi-te
inspirada por Hator mesma.
- Matarão a criança como fizeram ao pai, murmurei constrangida.
Nesse instante despontou o sol inundando a terra com uma torrente de luz.
- Vê - disse Asnath erguendo os braços com entusiasmo para o astro luminoso - Ha abandona as trevas e com seus raios divinos ilumina a volta ao palácio. É um feliz
augúrio para ti e para o inocente que me prometeram ocultar com segurança. Assim como o deus vencedor e remoçado, triunfante, abandona o reino das sombras, também
nova vida de esplendor c calma vai começar para ti.
Meia hora depois, a barca atracava na escadaria de pedras, onde confina a aléia que leva aos meus aposentos. No primeiro degrau, divisei um homem de pé, ostentando
vestes sacerdotais de uma alvura incomparável; era o meu médico e salvador, vindo, como prometera, para auxiliar na dissimulação do terrível mistério. Desceu ao
meu encontro e apertou-me a mão; eu, porém, me sentia tão fraca, que as minhas auxiliares foram obrigada a transportar-me até o dormitório, onde Asnath e a ama,
ajudadas pelo médico, me acomodaram, despertando-me inteiramente. O médico me reconfortou maravilhosamente e, quando me viu um pouco mais forte, ordenou que nos
deixassem a sós.
- Muito bem, minha filha, noto que o mais difícil foi vencido - disse, sentando-se junto do leito. - Mas, onde está a criança?
Quando concluí o relato de tudo, meneou a cabeça:
- Vejo que os deuses se compadeceram da tua infantilidade e te livraram milagrosamente de todo perigo; a criança está onde lhe convém e o perigoso homem que te enfeitiçou
teve merecida morte, porque ousou, sabendo-se impuro, macular uma filha de Faraó. Agora, será fácil restabeleceres-te; repousa e continua a tomar esse tônico, que
te darás forças para ocultar a verdade, recebendo o pessoal de serviço, a fim de evitar qualquer suspeita.
Agradeci e, pedindo a Asnath que me passasse um cofre precioso, cheio de jóias, disse:
- Tens uma filha de dezoito anos, Suanro; que os deuses te recompensem por intermédio dela todo o bem que me fizeste; e quando um dia concederes sua mão a um homem
digno dela, acrescenta este dote - lembrança da pobre Thermutis.
Logo que me vi só, adormeci; depois, reconfortada pelo sono e auxiliada por Asnath, preparei-me e fui postar-me no terraço, porque desejava ser vista por todos.
Mal me havia instalado, quando o mordomo anunciou Chenefrés, que, procedente de Thebas e portador de uma mensagem de Faraó, solicitava a honra de uma audiência.
Travou-se-me o coração dolorosamente; a presença de Chenefrés no momento era-me duplamente odiosa. Ele vinha, porém, em nome de Ramsés e não podia deixar de recebê-lo.
Autorizei a entrada, e, após os cumprimentos do estilo, disse-me:
- Princesa, ordena que os circunstantes se retirem para não ouvirem o que te vou dizer da parte de Faraó, e que somente a ti deve ser transmitido.
Esforçando-me por aparentar indiferença, afastei com um gesto as pessoas que me rodeavam, mas o coração batia angustiado, não sei porque. Parecia-me que aquele homem,
cujos olhos negros me fitavam atrevidamente, conhecia o meu segredo.
- Agora, dize o que tens a comunicar-me.
Aproximou-se e, olhando-me ironicamente, disse com voz soturna:
- Venho renovar um pedido que repeliste mui duramente; acredito que Chenefrés, dignatário egípcio, fosse indigno da filha de Faraó; mas será que ainda o consideram
audacioso pretendendo para esposa a viúva do hebreu Ithamar?
Um grito abafado escapou-se-me do peito. O infame tudo sabia; mas por quem? Raiva e angústia embargavam-me a voz. Instantaneamente, meu olhar desvairado notou que
no seu cinto faltava o punhal de cabo cinzelado e várias manchas negras pontilhavam-lhe as vestes. Como um raio, reavivou-se a lembrança do cadáver de Ithamar com
o punhal cravado no coração. A despeito de meu estado de fraqueza, ergui-me sobre as almofadas, palpitante de horror e cólera:
- Miserável! Foste o assassino! - disse com voz entrecortada. - Afasta-te, indigno, e nunca mais me apareças! Antes a morte que pertencer-te!
Estava fora de mim. Chenefrés não arredou pé. Fitando-me severa e orgulhosamente, retirou do cinto um papiro, que desenrolou, entregando-me.
Tudo passou a rodar diante de mim ao ler o escrito de Ramsés:
"Indigna filha de um grande rei, que não mais mereceria a honra de uma sepultura real e cujo nome deveria ser riscado e esquecido da posteridade, ordeno-te que recebas
por marido o nobre Chenefrés, portador deste decreto, visto ser minha inabalável resolução, a fim de pôr termo à vergonha que introduziste na casa de Ramsés, e dignifiques,
apesar da nódoa, o sangue divino que corre nas tuas veias".
Ramsés tudo sabia! Foi por sua ordem, pois, que se deu u morte de Ithamar!
Incapaz de raciocinar e agir, vendo tudo negro, diante dos olhos, deixei cair o papiro, que Chenefrés apanhou, inclinando-se e murmurando:
- Então, Thermutis, sim ou não?
Considerando a enormidade do crime que praticara, não ousei desobedecer à ordem de Ramsés.
- Sim - respondi vencida, baixando a cabeça; - desde que Faraó ordena, serei tua esposa.
Tomou-me a mão e disse:
- Esquece um passado indigno, dá-me teu coração e serei um marido indulgente.
Disse mais qualquer coisa que não pude compreender, presa que fui de um calafrio, a cabeça a rodar, vendo línguas de fogo que pareciam turbilhonar com surdo estertor
diante do meu olhar desvairado. Tive uma vaga impressão de que Chenefrés, ajoelhado junto da espreguiçadeira, me sustentava nos braços e que olhares apavorados me
fitavam. Depois, perdi os sentidos.
Quando os recobrei, já haviam decorrido algumas semanas, vindo a saber por Asnath que estivera entre a vida e a morte. Ajoelhada junto da cama, a querida confidente
ria e chorava de contentamento por ver-me em perfeito estado de lucidez. Pouco a pouco, fui-me restabelecendo. Asnath e Suanro, que me havia salvo, continuaram a
desvelar-se por mim e aos poucos me punham ao corrente das novidades: assim soube que a Corte já se encontrava novamente em Tanis; que, em certa ocasião, durante
o delírio, Ramsés me visitara, e, após muda contemplação, saiu a suspirar. Depois, não mais voltou, mas procurava informar-se do meu estado. Chenefrés mantinha-se
ausente, mas deveria regressar dentro em breve.
Meu restabelecimento foi mais rápido do que se poderia esperar.
Chenefrés voltara, e visitava-me diariamente, porém em atitude reservada sem mostrar severidade nem arrogância. Sem ter-me avistado com Ramsés, eu tremia só ao pensar
na severidade do seu olhar. Um dia, finalmente, foi prevenida por um dos seus serviçais íntimos, que me preparasse para recebê-lo no dia imediato, pois desejava
anunciar à Corte o meu noivado com Chenefrés.
Na manhã daquele dia tão penoso para mim, aprontei-me com esmero todo particular, pois queria apresentar-me ainda bela, diante de Ramsés, para conquistar-lhe as
boas graças (de vez que o sabia sensível a isso).
Com um vestido purpurino ricamente bordado, as mais preciosas jóias e o boné egípcio com as insígnias reais diante de um espelho de metal que me apresentou uma das
aias, pude confessar-me dona de uma beleza invulgar. A angústia interior que me ruborizava e dava a meus olhos febricitantes um brilho particular, ainda mais concorria
para o bom aspecto. Apenas concluía os aprestos, quando me anunciaram a chegada dos mensageiros de Chenefrés, desejosos de serem admitidos à minha presença. Acedí,
e um oficial de serviço introduziu o velho intendente de meu noivo e vários escravos, portadores de cestas e cofres repletos de sedas, jóias e outros objetos preciosos.
O velho intendente ajoelhou-se, rogando-me aceitar os mimos enviados pelo amo.
Determinei recompensassem generosamente os portadores e, como se aproximasse a hora marcada para a visita do rei, dirigi-me para a sala de recepção, assentando-me
numa cadeira de marfim no estrado, junto do trono de ouro reservado a Ramsés, Recebida por Chenefrés, que me cumprimentou, encaminhei-me ao lugar designado e quase
imediatamente apareceu o chefe do cerimonial anunciando que o Faraó, sentindo-se feliz pelo meu restabelecimento, que os sacerdotes declararam definitivo, enviava-me
presentes e não tardaria a chegar.
Em seguida, começou o desfile de imponente cortejo de funcionários palacianos e escravos que conduziam os mais variados mimos; havia cestas cheias de tecidos preciosos
e variados, cofres abertos, com perfumes e jóias, aparelhos completos de mesa, de prata e ouro; arbustos raros, cobertos de flores e pássaros exóticos de rica plumagem,
presos por correntinhas de ouro a ramos floridos. À vista de tão magníficos presentes, um raio de esperança alentou meu coração. Significaria que a cólera do rei
devia ter cessado.
Terminado o desfile, depositadas ao lado do trono todas as oferendas, as fanfarras anunciaram a aproximação do Faraó e todos os olhares se voltaram para a porta
de entrada e para a extensa galeria em colunatas que a precedia. Meu coração parou de bater. Como me trataria? Talvez seu olhar exprimisse desgosto e desprezo, em
vez da afeição que me testemunhava outrora. Chenefrés, cujo olhar não se desviava de mim, percebeu, sem dúvida, a minha angústia, pois inclinando-se, murmurou:
- Creio que os deuses abrandaram o coração do Faraó Mernephtah e apaziguaram a sua cólera; confia, pois, na sua bondade sem limites, como a de Osiris.
Nesse instante ouviu-se um retinir de armas: os oficiais da escolta real enfileiraram-se ao longo da galeria e distingui entre as colunas a alta figura de Ramsés
a caminhar rapidamente, seguido de alguns sacerdotes, dos seus porta-abanicos, dos dignatários e do séquito imenso que o acompanhava por toda a parte.
Possuída de íntimo tremor, desci e fui ao seu encontro. Fisionomia austera, os olhos brilhavam-lhe sombriamente sob as espessas sobrancelhas; quando se aproximou,
quis dar-lhe as boas vindas, mas meus lábios tremiam nervosamente e se recusaram a obedecer-me: então, ajoelhei-me e beijei a mão que ele me estendeu. Os circunstantes
supuseram que, assim, eu lhe expressava minha gratidão pelo valioso dote com que me distinguira; ele, porém, compreendeu a muda súplica de perdão; desanuviou o rosto,
inclinou-se e me beijou a fronte. Depois, erguendo-me, conduziu-me ao meu posto, sentando-se no trono. Percebi que me observava, mas, corada de vergonha, não ousei
erguer os olhos e senti grande alívio quando ele falou com bondade:
- Sinto-me feliz, Thermutis, por ver-te finalmente restabelecida da terrível enfermidade que, por tantos meses, nos privou da tua companhia: procura, por dádivas
e sacrifícios, demonstrar tua gratidão aos deuses imortais.
Os sacerdotes que vieram no séquito, entre os quais o meu salvador, aproximaram-se e, depois de abençoar-me, presentearam-me com preciosos amuletos, que deveriam
preservar-me para sempre de mau olhado.
Ramsés proclamou então diante de todos, que, honrando a fidelidade de Chenefrés e em atenção aos serviços por ele prestados ao Estado e à sua pessoa, aquiescia em
conceder-lhe a minha mão como esposa. Mandou que Chenefrés se aproximasse, colocou minha mão na dele, presenteando-o com um anel que retirou do dedo, e com soberbo
colar; a seguir recebemos os cumprimentos de toda a Corte.
Silencio sobre o meu casamento, porque essa cerimônia que, para tantas moças, constitui a consagração de entre-sonhada felicidade, foi para mim bem triste, visto
que o coração vivia unicamente das recordações de Ithamar.
Chenefrés sentia que meu amor estava longe; perscrutava mesmo os meus pensamentos e, se diante de estranhos me demonstrava a deferência a que tinha direito a mulher
de casta real, na intimidade o marido não se continha: em termos ásperos e ferinos exprobava minha frieza e o amor vergonhoso por um impuro; às vezes, as cenas e
os acessos de raivoso ciúme por um morto eram-me bem dolorosos, mas tudo suportava sem me queixar, porque me reconhecera culpada. Dirigir-me a Ramsés? Mas o Faraó
tinha motivo de alegar minha falta e dizer que meu marido tinha todo o direito de me exigir amor e reconhecimento.
E assim correram os primeiros tempos de vida conjugal, desejaria, com um pouco mais de alegria e animação, contentar Chenefrés; mas, temores horríveis sobre a sorte
de meu filho me amofinavam: o massacre das crianças hebréias, provocado pela terrível predição, continuava; e a cada momento parecia-me chegar a notícia da morte
do menino.
Meus temores não eram vãos, antes bem fundados. Um dia, Asnath contou-me, sobressaltada, que havia recebido aviso de Jocabed comunicando não ser possível ocultar
por mais tempo o pequeno, que só por milagre ainda não tinha sido descoberto. Passei uma noite insone, e a angústia do coração materno sugeriu um plano que me pareceu
viável: mandei dizer a Jocabed que depositasse a criança numa cesta de vime bem calafetada e a depusesse junto à caniçada, no lugar em que costumava banhar-me com
as aias, de modo a fazer crer que o Nilo havia levado por acaso, até ali, a frágil embarcação, à qual desesperada mãe houvesse confiado seu tesouro. Contava que
uma aia visse a cesta e, encontrando nela uma criança, me mostrasse. Ninguém, então, poderia impedir-me de usar o privilégio real de conceder graça de vida a um
único dos pobres seres condenados pelo ódio real. Claro que, na ocasião, não poderia tê-lo comigo, para não despeitar desconfiança de Chenefrés, que ocultamente
se esforçava por conhecer o destino da criança, embora eu lhe houvesse assegurado, assim como Asnath e minha ama, que ela morrera ao nascer. Assim, projetei confiá-lo
a Jocabed, na qualidade de ama, até que pudesse protegê-lo abertamente.
De manhã, Asnath me disse que tudo seria feito de conformidade com os meus desejos, logo no dia seguinte, à hora habitual do banho.
A tarde e a noite desse dia me pareceram intermináveis; não consegui dormir e contei os minutos até o momento de agir. O coração batia, e eu aspirava deliciosamente
o ar embalsamado da manhã; breve iria contemplar o fruto do meu amor, que não revia desde o nascimento, porque Chenefrés vigiava todos os meus passos, e uma entrevista
fortuita, ou sequer um passeio para os lados do quarteirão semita, poderia suscitar desconfianças.
Enfim, chegamos ao lugar ensombrado de palmeiras, onde costumava banhar-me. Enquanto as aias desciam correndo estendiam tapetes junto de pequena tenda raiada de
branco e azul, eu me detinha no primeiro degrau da escada de pedra e, com olhos ávidos, perscrutava a caniçada e a superfície do Nilo cintilando ao sol como um espelho
polido. Fez-me palpitar o coração um suspiro de reconhecimento aos imortais que concediam essa calmaria: nenhuma aragem que pudesse ameaçar a frágil embarcação,
berço do meu tesouro, com a formação de ondas no rio sagrado.
Nesse instante, uma das aias exclamou:
- Olhem, ali nas caniçadas uma cesta de vime enganchada, que alguém certamente perdeu!
As pernas me fraquejaram, mas Asnath desceu, fingindo curiosidade:
- É verdade, Zot, vai e traze a cesta; quero ver o que contém.
A moça atirou-se à água imediatamente e nadou para a cesta, segurando-a.
- Oh! Senhora - exclamou - que linda criança! Até parece um deus!
Nadou para a escada, que eu lentamente descia, e entregou a cesta a Asnath.
- Oh! que encanto! - exclamou esta. - Olha, Thermutis... Mas quem teria assim enjeitado o coitadinho, confiando-o aos deuses e às ondas?
Olhos marejados de lágrimas, inclinei-me e vi, deitada no fundo da cesta, uma criança em panos de linho branco; seus olhos, grandes e negros, estavam abertos; lágrimas
grossas como pérolas cobriam-lhe as faces.
- Será talvez uma criança hebréia... Qualquer pobre mãe, desesperançada de a subtrair aos prepostos de Faraó, tê-la-ia deixado às águas do Nilo, preferindo que morresse
longe de suas vistas, ou esperando que fosse recolhida por qualquer alma caridosa. Pois bem: se os deuses a encaminharam a mim, eu a salvarei.
Aproximei-me e coloquei a mão no peito da criança, como sinal de proteção.
Ah! Mal poderia supor que o coraçãozinho que palpitava sob meus dedos seria, mais tarde, tomado de orgulho, ambição e ódio contra os Ramsessidas; que o destino inexorável
me levaria a salvar aquele que um dia, desencadearia contra a minha pátria e a minha raça todas as calamidades preditas!
Felizmente para nós, mortais, o futuro permanece oculto, e, naquele instante, senti grande alegria e ternura; mandei que levassem o menino para a tenda, acrescentando:
- É preciso descobrir uma semita para amamentá-lo e cuidá-lo; providenciarei para que nada lhe aconteça. Zot, avia-te e traze-me a primeira ama que encontrares.
A moça afastou-se rapidamente e, apenas começava a despir-me, voltou seguida de uma pequena de onze para doze anos, cujo encantador semblante me recordou Ithamar.
- Esta é Mariana, filha de Jocabed - sussurrou Asnath enquanto a pequena se ajoelhava.
- Levanta-te - disse com bondade - e dize-me: conheces alguém que possa cuidar de uma criancinha que uma mulher da tua raça confiou às águas do Nilo e os deuses
me permitiram encontrar para salvar? Indenizarei os cuidados que lhe dispensarem e o protegerei no futuro.
A menina prometeu trazer a própria mãe, que acabava de perder um filho de alguns meses e se consideraria muito feliz em poder servir-me.
- Vai-te, então, e traze-a aqui, antes que eu volte ao palácio.
Mariana saiu correndo e eu, depois de tomar o banho, deixei-me ficar na tenda, acalentando a criança que chorava. Acariciei-a, abracei-a, consegui acalmá-la. Pus-me,
depois, a examiná-la atentamente: era de fato um menino de invulgar beleza, o retrato fiel do pai, e não me cansava de o admirar, assim como as aias, que se amontoavam
em torno e que nada suspeitavam do meu interesse pela sorte da criança, atribuindo-o, sem dúvida, à grande beleza do pobre enjeitadinho, senão à natural ternura
do coração feminino.
Ainda o tinha ao colo, quando chegou Jocabed pálida e trêmula, ajoelhando-se a meus pés e beijando o solo.
Acenei-lhe para que se levantasse.
- Nada temas, boa mulher; só te desejo o bem. No lugar em que costumo banhar-me, as aias encontraram na caniçada esta cesta e dentro dela uma criança, que suponho
seja da tua raça; isso porém não importa! Não foi à-toa que, trazida pelas águas sagradas do Nilo, ela veio implorar minha proteção: eu a sustentarei e reconduzirei
para junto dos pais, obrigados a abandoná-la. Leva-a contigo e amamenta-a; gratificarei bem o teu benefício.
Tirei do pescoço um camafeu pendente de uma correntinha de ouro e coloquei-o no da criança; depois, envolvi-a num xale precioso que tinha à mão.
- Dou-lhe o nome de Mesu, filho das águas, disse, e abraçando-o e alçando-o para o sol, acrescentei: - Ra, deus todo-poderoso que me enviaste este menino, guarda-o
e protege-o! Agora, toma-o e dá-me notícias frequentes, pois breve deixarei Tanis. Se fores a Thebas, leva-o ao palácio e serás gratificada:
Jocabed beijou-me os pés e desapareceu com o menino, enquanto eu me quedava transbordante de alegria: meu peito parecia liberto de enorme peso; tinha assegurado
a vida de meu filho e poderia protegê-lo no futuro; quando reencontrasse Ithamar no reino das sombras, onde, segundo me haviam ensinado os sacerdotes, todos os homens
são iguais, não haveria de corar diante dele.
Entretanto, abstinha-me com afinco de exteriorizar meu contentamento; antes aparentava cansaço e tristeza, por não poder conservar em segredo aquele ato caridoso
e temia que Chenefrés, sempre desconfiado de todos os meus passos e feitos, duvidasse dessa história.
Tudo se passou, entretanto, da melhor forma que se poderia esperar. Chenefrés não demonstrou, de pronto, qualquer contrariedade pela minha adoção.
De vez em quando, alegrava-me com a visita do pequeno, trazido por Jocabed, que declarava abertamente ser seu próprio filho, que havia assim exposto. Nenhuma suspeita,
pois, poderia despertar o meu procedimento.
Quando Moisés completou quatro anos, tomei-o comigo para educá-lo. Não sem uma angústia interior que o mostrei a Ramsés: mas a extrema fidalguia da criança, seu
espírito, muito acima da idade que contava, agradaram ao rei, que lhe testemunhou uma grande ternura, e que se divertia, constantemente, em faz-lo conversar, provocando
réplicas sempre justas e, por vezes surpreendentes para tão tenra idade.
O nobre médico e sacerdote Suanro, que ficou meu amigo, aproveitou as boas disposições do Faraó para confiar-lhe, num momento favorável, toda a verdade, e sugeriu
dar ao rapazinho educação e posição adequadas, porquanto em suas veias apesar de tudo, corria sangue dos Ramsessidas, e que era imprescindível afastá-lo do povo
impuro; que Ithamar havia pago com a vida a sua audácia criminosa, mas a mãe de Moisés (e no Egito a genitora nobilita o filho) permanecia filha de Faraó.
Ramsés acolheu de boa vontade a revelação e protegeu abertamente Moisés, que deixou de ser um galante apaniguado do paço real, para colocar-se entre as crianças
que integravam a comunidade privativa dos filhos do rei. Depois, por sua ordem, ingressou na célebre Escola da Casa de Seti, onde se educavam os homens mais eminentes
e destacados do Egito.
Vaga desconfiança da verdade surgiu, pouco a pouco, no espírito de Chenefrés, provocada pelo meu carinho e extraordinária semelhança do menino com Ithamar, a quem
ele fitava com mal sopitado ódio, porque lhe faltavam as provas e a proteção ostensiva do rei impedia qualquer hostilidade à criança.
Mais de uma dolorosa cena de nossa vida íntima, fez-me, porém, pagar caríssimo a dedicação materna.
Decorreram anos e o menino tornou-se adolescente. Os sacerdotes de Seti não regateavam elogios às suas raras qualidades: era zeloso, hábil, corajoso e apenas o dom
da palavra fácil lhe faltava, compensada, porém, pela pena - arma principal da sua eloquência.
Sua afeição e reconhecimento para comigo eram tocantes e todo amargor que me ensombrava a existência dissipava-se-me do coração, quando, assentado a meu lado, olhos
brilhantes, rosto incendido, me relatava seus sucessos no estudo, trabalhos e todos os pequeninos episódios da vida escolar.
Às vezes, parecia-me ver Ithamar ressuscitado: o porte, os traços, as atitudes do pai e do filho eram idênticos, mas a expressão era outra: o orgulho, à empáfia,
as paixões fogosas que brilhavam nos olhos brilhantes de Moisés faltavam no olhar doce e meigo do pai.
Certa feita, contou-me orgulhoso e radiante que o velho sacerdote, que lhe ensinava a ciência dos astros, havia tirado o seu horóscopo, promissor de brilhante futuro.
- "Povoarás o deserto - teria dito o profeta - sob os raios causticantes de Ra, sacrificarás milhares de vítimas; morrerás tão alto que estarás sozinho, perto das
nuvens".
Feliz pelo glorioso destino de meu filho, acariciava-lhe a negra e sedosa cabeleira, agradecendo aos deuses a evidente proteção que lhe outorgavam; mas, ai de nós,
cegos mortais, não compreendíamos a ironia e irrisão amarga dessa predição, que parecia tão gloriosa. Sim, ele povoou o deserto, lá perambulando mais de quarenta
anos; sacrificou vidas a Ra, sob seus raios escaldantes, mas foram as cabeças dos revoltados do seu próprio povo; e a montanha onde morreu sozinho, coração repleto
de amarguras, era alta e bem alta.
Terminado o curso, Moisés foi agraciado pelo rei com elevado cargo na Corte, mas essa bela fortuna, advinda a um homem de origem obscura, despertou inveja e surda
malquerença dos senhores egípcios, que avidamente buscavam toda a oportunidade para o desacreditar perante Ramsés, encontrando em Chenefrés um ativo aliado.
Todas essas misérias íntimas azedaram pouco a pouco o ânimo de Moisés; o moço jovial e diligente tornou-se sombrio, tristonho e pouco comunicativo.
Meu sonho dourado era casá-lo com uma egípcia de alta linhagem, para apagar assim, com uma aliança nobre, os preconceitos que lhe prejudicassem o futuro. Certo,
o belo homem sábio e altamente colocado, meu protegido como filho, não encontraria qualquer recusa; mas, com grande desapontamento de minha parte, ele demonstrou
aversão invencível a toda e qualquer ligação, suplicando-me abandonasse a idéia de casamento.
Em compensação, passou a demonstrar profundo interesse pelo infeliz povo de que descendia.
Sempre que se aludia à condição miserável e degradada, aos trabalhos que sobrecarregavam seus irmãos, sombria e sinistra chama lhe brilhava nos olhos e os punhos
se lhe cerravam.
Visitava assiduamente os pretensos parentes Amram e Jocabed, trazendo para Thebas o filho deles, Aaron, que julgava seu irmão; passava horas à fio em conversa com
esse homem astucioso e genial, instruindo-o e fazendo-o contar a história do seu povo, os pormenores dos sofrimentos e humilhações que os sobrecarregavam.
Há muito que minha saúde se vinha ressentindo e era extremamente delicada. Sentia que meu fim se aproximava e incoercível desejo se apoderou de mim, qual o de morrer
lá onde havia se desencadeado o drama da minha vida.
Antes de partir para Tanis, uma intriga palaciana ocasionou novamente a Moisés um profundo desgosto. Supliquei, então, a Ramsés que lhe desse um comando no Exército,
a fim de mantê-lo afastado por largo tempo e ensejando, assim, acalmar todas as suscetibilidades.
Fui atendida. Aliás, a ocasião era favorável, pois aprestava-se nova guerra (penso que contra os Líbios).
Satisfeita e calma, cheguei a Tanis acompanhada de Chenefrés, que, desolado com a idéia de perder-me em breve, desfazia-se em cuidados. Ele amava-me a seu modo,
mas, seu ciúme sobreviveu aos anos.
Uma tarde, semanas após nossa chegada a Tanis, encontrava-me deitada no terraço, onde descortinava os jardins e aspirando deliciosamente o ar puro e aromatizado;
os raios do sol poente douravam a copa das palmeiras e projetavam reflexos avermelhados na sombria folhagem dos bosques, iluminando fantasticamente aquele jardim
tão conhecido e pleno de recordações...
Absorvia-me nas minhas reminiscências: lá estava a janela serpenteada de roseiras, por onde chegou a mensagem de Apopi ao regaço de Asnath, há muito falecida; lá,
sob o zimbório copado do caramanchão, tinha revisto Ithamar e minha imaginação recompôs o quadro dessa noite: via-o de pé, iluminado pela Lua, tão triste e tão belo!
O coração pulsou à lembrança daquela hora deliciosa, a melhor da minha vida, porque, dominada inteiramente pelo meu amor, havia esquecido as torturas que precederam
e ignorava as que deviam sobrevir...
Fui interrompida nesse enlevo por uma das aias anunciando a chegada de Moisés, procedente de Thebas e solicitando o favor de admiti-lo à minha presença.
Consenti imediatamente, porque a companhia do filho querido sempre constituiu um bálsamo para o meu coração.
Com a sua chegada, afastei todos os presentes, desejosa de ficar a sós com ele, para saber se havia algum novo aborrecimento que o obrigava a procurar-me.
Quando assim estivemos, assentou-se na almofada junto do canapé, tomou-me as mãos e beijou-as.
- Não minha querida benfeitora - respondeu - nada me aconteceu, mas por estes dias devo seguir para o meu posto no Exército, e antes de o fazer, quis rever-te ainda
uma vez. Como te sentes?
Inclinou-se ternamente para mim:
- Tens aspecto de sofrimento, muito fraca, olheiras... oh! querida mãe, será que não te encontrarei no meu regresso? Se já não existires, ficarei só e abandonado;
quem me estimará como tu?
Com os olhos molhados de lágrimas, encostou o rosto em minhas mãos.
Qual dos viventes de hoje, pensando no grande legislador Moisés, não o imaginará um velho de aspecto majestoso e severo, impassível e implacável executor da vontade
do deus de Israel, lutando de igual para igual com o altivo Faraó, cobrindo a terra egípcia de misérias e de vítimas?
Passados os séculos apenas deixaram de pé o grande profeta, que, por meios muitas vezes cruéis, soube criar um povo e fundar uma religião; mas esses séculos apagaram
a individualidade do Moisés que, moço, belo e amoroso, chorava amargamente a perda da velha protetora.
Passei carinhosamente a mão por sua cabeça inclinada; ele, aprumando-se e olhando-me desesperado, murmurou:
- Estranho mistério que te inspirou a ti, soberba filha de reis, tanta afeição ao filho de uma raça detestada; tu mesma não te admiras? Muitas vezes tenho pensado
nisso.
Nesse momento, seu olhar, habitualmente sombrio e duro, fixou-se em mim, enevoado pelas lágrimas e com aquela expressão doce e meiga dos olhos de Ithamar:
Sensibilizei-me, e atraindo-o a mim, sussurrei:
- Tudo saberás: antes de morrer, desejo desvendar o doloroso passado que nos une; antes, porém leva-me para junto da balaustrada, pois aqui falta-me o ar.
Ergueu-me nos braços vigorosos e colocou-me num monte de almofadas, à borda do terraço.
Tomada de grande abatimento, perdi a voz e só muito depois pude recuperá-la. Moisés compreendeu meu gesto e a ninguém chamou.
Tudo já se iluminava com a Lua, quando pude murmurar:
- Olha este jardim, Moisés; lá, naquele bosque de acácias, percebes um banco de mármore?
Há muitos anos - continuei - junto desse banco estava um homem alto e belo como tu, de olhos fixos neste palácio; ele sonhava com a mulher que ali dormia, quando,
repentinamente, ela surgiu diante dele; atônito, rojou-se-lhe aos pés, beijando-lhe a fímbria do vestido. Ela, tudo esquecendo, exceto o seu amor - porque o coração
não reconhece casta nem nascimento - entregou-se-lhe inteiramente. Esse homem era teu pai, o hebreu Ithamar; a mulher era eu, Thermutis, filha de Faraó!
Moisés tudo ouvira, ansioso e opresso; às últimas palavras deu um salto e, com surda exclamação, fitou-me espantado: depois, pondo-se de joelhos, estreitou-me apaixonadamente
de encontro ao coração:
- Minha mãe, tu? E não me abandonaste, como a um ser indigno, uma nódoa da tua nobreza?
Calou-se, ensimesmado.
- Onde está meu pai? Tu, que não abandonaste o filho, não terás renegado o pai.
E observando-me, angustiado:
- Dize-me o que é feito dele. Talvez tenha fugido e então irei buscá-lo, trazendo-o para junto do teu leito mortuário, a fim de que o vejas pela última vez. Nada
temas pelo teu segredo, eu saberei guardá-lo.
- Filho querido - respondi beijando-lhe a fronte - brevemente verei teu pai lá onde, segundo afirmam os sacerdotes, reina completa igualdade; onde todos são criados
por Osiris, dos mesmos raios da sua graça e, sem pejo, poderei reencontrar o espírito de Ithamar, porque te amparei, amei e eduquei. A ti, fruto do nosso amor, deixo-te
rico e poderoso: tudo que te pude dar, além do meu amor materno, já te dei; quanto a teu pai, morreu apunhalado por mão vingadora, que lavou no seu sangue a honra
de um Faraó.
- Ah! - murmurou empalidecendo - é então verdade que um membro de nossa família, cujo nome ninguém jamais nomeia, pereceu de morte violenta e esse, cujo nome assim
se oculta, é o meu pai? Suplico-te, mãe benfeitora, neste momento decisivo, que me relates tudo.
Inclinou-se e, em surdina, tudo lhe contei.
- Foi assim, meu filho, que nasceste junto do cadáver de teu pai - disse em conclusão - mas, se me amas, não indagues jamais, quem o matou. Basta que te diga que
foi tudo obra da vontade real.
Eu não queria que ele matasse Chenefrés, se um acaso lhe deparasse a verdade, pois notei a exaltação febril com que ouvia.
Levantou-se arrebatado, olhos brilhantes, elevando as mãos crispadas:
- Oh! Eu te vingarei! Ouve o que te digo, espírito de meu pai! Vingar-te-ei, sim, não num homem, mas quebrando o jugo que pesa sobre o nosso desgraçado povo e que
o faz miserável e desprezível. Lutarei por ele, dar-lhe-ei a independência. O suor não mais escorrerá da fronte dos meus irmãos, na terra da servidão; ninguém mais
se envergonhará de apertar-nos a mão, e tempo virá em que todos se curvarão muito baixo diante desse povo desprezado, que há de governar o mundo. Essa a minha vingança
pelos sofrimentos que temos suportado. Oh! pais infelizes! E desse modo, cumprirei a profecia do meu destino: sim, povoarei o deserto fundando um grande povo, morrerei
acima do comum dos mortais, no trono de Israel, donde governarei com sabedoria e clemência.
Calou-se como que sufocado. A palavra, comumente lenta e difícil, vinha-lhe vibrante e rápida.
Escutava-o perturbada e inquieta, quando um raio do sol despontou, iluminando com rósea auréola o semblante pálido de Moisés, que continuava de olhos postos no céu,
em suprema exaltação.
Estremeci. Ra, cujos raios dourados tinham saudado seu nascimento, tê-lo-ia ouvido e santificado as palavras?
Não tive tempo de raciocinar: sacudida por tantas emoções, perdi os sentidos.
Ao voltar a mim, Chenefrés estava junto do meu leito e Moisés se inclinava para despedir-se. Pela última ve2, beijou-me as mãos e saiu. Meus olhos materiais não
tornaram a vê-lo.
Depois desse dia, entrei a definhar; não mais me levantei, aguardando a morte a cada momento.
Finalmente, uma tarde em que de novo me encontrava deitada no terraço, a inquietação, que me afligia desde pela manhã, transformou-se em frio glacial, invadindo-me
todos os membros; tudo turbilhonava em torno de mim, como iluminado pelas chamas de um incêndio; depois, um choque violento me aturdiu. Ao recuperar a consciência,
notei que flutuava num espaço azulado e transparente, revestida de uma túnica impalpável e nebulosa; extenso raio luminoso, como de sol poente, incidia sobre mim
e, nessa trama de luz, alçava-me com espantosa rapidez.
Vou para Ra, pensei... Depois, o coração se confrangeu. É o julgamento, os irredutíveis juizes do reino das sombras vão pesar-me o coração e os atos.
Nesse instante de temor, surgiu um ser luminoso, cujo semblante calmo e majestoso exprimia mansidão:
- Thermutis - manifestou em pensamento - antes de compareceres a julgamento, vai reunir-te àquele que foi teu filho; protege-o, inspira-o; que teu amor o ampare
nas tentações e o auxilie a vencer a si mesmo, porque grande é a sua prova. Tal é, no momento, tua missão terrestre.
O espírito luminoso desapareceu e voltei para junto daquele a quem na Terra tanto amara. Sombra fiel, acompanhei-o na guerra, que lhe foi desfavorável; reveses que
a maledicência dos inimigos atribuiu, não a circunstâncias difíceis, porém à incapacidade do hebreu elevado a condição imerecida.
Ao patente descontentamento que lhe demonstrou o rei por ocasião do seu regresso, opôs uma fria indiferença. Com tristeza, vi uma nuvem de amargura entristecer-lhe
a alma; julgava-se apenas elemento exótico e afrontoso nessa Corte, onde acreditava dever brilhar em primeiro plano; e pouco a pouco, o ódio mal contido contra o
Egito e os Ramsessidas foi engrossado por desmedida ambição.
Não podendo apoderar-se da coroa do Faraó, resolveu fazer-se rei do povo desprezado, mas numeroso, ao qual pertenceu o pai; como seu chefe, imaginava escarnecer
e punir os egípcios, esquecendo que o sangue destes últimos corria igualmente em suas próprias veias.
Aferrou-se a essa idéia devotando-lhe todas as forças do seu gênio e todos os recursos do seu saber. Estava, porém, sozinho; quanto mais os planos ocultos o colocavam
em contato com os hebreus que desejava libertar, mais os sentia indolentes, poltrões, falsos e pérfidos.
Fora outro, que não esse homem de vontade férrea, e teria desanimado. Ele, porém, apenas se irritava. Decidiu portanto que, pelo terror e implacável crueldade, disciplinaria
aquela raça embrutecida, inoculando-lhe coragem.
Para ficar mais no centro das operações, retirou-se para Tanis, passando a viver numa propriedade que eu lhe legara. Chenefrés também residia na mesma cidade, desde
que faleci. Separados, entretanto, por invencível inimizade, raramente se avistavam.
Um dia, Moisés que gostava dos lugares onde eu vivera, quis dar um passeio solitário pelos jardins do palácio. Para lá chegar, teve de atravessar um vinhedo que
me havia pertencido e onde os trabalhadores hebreus estavam colhendo uvas sob as vistas dos guardas; de repente, num recanto afastado, viu um semita que se esforçava
para erguer um pesado cesto, enquanto o guarda, impaciente com a lentidão do servo, lhe aplicava umas bastonadas.
Surpreendendo a cena, o sangue lhe subiu à cabeça já incandescida, e desferiu violenta bengalada na fronte do feitor, egípcio, que tombou morto.
Caindo em si e prevendo as consequências, arrastou o cadáver para uma vala cobrindo-o de terras e folhas secas.
Quando, justamente, se voltava para retomar seu caminho, surgiu Chenefrés. Moisés estacou de braços cruzados e o trabalhador fez menção de suspender o cesto.
O velho aproximou-se e, notando a mancha de sangue no solo, perguntou com severidade:
- Que é isto, hebreu? Onde está o feitor?
Aterrorizado pelo olhar do patrão, o judeu prostrou-se em terra e, apontando Moisés, exclamou angustiado:
- Quem o matou foi ele quando me castigava, mas eu bem mereci as pancadas e jamais ousaria erguer a mão para o meu bom e nobre vigilante; perdão! perdão! sou inocente
e não sei por que aqui se meteu este desconhecido.
Moisés recuou como se houvesse recebido uma punhalada em pleno peito. O povo que ele queria libertar era falso a ponto de trair seu defensor!... Depois, com olhar
inflamado, caminhou para Chenefrés:
- Sim - disse - fui eu o assassino!
- Some-te da minha vista, estúpido miserável! - contestou o egípcio ao servo com gesto de contrariedade. E o hebreu se eclipsou qual sombra.
Uma vez a sós, os dois homens se mediram de alto a baixo com olhar odiento.
- Eis o povo que pretendes libertar para erguer um trono, no qual reinarás com sabedoria e clemência - disse Chenefrés com ironia; há muito que te observo e somente
a memória daquela que me foi cara e que, na sua fraqueza, revelou tua origem, me impede denunciar ao Faraó o traidor que maquina revoltar-lhe os súditos para fundar
um reino, babes, também, como a lei pune um hebreu pela morte de um egípcio; vai-te, pois, carrega teus camelos de tudo quanto te convenha e ganha as fronteiras.
Que jamais teus pés palmilhem o solo egípcio, se tens amor à vida! Olha - acrescentou com zombaria - há povos selvagens, que poderás vencer e disciplinar; não desanimes,
pois, de cingir uma coroa. Por enquanto, vai-te. Que não te veja nunca mais. Justificarei tua fuga pela morte do egípcio, para te furtar ao castigo.
O velho odioso calou-se, lançando um olhar de desprezo ao inimigo enfim suplantado, voltou-se e desapareceu.
Fremente de raiva, e com o cérebro convulsionado, Moisés retomou inesperadamente o caminho de casa. Desta vez estava perdido; seus planos desmascarados, e seu último
colóquio comigo surpreendido.
Sem perda de tempo, carregou alguns camelos com os seus tesouros mais valiosos e, mal anoitecera, abandonou Tanis, seguido apenas de alguns fâmulos.
A Lua iluminava a estrada por onde seguia a pequena caravana. Montando um camelo, Moisés ia sombrio e silencioso.
A certa altura, parou e ficou a contemplar a enorme cidade, que, com os seus palácios, jardins e templos grandiosos, estendia-se a perder de vista, cortada pelo
Nilo, qual larga faixa de cristal, refletindo nas águas prateadas os leques de palmeira despontados da massa os sicômoros marginais.
Sentindo dilacerar-lhe o peito, Moisés não podia desprender-se daquele quadro, como se o menor detalhe se lhe incrustasse no coração de proscrito e desterrado. Cumpria-lhe
abandonar o país natal, essa terra egípcia, desbordante de atividade e riqueza, de ciência e grandiosidade. Oh! como esse instante lhe pareceu tão caro! Dentes trincados
recalcou a emoção e, fechando os punhos, murmurou:
- Voltarei... E então, Egito, tu e teu Faraó me pagareis este momento!
Nos primeiros dias de viagem o exilado, apesar dos sombrios pensamentos, devia cogitar do próprio destino, e de pronto o seu enérgico espírito traçou o plano a seguir.
Lembrou-se de um velho, que havia encontrado em Thebas e a quem albergara. Esse homem lhe havia falado de um longínquo e fantástico país, como tendo sido o berço
da ciência e das leis do Egito; lá, aquele refugiado tinha sido sacerdote; mas, por causa de um crime e após longa viagem, aportara a Thebas. Nesse rico país, de
uma fertilidade desconhecida, templos mais antigos que os do Egito guardam documentos velhos como o próprio mundo, ciência e segredos em face dos quais os mistérios
em que fora iniciado empalideciam.
Para lá, para aquela índia distante, é que ele agora desejava ir; lá encontraria o saber e as armas que lhe possibilitaria combater vitoriosamente o Faraó e libertar
e disciplinar os hebreus.
Não entrarei nos pormenores dessa viagem de contratempos e perigos; apenas direi que Moisés alcançou a Índia e encontrou num velho brâmane um amigo, um mestre e
um conselheiro.
Invisível, mas fiel companheira do ser amigo, vi-o dedicar-se ao estudo com todo o ardor do seu caráter, ouvindo e anotando, cuidadosamente, tudo que o bondoso instrutor
lhe traduzia dos antigos Vedas, sobre a divindade e a origem do mundo.
Na solidão do seu retiro rodeado por luxuriante vegetação, palestrava com o velho sábio e mentor.
Moisés tudo lhe confiou: passado, vida, planos de vingança, e o indiano de barbas e cabelos brancos, cujo olhar entretanto conservava todo o fulgor da mocidade,
o aconselhava e instruía, ministrando-lhe profundo saber e experiência.
Um dia em que Moisés se referiu mais longamente aos egípcios e hebreus o indiano lhe disse:
- Filho, queres fundar um reino, libertar teus irmãos oprimidos e reuni-los num povo que se subordine à tua vontade e obedeça às tuas ordens; para consegui-lo, deves
dar-lhes leis adequadas, pois cada nação, como cada indivíduo, tem necessidade de um regime próprio à sua índole. Os egípcios são sábios, fortes, disciplinados;
os hebreus, indolentes e embrutecidos pelo cativeiro; mas, tanto uns quanto outros têm a cabeça aquecida pelo vosso sol causticante e temem o que não compreendem;
assim, se souberes empregar as forças da natureza por eles ignoradas poderás pelo medo forçar os egípcios a consentirem na libertação do teu povo e este a te seguir,
porque os hebreus sentir-se-ão fortes com o poder misterioso e terrível do seu chefe.
- Oh! atalhou Moisés, de olhos brilhantes ensina-me a empregar essas forças, inicia-me nos mistérios que ignoro, grande servidor de Brama!
- Fá-lo-ei, porque essa é a vontade dos invisíveis - respondeu simplesmente o velho sábio - mas agora ouve meus conselhos: nas leis que destinares a teu povo, adapta
às suas necessidades o que te ensinei dos Vedas; rejeita o supérfluo, simplifica o incompreensível, porque, para as massas ignorantes e embrutecidas por séculos
de opressão, as leis devem ser concisas e de tal modo simples, que, desde o mais sábio ao mais inculto operário, possam compreendê-las e senti-las pelo coração.
A mente não deve ser sobrecarregada de coisas supérfluas. Reflete, pois, para que na codificação das leis sociais e morais, que devem fundir teu povo num só homem,
a submissão ao chefe não seja descurada; tudo deve tender para esse fim e, portanto, nada de rivalidades nem no céu, nem na Terra; uma divindade única, da qual procedem
todas as forças da natureza; um Deus senhor do céu e da Terra, única fonte de autoridade, dispensadora de sabedoria, poder, perdão e castigos, diante do qual todos
se dobrem. A divindade deve ser temida e venerada; seu nome pronunciado na angústia e na necessidade, deve fazer tremer o coração dos mortais; portanto, a adoração
dirigida a Deus não deve esquecer os deveres a que estão sujeitos os homens para sua própria subsistência; estabelece, pois, um dia consagrado à divindade, que será
observado escrupulosamente, porque a carne gosta da moleza, o corpo do repouso e orar é mais fácil que trabalhar. A velhice deve ser honrada e a mocidade sujeita
à sua vontade e conselho; os pais amados e respeitados, devem receber, na velhice, a afeição e os cuidados que receberam na mocidade; este preceito é o fundamento
da família e aquele que o praticar terá um destino feliz.
Repetiam-se essas conversações com frequência, e pouco a pouco amadurecia o gigantesco plano que deveria libertar o povo hebreu e ferir os egípcios.
Moisés aprendia a manejar as forças da natureza e foi iniciado num grau mais alto do que o conquistado no Egito, sobre os fenômenos que vos, encarnados atuais, chamais
de espíritas.
Quando, pela primeira vez, lhe apareceu uma visão verdadeiramente divina, prostou-se e perguntou com fé e humildade se devia libertar seus irmãos, e a voz celeste
daquele que não deseja reinar senão pela caridade e pelo amor, respondeu-lhe:
- "Vai, mas realiza o que pretendes pela bondade, nunca pela morte ou flagelos, nem para erguer um trono à tua ambição, mas para seres o amigo, o pai indulgente
desse povo; e se for preciso, para sofrer com ele: então, serás eleito e cumprirás dignamente tua missão".
Dominado por essa bondade sobre-humana e sob a impressão do momento, Moisés conformou-se. Cedo porém, sua alma violenta recuou; queria vingar-se, depois reinar,
dominar e punir, caso não fosse obedecido. Este desejo lhe dominou o espírito e assim foi que deixou a índia e viveu no deserto, amadurecendo e preparando o gigantesco
plano que executou gloriosamente, arrancando seu povo da dominação egípcia, o que foi conseguido, porém com o sacrifício de milhares de vítimas.
Teve, de fato, um povo; mas, para firmar sua soberania, precisava dominar as almas e isso não podia obter senão à custa do terror extra-terrestre. Tornou-se, pois,
o intermediário direto entre Deus e o povo eleito de Jeová. Por sua boca, o Eterno dispensava graças e punições; por suas mãos, dispunha das forças da natureza e,
entretanto, apesar dessa força e da sua ciência, permanecia impotente diante das leis imutáveis da terra; o calor, as moléstias, as privações das massas humanas
que, arrancadas do meio habitual, erravam extenuadas e desconfiadas sob os ardentes raios de um sol tropical; compreendia que precisava conquistar uma terra fértil
e cômoda para fixar nela esse povo e elevar o próprio trono.
Se estivesse à frente de aguerrido e disciplinado exército, qual o egípcio, a empresa ser-lhe-ia fácil; mas, agora, comandava milhares de escravos preguiçosos, poltrões,
sempre descontentes, e. não soldados. Enraivecido, compreendeu que o plano tão habilmente arquitetado nos templos da índia e na solidão do deserto, cuja execução
lhe parecera tão fácil, arriscava-se a fracassar mediante a inépcia desse povo pérfido e ingrato, que, como todos os ignorantes, nada mais sabia fazer que murmurar
e revoltar-se. Resolveu, então, desbastar as fileiras compactas da velha geração e, por ordem de Jeová, tingiu de sangue as areias do deserto, como já havia semeado
de cadáveres as terras do Egito...
Foi com grande tristeza e pungente dor, que acompanhei o filho bem-amado, surdo à minha débil voz e ao qual buscava inspirar os sentimentos de caridade e perdão.
Sombria noite baixou, pouco a pouco, sobre essa alma grande e generosa, mas toldada pelas fraquezas humanas.
Não obstante, criou ele o admirável código de leis morais e sociais que, com o tempo, forjou essa nacionalidade indestrutível e que, vencendo as vicissitudes de
três mil anos, dispersada entre todos os povos da Terra, permanece de pé como um monumento do seu gênio.
Ainda ninguém ao ler a história do povo de Israel, tentou aprofundar o estado dalma desse homem extraordinário, que, sábio e espiritualizado entre todos, convivendo
em palácios, habituado ao requinte social e aos prazeres intelectuais de uma sociedade culta e elegante, errava ano após ano, nas planícies áridas, no convívio de
um povo selvagem, lutando contra perpétuas revoltas, cercado pela inveja e ingratidão até dos próprios parentes, forçado a aguardar que desaparecesse essa velha
geração, substituída por outra educada em novos moldes, que produzisse bons frutos aos seus sucessores; a ele, entretanto, estava apenas reservado dominar pelo terror,
punindo os desobedientes em nome de Jeová.
Essa perpétua mentira das suas relações diretas com a divindade em cada um: de seus atos constituiu, pouco a pouco, o suplício da sua vida, porque Moisés acreditava,
realmente, no grande criador do universo, incompreensível à débil razão humana: conhecia as relações com o mundo invisível e, para obter fenômenos mediúnicos, tomava
as necessárias precauções para a realização das sessões. Seus conselheiros eram, entretanto, espíritos ambiciosos e enganadores, e o temor da sua grande responsabilidade
fazia-se cada vez mais pesado. Esse grito de desfalecimento da sua alma de escol, conservou-se mesmo na antiga crônica dos hebreus, onde diz que o Eterno, em sua
cólera pela desobediência do enviado, o condenava a ver a Terra Prometida, sem pisá-la. (Sem dúvida, não podendo confessar o verdadeiro motivo da cólera celeste,
deu-lhe esse fútil pretexto.)
O orgulho e ambição aumentavam-lhe o sofrimento. Qual não seria a satisfação dos egípcios, sabendo que o insolente hebreu ainda vagava no deserto, sem asilo e sem
pátria!? A taça de ouro que o Faraó desesperado lhe atirara não se encheria mais de vinho, como dissera empertigado ao apanhá-la; a tumba úmida do pobre Mernephtah
não lhe havia dado um reino, o trono tão ambicionado não encontrava onde erguer-se e se perdia na bruma longínqua.
Sacrificando energias, saúde, inteligência, ele regava com o suor do rosto a seara que um David, um Salomão, deveriam colher.
Eu tinha o coração dilacerado, acompanhando, como testemunha invisível e impotente, o pesado encargo espiritual do filho querido, que tanto sofria por sua própria
culpa.
Durante aqueles longos anos de trabalho e lutas, o organismo se lhe esgotava, envelhecia a olhos vistos; a eternidade batia à porta do asilo terrestre e ele a desejava,
em penhor de libertação.
Ao sentir aproximar-se o fim, reuniu o povo e dele se despediu. Queria morrer isolado, cercar sua morte de uma auréola de mistério, mas mesmo isso não passava de
última expressão de orgulho.
Propalou que Jeová o havia chamado e proibiu, a quem quer que fosse, acompanhá-lo. Sozinho, então, subiu a montanha e, chegando ao cume, parou fatigado; braços cruzados
sobre o largo peito, contemplou a imponente paisagem que sé descortinava a seus olhos, iluminada pelos raios do sol poente; com olhar colérico, fixou um instante
os pontos negros que, na planície, localizavam o povo hebreu; apurou o ouvido aos variados ruídos do campo, que até ali chegavam em surdo murmúrio.
Com profundo suspiro, voltou as costas; a idade havia-lhe enrugado a fronte e encanecido a espessa cabeleira; não era mais aquele moço que, no terraço do palácio
de Tanis, exaltado, do olhos coruscantes, estendera os braços para o sol nascente e jurara libertar seu povo, elevando um trono.
Triste sorriso descerrou-lhe os lábios:
- Astro que minha mãe adorava, tu não mentiste ao meu destino! O homem cego é aquele que interpreta as profecias segundo o grau de sua ambição. Foi claramente dito
que eu povoaria o deserto, que o sangue das vítimas tingiria as areias da planície e que eu morreria só, muito alto, muito alto... Esta montanha não será, acaso,
um trono preparado pelo Todo-Poderoso?
Deitou-se, recostando-se numa pedra e fechou os olhos. Então, diante da retina espiritual, passou-lhe como em sonho, a vida inteira, a radiosa infância no palácio
da maravilhosa Thebas; descuidosa juventude na Escola da Casa de Seti, onde adquiria o saber que, mais tarde, haveria de ajudá-lo a praticar tanto mal. Onde estariam
agora os seus mestres, os companheiros de jogo e de estudos? Oh! Mais de um havia perecido nas calamidades que assinalaram a saída do seu povo; e aquela mãe adotiva,
sempre tão indulgente, também havia desaparecido qual sombra e, com ela, o anjo tutelar. Depois, reviu o exílio, a fuga clandestina de Tanis, a Índia, essa terra
encantada onde pode repousar na ciência e no estudo, mas onde a ambição o escravizara; depois, o retorno, a luta com Mernephtah. Com dolorosa emoção, pareceu-lhe
assistir novamente à destruição do Faraó com seu exército e, em seguida, aos massacres intermináveis dos seus hebreus revoltados.
Apreensiva e amorosa, eu observava-o, tal como na época em que os raios do sol nascente lhe iluminavam o berço. Então, ele entrava no, mundo material de provas e
tentações; agora voltava para o dos espíritos e das responsabilidades efetivas.
Envolvendo em véu cinzento o cume da montanha, elevava-me a neblina da tarde. Peito oprimido, Moisés respirava com dificuldade, com olhos desmesuradamente abertos.
Sua vista espiritual, aguçada pelo próximo desprendimento, lobrigava na bruma acinzentada seres transparentes, entre os quais eu figurava à frente. Da planície,
parecia-lhe subir uma enegrecida e tumultuosa massa. Estremeceu... ajoelhou-se com dificuldade, elevando aos céus os braços outrora vigorosos; do coração brotou
ardente e ansiada súplica:
- Infinitamente grande e poderoso criador e diretor do Universo, perdoa o me haver servido do teu nome e da tua vontade para satisfazer minha ambição pessoal; não
te apartes de mim, ouve minha prece.
Mas, a massa turva se aproximava envolvendo-o nas suas vagas, qual as de um mar encapelado. Entre os milhares de seres flutuantes que a compunham, ele reconheceu
o Faraó Mernephtah e seus guerreiros cobertos de algas e espumas marinhas; um grupo, não menos numeroso, se constituía dos egípcios vitimados no massacre dos recém-nascidos
e de seus pais.
- Restitui-me a vida destruída e o túmulo honrado, - sussurravam, os lábios pálidos de Mernephtah; mostra-me o Jeová que te enviou.
- Restitui-nos nossos filhos - murmuravam os outros.
E nova massa avançava, hedionda, encharcada de sangue:
- Foi para nos massacrar impunemente que nos iludiste e levaste para o deserto; onde está o Jeová que te ordenou?
As sombras vingadoras se agrupavam ao redor dele, inclinando os rostos crispados, decompostos, sufocando-o com o hálito fétido; a coroa mística do alto e baixo Egito,
que ornava a cabeça transparente de Mernephtah, oscilava, parecendo pender sobre ele, comprimindo-lhe o peito como se fora uma montanha.
Moisés deixou-se cair com surdo estertor e apoiou a cabeça numa pedra que se encontrava perto, última almofada do primeiro rei de Israel; um suor glacial banhava-lhe
o corpo... E estava só! Mão alguma havia para enxugar-lhe a fronte; nem uma gota d'água para refrescar-lhe os lábios ressequidos.
- Oh! Jeová! - murmurou o moribundo - alivia-me e perdoa meus erros; sempre proclamei tua grandeza e sabedoria; em teu nome ensinei o bem e reprovei o mal; julga-me,
pois, com clemência.
Ardente prece partiu do meu coração a favor daquele que, no emaranhado das paixões terrestres, havia dito em nome do Eterno: "olho por olho, dente por dente", mas,
na hora da morte, repelia espontaneamente essa máxima. Com fé e amor, dirigia-me a esse Deus único e poderoso, que tem a clemência por apanágio, e que a dispensa
da mesma forma ao mais miserável escravo, como ao profeta fracassado na sua missão.
Imediatamente, apresentou-se uma entidade radiante de luz, circundada por um clarão cintilante, enquanto uma vibração harmoniosa que nenhum som humano poderia imitar,
parecia dizer:
- Que aquele dentre vós, espíritos vingadores, que não lutou contra ele senão pelo bem, despreocupado de ambição, de cálculo ou de rivalidade, o julgue e condene.
Recuaram e tremeram as massas. Ninguém havia agido desinteressadamente, desde o Faraó, que por orgulho e rapacidade, havia perseguido o povo escravizado para aproveitar-lhe
os serviços, até os hebreus revoltados, que, por inveja, haviam sacrificado os seus irmãos para apossar-se do lugar de chefe. Condenados pela própria consciência,
as sombras vingadoras empalideceram e se confundiram na bruma, enquanto um facho de fogo cortava o último laço que ligava a alma ao corpo material de Moisés.
Logo, o perispírito balançava no espaço transparente - nossa pátria eterna - e o espírito luminoso murmurou doce e compassivo:
- "Pobre cego! Vês o que resta da tua passagem pela Terra? Um corpo transparente e uma alma culposa; todo o poder, toda a riqueza, lá ficaram nesse raio luminoso
que espelha o teu passado. Não te seria mais útil que esse raio refletisse a pobreza, a humildade e a sabedoria e criaturas amparadas pela tua caridade e clemência
em lugar desta legião horrorosa de acusadores, constituíssem uma falange de amigos devotados em te seguir? Elevando-se aqui, onde a imensidade dos sistemas planetários
reduz o homem a um átomo imponderável, limitado e enfraquecido no entendimento e na vontade, a ambição e os prazeres terrestres surgem em toda a sua nudez, pobres
joguetes trabalhados pelas mãos de espíritos inferiores".
Do fundo do infinito elevaram-se vibrações que ecoaram no espaço com majestade esmagadora, e dessas vibrações harmoniosas partiu o sentido seguinte:
- "Espírito! Tu que te serviste do nome do Eterno e Misericordioso Criador do Universo, vem prestar conta dos teus atos!"
Vibrações tumultuosas envolveram o perispírito flutuante de Moisés; depois, uma nuvem o elevou, eclipsando-o aos nossos olhos espirituais. Do meu coração, entretanto,
brotou ardente súplica, no sentido de poder comparecer ao Tribunal dos Supremos Juizes, que eu avistava ao longe, cercado de deslumbrante fulgor. E esse apelo lhe
franqueou uma passagem através das massas transparentes dos inimigos, porque era a voz do amor eterno.
THERMUTIS
NARRATIVA DO ESPÍRITO DE PINEHAS
(mais tarde Tibério)
Certa noite, quando meu corpo terrestre mergulhou em profundo sono, cinzento vapor me envolveu e depois, ao dissipar-se pouco a pouco, vi que uma fita de fogo me
atraía para um ser fluídico, no qual reconheci Rochester, meu perseguidor, hábil perscrutador de vidas e de crimes sepultados no olvido, e que ele desenrola, impiedosamente,
aos olhos dos homens, para lhes servir de ensinamento.
- Não! não quero; desta vez não quero que as minhas quedas e torturas morais sirvam ao que chamas tua missão - protestei energicamente.
Não obtive nenhuma resposta, porém uma vontade superior continuava a reter-me no espaço. Depois, pareceu-me atravessar uma camada escura e compacta como um rochedo
e, ao meu olhar conturbado, surgiu espaçosa gruta, fracamente iluminada por uma claridade azulada e vaulante.
Estremeci. Quem seria aquela sombra pálida, de braços contorcidos e encarquilhados, que, qual teia de aranha, flutuava junto de um sarcófago em ruínas? Nesse sarcófago,
meio coberto por uma tampa gasta pelos séculos, jazia a múmia de uma mulher, tão fresca e bela, que parecia zombar da ação do tempo e cujos olhos de esmalte como
que me diziam:
- Eis-te, enfim!
- Pinehas! - murmurou Rochester a meu lado.
Atravessou meu perispírito - o qual estava trêmulo de emoção e terror - uma corrente elétrica. Sim, recordava-me: a sombra daquele homem de cabelos pretos e feições
semíticas, era o reflexo de mim mesmo, Pinehas, contemporâneo de Moisés, o grande legislador hebreu e ela, Smaragda, ali dormia o sono eterno! Não, não era ela,
era apenas o corpo da orgulhosa e vingativa egípcia, que repousava naquele sarcófago; seu espírito estava longe.
As recordações assaltaram-me esmagadoras em turbilhão. Meu peito arquejava; queria rever os lugares que foram teatro de tantos acontecimentos. À força de vontade,
meu olhar atravessou o rochedo e contemplou a planície coberta de destroços, onde se ostentava, outrora, a grande a populosa cidade que habitara. Templos desmoronados,
obeliscos em frangalhos, uns restos de paredes do palácio dos Faraós, era o que restava da antiga Tanis. Entre os montículos de areia que cobrem as ruínas de templos
e palácios rondam os chacais ou circula, furtivamente, algum ladrão nativo. Só o Nilo continuava o mesmo e, como tantos séculos antes, corria calmo e silencioso,
refletindo na superfície polida das águas os argênteos raios do luar.
Meu passado - pensei... Mas, quem pode ser Rochester pura desejar evocar, precisamente, esta existência? Meu olhar fixou-se nele e... (estranha lassidão d'alma sempre
escrava das aparências) tudo esquecendo, curvei-me ante a sombra que ali flutuava, purpúreo manto sobre os ombros, ostentando na fronte a coroa mística dos soberanos
do Nilo. Pinehas, o egípcio, não esquecera o respeito devido a Mernephtah, seu poderoso Faraó.
Um riso ferino de escarninho fez-me voltar a mim. Envergonhado e furioso, revi-me em Tibério.
Rochester falou:
- Pinehas, deves relatar essa vida; preciso de uma grande obra para acalmar minha alma ferida e sofredora; para isso, escolhi o passado longínquo e obscuro; desejo
lazer reviver o antigo Egito, Moisés, é os graves acontecimentos de que fomos testemunhas.
- Jamais - respondi, recordando, com orgulho e satisfação essa vida laboriosa, cheia de descobertas científicas. Queres que confesse esse passado interessante para
te tornares mais agradável àqueles a quem odeio, testamento que ele deseja extorquir, ele que taxa e negocia seu amor na proporção dos futuros benefícios dos teus
labores; a esse Rhadamés cuja brutalidade descarada triunfou em tantas existências e conquistou a amizade de Smaragda, que não tem um olhar para mim, modesto e silencioso
operário que não deseja sobressair, nem valorizar-se a si mesmo. Não quero trabalhar para ele. Acreditas que ignore ou tenha esquecido o presente? - acrescentei,
fitando enraivecido o perispírito embaçado de Rochester, cuja fronte, inclinada, denotava melancólico desânimo. Sei que teu querido filho, o ídolo do teu coração
(1) tem quase conquistado o teu médium, instrumento que tão bem manejam para flagelar teus inimigos. O coração brutal a quem confias, mãos tão rudes entre as quais
põe tua pena frágil e delicada, o tem quase dominado, porque esqueces, sempre, que uma implacável severidade só pode dominar o ser ingrato que proteges tão obstinadamente.
(1) O personagem a que se alude aqui, na "Abadia dos Beneditinos" tem o nome Kurt de Rabenau, e o leitor encontrará explicações disso no romance "O Judas Moderno".
(N. do espírito autor).
A fronte fluídica se ergueu e o ligeiro crepitar-me fez compreender que Rochester se entregava a ativo trabalho elétrico. Depois, pondo-me em contato com vários
filamentos fluídicos, disse:
- Olha e procura acalmar teus ciúmes.
Raio extenso e luminoso formou-se, descortinando uma paisagem bem diferente da que acabava de contemplar. No meio de terrenos pantanosos vi, então, a moderna Palmira
do Norte; em lugar de palmeiras isoladas, estendiam-se umbrosos pinheirais; depois, pedregosa estrada orlada de árvores e uma aldeia e casinhas de madeira, de arquitetura
modesta, rodeada de pequenos jardins de vegetação exótica e peculiar das zonas frias, como os próprios homens desse país setentrional.
Vi, no segundo andar de uma dessas vivendas, então banhadas pela lua, junto à janela aberta, uma moça de vestes, pitorescas, à eslava. Semblante mimoso, pálido e
abatido, grandes olhos brilhantes, contemplava a cadeia de florestas que delimitava o horizonte, como se estivesse mergulhada em profundo sonho.
- Smaragda! - pensei - e vi que seus pensamentos estavam exclusivamente voltados para Rochester e suas obras.
- Pois bem! murmurou Rochester; pensa ela em quem odeias?
- Neste momento, não; mas, se o seu pensamento se voltar para ele, verei talvez a tortura de um amor insatisfeito.
Um feixe luminoso partiu do cérebro de Rochester e feriu o da moça com violento choque elétrico, surgindo logo à sua visão espiritual a figura de um jovem militar
uniformizado, de rosto pequenino, emoldurado por alourada barba e olhos azuis, de crueldade fria e arrogante.
Meu perispírito tremeu e todo meu desejo se concentrou em recolher a impressão que esse quadro ia causar no espírito da Smaragda atual.
Ela estremeceu, corou vivamente e passou a mão fina e branca pela testa; no mesmo instante, um jacto de fogo lhe jorrou do coração e do cérebro, repelindo e devorando
a imagem que acabava de se lhe apresentar. O fogo de desprezo fazia palpitar todas as fibras dessa alma orgulhosa, cruel mesmo, quando ofendida na sua dignidade
feminina.
Uma onda de satisfação invadiu minha alma; acabava de convencer-me que o antigo Rhadamés não lhe inspirava mais que aversão e desprezo; e no momento a Smaragda de
outrora repelia energicamente qualquer lembrança do vilão.
Retirando o colar de pérolas que lhe ornava o pescoço, ela preparou-se para repousar, e antes de fechar a janela, inclinou-se para fora e chamou com voz cristalina
e pura:
- Venham, que é muito tarde.
Uma conversa que se percebia no jardim cessou e uma voz feminina respondeu: - Lá iremos.
Depois, tudo voltou ao silêncio.
- Rendo-me - disse a Rochester, que sorria maliciosamente - darei meu depoimento.
E eis como, nessa noite do ano de 1885, Rochester criou o seu "Fará Mernephtah".
Nasci em Tanis, em modesta casa de madeira, e tive por mãe a egípcia Kermosa. Nenhuma lembrança conservo de meu pai, que perdi em tenra idade. Cresci solitário,
abandonado a mim mesmo, pois minha guardiã, uma preta velha, passava a maior parte do tempo junto a minha mãe, sempre ocupada, bem como os demais fâmulos. Somente
nas horas de refeições lembravam-se de mim.
Não gostava de minha mãe, cujo caráter impertinente e violento inspirava-me temor e repugnância. Ela passava o dia lodo na cozinha, entre os criados, indagando e
comentando a vida alheia. Uma tal camaradagem, porém, era muitas vezes perturbada por cenas espantosas, de vez que costumava se enraivecer à-toa, e então, espumava,
sapateava, quebrava a louça e chovia pancada, mesmo sobre mim, se lhe estivesse ao alcance. Horrorizado e revoltado, refugiava-me no grande jardim da vivenda, dele
fazendo meu retiro predileto.
Esse jardim, outrora belíssimo, estava agora abandonado e inculto, mas a natureza desse abençoado país lhe prodigalizava seus tesouros - frutas e flores em abundância.
Deitado na relva, à sombra de algum caramanchão de rosas ou jasmins, ali passava horas e horas a sonhar ou observar o que ocorria em torno. Por isso, notava a incessante
atividade das formigas, os pássaros tecendo ninhos, e ouvia o pregão estridente dos vendedores d'água e de frutas, que perambulavam na rua.
Pouco a pouco, veio-me a idéia de que todos, homens e animais, se ocupavam em alguma coisa, exceto eu. Assim refletindo, senti um desgosto e um vácuo indefiníveis.
Aquela vida ociosa estava se tornando insuportável, até que um dia me aproximei de minha mãe (contava então quatorze anos) e lhe disse:
- Quando estou no jardim, noto em torno de mim uma atividade constante; as formigas conduzem os ovos, os pássaros constroem ninhos, as pessoas na rua vendem qualquer
coisa ou vão aos seus negócios; só eu jamais saio e de nada me ocupo; morro de tédio; dá-me alguma coisa para fazer.
Ouvindo essa inesperada confissão, minha mãe, surpresa, deixou cair a romã que estava comendo e abateu-se na cadeira, rindo até às lágrimas. Por fim, enxugando os
olhos, disse:
- Tu me fazes rir, Pinehas! Que te falta, então, menino estúpido? Comes o que queres, dormes à vontade, aborreces-te porque queres; acaso não te basta isso? Agradece
aos deuses o te haverem dado uma mãe que cuida da casa e de todos os trabalhos com energia e habilidade tão raras que jamais teve necessidade de homem para auxiliá-la;
mas, se instas em fazer alguma coisa, toma esta cesta de vagens e descasca-as.
Assim fiz, assentado a um canto, mas enquanto descascava as vagens, entregava-me também aos próprios pensamentos e, assim, lembrei-me da festa de Osiris, a que tínhamos
assistido, naquele ano, e dos sacerdotes eretos e majestosos! Como todos, se inclinavam diante deles, classificando-os de sábios, de iniciados!
Certa feita, um deles veio Visitar minha mãe doente, deu-lhe um rolo de papiro e receitou, pondo-a boa. Aprender o que sabiam os sacerdotes, isso sim, valia a pena;
mas descascar ervilhas...
Amesquinhado, atirei longe a cesta e corri para o jardim, eterno retiro onde me entregara a cogitações íntimas. Triste e amofinado, joguei-me sobre um banco de pedra
no caramanchão de acácias, junto do muro.
Quanto tempo assim estive, não sei dizê-lo. Recordo-me somente que foi um ruído seco que me fez estremecer. Com grande espanto, vi que uma pequena porta (habilmente
dissimulada e até então despercebida), acabava de abrir-se no muro e que um homem de estatura alta me fitava atentamente. Esse desconhecido, cujos cabelos crespos,
nariz aquilino e tez amarelada denunciavam origem semítica, trajava longa túnica de linho sob um manto escuro. Os olhos negros, cheios de energia e astúcia, brilhavam
sob as espessas sobrancelhas.
- Ah! És tu, Pinehas! - exclamou, atraindo-me e abraçando cordialmente.
Percebendo meu espanto, conduziu-me ao banco e acrescentou rindo:
- Não te assustes por te chamar pelo teu nome, pois sou um velho amigo. Dize-me, entretanto, que fazes aqui sozinho e porque tens esse ar tão triste.
Fitei-o desconfiado, mas, sobrepondo a amargura à prudência, respondi:
- Aborreço-me. Nada faço. Queria estudar, tornar-me sábio como os sacerdotes, preparar remédios eficazes como o médico que veio tratar minha mãe... Minha mãe! Ela
zomba de mim e manda-me descascar ervilhas.
O rosto do desconhecido iluminou-se.
- Ah! queres tornar-te sábio - disse batendo-me no ombro - deves aprender a ciência dos astros, conhecer as propriedades das plantas e os mistérios ensinados no
Templo. Tranquiliza-te, Pinehas, teu desejo será satisfeito, aprenderás tudo isso; agora, vai chamar Kermosa e volta com ela, sem dizer que estou aqui.
Parti correndo e busquei minha mãe, que me acompanhou ao jardim, intrigada com a minha alegria. Ao defrontar o visitante, deu um grito de alegria, tão forte que
recuei espantado.
- Enoch! - exclamou atirando-se-lhe ao pescoço - eis-te, enfim! Onde estiveste tanto tempo e por que me abandonaste? Aí está Pinehas!
- Sim - respondeu Enoch - eu já o tinha visto, porém, Kermosa, vejo que negligenciaste o rapaz, que devia ter estudado. Qualquer dia vou apresentá-lo a Amenophis,
quando vier visitar-me. Quanto a mim, estive de visita a países longínquos, além do deserto, e com grande proveito; volto agora de Menphis, onde passei alguns anos,
junto a um velho tio paralítico, que acaba de falecer legando-me considerável fortuna. Eis-me aqui, pois, novamente em Tanis e poderemos ver-nos frequentemente.
Kermosa escutava-o radiante. Depois mandou-me sair, ordenando absoluto segredo, que prometi guardar.
À noite não pude pregar olho; a impaciência em encontrar aquele que deveria ensinar-me tantas coisas me enfebrecia.
Passaram-se alguns dias sem qualquer novo incidente e já começava a perder as esperanças, quando, uma tarde, minha mãe me chamou ao quarto e me vestiu com cuidado
todo particular; enfiou-me uma túnica branca como neve, mantida por cinto dourado; grande colar de ouro ao pescoço e boné egípcio. Uma vez pronto, ela me examinou
com satisfação:
- Vendo-te, ninguém duvidarás sejas um filho de família abastada - disse. Preparei-te assim, Pinehas, para impressionar Amenophis, que um dia suspirou pela bela
Kermosa; é um poderoso sacerdote que vais conhecer, mas lembra-te de que os sacerdotes amam e apreciam tudo que brilha.
- Filho - concluiu dando-me uma capa - agora vai ao jardim e aguarda Enoch perto da porta.
Emocionado e desajeitado dentro da minha rica indumentária, fui assentar-me no banco, absorvido nos próprios pensamentos. Aguardei longamente, e só ao cair da noite
vi abrir-se, enfim, a pequena porta, e surgir Enoch, que me perguntou a meia-voz:
- Estás aí, Pinehas?
-Sim - respondi aproximando-me.
Apertou-me a mão e saímos.
Após atravessar o vasto jardim e um pequeno pátio, desembocamos numa rua que eu não conhecia. Enoch caminhava apressado, em silêncio; devíamos percorrer várias outras
para alcançar uma das portas da cidade, junto à qual meu guia abordou um escravo preto, de guarda a um carro atrelado a dois cavalos. Enoch tomou das rédeas, ordenando-me
que assentasse a seu lado, e prosseguimos.
Após rápido percurso, que muito me agradou, paramos na extremidade de um bairro, diante de uma casa de modesta aparência, circundada de jardim e de um muro muito
alto.
Enoch saltou e bateu à porta que um criado abriu imediatamente.
O carro entrou num pátio deserto, iluminado por uma tocha. Apeamos, penetrando por uma porta maciça, que se fechou de pronto.
Surpreso, notei que, enquanto a parte externa dessa mansão era sombria e modesta, o interior apresentava-se luxuoso e elegante.
Atravessamos diversas dependências, cujo mobiliário me maravilhou; depois, uma galeria que dava para o jardim, até chegar à sala brilhantemente iluminada e preparada
para uma recepção. Ao centro, mesa circundada de cadeiras de marfim, e sobre ela, uma cesta com frutas, uma taça de ouro e pequena ânfora do mesmo metal. As paredes
revestiam-se de esculturas de coloração tão fresca e tão viva, que logo me chamaram a atenção.
Fiquei admirado diante de um quadro representando um homem coroado e assentado num trono, tendo à frente outro, vestido como Enoch, de braços erguidos para o céu.
Outra pintura representava uma rua repleta de gente que parecia aclamar um personagem levado num carro, precedido de batedores e músicos empunhando longos clarins.
- Que vem a ser isso? - perguntei a Enoch.
- Esses quadros - respondeu com incontido suspiro - representam a história de um grande homem chamado José, que foi outrora o benfeitor de um povo hoje infeliz e
oprimido, ao qual espero venhas a apreciar com o passar dos tempos.
Saiu e tive oportunidade de admirar as pinturas e a disposição da sala, até que voltou, passada uma hora, precedendo respeitosamente um homem de porte elevado, vestido
de branco e ouro, como os sacerdotes. Rosto muito belo e regular, transparecia grave melancolia, mas nos olhos percucientes brilhava uma inteligência tão viva e
tão profunda, como jamais eu tinha visto. (Esse homem era o sacerdote Amenophis, e mais adiante direi donde provinha essa amistosa intimidade entre o judeu e o representante
da mais orgulhosa casta do Egito.)
- Aí está Pinehas, de quem te falei - disse Enoch, apontando-me.
Amenophis aproximou-se lépido e, erguendo-me a cabeça, examinou-me, sorrindo:
- És o filho de Kermosa e desejas instruir-te? É muitíssimo louvável, meu filho; mas, quererás também separar-te de tua mãe, acompanhar-me a Thebas e viver no Templo
sob minha estrita é severa vigilância?
- Se me prometes ensinar tudo o que sabem os sacerdotes, seguir-te-ei por toda parte e te obedecerei como escravo - respondi, de faces afogueadas.
- Se não mudares nas tuas boas resoluções, serás satisfeito - acrescentou Amenophis, assentando-se e apresentando a taça a Enoch, que a encheu, permanecendo de pé.
A convite do sacerdote assentamo-nos a seu lado e os dois homens conversaram longamente em linguagem para mim desconhecida. Ofereceram-me frutas, mas não as toquei,
inteiramente absorvido nos meus pensamentos.
Finalmente, Amenophis levantou-se, e passamos ao terraço que dava para o jardim. Noite magnífica. O ar embalsamado pelas acácias, rosas e jasmins. O sacerdote debruçou-se
na balaustrada e ergueu a cabeça, fixando o céu pontilhado de estrelas, que a escuridão da abóbada parecia destacar em rendilha prateada.
- Pinehas - disse, voltando-se para mim - que pensas desses pontos brilhantes? Que são eles e para que os vemos ali?
Calei-me, porque nada sabia, receando repetir a explicação que me havia dado minha mãe e na qual não acreditava.
- Esses pontos brilhantes, meu filho - disse Amenophis - são os astros, árbitros de nossos destinos. Um dia aprenderás a conhecer-lhes a trajetória imutável e saberás
que a felicidade, como a desgraça dos homens e dos povos, dependem das vibrações que descem de lá sobre nossas vidas. Se os astros benfazejos projetarem sobre ti
boa influência da matéria imponderável, serás feliz.
Eu estava ofegante. Minha inteligência, ávida de sabedoria, despertava; desejaria interrogá-lo e ouvi-lo durante toda a noite mas Amenophis me interrompeu, dizendo:
- Paciência, tudo virá a seu tempo. Por agora, basta, é tarde e preciso partir. Tu, Enoch, leva o rapaz dentro de oito dias, conforme combinamos; eu me encarregarei
de o educar.
Na ocasião aprazada, segui para Thebas e fui colocado pelo meu protetor no Templo de Amon entre os rapazes filhos de sacerdotes e guerreiros, que ali estudavam.
Amenophis interessava-se visivelmente pelo meu aproveitamento e auxiliava o desenvolvimento das minhas faculdades incomuns. Posso dizê-lo sem vaidade, porque essa
facilidade era fruto de um passado laborioso.
Estudava com ardor e tenacidade incansáveis. As ciências secretas, sobretudo a astrologia e a magia, me seduziam; e para estudá-las deixava tudo. Mais tarde dediquei-me
também à medicina; meu espírito, insaciável de conhecimentos, queria tudo conhecer e quando em algum velho papiro proveniente da índia decifrava a virtude misteriosa
de uma planta, apoderando-me assim de uma arma poderosa, pensava com orgulho que apenas me encontrava no início e que, diante de mim se desdobrava uma vida inteira
para trabalhar em novas descobertas.
Assim compreende-se que, com tal entusiasmo, pouco convivia com os colegas e não entretinha intimidade com nenhum deles. Entretanto, experimentava certa amizade
por dois, um chamado Necho, bom rapaz, sempre alegre, que dividia espontaneamente as fartas guloseimas que recebia da família; outro, Mena, mais velho que eu um
ano, muito rico, filho de alto funcionário da Corte de Faraó, que deixara o Templo muito antes de mim, mas vinha às vezes visitar-me, acompanhado de jovens sacerdotes,
seus amigos.
Nessa calma exterior e atividade intelectual, transcorreram doze anos da minha existência, até que chegou o momento de voltar a Tanis.
Alguns dias antes da partida, estive com Amenophis na parte mais alta do terraço conduzente à sua residência. Havíamos falado um pouco de tudo; depois, nos calamos;
meu companheiro fitava o céu estrelado, qual zimbório sobre nossas cabeças, e nesse momento se me reavivou claramente na memória aquela noite em que, pela primeira
vez, lhe falara. Recordei suas palavras relativas ao papel que os astros desempenham em nossos destinos.
- Amenophis - disse - recorda-te da nossa primeira entrevista na pequenina casa de Enoch, em Tanis? Disseste, então: "Se boa influência da matéria imponderável descer
sobre ti, serás feliz". Depois disso, muito tenho estudado da ciência dos astros e, não obstante, muita coisa permanece ainda incompreensível para mim. Por exemplo:
li nas estrelas que a vida me reserva muitas desilusões e, entretanto, sou ativo, tenho em mãos a ciência das armas poderosas e a força de vontade para realizar
qualquer propósito.
Amenophis tinha-me ouvido com a face apoiada na mão. Após curto silêncio, respondeu suspirando:
- Filho, jamais foi dado ao homem desvendar todos os mistérios com que a Divindade o cerca; nós apenas levantamos uma ponta do véu; mas, como te recordas das minhas
palavras, aqui aditarei algumas reflexões: sabes, Pinehas, o que se diz desses pontos brilhantes? (e apontou para o céu). Diz-se que são mundos quais o nosso, habitados
por seres ínfimos, iguais a nós, animados pelos mesmos sentimento e cuja vida e destino se refletem sobre os nossos. Sabes, também, que o Universo está cheio de
um elemento imponderável, que denominamos matéria primitiva, mas nada na natureza se oferece de graça; por toda parte há trocas. Por exemplo: entre os homens, os
animais e as plantas, há perpétua permuta de emanações e é isso que produz a rotação; desta, o atrito dos corpos, desse atrito o fogo, isto é, o calor que tudo anima;
e a mesma lei do mínimo ao máximo rege o Universo. O mundo tem por contrapeso outro mundo; um sistema planetário se atrita com outro sistema planetário; o destino
de um homem vale o de outro homem; e o produto do bem ou do mal recai sobre nós, da parte do contrapeso que o movimenta.
- Compreendo: onde está o fogo está a vida, isto é - a alma, a inteligência que se move, e meu destino depende do de alguém que, invisível e longe de mim, constitui
o contrapeso da minha existência; o fluido que exala em troca do meu nos junge um ao outro. Da mesma forma, o destino dos povos depende do de outros povos que vivem
nesses astros. Mas isso é injusto - continuei, animando-me pouco a pouco - tão injusto quanto a lei estúpida e indigna que condena a alma, após a morte, a expiar
seus crimes e erros, no corpo de um animai. Acreditas nisso sem restrição, Amenophis? Isto não é contrário à sua razão?
Estranho e grave sorriso descerrou os lábios de Amenophis.
- Como és atrevido, Pinehas, em classificar de injusto tudo que os deuses acharam justo e necessário: e por que tanto te revolta essa lei de expiação? Se admites
que o fogo é a nossa alma; que onde há calor e movimento há inteligência, deves também admitir que todos nós, homens e animais, somos formados da mesma matéria.
- Admito-o, realmente mas, como punir minhas paixões já refinadas, num corpo de animal? Como pode o homem, inteligência plena de aspirações e raciocínio, cuja palavra
já demonstra elevação, e desenvolvimento intelectual, descer ao ponto de tornar-se seu escravo no corpo de um bruto? Não, não, Amenophis, nossa crença ou é loucura
ou injustiça revoltante dos deuses.
Expressão indefinível brilhou no olhar profundo e espiritual do sacerdote quando falou apoiando em meu ombro a mão fina e bem tratada:
- Por que não admitir, jovem impetuoso, que ora te encontras num meio inteligente e que és homem, porque pertences ao círculo dos homens mais esclarecidos naquilo
que o desenvolvimento intelectual permitiu conhecer até hoje? Mas, observa os selvagens prisioneiros trazidos da última guerra pelo nosso Faraó. Comparando-os a
ti, não te inspiram o mesmo desprezo que o homem sente pelo animal? Como a fera, esse prisioneiro está acorrentado, mudo, privado de vontade, de liberdade e mesmo
de vida, se isso for a vontade do seu senhor; sua linguagem deficiente, gutural, evoca os roncos do bruto, entretanto, esse mesmo ser no seu meio era um homem livre,
estimado, ao passo que entre nós é um animal.
Vê agora, este céu cheio de extraordinários mistérios, de vidas e mundos desconhecidos. Quem poderia afirmar que nesses pontos brilhantes não resida a divindade
ou seres muito próximos a ela pela perfeição, e que, se fosses lá enviado, para desempenhar junto deles a tarefa que cabe aos animais mais inteligentes, não serias
lá tão atrasado, com a língua perra, a palavra gutural, o corpo tão grosseiro e feio como o dos animais em relação ao nosso? Não procurarias também ler nos olhos
dessas inteligências superiores, adivinhar seus pensamentos para suprir os sentidos que te faltassem?
Os homens tomam tudo ao pé da letra e acreditam, verdadeiramente, que voltarão a viver e expiar suas culpas num corpo de animal; de resto, essa convicção é salutar
para o orgulho humano porque se sentem felizes e confiantes em serem homens e se apavoram com a perspectiva de voltar a um meio onde suas paixões hajam de ser consentidas
e a língua travada para não transmitir combinações astuciosas.
- Compreendo - interrompi - ameaçam-nos, se nos tornamos indignos de ser homens, de voltarmos animalizados; mas, na realidade, é somente em razão da diferença do
meio intelectual em que nos encontramos. Onde aprendeste tudo isso, Amenophis? Quem te disse?
- A resposta a essa pergunta, meu filho, será minha última iniciação ao maior dos nossos mistérios; não pertences à nossa casta, mias teu zelo e dedicação pela ciência
tornaram-te digno. Portanto, amanhã à noite, vai à minha casa depois de te purificares pelo jejum e pela prece. Lá serás esclarecido.
Na noite seguinte, mal sofreando a impaciência, procurei Amenophis.
Sem demora levou-me para uma grande sala redonda, fracamente iluminada por uma lâmpada. Assentando-se à mesa, disposta no centro, falou com solene gravidade:
- Pinehas, quero transmitir-te os últimos ensinamentos, que acabarão por esclarecer tua inteligência. A despeito de toda a ciência que adquiriste durante vários
anos de incessante labor, milhares de questões permanecem ainda insolúveis para ti, e serias um mendigo do pensamento, um pássaro de asas cortadas, que, em vez de
elevar-se até às nuvens, cairia no vácuo sem jamais encontrar ponto de apoio, se não te dissesse o porquê de muitas coisas.
Somos insignificantes; nossa inteligência limitada se anula e perturba com as noções variadas, adquiridas sem método; estamos ligados à matéria, e daí a necessidade
de nos humilharmos, de elevarmos os braços ao céu, implorando nos conceda um mestre que nos venha instruir e não nos deixe ao sabor dos erros do mundo, sujeito a
paixões corporais, mas que seja um ser esclarecido pela experiência profunda de um passado imensurável.
Um tal mestre é que desejo dar-te, Pinehas!
Emocionado e palpitante de misterioso temor, bebia-lhe as palavras.
A seguir, colocou as mãos sobre a mesa, ordenando-me que fizesse o mesmo e guardando absoluto silêncio.
Depois de algum tempo, percebi que ele respirava profunda e ruidosamente; vi, com espanto, que parecia adormecido e, no mesmo instante, clarões estranhos Oscilavam-lhe
ao redor; pancadas surdas se faziam ouvir em diferentes pontos da sala. Depois, da tábua da mesa elevou-se uma massa nevoenta e esbranquiçada, que se dilatou emitindo
luz prateada e brilhante. Do centro, destacou-se nítido o busto de mulher velada, sobre cuja fronte uma estrela esverdeada refulgia em raios multicores. Essa mulher
retirou de sob o véu a mão recoberta de luz azulada e traçou na mesa, em caracteres de fogo: "Pinehas será admitido como nosso aluno, sê se mostrar digno, seguindo,
as lições de Isis e não se deixar empolgar pelas paixões mundanas".
A visão empalideceu, fundiu-se na atmosfera e Amenophis despertou com profundo suspiro.
Muito forte fora a impressão. Todo o meu corpo tremia, a cabeça rodava e perdi os sentidos. Quando os recobrei, Amenophis me conduziu ao seu quarto e me deu, sobre
o fenômeno que acabava de presenciar, uma série de explicações e indicações.
- Agora és discípulo de Isis - disse ao terminar - quando tiveres que resolver alguma questão aparentemente insolúvel, deverás meditar-te, como hoje, a uma mesa
redonda, colocando sobre ela tabuinhas; cairás logo em profundo sono, durante o qual a resposta será confiada às tabuinhas, onde a encontrarás ao despertar. Previno-te,
porém, que só em casos graves e excepcionais poderás empregar esse recurso. O abuso não só te esgotarás as forças, como não se pode futilmente entrar em relação
direta com a divindade e com os mortos.
Três semanas mais tarde, regressava a Tanis e me estabelecia em casa de minha mãe, que ficou muito contente com minha volta.
Minha idade era então, de vinte e seis anos e Kermosa, muito vaidosa pelo meu aspecto e saber, instalou-me em pequeno quarto que dava para o jardim e separado por
uma galeria, do corpo da casa, a fim de que pudesse, silenciosa e calmamente, entregar-me aos meus pendores de sábio.
Perguntei por Enoch, que apenas me visitara duas vezes em Thebas e de quem, todavia, guardava grata recordação. Minha mãe informou que ele havia comprado a casa
contígua à nossa, que ali morava e de pronto o veria.
Passei os primeiros dias desencaixotando e arrumando numerosos papiros, pacotes de plantas secas, unguentos e remédios que trouxera de Thebas.
Finalmente, uma tarde considerei-me definitivamente instalado e, sentindo-me fatigado, estendi-me num canapé para cochilar. Em vez do sono desejado, fui tomado de
estranho torpor. Involuntariamente, os olhos se fixaram num espelhinho de metal polido, pendente da parede e no fundo do qual li, traçado em caracteres de fogo:
"Discípulo de Isis, conserva-te fiel à fé egípcia". Quis levantar-me e desviar o espelho. Impossível! Embotava-me crescente torpor, ouvindo sempre palavras misteriosas,
cujo sentido me escapava.
Sacudidelas violentas fizeram-me despertar. Era minha mãe que dizia espantada:
- Com que sonhas, Pinehas? Por que dormes de olhos abertos, imóvel como estátua? Vamos, Enoch chegou e quer ver-te.
Levantei-me atordoado e, após lavar o rosto em água fresca, acompanhei minha mãe.
Passamos pela pequena porta secreta do jardim e atingimos a casa que eu ainda não conhecia. Via-se logo que era habitada; numerosa criadagem, toda hebréia, lá se
movimentava. Saudaram-nos reverentes, principalmente a mim, que envergava rica indumentária branca com imponente altivez. Um rapaz semita introduziu-nos na sala,
onde se encontrava Enoch, assentado à mesa abastecida de frutas e vinho. Ao avistar-me, levantou-se, abraçou-me e fazendo-me sentar a seu lado, examinou-me com olhos
brilhantes de alegria.
- Enfim, eis-te de regresso, Pinehas! Grande, belo, sábio! Jeová te abençoe, querido filho!
Apertei-lhe a mão e agradeci o me haver proporcionado o ensejo de ingressar no Templo e estudar.
- Com prazer, faria muito mais por ti. Como vês, vivo só, viúvo três vezes; nenhuma das esposas me deu filhos; entretanto, tenho um em cujas veias o sangue hebreu
se mistura ao egípcio e a quem desejaria legar todas as riquezas que possuo. Adivinhas quem seja esse filho?
Estremeci sob o olhar de Enoch e vaga angústia apertou-me o coração.
- És tu, Pinehas; sim, meu filho e de Kermosa; amo-te de todo o coração e não recuses corresponder-me de corpo e alma.
Pálido de emoção, levantei-me. Enfim, sabia a verdade sobre a minha origem e o motivo da estranha semelhança com os homens de raça semítica; meus pensamentos se
chocavam tumultuosamente no cérebro; orgulho e desgosto me invadiam, ao pensar que pertencia a esse povo, ao mesmo tempo que a cupidez me aconselhava a dissimular
repugnância, para não perder as riquezas oriundas do parentesco humilhante para o meu orgulho egípcio.
- Meu filho - concluiu solenemente - queres passar secretamente para a fé de Israel, tornar-te súdito fiel de Jeová, o verdadeiro e único Deus? Tudo está preparado
para te receber entre o nosso povo e nomear-te herdeiro da minha enorme fortuna. Para ligar-te ainda mais fortemente a nós, desejamos, entre outras coisas, casar-te
com uma judia.
Ouvindo tal proposta, recuei e pareceu-me ver dançar diante dos olhos o espelho metálico com a inscrição ígnea: "Discípulo de Isis, permanece fiel à fé egípcia".
- Não - respondi com energia - tudo farei por ti, menos isso... És amigo de Amenophis e se, como suponho, compartilhas da sua opinião, por que repeles minha crença
e exiges que a repudie?
- Filho - retrucou, - justamente por compartilhar das opiniões de Amenophis é que não admito deuses, senão Jeová - único Deus, criador e senhor do Universo. Quanto
à amizade que me liga ao ilustre sacerdote, vem de remota data e, em mim, vê reviver um passado que lhe é caro.
Quero mesmo contar-te essa história, ocorrida quatro anos antes do teu nascimento, ou seja há trinta anos; Amenophis contava então vinte e quatro, e como era filho
de um grande sacerdote, levava vida faustosa. Devo acrescentar que, então, eu era ainda pobre e vivia em companhia de uma única irmã, perto da cidade de Menphis.
Certa tarde, Amenophis aproximava-se da cidade, quando os cavalos dispararam. Arremessado fora do carro, caiu não longe de nossa casa, gravemente ferido na cabeça.
Socorremo-lo e Esther tratou-o com o maior desvelo. Quando melhorou disse quem era e preveni seu pai, que estava muito aflito. Depois, recompensou-me e reconduziu
o filho ao Templo. A extraordinária beleza de Esther, que era, na verdade, a mais bela mulher que já tenho visto, transtornou a cabeça do jovem sacerdote, que voltou
a visitar-nos secretamente. O amor que os ligava era tão grande que, voluntariamente, Amenophis a desposaria; o pai, porém, o espionava e o orgulhoso grão-sacerdote
se revoltou ao pensar num casamento desigual. Tomou providências e, como um raio, recebemos ordem de Faraó para que Esther se casasse imediatamente com um jovem
israelita da nossa tribo e a família se exilasse em Tanis.
Quando Amenophis, que fora prudentemente afastado, soube do que acontecera, não se conteve de raiva e ciúme e, alcançando-nos ainda próximo da cidade, apunhalou
o marido de Esther, tentando arrebatá-la consigo, mas o guarda que nos acompanhava envenenou-a.
Em virtude do prestígio do grão-sacerdote, toda essa história foi abalada. Amenophis voltou para Thebas, mas, desde então, revelou-se calmo, sério e sombrio, qual
o conheceste.
Dedicou-me sincera amizade, visitando-me às vezes e sempre me protegendo. Tive, então, ensejo de conhecer sua crença religiosa, e confesso que é um grande sábio.
Quanto a ti, meu filho, gostaria que pertencesses de coração e convicção à nossa; entretanto, como isso te repugna, apelo para o futuro, pois talvez mudes de opinião.
Repeti que me era impossível aquiescer aos seus desejos e voltei para casa aborrecido.
Passada uma hora, minha mãe procurou-me, furiosa, para crivar-me de insultos:
- Estúpido! Desprezas a sorte por uma bagatela que nem vale a pena mencionar; recusas tantas riquezas, e uma esposa adorável! Pois procura ao menos vê-la, antes
de resolver... Vamos!
A despeito da minha relutância, ela me arrastou até sua casa e, afastando delicadamente uma cortina que separava seu quarto de uma grande sala, murmurou:
- Olha!
Olhei o interior e, sobre almofadas e tapetes amontoados, notei uma jovem adormecida. Formas opulentas, cabelos negros, nariz aquilino, tez mate, não deixando nenhuma
dúvida quanto à sua origem semítica.
Curioso inclinei-me, pois raro tivera, até então, ensejo de ver mulheres. Educado na severa disciplina do Templo, absorvido pelos estudos, apenas havia sonhado com
elas.
- Quem é esta moça, e como veio parar aqui? - perguntei.
- É uma parenta da primeira esposa de Enoch, que me pediu recebê-la em nossa casa, para que tivesses ocasião de conhecê-la.
- É pena que tenha vindo unicamente para isso, pois não me agrada e jamais a amarei. Tenho mais de que me ocupar.
Minha mãe olhou-me boquiaberta.
- Não te agrada? Que procuras então?
- Nem mesmo eu sei. Sinto, somente, que esta moça não corresponde aos anseios do meu coração; vendo-a, não experimentei a menor emoção, Estou certo de que sob aquelas
pálpebras cerradas, não julguem esses olhares que queimam, que gelam, que matam, mas atraem invencivelmente; por ela jamais deixarei a fé egípcia. Manda-a de volta
a algum jovem hebreu que melhor possa apreciá-la.
Lembrei-me, ao sair, que ainda não me havia alimentado e pedi a minha mãe que me mandasse alguma coisa.
Ao regressar ao quarto, atirei-me sobre o leito, agitado e aborrecido. Apenas deixara o aprazível asilo do Templo e já me atormentava de todo jeito; a idéia de casar-me
com uma filha da raça impura, pareceu-me ridícula e repugnante. Resolvi defender energicamente minha liberdade.
Absorvido pelos próprios pensamentos, não percebi a chegada de uma mulher que aproximou de mim uma mesinha, nela depondo duas cestas de frutas, pastéis e uma bilha
de vinho. Leve ruído fez-me erguer a cabeça e vi que a servente era uma jovem de tez bronzeada, formas admiráveis, cujos olhos grandes, sonhadores, me examinavam
curiosamente.
- Ah! - pensei, ainda uma outra para me corromper!
Sob a influência do meu olhar perscrutador, ela se perturbou e baixou os olhos.
- Tu quem és e por que baixas o olhar? - perguntei. Não sou nenhum animal feroz para que temas encarar-me.
- Chamo-me Henais - murmurou com voz trêmula.
- Descendes de hebreu?
- Não.
Suspirei aliviado.
- Por que te mandaram aqui, se há criados na casa? Dize à minha mãe que quero ser servido por um escravo.
Tendo-me alimentado, dormi sem que nenhuma imagem feminina me perturbasse o sono.
No dia seguinte retornei às ocupações habituais, evitando sair.
E assim passaram-se mais de dois meses, calmamente, Enoch havia partido levando a bela parenta e minha mãe, antes furiosa, agora se distraía, com o tumulto e as
cerimônias que agitavam toda a cidade.
Chegara de Thebas o Faraó Mernephtah para fixar a Corte em Tanis.
A entrada triunfal do soberano, as visitas aos Templos, cercados de majestosa pompa, o enorme exército de sacerdotes, dignatários, guerreiros, cortesãos e vassalagem
incorporados ao séquito real, tudo emprestava à cidade invulgar animação.
Também Amenophis veio estabelecer-se em Tanis, por alguns meses, mas, muito ocupado, apenas me visitara uma única vez, ligeiramente.
Desde minha chegada de Thebas, ainda não tentara invocar o ser invisível que Amenophis me mostrara; até que uma tarde. veio-me insopitável desejo de o fazer e obtive,
com grande espanto, a seguinte inscrição enigmática; "Cuidado no Templo; um grande perigo ameaça teu coração".
Inquieto, e sem nada compreender desse aviso, resolvi consultar Amenophis; assim, fui, no dia seguinte de manhã, ao Templo onde estava certo de o encontrar.
Cheguei justamente quando o serviço divino terminava e o povo em ondas se dispersava em todas as direções. Atravessava o primeiro pátio, quando uma voz me chamou
pelo nome. Voltei-me e vi que um mocetão bem trajado se aproximava a passos largos.
- Finalmente te encontrei, Pinehas - exclamou rindo e batendo-me no ombro. Onde te escondestes? Há mais de um mês aqui estou em Tanis sem te encontrar! Procura-me.
Reconheci Mena, ricaço e antigo condiscípulo. Apertei-lhe cordialmente a mão.
- Desculpa-me, estou ocupadíssimo; mas, que fazes aqui? Vens também visitar Amenophis?
- Não; vim ao Templo acompanhando minha irmã Smaragda, a quem quero apresentar-te. Vem.
Conduziu-me logo a um pequeno grupo formado perto da saída, à sombra das colunas.
Vi uma espécie de liteira aberta, conduzida por escravos e nela instalada uma mulher vestida de branco. Alguns rapazes a rodeavam em animada palestra.
Mena postou-se ao lado da liteira e foi dizendo:
- Smaragda! Apresento-te um velho conhecido meu.
Ergui a cabeça e me senti fascinado pela bela egípcia, jovem na qual o boné, ornado de pedras, assentava admiravelmente; seus traços regulares, a tez de uma alvura
mate. Quando ela pousou sobre mim os. dois grandes olhos negros como a noite e brilhantes como diamantes ao sol, foi como se uma chama me transpassasse e senti o
peito opresso. Também ela parecia não poder desfitar-me, com um misto de curiosidade e acrimônia. Ah! se eu soubesse que era a recordação a ferir assim todas as
fibras do meu ser, dizendo-me, pelas pulsações desordenadas do coração: "Eis-vos de novo face a face sob aspectos diferentes".
O que acabo de referir não durou mais que um instante Mena interrompeu-me o curso do pensamento, dizendo:
- Este é Pinehas, meu antigo companheiro de estudos, a quem muitas vezes me referi, dizendo que trabalhava como uma toupeira; agora, reside em Tanis e espero venha
ser muitas vezes nosso hóspede. É um homem amável e instruído, para quem encareço tua consideração.
Ela inclinou ligeiramente a cabeça, enquanto eu a cumprimentava respeitoso. Depois, travei conhecimento com os demais jovens, entre os quais se encontravam dois
oficiais da guarda de Faraó, que se destacavam pelas ricas armaduras e brilhantes capacetes. Um deles, de porte médio, rosto bronzeado pelo sol, aspecto agradável
e expressão espiritualizada, chamava-se Setnechet. O outro, já o conhecia, pois tinha frequentado a escola um ano; mas, medíocre e preguiçoso, nada aproveitou. Pouco
estimado por seu caráter rabugento e mau, havia abandonado o Templo. Atualmente, Rhadamés (era o seu nome) apresentava-se como um moço de atitude insolente e desagradável;
era o condutor do carro de Faraó e diziam que gozava de grande conceito junto de Mernephtah. Seu olhar dissimulado acompanhava todos os movimentos de Smaragda e
espreitava, avidamente, cada palavra que ela trocava com Setnechet.
A liteira movimentou-se, despedi-me, e logo a perdi de vista entre a multidão. Como embriagado, retomei o caminho de casa, desistindo de me avistar com Amenophis.
A visão de Isis explicava-se por si mesma e o perigo que me atingira no Templo não era para desprezar. Nunca uma mulher me impressionara tão forte e profundamente
como essa branca Smaragda de olhos causticantes.
Meu estranho humor foi percebido por minha mãe que me crivou de perguntas, mas eu não estava disposto a confidências e, repelindo-a acerbamente, tranquei-me no quarto.
Triste, inquieto, caminhava no aposento, de um lado para outro tentando ordenar as idéias. A irmã de Mena me agradou a tal ponto que me sentia capaz de a desposar
imediatamente, mas não me iludia. Mena era fabulosamente rico, de origem nobre, e eu apenas remediado; quanto à minha origem, nem queria pensar. Além do mais, um
pressentimento me dizia que não agradaria à empertigada moça, já sob os olhos ardentes dos oficiais de Faraó. Mesmo assim, quanto mais a razão contrariava os meus
projetos, tanto mais meu caráter tenaz se apegava à idéia de triunfo, a despeito de todos os obstáculos.
A ciência, que havia posto nas minhas mãos tantas armas poderosas, poderia fornecer-me algo que inspirasse a Smaragda muita simpatia e me poupasse uma recusa humilhante.
A magia me havia ensinado vários processos de domar a vontade alheia.
Tomei a decisão de empregar um deles com Smaragda, e, depois de haver estudado cuidadosamente o assunto alguns dias, apresentei-me no palácio de Mena.
Fui recebido cordialmente pelo irmão e com reservas pela Irmã. Sem desanimar, experimentei, pela concentração da vontade, inspirar-lhe o desejo de levantar-se, tomar
qualquer objeto, ou ainda voltar os olhos para mim.
Depois de alguns ensaios, ela se submeteu facilmente ao meu domínio, e depois de muitas visitas resolvi tentar um passo decisivo.
Preparei uma cesta com magníficas flores cabalisticamente trabalhadas e inclinei-me sobre ela; depois, invocando mentalmente a imagem de Smaradga, forcei, pelo pensamento,
seus olhos a languescerem e seus lábios a pronunciarem palavras amáveis.
Tão forte era a tensão, que o suor banhava-me a fronte. A seguir, sem perder tempo, fui à casa de Mena acompanhado de um escravo com a cesta. Mena estava ausente,
mas Smaragda me recebeu displicente, assentada numa cadeira de marfim mais bela que nunca, e divertia-se com um pássaro raro.
Aceitou as flores, aspirou-lhes o perfume. Eu observava, inquieto, e de repente notei, satisfeito, que se voltava sorridente e me estendia a mão, fazendo-me sentar
junto a ela. Brilhavam-lhe os olhos com fulgor febril, mas a boca repetia fielmente as palavras que eu mentalizara sobre as flores, à proporção que suas pequeninas
mãos as retiravam da cesta, uma por uma.
Escutava-a alegre com o coração cheio de esperança, pois encontrara o caminho da vitória. Aquela criatura adorável e uma parte das riqueza de Mena bem compensavam
a difícil empresa.
Levantei-me para me despedir e ela, que parecia pálida e indisposta, suspirou aliviada. Voltando-se, enxugou a fronte molhada de suor.
Lembrei-me então de que não havia exigido me convidasse a voltar muitas vezes. Olhei fixamente sua fronte inclinada e, quase imediatamente, ela se voltou de olhar
fixo e lábios trêmulos:
- Volta com assiduidade, Pinehas - disse rapidamente.
Saí radiante e desde esse dia voltei sempre, exercendo e consolidando meu poder. Por vezes, recusou receber-me. Era bastante concentrar-me e sugestioná-la para que
um escravo apressado viesse chamar-me para junto da senhora.
Completamente seguro do sucesso resolvi concluir a obra.
Assim, fui certa manhã à casa de Smaragda, que me recebeu sombria e desconfiada, evitando o meu olhar. Sem me precaver dessa má disposição de sua parte, sentei-me
junto dela e, tomanéio das mãos da ama, acocorada junto da cadeira, um abanico de plumas, comecei a abaná-la e disse, fitando-a:
- Smaragda, meus sentimentos não são mistério para ti: queres ser minha esposa? Mena muito te estima e não se oporia à tua escolha.
O semblante da jovem contraiu-se, fez menção de levantar-se, mas, corando e empalidecendo, recaiu na poltrona, comprimindo a fronte com as mãos trementes.
- Tu me enfeitiçaste, Pinehas! Não quero ser tua esposa e nem te amo; quero gritar não! não! - e uma força misteriosa me constrange a dizer sim - amo-te, aceito-te!
Que mistério é esse?
Inclinou-se vivamente para a frente, buscando ler na minha fisionomia o enigma dos seus sentimentos contraditórios. Ainda que ferido desagradavelmente, permaneci
firme.
- Que, dizes, Smaragda? Enfeitiçar-te eu? És livre nas tuas decisões, e se minha presença te desagrada, deixo-te imediatamente.
Dirigi-me para a porta, sugestionando-lhe que dissesse: "amo-te, fica..."
A velha nubiana nada compreendia das estranhas palavras do sua senhora; olhava-nos boquiaberta com os seus olhos redondos. Nesse momento, Smaragda voltou para mim
o seu olhar terno e murmurou com voz entrecortada:
- Fica Pinehas, eu te amo...
Triunfante, avancei para ela, mas, antes que pudesse abraçá-la, entrou Mena. Smaragda repeliu-me e atirou-se nos braços do irmão.
- Não é verdade, eu não o amo, mesmo que o tenha aceitado, exclamou a moça. Defende-me, irmão, deste homem terrível.
Lágrimas em profusão brotaram-lhe dos olhos, e desmaiou.
Mena olhou-me embasbacado e quando o cientifiquei de tudo, meneou a cabeça. Todavia abraçou-me, chamou-me de irmão e convidou-me a voltar no dia seguinte para ver
minha noiva.
No dia seguinte quando me apresentei, soube que Smaragda se havia recolhido por alguns dias ao Templo de Isis. No outro dia, um escravo levou-me um rolo de papiro,
no qual Smaragda traçara estas linhas: "No templo da grande deusa, livraram-me do fascínio que exercias sobre mim; teu olhar me é vedado, se quiser ficar senhora
de minha vontade; não procures, portanto, rever-me. Não te desposarei, pois livre do teu olhar não te amo".
Terminada a leitura dessa missiva, desmaiei de raiva.
Muitos dias se passaram. A raiva e o desejo de vingança me empolgavam' de tal maneira, que permanecia surdo e cego a tudo que me rodeava. Enoch regressara e parecia
muito atarefado e preocupado; a mim um só pensamento obsedava: seria vã a ciência? Se não o era deveria oferecer-me novas armas.
Uma tarde, estendido sobre o meu leito e abatido, alguém, me sacudiu com força. Era Enoch:
- Levanta-te; como te podes entregar a uma tal indolência? Vamos, quero apresentar-te a um homem extraordinário, que te dará, talvez; a felicidade.
Levantei-me maquinalmente e o segui. Atravessamos silenciosamente o jardim e várias ruas da cidade. A opressão no peito impedia-me de falar.
Ao atravessarmos uma das portas da cidade, um carro nos esperava. Enoch nele sentou-se, seguido por mim e fustigou os cavalos.
Essa rápida corrida fez-me bem. O ar da tarde refrescou-me o cérebro escaldante, mas o coração continuava a bater angustiado. Não podia conformar-me com o malogro
dos meus planos e com a hipótese de que Smaragda estivesse perdida para mim.
Paramos diante da pequenina casa de Enoch, onde um escravo ficou cuidando do carro enquanto entramos. Meu companheiro desapareceu e eu atravessei sozinho o salão,
onde pela primeira vez, me avistara com Amenophis.
Uma mesa repleta de frios, frutas e pastelaria ali se encontrava; atravessei a sala sem me deter e fui direto ao terraço.