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Chegando à balaustrada, contemplei o panorama soberbo que se desenrolava a meus pés, pois a vivenda assentava numa elevação e dali se descortinava a enorme cidade,
a perder de vista com seus palácios, templos, muralhas fortificadas e portas maciças; argenteado ao luar, o Nilo deslizava calmo e majestoso, refletindo nas águas
polidas grupos de palmeiras copadas, edifícios marginais e, mais longe, a silhueta magnífica do Templo de Isis.
Esse quadro majestoso reagiu poderosamente sobre meu espírito atormentado. O contraste da alma profunda e divina da natureza com o inferno do meu coração, transformou
todos os sentimentos fogosos numa grande amargura. Com a cabeça apoiada nas mãos deixei que as lágrimas caíssem.
Outra mão que me pousou no ombro fez-me estremecer; voltei-me envergonhado e irritado, porque gotas acres que molhavam meus dedos eram de lágrimas ridículas e humilhantes
de um amor desdenhado.
- Pinehas, meu filho, confias pouco na afeição do teu pai; por que ocultas o que tão profundamente te perturba? - disse Enoch apertando-me a mão.
Quando tentei falar, interrompeu-me:
- Não digas nada, conheço o teu segredo; Kermosa encontrou no teu quarto o bilhete com as duras palavras da irmã de Mena; compreendo-te por experiência própria,
que um amor insatisfeito é chaga mais ardente que areia do deserto a despertar sede inextinguível; mas, filho, não se morre de um amor infeliz; o homem, neste caso,
é mais resistente que o camelo, que atravessa sem dificuldade o deserto arenoso, desde que o alimentem a esperança e a persistência necessárias para atingir o destino.
Por que tal desânimo? Quem te disse que não poderás possuir, contrariando-lhe a vontade, essa orgulhosa egípcia, senão hoje ou amanhã, pelo menos dentro de um ano?
Olha, vou revelar-te um segredo de enorme importância para o povo hebreu, e talvez para a realização dos teus desejos.
Respirei desafogado. As palavras de meu pai agiam como fresca aragem no meu coração ardente. Desde que havia uma esperança melhor seria esperá-la.
- O homem de quem falei - continuou Enoch, de olhos brilhantes, com selvagem entusiasmo - sabes quem é? - É Moisés, a criança miraculosamente salva do massacre do
nosso povo e adotada pela filha de Faraó. No deserto, onde se refugiou, o próprio Jeová lhe apareceu e ordenou-lhe que executasse o gigantesco plano de libertar
o povo de Israel, conduzindo-o para fora do Egito, livre e independente, dando-lhes leis e reinado sobre ele.
- Filho, se quiseres seguir-me, poderás levar a mulher amada e viver com ela, longe deste pais de servilismo, em região bem-aventurada que, pela fertilidade do solo
e abundância de frutos, assemelha-se ao paraíso terrestre, habitado pelos primeiros homens. Conduzido pelo próprio Eterno, o povo de Jeová se instalará nessa terra
de promissão, que lhe será concedida; lá haverá, também, um templo e necessidade de sacerdotes sábios e, neste caso, teu saber te proporcionará um belo futuro.
Escutava-o fascinado. Levar Smaragda, viver com ela longe da sua orgulhosa parentela, tê-la inteiramente sob meu domínio que mais poderia desejar?
- Está na hora de regressares ao salão - disse Enoch - mas evita possa alguém suspeitar esta confidência. Testemunha a Moisés a maior deferência e segue-lhe os conselhos,
porque a sabedoria do Eterno fala pela sua boca.
Ele saiu e desci à sala brilhantemente iluminada. De pé, junto da mesa, olhava impaciente a porta por onde deveria entrar o grande homem. Depois de alguns minutos,
ressoaram passos e, seguido respeitosamente de Enoch; apareceu um homem alto, cujo aspecto infundia respeito; o rosto de traços acentuados moldurava-se na cabeleira
negra e abundante; a boca severa indicava férrea vontade, e sob as espessas sobrancelhas brilhavam dois grandes olhos cujo fulgor estonteava. Atrás de Enoch surgiram
cabeças grisalhas e longas barbas brancas de nove ou dez anciões, chefes das tribos hebréias.
Inclinei-me profundamente diante de Moisés, que parou um instante e fixou-me. Julguei que duas lâminas incandescentes me transpassavam e baixei os olhos.
- Pinehas, disse com voz metálica e profunda, Enoch falou-me de ti e conto contigo.
Com a cabeça ligeiramente inclinada, passou e tomou assento numa cadeira mais elevada. Após um momento de profunda meditação, notando que permanecíamos de pé, disse:
- Assentai-vos, irmãos; Enoch e Pinehas, a meu lado.
Sentaram-se os velhos em bancos dispostos ao lado da mesa e Enoch serviu as iguarias, dizendo:
- Nosso chefe não quis a presença de criados.
Encheu de vinho, em seguida, numa taça de ouro, passando-a a Moisés e mandando que os demais se servissem por si mesmos.
Moisés ergueu a taça:
- Bebamos pelo bom êxito dos nossos projetos de salvação comum - disse - conto contigo entre nós, meu filho, sem forçar-te, porque sei que o interesse que te liga
mais fortemente à nossa causa é mais poderoso que todos os juramentos da terra; para a paixão não existe irmão, lei, religião ou casta; os fins justificam os meios,
não é assim? Desejas possuir o que ambicionas?
- Sim - respondi, baixando a cabeça.
Recordo essa página do passado com estranha emoção. Parecerá inverossímil à atual geração que possamos descrever os atos, relatar as palavras de Moises em sua vida
privada; de Moisés, o grande profeta do Antigo Testamento, cercado pela lenda de milhares de véus fantásticos, cuja memória passou à posteridade para ter um lugar
à parte. Entretanto, tudo é verídico nesta narração. É bem verdade que, naquela mesa, eu me encontrava ao lado do poderoso legislador dos hebreus, do gênio que soube
arregimentar Um povo indestrutível como os monumentos egípcios, à cuja sombra ele crescera.
Tendo esvaziado o copo, assim como os companheiros, Moisés apoiou-sé nos cotovelos e, abarcando a assembléia com olhar de dominante, disse:
- Meu irmão! Conheceis as decisões que tomamos para o caso em que o Faraó Mernephtah, homem obstinado e orgulhoso, recusa libertar nosso povo torturado e explorado
há muito tempo.
Nós venceremos, pois venho armado do poder de Jeová e ferirei o Egito com flagelos terríveis, qual mo predisse o Eterno, junto da sarça ardente. Entretanto, para
atingir meu propósito, necessito dos homens que ele me apontou na sua sabedoria infinita. Obedecereis todos vós, sem restrição, às ordens de Jeová, transmitidas
por mim, seu enviado?
Levantou-se após pronunciar as últimas palavras, imitado por todos, que, em sinal de submissão, se inclinaram até o solo, de braços cruzados sobre o peito. Fiz o
mesmo, mas não podia despregar os olhos daquela fisionomia sedutora. Não era em vão que eu havia sido discípulo do Templo e, observador atento, quando todas as cabeças
se abaixaram, pareceu-me ver passar nos olhos de Moisés uma fugitiva expressão de amargura e ironia. Estremeci. Rir-se-ia da fé cega que inspirava? Não tive tempo
de cogitar, porque logo continuou:
- Parte dos flagelos que afligirão este país devem ser produzidos pela força dominadora que o Eterno projetará sobre vós, por meu intermédio, e de vós sobre os egípcios;
Jeová apontou-me homens dignos desta missão e o teu nome figura entre eles - acrescentou, voltando-se para mim.
Dentro em breve apresentar-me-ei diante de Mernephtah para reivindicar dele o povo eleito de Deus; antes, porém, deste passo decisivo, é preciso resolver um assunto
importante.
Eliezer, um de nossos irmãos, acusado pelos egípcios de sugar sangue humano, foi preso e condenado à forca, com a língua a ser arrancada e atirada aos corvos. Essa
condenação é duplamente injusta, porque mesmo que tivesse sugado o sangue de alguns egípcios, nada mais teria feito que retribui o que vêm eles fazendo com o nosso
novo, há mais de quatro séculos.
Eis - prosseguiu ele - o que realmente aconteceu: incapaz de suportar por mais tempo os maus tratos que nos impõem, e inspirado pela vontade de Jeová, que aqui me
chamou, Eliezer tentou uma revolta de sua tribo; mas, pouco numerosos e mal dirigidos, foram derrotados e o desgraçado Eliezer, preso como instigador da revolta,
foi condenado à morte, tendo antes arrancada a língua com que falou ao povo oprimido.
Vê o Eterno, porém, os sofrimentos do seu povo e quer libertá-lo e sua mão ampara todos os nossos irmãos; por isso, não permitiu que Eliezer perecesse tão miseravelmente.
Por graça de Jeová, ele permanece desacordado como se estivesse morto e a língua desapareceu. O próprio Deus arrebatou-a por algum tempo. Quando, antes do suplício,
os egípcios lhe descerraram os dentes e não viram a língua que lhes falara poucas horas antes, ficaram aterrorizados. Terrível vento desencadeou-se quebrando a árvore
da qual pendia o corpo, que assim caiu ao Nilo. Os egípcios vão procurá-lo para o destruir. Isso é o que importa evitar, porque Eliezer não está morto e vou tomar
as providências para salvá-lo.
Breve irei reclamar de Mernephtah a liberdade do meu povo. Ficai prontos para tudo, pois, se necessitar de vós, irmãos, eu vos avisarei. Agora, separemo-nos; preciso
ainda falar a Enoch.
Os anciãos despediram-se reverentes, e eu perguntava a mim mesmo, indignado, com que direito Moisés designava por "seu povo" aquelas tribos hebréias que o Egito
alimentava havia mais de quatro séculos. Nada mais justo que recompensassem essa hospitalidade com o seu trabalho. A idéia de subtrair ao Egito essa gente, e com
esse êxodo comprometer a prosperidade do país, revoltava-me; eu era bastante egípcio, apesar do sangue hebreu que me corria nas veias. Não fosse querer dominar Smaragda,
possuindo-a acima de tudo... Esse desejo me abafava e fazia-me dócil instrumento à vontade do chefe.
Uma vez a sós, Moisés voltou-se e disse-me com estranho sorriso:
- Jovem discípulo do Templo, não poderás ajudar-me a encontrar o corpo de Eliezer?
Então compreendi que esse homem, antigo aluno dos sacerdotes, iniciado nos mistérios, conhecia a força oculta inerente ao homem e que tantas coisas lhe revela quando
sabe utilizá-la.
Já havia resolvido obedecer a Moisés e por isso, inclinando-me, respondi:
- Mestre, se devo encontrar o corpo de Eliezer, a quem designas para servir de instrumento?
Após um momento de reflexão, respondeu:
- Caso não encontres alguém entre os jovens hebreus que te vou mandar, e que estão designados para agir sobre os seus companheiros, é necessário encontrar uma mulher,
para ajudar-te.
Imediatamente lembrei-me do poder que exercia sobre Smaragda.
- Conheço uma pessoa em condições de nos servir, mas não posso me aproximar dela.
Então, Moisés retirou do seio uma pedra fulgurante engastada num camafeu:
- Fica com esta pedra - disse - e faze incidir um dos seus raios sobre a pessoa a quem pretendes dominar; ela corresponderá aos teus desejos. Se precisares consultar-me,
Enoch te encaminhará ao meu retiro, que ele conhece bem. Adeus, meu filho.
Despedi-me, mas em vez de tomar o carro, montei a cavalo e segui de modo a passar perto do palácio de Mena. Em rua estreita que limitava com o muro do palácio, parei.
Soerguendo-me na sela, agarrei os ramos de uma árvore secular e galguei a crista do muro. Descer foi fácil para um homem ágil como eu; um minuto mais tarde, saltava
os copados arbustos e rapidamente dirigi-me para a parte da casa habitada por Smaragda.
Um rumor de vozes fez-me estremecer; avancei com a máxima precaução e evitando a folhagem percebi, com grande espanto, a própria Smaragda sentada num banco de pedra,
a conversar com uma velha nubiana. O luar, muito claro, deixava entrever-lhe o vestido branco, o rosto corado pela emoção e os olhos brilhantes.
- Assim, é certo que ele virá hoje? - perguntou ela.
- Sim, minha querida; deverá chegar dentro de poucos minutos.
- Então, Tent, corre para a portinha, a evitar que ele bata em vão.
Como um raio a velha fâmula desapareceu e Smaragda ficou só. Suas pequeninas mãos brincavam impacientes com os pesados anéis de ouro do colar que lhe ornava o seio.
A quem esperaria? Amada de quem? Rhadamés ou Setnechet? O ciúme travou-me dolorosamente o coração, mas logo, recordando Moisés e sua promessa, readquiri sangue-frio.
Era preciso aproveitar os momentos de solidão da jovem. Tirei a pedra da cintura e, deslizando de modo a defrontá-la, afastei a folhagem e suspendi o talismã para
que a lua nele incidisse e um raio refletisse nela. Ao cabo de breves segundos, seus olhos se fecharam, o corpo entorpeceu e a cabeça descansou pesadamente no tronco
da árvore.
Após haver escrutado o ambiente, abandonei meu esconderijo estendendo as mãos para ela e perguntando:
- Dormes?
- Sim.
- Podes ver o que desejo?
- Ordena, respondeu.
- Vai, procura às margens do Nilo o local em que se encontra o corpo de Eliezer!
Alguns minutos depois, ela me dava todas as indicações necessárias, com a descrição exata do lugar onde se encontrava o corpo, entre as caniçadas.
Soprei-lhe então, no rosto, sacudindo-a com força e voltei ao esconderijo, enquanto ela reabria os olhos. Quase ao mesmo instante, ouvi passos e a curiosidade sugeriu-me
ouvir e observar a entrevista de Smaragda com o eleito do seu coração. A prudência, entretanto, triunfou e abandonei o jardim, voltando à casa de Enoch. Transmiti-lhe
todos os detalhes obtidos e declarei que o resto era encargo seu.
Tão logo começou a despontar a aurora, Enoch acompanhou-me a uma pequena casa escondida no interior de um jardim, onde se encontrava um homem estendido e aparentemente
morto. Recuei, estremecendo.
- É Eliezer? T- perguntei.
- Sim - respondeu Enoch - e justamente por isso precisamos de ti; Moisés me disse que deves conhecer o processo indiano para despertar o sono, como é conhecida essa
espécie de morte.
Fiquei pálido. O que de mim exigiam fazia parte dos grandes mistérios, que eu havia prometido, sob o mais severo juramento, nunca divulgar. Quereria Moisés forçar-me
a tudo revelar, para o servir, e desse modo cortar-me a retirada?
Depois de um instante de reflexão, concluí que, mantendo oculta a maneira de provocar esse estado, poderia, sem perigo, indicar o processo de despertamento.
Friccionei-lhe, pois, ligeiramente, todo o corpo, banhando-o em água tépida, insuflando-lhe o ar, etc.; e logo Eliezer soltou um suspiro e abriu os olhos. Enoch
ficou para falar com ele, enquanto eu me dirigi à casa de Moisés.
O prestígio do profeta tinha diminuído consideravelmente a meus olhos, depois que me convenci que ele não passava de um sábio habilidoso.
Habitava Moisés no quarteirão dos estrangeiros, em pequenina casa escondida no interior de um jardim, ao qual se chegava depois de atravessar vários pátios. Quando
entrei no quarto, vi-o assentado junto à janela, conversando com um homem de estatura mediana, mas vigoroso, e cujo semblante inteligente irradiava audácia e astúcia.
À minha chegada o profeta levantou-se e, inteirado do feito, apertou-me a mão, dizendo:
- Apresento-te meu irmão Aarão, auxiliar e fiel companheiro.
Saudamo-nos e Aarão, em linguagem fluente e colorida, falou igualmente da libertação do povo hebreu e da grande missão que o Eterno havia confiado ao irmão.
Quando nos sentamos, cruzei os braços e voltei-me para Moisés:
- Permite, Mestre, que fale, não como ao enviado de Jeová, mas como ao sábio discípulo do Templo, dá Casa de Seti. Pertenço ao número dos que se iniciaram numa grande
parte dos mistérios; Sem dúvida, sendo tu bem mais velho do que eu, tudo conheces. Ser-te-á lícito desvendar ao povo os mistérios sagrados que te foram confiados
mediante o mais solene juramento e utilizar tais segredos para amedrontar as massas e forçar Faraó a libertar os hebreus? Perdoa-me estas perguntas, mas devo ser
esclarecido, para poder servir-te utilmente. Compreendo que as forças da natureza, habilmente empregadas, podem atemorizar as pessoas ignorantes; mas, conseguirás
assustar Mernephtah, que filiado, também à casta sacerdotal e, consequentemente, iniciado, conhece os fenômenos que queres produzir? Ouvi-te dizer aos velhos que
terríveis pragas cairão sobre o Egito, determinadas por Jeová; disseste que a água se mudaria em sangue e a serpente em bastão; mas isso os nossos prestidigitadores
e mágicos também fazem nas praças públicas, nos dias festivos, para divertir o povo, como não ignoras.
Moisés pareceu ofendido; mordia os lábios e sulcos profundos vincavam-lhe a fronte lisa.
Depois de um momento de silêncio, disse, fitando-me:
- Pinehas, tu és profundo pensador, e dizes uma verdade; sei mais que tu, pois contava já cerca de quarenta anos quando abandonei o Egito; também tens razão quanto
aos fenômenos que não achas assaz convincentes; isto, entretanto, não será senão o começo, e aquilo que isoladamente constitui um passatempo pode, suficientemente
estendido, tornar-se apavorante. Uma salamandra não é perigosa, mas se houver inúmeras delas a devastarem os campos, então o povo se abrigará nos Templos; uma poça
d'água que se torne vermelha, fará rir, mas se o Nilo Sagrado rolar em ondas sanguinolentas, o povo clamará aterrorizado.
Inclinei-me.
- Sabes, Mestre, o que fazes, e obedecerei naquilo que o teu saber e gênio deliberarem.
Levantou-se e de braços cruzados deu alguns passos pela sala; depois, parando à minha frente, disse:
- Agrada-me teu espírito observador e prudente. Queres devotar-te de corpo e alma à minha causa e prestar o juramento de aliança? Se a isso te decidires, eu te iniciarei
e te colocarei em presença daquele que tudo dirige.
- Sim, respondi com firmeza, pois já havia decidido intimamente unir-me à sorte de Moisés.
- Vem aqui todos os dias e ensinar-te-ei uma parte do meu saber.
Entusiasticamente agradeci-lhe e, desde esse dia, estudava com ele noites a fio, convencendo-me de que os sacerdotes e sábios ignoravam muita coisa; que, ainda que
conhecessem as primeiras manifestações de certos fenômenos, não tinham nenhuma idéia do desenvolvimento que eles comportavam.
Dia após dia Moisés demonstrava-me maior amizade e confiança. Certa feita, ousei lembrar-lhe a promessa de mostrar-me àquele que o inspirava.
Passados alguns momentos de reflexão, respondeu:
- Sei que és fiel e devotado; que seja satisfeito, pois, o teu desejo; prepara-te durante dois dias pelo jejum e pela prece; na tarde do terceiro, vem até aqui após
te purificares, segundo o rito.
Compareci emocionado e agitado no dia combinado.
Prestado o juramento recebi o sinal da aliança e o profeta levou-me, em companhia de Aarão, a uma sala fracamente iluminada; um único banco de madeira ali se encontrava.
Aarão sentou-se nesse banco, mantendo os braços cruzados. Nós nos colocamos à sua frente; dentro em pouco, sua respiração opressa e sibilante advertiu-me que dormia
e adivinhei que espécie de fenômeno se preparava.
- De joelhos! - murmurou Moisés, abaixando a fronte até o solo.
Imitei-o, porém quando ouvi uma voz articular distintamente estas palavras: "Nada de vítimas nem de sangue!" - ergui a cabeça e fiquei deslumbrado. Diante de nós,
formando o centro de grande círculo luminoso, flutuava uma forma humana; vaporosa túnica de alvura deslumbrante a envolvia, presa ao peito por uma cruz, cujo fulgor
mal se podia suportar. O rosto transparente, cheio de doçura e majestade, parecia iluminado por olhos e sobre-humana mansuetude.
- Osiris! - murmurei estremecendo, por me encontrar tão perto da divindade.
- Não sou Osiris, disse a aparição, mas Cristina-Crist. Moisés, - continuou - abandona a casa, sei que ela deve custar muitas lágrimas. Falo-te, meu filho, como
a um chefe que vai batalhar; dispondo de aguerrido exército, contra numerosos inimigos; mas indefesos, porque ignoram tua aproximação. Ser-te-ão pedidas contas de
cada vida, amiga ou inimiga, porque as forças da natureza podem ser empregadas pelo homem para o bem, nunca para o mal. Guarda-te, pois, de te servires das paixões
alheias em teu beneficio. No grande empreendimento que sonhaste no deserto e que agora vais realizar, a paciência e a fé nos teus guias devem constituir tuas armas;
não o ferro, o fogo e o sangue. Se não te julgas capaz, agora, de cumprir a missão que te foi confiada, outra ocasião mais favorável ser-te-á dada; não te deixes,
pois arrastar (1).
(1) Observação do Espírito autor - A missão revelada era conquistar a amizade de Mernephtah e dominar, assim, esse homem violento, mas generoso.
Por intermédio de Faraó, deveria aliviar a sorte dos hebreus (que aliás, não era tão desgraçada como ele pintava), prepará-los para a liberdade e, chegado o momento
favorável, obter de Mernephtah a libertação. O ensejo de tornar-se árbitro da situação não lhe teria faltado, no momento justo.
Moisés, porém, queria atemorizar não só o Egito, mas também os israelitas, que talvez recusassem obedecer-lhe e deixar o conhecido pelo desconhecido, e que haveriam
de o acompanhar principalmente pelo temor de irritar o Deus sanguinário de quem ele era enviado.
A prova desta verdade decorre da própria Bíblia. Vede no segundo livro de Moisés (Cap. 4, versículo 21, cap. 7, versículos 3 e 4), como o Eterno, querendo livrar
seu povo, declarou que endureceria o coração do Faraó, para dar ao seu enviado ocasião de castigar o Egito e, dessa forma, convencer os filhos de Israel da realidade
da sua missão.
Abandonado o Egito, Moisés logo compreendeu que os maiores obstáculos estavam por vencer; a massa popular que o seguia, preguiçosa e turbulenta, sempre pronta a
revoltar-se, reclamava o bem-estar perdido; para dominar os sediciosos, serviu-se novamente do nome de Jeová e, reduzindo à sua estatura o Criador infinitamente
bom e Senhor do Universo, atribuiu-lhe sua própria cólera e, em seu nome, puniu e massacrou os rebeldes, Moisés não possuía o dom de disciplinar as massas pela magia
da palavra; dominava-as pelo pavor.
Ao regressarem seus emissários, enviados à rica região que ele elegera para estabelecer seu reino, contaram que povos valentes e aguerridos ali habitavam. Foi tal
o pânico, que ele houve de mandar assassiná-los pela propaganda ruinosa que faziam, convencido de que, com essas hordas indisciplinadas e covardes nada conquistaria;
preciso era desaparecesse a velha geração de Israel, antes de tentar qualquer coisa.
Ficou, pois no deserto, levando vida inútil, desabituando o povo da agricultura, que faz o homem sedentário, das artes e dos trabalhos aos quais estava acostumado.
Homem genial, mas ambicioso e violento, quebrava os obstáculos, em vez de contorná-los habilmente, para atingir o fim. Discípulo dos sacerdotes mais sábios do Egito,
no país mais civilizado do mundo antigo, Moisés não sonhava, então, absolutamente, libertar os hebreus; gozava tranquilamente a posição e os privilégios de nobre
egípcio, que lhe eram assegurados pela estima da real protetora, mulher fraca e amorosa, que ele dominava completamente. Cego pela ambição, concebeu, desde logo,
o audacioso plano de tomar-se Faraó.
Não vingou, porém, o projeto. Cercado de inimigos e invejosos, seria talvez eliminado, mas Thermutis lhe angariou um comando no exército e ele partiu a guerrear
no estrangeiro. Faltando-lhe as qualidades de guerreiro, foi vencido e os egípcios, excitados por seus inimigos, atribuíram a derrota à sua má vontade.
Altivo e arrogante, regressou ruminando o projeto de se tornar rei dos hebreus, conduzindo-os para fora do Egito.
Mas Thermutis faleceu. Uma vez sem defensor, os inimigos esperaram a primeira ocasião para o exilar. E assim partiu de coração raivoso, jurando vingança. No deserto,
para onde se retirou, amadureceu os planos, visitou a Índia, estudou, e somente quando julgou assegurado o sucesso, voltou ao Egito.
Reuniu o povo de Israel, e com ele saiu. Os desencantos que experimentou amarguraram-lhe o coração. Querendo, porém, tudo dominar sempre, proclamou-se chefe da religião,
nomeando o irmão Aarão sumo-sacerdote, instrumento dócil nas suas mãos e, para disciplinar o povo, decretou leis. Aqui faço inteira justiça à sabedoria e profundeza
do seu espírito, que soube reunir num resumo exato a essência da sabedoria da Índia e do Egito, e que, pelos dez mandamentos, estabeleceu as bases das leis fundamentais
da moralidade, que se tomaram herança de todos os povos cristãos.
Nisso, o grande missionário foi digno do seu mandato divino; mas, onde o homem político sobrepõe-se ao profeta, surge a sombra. Ele sabia que a união faz a força;
deu, pois, às hordas vacilantes que conduzia, um código que as galvanizou num povo indestrutível, Entretanto, essas leis emanadas de Jeová são cruéis; consagram
a pena de maior vingança até à quarta geração e o ódio a tudo que não seja hebreu; elas fizeram do povo judeu, inimigo de tudo que não seja dele, buscando o trabalho
fácil a expensas de outrem, recordando que os roubos ordenados pelo Eterno, por ocasião da saída do Egito, o haviam enriquecido sem esforço.
Tudo quanto acabo de referir bem o sei, levantará uma tempestade contra mim, espírito audacioso, que ousou erguer a ponta do lendário véu que encobre o grande legislador
hebreu, para revelar sob Moisés profeta, o grande sábio egípcio, o ambicioso candidato a um trono.
Caro leitores, não vos esqueçais, porém, de que o escritor destas linhas é Mernephtah, o infeliz Faraó que lutou contra esse homem férreo, com desespero do soberano
que assiste à destruição da prosperidade do seu povo, mediante inauditas calamidades e comoções políticas sem precedentes na história.
Submetido pelo terror, quase louco pela impossibilidade, em que me encontrava, de compreender o modo pelo qual Moisés agia na missão divina em que eu não acreditava,
cedi; mas, após a morte dó Faraó, meu espírito sondou avidamente a vida e as ações do antagonista que me vencera.
Diante do olhar desabusado do meu espírito, o grande profeta empalidece não restando senão alguns raios divinos; dele apenas fica o grande sábio, o hábil e ambicioso
político. É assim que ele me ressurge na memória, ao vos oferecer estas páginas de um longínquo passado.
ROCHESTER
Moisés tudo ouvia carrancudo. Estendendo os braços para a visão, arrastou-se de joelhos e exclamou com voz entrecortada:
- Mestre de clemência e divina mansidão, eu desejaria que tuas palavras pudessem, qual fonte refrigerante, acalmar e refrescar minha alma! Não posso recuar no momento
de agir, deixar meu povo na opressão; se Mernephtah recusar obedecer, não ouso prometer indulgência; sinto que minhas paixões me arrastarão.
- Meu filho, disse com tristeza a aparição, se te deixares levar pelo teu arrebatamento e ambição, - desaparecerei do teu caminho; quanto mais vítimas fizeres, maior
distância nos separará, porque as sombras projetadas por teus pensamentos me repelirão. Entregue a ti mesmo, teu espírito lúcido se perturbará e vagará no deserto;
a dúvida e a incerteza serão teus únicos guias; reconhecerás a ingratidão e a revolta; a coroa com que sonhas jamais a cingirás; cansado, roído de desgostos, coração
desenganado, morrerás só e desolado.
Empalideceu a visão, descompondo-se num vapor esbranquiçado, até que se fundiu na atmosfera. Moisés, rosto colado ao solo, ergueu-se; cruzando os braços sobre o
largo peito, apoiou-se à parede, evidentemente agitado por pensamentos tumultuosos; os olhos tanto lhe chamejavam como pareciam extinguir-se; mas, rapidamente; dominou
a luta íntima e, voltando-se para mim, disse no seu tom habitual:
- Acabaste de ver aquele que me protege; eu lhe obedecerei voluntariamente, mas ele me pede o impossível; ele já atingiu a impassibilidade inalterável, fruto da
perfeição, e não admite a violência dos sentimentos que agitam o coração humano. Agora, vai, meu filho, e não esqueças o juramento que me prestaste.
Regressei à casa indisposto, com a cabeça pesada; os últimos acontecimentos e os terríveis abalos morais que suportei, começavam a reagir. No dia seguinte, declarou-Se
uma febre perniciosa, seguida de tal prostração de forças que me custou algumas semanas para recuperar a saúde.
Os acontecimentos que agitaram o Egito nessa época me passaram quase despercebidos. Kermosa me falou dos prodígios ocorridos e, sobretudo, do pavor do povo, quando
as águas sagradas do Nilo se transformaram em sangue.
Enoch veio uma tarde buscar-me, dizendo que Moisés queria ver-me. Se as forças me permitissem, no dia seguinte iríamos ambos ter com o profeta, muito irritado com
a resistência e teimosia de Mernephtah, que, passado o primeiro momento de terror, violara sua promessa e recusara libertar o povo de Israel. Em seguida, contou-me,
o consórcio de Smaragda com Rhadamés, marcado para breves dias.
Informou-me, também, do desaparecimento de Mena e desfiou vários boatos que corriam sobre a sorte do jovem cortesão, e que as mais ativas pesquisas tinham sido inúteis
para descobrir-lhe o paradeiro.
A opinião mais aceita era que Mena, homem dissipador e aventureiro, havia-se demorado mais durante a noite, no bairro dos saltimbancos, dançarinos e outros elementos
estrangeiros e baixos, onde não estaria isento de perigos mesmo durante o dia, sendo então assassinado por malfeitores seduzidos pelas jóias que ele gostava de exibir.
O fato era tanto mais provável quanto, já em Thebas, tinha sido ferido em zona escusa do quarteirão dos estrangeiros, só escapando por milagre.
Algumas línguas ferinas tentaram mesmo ligar essa desaparição ao escândalo ocorrido no Templo de Isis, com uma jovem sacerdotisa; entretanto, uma visita feita a
Smaragda pelo príncipe herdeiro, e a promessa que fez de assistir, com Faraó, ao seu casamento, afastou esses rumores, de vez que a família real jamais demonstraria
tanta consideração à irmã de um sacrílego. Natural que, apesar da sua tristeza e inquietação, a jovem e bela herdeira se colocasse sob a proteção de um marido.
Somente uma dessas novidades atingiu-me como um raio. O coração cessou de bater e toldou-se-me a vista.
- Filho, tem paciência, - disse Enoch notando-me a emoção - tu triunfarás, mas o profeta te previne que não te entregues a nenhum ato de vingança; confia nele, o
futuro te pertence.
Comprimi o peito com as mãos.
- Esperarei paciente, disse cerrando os dentes, mas, se demorar muito, tudo afrontarei.
No dia imediato fomos à casa de Moisés.
A nossa espera estava um ancião que nos conduziu à grande sala subterrânea onde estavam reunidos os anciãos das tribos judias: Aarão, Moisés, e junto dele um jovem
israelita que eu ainda não tinha visto, cuja expressiva fisionomia e olhar brilhante, me impressionavam. Chamava-se Josué e foi o sucessor de Moisés, o conquistador
da Terra Prometida.
O profeta estava visivelmente irritado, veios da testa dilatados, os olhos chamejavam sob as espessas sobrancelhas franzidas e a voz ressoava na abóbada, qual surdo
trovão.
- Meus irmãos, vós sabeis - disse - que esse Faraó, traidor perjuro, recusa permitir a partida do povo de Deus, apesar do pavor que experimentou, tanto quanto seu
povo, diante das águas sangrentas do Nilo? Mas não se afronta assim a cólera do Eterno.
Elevou os punhos cerrados e, diante do seu olhar terrível, Iodos os anciãos se inclinaram até o solo.
- Vou punir os egípcios e seu rei, por ordem de Jeová, de modo que lhes faça cair os cabelos da cabeça e arruinar-lhes os bens de fortuna.
Deu uma ordem, e, prontamente, Aarão e Josué apanharam num canto dois sacos e um fogareiro com brasas. De um dos sacos, Moisés retirou fragmentos de raiz; do outro,
uma espécie de flauta de madeira esverdeada, que exalava odor penetrante.
- Toma e toca - disse - entregando-a a Josué.
Obedeceu-lhe o moço e tirou do instrumento vibrantes e prolongados sons.
Escutávamos curiosos e interessados. Ao fim de alguns minutos, surdo rumor se fez ouvir ao redor de nós; atritos, assobios e grunhidos ecoaram. Imediatamente um
verdadeiro exército de ratos, lagartixas, sapos, etc., surgiu de todos os cantos do velho subterrâneo, desembestados e como impelidos por estranha força.
Recuamos todos com gritos de pavor. Imediatamente Aarão lançou nas brasas as raízes e, desde que a espessa e aromática fumaça atingia os animais, eles recuavam e
desapareciam nas suas tocas subterrâneas.
- Eis agora o que deveis fazer - disse Moisés. Aarão distribuirá a cada um dos anciãos quantidade destas flautas, raízes e grãos cujo uso indicarei; cumpre a cada
qual confiar as flautas a pessoas devotadas, que se encontrem a serviço rias casas egípcias de Tanis, do campo e cidades circunvizinhas, tão longe quanto possível.
Essas pessoas deverão esconder-se nos socavãos das casas, dos templos e palácios, sem mesmo excetuar o de Faraó. Desde que surjam os animais, atirem-lhes nacos de
carne embebidos num líquido preparado com as sementes de que falei. Uma vez atraídos para fora de seus esconderijos, excitados e imundos, se espalharão por toda
parte, devorando tudo que encontrem na sua passagem. Cada noite se renovará o processo, a fim de manter a continuidade da invasão.
Á margem dos lagos, canais e pântanos, colocar-se-ão outros músicos, neles lançando um pó que se lhes dará. Usarão docemente as flautas para atrair à terra firme
lagartos, rãs, etc.
Para que nosso povo fique livre desta calamidade, Jeová ordena que as moças e damas de Israel mantenham, nas casas e pomares, fogareiros em brasa, lançando-lhes
raízes, cuja fumaça afungentará de suas moradias e terreiros todos os animais daninhos. Tudo deverá estar pronto dentro de três dias.
Começaremos por perturbar as núpcias de um rico egípcio, às quais Mernephtah prometeu assistir com o seu séquito.
Compreendi, e quando ficamos sós, agradeci-lhe essa atenção.
Sorriu com benevolência, entregando-me uma flauta e uma caixeta de raízes e grãos.
- Tu mesmo, filho, atrapalharás o casamento da ingrata Smaragda; estragarás essa esplêndida festa que o Faraó e os grandes da Corte devem honrar com sua presença.
- Fica certo - continuou - que o medo e o horror farão esquecer ao vilão Rhadamés os madrigais que prepara para sua bela noiva.
Calorosamente agradeci-lhe, e essa perspectiva de vingança constituiu um bálsamo para meu coração corroído pelo ciúme; esforcei-me por comer e dormir para estar
forte no dia seguinte.
Afinal chegou o dia do casamento de Smaragda, tão doloroso para mim.
Na hora fixada, dirigi-me, seguido de um escravo hebreu, para o palácio de Mena.
Extraordinária animação ali reinava; pátios, vestíbulos e escadarias, repletos de escravos e criados; uns colocavam flores por toda parte, outros sobraçavam cestas
de frutas e doces, ou pratos de iguarias e ânforas de vinho; nos pátios externos, estendiam-se imensas mesas para regalo do povo e dos indigentes, como de uso. O
serviço era fiscalizado por mordomos armados de bengala. Ninguém deu por mim e por meu companheiro, de modo que, sem dificuldade, deslizamos até o porão cujas portas
estavam abertas, para facilitar o aproveitamento de vinho. Acomodamo-nos bem no fundo, por trás de enormes ânforas.
Logo que nos instalamos, clamores populares seguidos do retinir de armas, anunciaram a chegada de Mernephtah. Com isso, os rumores da festa aumentaram em todo o
palácio; cantos, músicas, ruídos de louças, de taças, chegavam vagamente ao meu refúgio.
Era tempo de agir. Abandonei o abrigo e tirando do saco do companheiro pedaços de carne ensopada no líquido preparado, de cheiro ativo, abri as portas dos compartimentos
contíguos e subi num caixão vazio, juntamente com o escravo, pondo-me a tocar a melodia prescrita.
Surdo ruído anunciou-me imediatamente, a aproximação do inimigo e, das profundezas surgiu em negra torrente a massa dos asquerosos animais. Atirei-lhes a carne e
eles, como enfurecidos, precipitavam-se para fora.
Não parei de tocar, contemplando, estranhamente impressionado, o desfile que continuava a meus pés e parecia interminável; sabia que, por toda a parte, o mesmo se
dava, isto é, que naquele momento Tanis e seus arredores eram invadidos por esse exército de novo gênero.
Angustiosos e ensurdecedores, os gritos e clamores advertiram-me do combate aos invasores.
Então, passando a flauta ao companheiro, ordenei-lhe sob pena de morte, que não abandonasse o posto, antes que ali voltasse e deslizei para o pátio, no intuito de
franquear os apartamentos e ver com os próprios olhos Smaragda, a festa desfeita e a fisionomia espantada da noiva a combater os ratos. Entretanto, não pude passar,
por causa do tumulto e aglomeração. Mernephtah acabava de retirar-se, mas ainda se ouvia, lá fora, a voz dos oficiais que demandavam passagem. Os convidados dispersaram-se
tão rapidamente que abandonaram os cavalos; estes empinavam, os carros se abalroavam, as liteiras tombavam. Cada qual se apressava em chegar à própria residência
igualmente assaltada. Enfim, o palácio esvaziou-se, o que permitiu avaliar a desolação espalhada por toda parte.
Fingindo vir de fora, passei saltando sobre cadáveres de roedores; ninguém me notou, porque os criados, escravos e mordomos, todos com o que lhes tinha podido vir
às mãos, lutavam, contra as ratazanas que invadiam as mesas emborcadas, devorando as iguarias pelo chão, festejando, com pasmosa voracidade, as núpcias de Smaragda.
Subi as escadas, penetrei no magnífico salão, donde precipitadamente fugira a brilhante nobreza egípcia; no centro, enorme e bem provida mesa, estava posta com baixelas
de ouro e prata; as cadeiras derrubadas, jarras e mesmo terrinas enormes, atiradas ao solo; ânforas entornadas, vinhos custosos correndo pelo chão e, por todos os
lados, onde havia carnes ou pastéis, grupos de animais imundos a grunhir, tudo devorando ou mordendo-se ruidosamente.
Atarefados serviçais corriam berrando e gesticulando, não sabendo o que fazer. Súbito, uma idéia me confrangeu o coração: se eu encontrasse Rhadamés abraçado à sua
jovem esposa, defendendo-a contra os famélicos agressores e ela, assim lhe correspondendo com amor?
Punhos cerrados, meu olhar temeroso, mas ávido, percorreu a sala fixando-se, admirado, em Rhadamés que, em cima dum aparador, pálido, de aspecto horrível, manejava
a espada sem cessar e proferia impropérios para chamar os escravos e ordenar que o cercassem e defendessem com seus bastões. Seus olhos, atarantados, não se voltavam
para a mulher que lhe havia confiado a vida.
Brotou-me na alma amarga satisfação. A mim que a teria protegido e resguardado, repelira duramente, para escolher aquele poltrão egoísta.
No mesmo instante vi Smaragda de pé, colada à parede, do outro lado da sala.
Ela estava maravilhosa num vestido branco, bordado a prata, preso à ilharga com um cinto de rubis; grande colar e pulseiras de faiscantes gemas lhe ornavam o colo
e os braços; o rosto pálido de morte, mas não era o medo que lhe transparecia no semblante marmóreo, mas sim raiva e desprezo. Lábios contraídos e olhos chamejantes,
observava o marido preocupado na própria defesa; ela se esquecia do resto, não vendo, sequer, a velha ama que, acocorada a seu lado, procurava defendê-la corajosamente,
matando ratos e ratazanas a ponta-pés.
Cruzando os braços, aproximei-me e disse com ironia:
- Smaragda, não sei se posso felicitar-te pela escolha. Para um recém-casado, vejo que o preferido cuida mais da sua defesa pessoal; conheço alguém a quem ofendeste
e recusaste cruelmente e que, entretanto, melhor te consideraria nessa conjuntura, por força de sua estima.
Vendo-me e ouvindo-me, ela deu um grito, mediu-me com expressão odiosa e disse com asco:
- Pinehas, tu te enganas, não foi a Rhadamés que eu preferi; vós vos equivaleis, meu coração pertence a um terceiro, a quem não posso amar abertamente; se pensas
que este transtorno, no festim de minhas núpcias, me contrariou, estás redondamente enganado. Eu apenas declaro uma coisa, estar ligada a esse poltrão que devia
defender-me. Se os ratos o devorassem, eu daria graças aos deuses por tê-los enviado.
Atônito pelo que ouvia, adverti:
- Se nos estimas da mesma forma, disse, por que consentiste em esposá-lo? Por que escolheste Rhadamés? Eu fui o primeiro a oferecer-te o coração.
Seu rosto tomou expressão dura e cruel.
- Primeiro - retrucou - porque Mena lhe havia prometido minha mão; mas, principalmente, porque ele é o condutor do carro de Faraó, enverga brilhante uniforme e desempenha
um cargo na Corte; tu nada tens; nem função, nem farda com que te vestires e, ademais, passas por feiticeiro!
Interrompeu-se, dando um grito, porque enorme ratazana lhe subira pelas vestes. Apanhei o animal pela cauda.
- Agradeço-te, Pinehas; agora dá-me um prazer (desdenhoso sorriso lhe descerrou os lábios): atira este delicado animal à cara de Rhadamés.
Naquele momento ele olhava o teto, supondo que os inimigos também dali provinham.
Contente por poder descarregar minha raiva sobre alguém, obedeci ao sábio conselho de Smaragda e lancei com tanta felicidade o animal, que ele foi bater justamente
no peito de Rhadamés, cravando-lhe as garras no pescoço.
Enquanto ele se debatia, gritando horrivelmente, Smaragda chamou um escravo, e, dando-me as costas, ordenou que a carregasse para fora da sala.
Retirei-me furioso. Chegando à casa encontrei minha mãe desesperada, porque, apesar das precauções tomadas, alguns ratos a tinham invadido e roído um saco de farinha.
Ela vociferava, lançando a Moisés e Enoch toda espécie de maldições celestes.
Acalmei-a, e, depois de haver eu mesmo cuidadosamente depurado a casa, os terríveis roedores desapareceram.
Recolhi-me aos meus aposentos e entrei a considerar os sucessos. Uma coisa me consolava: é que não havia mais amor no palácio de Mena e o condutor do carro de Faraó
estava longe de conquistar o coração de Smaragda. Mas, a quem amaria ela? Debalde quebrava a cabeça e, não encontrando solução, consultei os invisíveis.
Foi com grande espanto, que soube que seu coração pertencia a Omifer, jovem belo e riquíssimo, mas a quem dificilmente poderia esposar, sobretudo com o consentimento
de Mena, porque velho ódio de sucessivas gerações separava as famílias.
Essa inimizade, oriunda de uma rivalidade em assunto de amor e favor real, se envenenara tanto que ambas as partes, esquecendo respeito e compostura, chegaram a
insultar-se reciprocamente na presença do próprio Faraó, culminando num abrir e fechar de olhos em luta corporal, e causando a morte de um apaziguador.
Irritado, o Faraó, condenara o assassino (ancestral de Omifer) à deportação para as minas, e ainda que anos mais tarde, o indultasse em atenção a serviços anteriormente
prestados, o ódio entre as duas famílias havia-se enraizado e, sobrevivendo aos autores do drama, galvanizava-se entre os descendentes por uma série de intrigas
e crimes. Só a poderosa palavra do grande Ramsés II lhe pusera fim, oficialmente: os representantes das famílias inimigas concordaram, perante o rei, em se apertarem
as mãos, jurando esquecimento e perdão.
Já impossível abertamente, a inimizade, as relações cobriram-se de cinza: cumprimentavam-se em público, visitavam-se cerimoniosamente, mas qualquer ligação consanguínea
era considerada indigna de parte a parte.
Além de tudo, o pai de Omifer, faltando ao compromisso assumido com a grei egípcia, desposara bela escrava prisioneira de guerra, assim ferindo muitas suscetibilidades.
O filho tinha-se dedicado inteiramente à administração das extensas propriedades que possuía e não exercia função alguma, fosse na Corte ou no exército; começara
a frequentar o palácio de Mena, havia cerca de um ano; o irmão de Smaragda facilitava essa visitas pelos motivos que acabamos de indicar, mas não estimava Omifer
e, certo, jamais concordaria num casamento, mas antes empregaria todos os meios de o impedir.
De qualquer forma o amado de Smaragda também experimentava, como eu, nesse momento, as mesmas torturas do ciúme, e esta idéia foi um alívio para o meu coração ferido.
Nos dias que se seguiram pouco saí, mas soube por Enoch que o povo, assustado, já havia suplicado a Faraó deixasse partir os hebreus. Mernephtah, embora inquieto,
resistia; havia convocado sábios, quando um acaso desvendou o plano, favorecendo os egípcios. Um oficial da guarda, aquele mesmo Necho, meu condiscípulo em Thebas,
julgando um mistério a incolumidade das residências judaicas, forçou uma delas, lá surpreendeu mulheres, depurando-a. Apoderou-se das raízes, grãos e tudo mais que
pode apanhar, apresentando-os a Mernephtah. Assim encaminhados, não foi difícil aos sábios desembaraçar o país da calamidade.
A raiva dominou Moisés. Declarou, num conciliábulo de chefes das tribos, que Jeová, irritado com semelhante resistência aos seus desígnios, ia lançar sobre o Egito
flagelos mais terríveis que os precedentes. Tomou várias providências e recebi ordem para ficar com Enoch, junto dele.
Logo que ficamos a sós, levou-nos a um grande galpão de trigo, vazio no momento. A abertura do teto estava fechada por uma tampa de couro e algumas lâmpadas fumarentas
o iluminavam.
Obedecendo sua ordem abrimos dois grandes sacos cheios tio grãos cinzentos; despejamo-los em compridas gamelas de madeira contendo terra misturada com um pó branco.
Depois, cobrimos os grãos com esterco umedecido em água quente, e Moisés estendeu as mãos sobre as gamelas, projetando nelas um olhar inflamado, ao mesmo tempo que
pronunciava palavras incompreensíveis. Impediu-nos de sair. Enoch, de vez um quando, umedecia o esterco e eu auxiliava; Aarão estava ausente.
Um movimento começou a esboçar-se nas gamelas no terceiro dia, depois houve um crepitar seguido de sussurro, que aumentava sempre de intensidade; nuvens negras e
compactas se elevaram; gritamos, mas Moisés destapou o teto e vi, então, que as nuvens eram de gafanhotos que, atraídos pelo ar fresco, saíam aos borbotões. Fiquei
assombrado. Sim, Moisés era um grande mago!
Não sei explicar como ele procedeu, mas sacos semelhantes foram distribuídos em várias regiões e Aarão superintendeu a distribuição. Certo é que nuvens de gafanhotos
apareceram e causaram grandes devastações no país.
Não obstante o descontentamento do povo, Faraó resistia e prolongava a situação; no momento talvez de ceder, um acaso veio favorecê-lo. Providencial tempestade desencadeou-se
carregando todos os gafanhotos e atirando-os ao mar, onde desapareceram.
Pensei, então que Jeová se voltava contra nós, mas seu enviado não era homem para consentir que semelhante dúvida pudesse ser tomada em consideração; declarou, portanto,
aos anciãos, que o Eterno, na sua bondade, tinha afastado os gafanhotos, conhecendo a intenção do Faraó, de submeter-se, mas sua falta de lealdade seria duplamente
punida.
Certo dia, Moisés mandou que lhe trouxessem animais de várias espécies: cavalo, burro, carneiro, camelo, vaca, etc., fazendo em cada qual uma incisão com uma faca
de pedra e introduzindo na ferida certa substância tirada de um vidro; depois, mandou prendê-los; nessa mesma tarde eles ficaram cobertos de chagas. Convenci-me
de que tinham sido empesteados.
Então, Moisés mandou que trouxessem enormes vasos cheios de moscas vivas, as quais foram lançadas sobre os cadáveres e que, depois voaram; ao mesmo tempo, pedaços
dessa carne foram jogados em todos os poços e fontes, onde os egípcios davam de beber aos animais, e aguardou-se o resultado.
Não foi longa a espera. Decorridos alguns dias, por toda a parte clamores se levantaram anunciando a peste nos rebanhos, ameaçando aniquilar a principal riqueza
do país.
Por um esquecimento deixei de mencionar que encontrara ainda em casa do pobre Mena um antigo camarada, Necho, que agora servia na guarda pessoal de Faraó, como oficial;
ele me visitara apenas uma vez, mas como não lhe agradasse a natureza científica dos meus trabalhos não mais me procurou.
A peste que lhe feria o bolso, como a muitos outros, fez-lhe recordar os meus conhecimentos. Uma manhã apareceu, atormentando-me para que lhe fornecesse um remédio
capaz de lhe salvar os rebanhos. Recusei, naturalmente, para não trair Moisés. Necho ficou furioso.
Muito admirado fiquei quando ele reapareceu horas mais tarde e renovou o pedido. Dada a minha formal recusa, disse com estranho olhar:
- Não estou sozinho; uma ilustre egípcia acompanha-me e vem pedir-te auxílio e socorro.
Perguntei-lhe aborrecido:
- Uma mulher? - não sei quem tenha o direito de me pedir qualquer coisa, que, ao demais, não posso fazer.
- Era essa resposta que já esperava - disse Necho - e vou dizer à irmã de Mena que recusas recebê-la.
Lampejou-me uma chama no cérebro: Smaragda rendia-se!
Precipitei-me para o pátio, empurrando Necho que saía, e vi a jovem sentada na liteira, cercada de porta-abanicos e cuidadosamente velada.
Cumprimentei-a reverente, ajudei-a a descer e encaminhei-a para meu quarto. A idéia de ter em minha casa a mulher amada, que vinha fazer-me um pedido, perturbava-me
a razão; o coração pulsava desordenadamente e pressentia vagamente o perigo que ameaçava os segredos do chefe, se Smaragda me fixasse os belos olhos suplicantes.
Sentou-se e após retirar o véu conservou-se de olhos baixos. Com voz entrecortada, pediu-me lhe indicasse o remédio para salvar os seus rebanhos, evitando-lhe a
ruína. Recusei; ela se ergueu ofendida, mas Necho inclinou-se e lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido.
Vi-a então enrubescer; depois, voltou-se, tomou-me a mão, inclinou-se quase roçando no meu o belo rosto ansioso, e pediu-me veemente, lhe concedesse o remédio salvador.
Calei-me, fascinado, e escutava-lhe mais a música vocal que as próprias palavras, aspirando com volúpia o perfume que me acariciava as faces; uma felicidade mesclada
de amargura apertava-me o coração, como a esmagá-lo; ora tinha ímpetos de cingi-la, ora de repelir a traidora que, conhecendo minha fraqueza, queria dominar-me e
não sabia, ao demais, que era a favor de Omifer que havia de ceder.
Uma idéia luminosa esclareceu-me subitamente:
- Smaragda - disse - abusas do teu fascínio sobre mim, mas só te atenderei em troca de três beijos.
Fremente de orgulho e cólera ela recusou e, sem responder, dirigiu-se para a porta.
Pela segunda vez, Necho a deteve pela mão e falou qualquer coisa, naturalmente alguma palavra mágica, porque Smaragda parou, e voltando-se para mim, pálida como
um cadáver e mais bela que nunca, disse, baixinho:
- Aceito.
Embriagado, esquecendo tudo apertei-a entre os braços e beijei-lhe apaixonadamente os lábios gelados, que ela não me recusava.
Dei-lhe, depois, as fórmulas para garantir os animais ainda não atingidos e ela, velando-se saiu. Mais tarde, Enoch procurou-me e comunicou que no dia seguinte,
à tarde, haveria reunião de todos os chefes, na sua casinha do subúrbio. Deveríamos tomar todas as providências para a partida do povo de Israel; todos deveriam
estar prontos para o momento em que Faraó consentisse. Não mais se duvidava de que, por fim, ele cedesse definitivamente, porque, conforme todas as previsões, a
peste tão habilmente disseminada pelos rebanhos, deveria contaminar também as pessoas. Tudo favorecia esse contágio: o calor escaldante, o ar infectado de miasmas
deletérios dos milhares de animais mortos, e, desde que a morte começasse a ceifar as vidas humanas, Mernephtah deveria conjugar a causa do tamanha calamidade.
Enoch me recomendou pontualidade.
Quando a noite desceu, fui ao local designado, lá encontrando já reunidos os chefes das tribos, em sua maior parte anciãos de aspecto venerável. Conversava-se pouco
e quase todos se mostravam apreensivos. Moisés não tardou a chegar, acompanhado de Aarão; tomou assento na cadeira mais alta.
Enquanto serviam refrescos, eu não podia tirar os olhos do nosso perigoso chefe a quem, no íntimo, temia; sua fisionomia austera denotava inquebrantável resolução
e seu olhar brilhava de audácia e inteligência; eu tinha a convicção de que seria bem sucedido.
Depois de esvaziar o último copo, o profeta ergueu-se e disse:
- O momento da libertação aproxima-se, irmãos, porque a peste que devasta os rebanhos egípcios breve assolará também as famílias, sem executar o palácio do indigno
Faraó que ousa resistir à vontade de Jeová, vendo embora que o látego do Eterno fere sem compaixão o seu povo flagelado. Mas quando a doença e a morte lhe entrarem
no lar, então, tremerá, e o povo eleito de Deus sairá deste país de escravidão, para fundar um novo reino.
Tudo deverá estar pronto para o momento em que eu der o sinal da partida; chefes das doze tribos de Israel, ouvi, pois, as ordens que Jeová vos transmite por minha
boca. Dizei a vossas mulheres e filhos que tenham lavadas, enxutas e empacotadas as roupas; fazei o mesmo com o que possuirdes de mais precioso e, por outro lado,
arrebanhai dos egípcios o mais que puderdes em ouro, baixelas preciosas, pedrarias e tecidos; carregai as mulas e camelos de quantos tesouros puderem suportar, e
nada temais; sois o povo escolhido de Deus e deveis sair daqui não como mendigos, mas ricos e poderosos, O Eterno vos ordenai pois, pilhar o ouro dos réprobos, que,
pela metade, representa o vosso suor; tendes necessidade desse ouro para fundar um reino e construir um Templo. Nada do que temos deverá ficar no Egito, a não ser
a lembrança da cólera celeste; deveis, portanto, levar como relíquia sagrada as cinzas do patriarca José, a fim de que a bênção dos antepassados vos acompanhe à
nova pátria.
Braços cruzados religiosamente, os chefes mantinham-se cabisbaixos.
- Tudo será feito como ordenas - responderam por fim, inclinando-se.
Voltei para casa agitado, pelos mais estranhos sentimentos. Como todos os iniciados, eu sabia que existia um Deus único, superior a tudo, tão grande que não havia
como nomeá-lo. Mas se Moisés já se atrevia a desvendar esse grande mistério, como ousava, entretanto, rebaixar o Criador do Universo, até à vulgaridade, ordenando
em seu nome o roubo e a pilhagem, e fornecer detalhes meticulosos para a partida, o conforto e mesmo os aprestos culinários do povo hebreu? Por experiência própria,
sabia como eram graves, austeros, mas misericordiosos, aqueles a quem os mistérios permitiam evocar, e que, no entanto, não passavam de mandatários do Grande Senhor
do Universo. Osiris ou Isis jamais haviam ordenado o roubo ou autorizado a semear a morte e a peste; prescreviam, ao invés, a virtude e o amor ao próximo, e curavam
em todos os templos, milhares de doentes e peregrinos, ou consolava-os em suas penas.
No meu terraço, debruçado à balaustrada, passei horas a pensar. A paixão por Smaragda, o desejo de possuí-la, porem, matava em mim todo escrúpulo. Que me importavam,
afinal, os deuses e os egípcios, uma vez que realizasse meu ideal de felicidade?
Passei os dias imediatos em indescritível impaciência e inquietação; caminhava horas a fio de um lado para outro, no quarto ou no jardim, sempre na esperança de
que me viessem dizer que a terrível moléstia atingia a população. Se Smaragda fosse atingida, viria procurar-me e poderia, então, tratá-la e raptá-la com mais facilidade.
Certa tarde, enfim, minha mãe veio prevenir-me, muito apreensiva, que em nossa rua havia três famílias contaminadas.
À noite, dispunha-me a sair e dar uma volta pela cidade, quando dois homens pálidos e atônitos me invadiram o aposento: uma era Necho e no outro reconheci, estupefato,
Omifer!
- Pinehas? exclamou Necho apertando-me a mão - presta-me um favor que fará de nós teus escravos para o resto da vida: salva minha mana Ilsiris, atingida pela peste,
bem como Smaragda, para quem Omifer vem implorar teu socorro. És muito sábio para não ignorares um recurso salvador.
Por um momento hesitei. Que me importava a morte da irmã de Necho? Recusando, porém, auxiliá-lo, não poderia socorrer Smaragda. Acabei anuindo, e dei a Necho os
remédios e prescrições necessárias. Ordenando-lhe urgência, ele saiu correndo e deixou-me com Omifer.
Disfarçando a raiva e o ciúme que me inspirava o belo moço, dela amado, fitei-o desdenhoso e glacial.
- Quem és - perguntei-lhe - e a que título intercedes pela vida de Smaragda? Foi Rhadamés que te enviou?
Ele cruzou os braços e amargo sorriso crispou-lhe os lábios.
- Amo Smaragda, que, no momento, não se abriga no seu lar, porque o marido, horrorizado e acovardado, vendo-a contaminada pela peste, mandou-a embora... Tenho em
minha casa a enferma, que me foi cara nos tempos saudáveis e venturosos.
Pinehas, a ti, que és poderoso mágico e competente médico, venho pedir socorro; arbitra o preço que entenderes. Darei prazeirosamente dez camelos carregados de tesouros
pela salvação da mulher adorada.
Compreendi que Omifer ignorava a minha paixão, pois, doutra forma não me confiaria a enferma. Respondi, então, simulando indiferença:
- Bem, aceito a proposta. Manda-me os dez camelos e tratarei de Smaragda. Mas só me responsabilizarei por sua vida se a mantiver aqui comigo, a fim de acompanhar
dia e noite a marcha da moléstia.
- Eu a trarei, se juras salvá-la - exclamou Omifer, de olhos brilhantes.
- Juro-te guardá-la e tratá-la como se fosse tu mesmo - respondi com o coração palpitante de alegria.
Ele saiu e procurei minha mãe para avisá-la da chegada dos camelos e pedir o seu concurso no preparo de quanto se fazia preciso para receber Smaragda.
À notícia de tão inesperada fortuna, Kermosa não pode conter-se.
- Finalmente, Pinehas - exclamou - tua ciência nos traz alguma coisa e me compensa um tanto os cuidados e gastos enormes que tive com a tua educação.
Aos terminarmos os preparativos, chegou o cortejo. Smaragda, resguardada e envolvida numa colcha de seda, vinha deitada em liteira conduzida por escravos. Omifer
a acompanhava, trazendo consigo uma velha criada.
Pusemos a enferma em seu leito e despedi Omifer, dizendo-lhe que poderia vir no dia seguinte, porque, no momento, precisava ficar só com a doente, para pronunciar,
sob os raios da lua, as conjurações necessárias.
Tão logo ele saiu, retirei o véu que ainda a cobria e inclinei-me avidamente para o belo rosto impassível. Ela parecia desmaiada, da brancura do lençol que a envolvia;
grande mancha violácea no pescoço e no braço, advertiram-me logo da gravidade do mal.
Esqueci tudo por um instante e deixei-me ficar embevecido na contemplação da bela criatura, estendida, qual marmórea estátua, emoldurada pela massa dos cabelos negros
de azeviche.
- Até que enfim - monologuei apaixonadamente - eis-te em minha casa e nenhuma força te arrancará de minhas mãos; seguir-me-ás longe do Egito e tu me amarás.
Aquelas manchas negras chamaram-me à realidade; urgia intervir sem demora, se não quisesse deixar perecer o fruto da minha vitória.
Com todo o poder da vontade concentrado, fixei os olhos naquele rosto que seria capaz de contemplar por toda uma eternidade e, elevando as mãos sobre o corpo da
enferma, apliquei-lhe passes longitudinais da cabeça aos pés.
Vivo calor espalhou-se-me sobre todo o corpo, acompanhado de abundante suor; levíssimo crepitar, como de brasas, me entorpeceu o cérebro sem lhe tirar a lucidez.
Todas as minhas faculdades mentais estavam em plena atividade, apenas mais vivazes e mais agudas. Na semi-obscuridade do aposento, percebi que, a cada passe, jatos
de fumaça azulada e brilhante me saíam da ponta dos dedos e essa cascata prateada caía sobre a doente, e parecia absorvê-la, exalando, em troca, espesso vapor enegrecido,
que, pouco a pouco se dissipava, deixando o corpo da enferma como envolvido em nuvem azul prateada. Seu aspecto também experimentava várias mudanças. À palidez cadavérica
sucedeu rubor ardente e febril; à imobilidade, contrações bruscas; depois, tudo se resolveu em profundo e tranquilo sono. Só então percebi que os eflúvios argênteos
que me saiam dos dedos tornavam-se agora em fumo espesso, avermelhado e causticante; compreendi já não eram fluidos benéficos, dados pelos invisíveis, que eu expelia
e, sim, a própria força vital, e por isso eu devia repousar.
Puxei uma cadeira e nela tomei assento. Contemplava Smaragda com sentimentos bem diversos. Sua respiração suave e calma, a mão molhada de um suor quente, a indicar
que o maior perigo havia passado. Não desejava, porém, conservá-la para Omifer ou Rhadamés; os punhos se me contraíam de raiva, à lembrança deste último; a sorte
lhe havia conferido com essa mulher uma fortuna, e ele a expulsara do próprio lar, expondo-a à caridade pública. A mim, ela preferira esse egoísta, ingrato, insensível
ao amor ou ao ciúme e que se desfizera dela, aborrecido e horrorizado. Nem por um momento a teria cuidado, sua mão não lhe servira sequer uma gota d'água e teria
morrido abandonada se Omifer e eu não a houvéssemos socorrido. Sem dúvida, ela merecia esse ultraje e eu antegozava, com alegria, o momento em que recobrasse os
sentidos, para lhe revelar tudo e vê-la corar de indignação, a boca frequentemente tão dura e desdenhosa contraída pelo orgulho ofendido. Entretanto, invejava a
indiferença desse Rhadamés que, tranquilamente, sem remorso, afastara da lembrança aquela mulher de beleza fascinante enquanto eu, louco, me tinha apegado a ela
por um amor fatal, que nenhuma afronta ou desprezo podia destruir.
Desprendi-me dessas divagações com um suspiro. Era tempo de preparar um remédio.
Servi-me de um grande vaso de alabastro cheio d'água e impus-lhe as mãos pronunciando uma evocação; o mesmo fluído azulado desprendeu-se-me dos dedos e encheu o
vaso de uma flama coleante, e ministrei um copo a Smaragda que o sorveu avidamente, adormecendo logo após.
Chamei o serviçal e ordenei observasse os menores movimentos da enferma, subindo ao terraço, extremamente fatigado. Lá me deitei numa esteira forrada de tapetes
e adormeci profundamente.
Na manhã seguinte veio Omifer e permiti que visse Smaragda ainda adormecida. Constatando o sono tranquilo e o leve rosado das faces, ele ergueu as mãos ao céu em
muda prece; depois, expliquei-lhe que a enferma estava extremamente fraca e precisava de longo e absoluto repouso, dizendo-lhe que evitasse vê-la ou falar-lhe. Nada
obstou confiando cegamente em mim, e apenas pediu lhe entregasse, de sua parte, um rico bouquet de lírios e rosas. Despediu-se.
Coloquei as flores num vaso e, quando a doente despertou, servi-lhe um cordial. Vendo-me inclinado para ela, mostrou-se profundamente contrariada.
- De ti nada quero - disse com acrimônia.
- Deves beber, Smaragda; do contrário não te darei o bouquet que Omifer trouxe.
Estendeu a mão, mas adverti:
- Não te darei antes que bebas.
Depois de o fazer, entreguei-lhe as flores, e ela as beijou.
- Muito obrigado, Smaragda, essas rosas são minhas e não as desprezes por isso; em todo o caso, foi o teu Omifer quem aqui te trouxe para que te curasse.
Entre contrariada e aborrecida guardou as minhas flores e adormeceu novamente.
As semanas seguintes foram para mim calmas e felizes, apesar da terrível epidemia que assolava a cidade e o país; poucas famílias egípcias restavam indenes do flagelo
e o desespero atingia o auge. Minha mãe ganhou muito com esses tempos aflitivos, vendendo remédios por mim preparados. Eu, por minha vez, conservava-me oculto, aguardando
impaciente a ordem de marcha, tendo já tomado todas as providências para transportar o tesouro vivo, sequestrado a Omifer.
Smaragda sobreviveu ao terrível morbo e estaria inteiramente livre da extrema fraqueza que ainda a retinha no leito, se não a entretivesse, de propósito, para guardá-la
em casa. Persuadi-a, assim como a Omifer, que era um resto da doença e que a menor mudança ou emoção podia originar uma recaída.
Não fora reclamada pelo excelente marido Rhadamés, o qual nem se dignara perguntar por ela. Omifer visitava muitas vezes a bem-amada, mas sobrecarregado de afazeres,
não podia demorar-se muito tempo; sua presença tinha de bom a manifestação do profundo reconhecimento à minha pessoa, e isso tornava Smaragda menos rebelde e até
amável, às vezes. Mas mulher é sempre mulher, isto é, curiosa e tagarela. Smaragda entediava-se, queria saber das novidades, dos boatos correntes na cidade e na
Corte e, assim, além de médico, cumpria-me a função de noveleiro.
Durante as longas horas passadas à sua cabeceira, sentia-me mais num paraíso que num inferno; para não exacerbá-la, sopitava meus gestos de amor, impunha serenidade
às palavras e à expressão fisionômica, mas não podia conter-me quando, admiravelmente vestida de branco, ela se acomodava qual gata nos coxins do leito, dizendo
caprichosamente:
- Pinehas, morro de tédio, conta-me alguma coisa.
Ora, eu não queria somente distraí-la mas igualmente educar a mulher que já considerava minha, para companheira de toda vida. Assim, quando, através da janela aberta,
contemplávamos o céu estrelado, falava-lhe desses mundos longínquos e da sua influência sobre os nossos destinos; descrevia-lhe as maravilhas da região onde esperava
viver um dia, com ela; afinal explicava as leis da reencarnação, não como a ensinavam ao povo mas como a compreendiam os sacerdotes.
Ela ouvia-me, de olhos brilhantes, cheios de curiosidade; mas, apesar do ardente desejo de prendê-la a mim, não o conseguia e, muitas vezes, me veio ao pensamento
que não era a primeira vez que nos encontrávamos e que um misterioso passado nos separava.
Nessas longas horas de confidências, saturava-me cada vez mais do ebriante veneno, esquecendo Moisés e a peste, que, além da minha casa, feria os homens e enchia
o ar de gemidos e lamentações. Não via outra coisa além de Smaragda, junto de quem podia chegar a todo momento para aplicar-lhe passes magnéticos, que lhe proporcionavam
extraordinários benefícios.
Sobreveio um acidente mais grave, quando fui chamado por Necho para junto de Seti, filho de Faraó, igualmente empestado. Curei-o e recebi real recompensa. Tratei
ainda, com sucesso, de alguns parentes do rei, porque queria ser rico, a fim de cercar Smaragda de todo o luxo a que estava habituada.
A cada momento esperávamos a ordem de marcha, porém Mernephtah permaneceu firme. Lutando heroicamente com a epidemia dentro do próprio palácio, ele soube ainda assim,
acalmar e persuadir o povo. Os egípcios tudo suportavam pacientes e os hebreus não recebiam a autorização para sair.
A princípio, Moisés, exasperado com essa resistência, tornara-se sombrio e parecia planejar alguma heróica decisão.
Confessou-me Enoch que ainda havia o pavor de um terrível furacão, cuja aproximação o profeta previa; que não obstante, se o povo não se intimidasse com esse novo
castigo divino, preparava-se algo de extraordinário, cujos detalhes só me forneceria nos últimos momentos.
Precisei ir a casa de Enoch para tratar de negócios; o calor era insuportável, o solo e o calçamento de peara pareciam irradiar fogo; lá cheguei extenuado e, mal
me reconfortara, meu pai me comunicou que horrível temporal varria o deserto e nuvens negras e ameaçadoras se acumulavam no horizonte.
Resolvi regressar a toda pressa, sabendo que Smaragda estava só e morreria de susto, sê se desencadeasse o ciclone previsto por Moises. Montei a cavalo, mas, apenas
havia atingido as portas da cidade, o vento começou a zunir, e a areia se levantava em redemoinhos cegando-me, assim como a montaria, que recusava prosseguir. O
vento sibilava vergando e quebrando palmeiras; as águas do Nilo cresciam, elevando-se em vagas pardacentas, açoitando os navios como cascas de noz e submergindo
as pequenas embarcações.
Fui forçado a abandonar o animal, que pinoteava muito louco, ameaçando desmontar-me; procurei refúgio sob as colunatas do Templo. O céu, de coloração esverdeada,
tornou-se rapidamente negro; relâmpagos e coriscos riscavam o firmamento em todas as direções, seguidos de estrondos que pareciam abalar a terra.
A lembrança de Smaragda arrancou-me imediatamente do abrigo temporário; minha mãe era assaz medrosa para lhe fazer companhia e muito menos poderia confiar nos escravos.
Recomendando-me aos deuses, retomei o caminho de casa, tropeçando na escuridão quase completa, cego pela areia, várias vezes derrubado pelo vento, meio surdo, e
finalmente cheguei.
Encontrei minha mãe deitada no chão, de cabeça coberta para não ver os relâmpagos, gritando aterrorizada em uma peça que servia de sala de visitas; ao redor, escravos
e criados jaziam acocorados, mudos, imbecilizados. Sem me deter, corri para os meus cômodos.
Anoitecera completamente, mas, ao lampejar dum relâmpago, vi Smaragda ajoelhada junto do leito, a cabeça enfurnada nos travesseiros, os cabelos desgrenhados.
Inclinei-me chamando-a pelo nome. Levantou-se de um salto, o rosto contraído pelo terror, lábios semi-abertos, olhar fixo; depois atirou-se-me nos braços e escondeu
o rosto em meu peito; todo o corpo lhe tremia, o coração batia como se fora romper-se e seus pequeninos dedos, gelados, apertavam-me convulsivamente.
Fiquei assustado, pois tal excitação nervosa podia ser prejudicial ao seu organismo delicado, ainda combalido pela recente enfermidade.
Enlacei-a pela cintura e fi-la sentar-se a meu lado, no leito, tentando acalmá-la com sugestões e conselhos. Nada respondeu. Calei-me, premendo os lábios na sua
opulenta e perfumada cabeleira. O que experimentava, então, era indescritível; a paixão me alucinava, não mais percebia raios e coriscos, o ruído da grossa saraivada
e o zunir do furacão. No caos dos elementos revoltos, apenas sonhava uma longa existência na Terra da Promissão.
- Não te deixarei com Omifer - murmurei intimamente; hás de esquecê-lo e acabarás amando-me, vivendo contente num castelo que te ofertarei. A ter de te restituir
a ele, preferia perecer contigo neste cataclisma, ou contemplar-te morta.
Não sabia que aquela pálida e débil criatura, que, abatida entre meus braços, estremecia a cada ribombo, me preparava no futuro um inferno de ciúme e ódio, e que
a sorte implacável não me deixaria ao pobre coração mais que a contemplação do seu corpo inerte.
Passaram-se horas e a tempestade aumentava em vez de diminuir, e quando a ampulheta anunciava que o dia há muito despontara, Smaragda adormeceu, vencida pelo cansaço.
Deitei-a no leito, cobri-a, e, inclinando-me para ela, sonhava com o futuro e gozava as primícias do paraíso.
Ao reabrir os grandes olhos negros, a violência da tempestade havia amainado um pouco, os trovões eram mais espaçados, mas ainda assim ela me apertava nervosamente
a mão. Tinha ímpetos de estreitá-la ao peito, para lhe demonstrar que não estava só e que era amada e protegida. Continha-me, mas não podia calar inteiramente, naquele
instante em que o coração transbordava.
- Desperta! - disse-lhe inclinando-me; acalma esses temores; lembra-te dos mistérios de que te falei, desse Deus único e poderoso que dirige o Universo; admira,
nessa desordem da natureza, a emanação de uma potência perante a qual o poder de Faraó não representa mais que a haste frágil de uma planta.
Um relâmpago naquele momento iluminou a casa inteira; ela tremeu e fechou os olhos.
- Smaragda, não tremas; essa luz brilhante que atravessa o céu com a velocidade do pensamento, é fogo da mesma essência do nosso espírito, e quando deixarmos o corpo,
assim atravessaremos o espaço.
Falei muito tempo, como nunca havia falado e, se não eram palavras de amor, era o amor que as ditava e o desejo de acalmá-la era tão. grande, que, finalmente, se
tranquilizou. Infantil sorriso lhe entreabriu os róseos lábios.
A natureza por fim serenou, mas a tempestade parecia ter-se concentrado na fronte de Moisés; seus olhos dardejavam coriscos e uma expressão de cruel resolução lhe
contraía a boca; eu sabia que se preparavam graves acontecimentos. Enoch não me revelara qualquer pormenor, apenas recomendara que estivesse pronto a partir, porque
dessa vez era certo o consentimento de Mernephtah para libertação do povo de Deus. Essa afirmativa me bastava, e eu suspirava pelo momento em que, fora do Egito,
teria assegurada a posse de Smaragda.
Passaram-se dias. Certa manhã, ao regressar da cidade, aonde fora realizar algumas compras, ao levantar a cortina do aposento presenciei uma cena que me chumbou
ao solo, sufocado pela raiva e pelo ciúme. De mãos crispadas, contemplei Omifer ajoelhado junto ao leito, cingindo Smaragda pela cintura. Ela, colada em seu pescoço,
com os braços cobertos de pulseiras; corada e radiante, ouvia em enlevo o que o eleito lhe segredava.
Não viram minha chegada.
- Ingrata! - pensei estremecendo. - Amas esse belo rosto insignificante e não concedes um olhar àquele que te assistiu, curou e guardou noite e dia!... Pois expande
teu amor pela última vez; entoa o cântico de despedida à sorridente Tanis, às cem portas de Thebas, porque jamais as contemplarás e então, só eu te restarei.
Compreendi, apesar dos sentimentos tumultuosos que me agitavam, que, se Omifer desconfiasse da traição, todas as minhas esperanças falhariam. Assumi atitude calma,
e fingindo entrar ruidosamente, exclamei:
- Bom dia, Omifer, como vês nossa doente está quase restabelecida e tão bela como antes; mais alguns dias de paciência e poderás reconduzi-la, se Rhadamés não reivindicar
seus direitos. E, a propósito, dize-me: que deverei responder a esse nobre egípcio, que hoje aqui veio para saber quando a esposa estará em condições dê regressar
ao seu domicílio?
Smaragda empalideceu:
- Jamais! - exclamou energicamente - Voltarei a conviver com Rhadamés. Meu pai serviu fielmente ao Faraó e os Templos de Thebas o inscreveram entre os seus benfeitores;
lançar-me-ei aos pés do rei e dos grandes sacerdotes, para que me libertem desse homem.
- Fica calma, querida - Omifer falou - Rhadamés perdeu todo o direito moral de reter-te, ao negar-te asilo em tua própria casa, quando tu estavas enferma e agonizante:
quebrou, assim, os laços de amor que te punham sob sua proteção.
Ainda se falou sobre o assunto, até que Omifer despediu-se prometendo voltar breve. Apertando-me fortemente a mão, disse:
- Agradeço-te, Pinehas. Fico-te obrigado pelo resto da vida. Dentro de alguns dias te libertarei da doente e os dez camelos aqui chegarão ainda hoje. Permito-me
acrescentar um belo cavalo sírio, que me trouxeram há dias.
Agradeci. E como me encontrasse muito agastado para conversar com Smaragda, fui para o terraço, onde, recostado, a observava cautelosamente.
Absorvida pelas recordações da entrevista com Omifer, ela nem sequer notou minha saída; apoiada nos cotovelos, balançava a bela cabeça, sorrindo alegremente, ao
imaginar, sem dúvida, o maravilhoso porvir que a esperava.
- Espera, pois - disse comigo, devorando-a com os olhos - poderás sonhar sob a tenda que te armarei no deserto, mas o sonho é fantasia e a realidade serei eu.
Entrou um escravo naquele momento, que, inclinando-se com os braços cruzados, anunciou que o nobre Rhadamés, condutor do carro de Faraó, acabava de chegar e desejava
ver a esposa.
Smaragda deu um grito abafado.
- Não! não! Dize-lhe que não quero vê-lo.
Não me movi, curioso pelo que pudesse suceder.
Falava ainda a jovem, quando a cortina descerrou-sé e apareceu Rhadamés. Parou um instante, espantado e fascinado pela beleza de Smaragda, a quem não via há muitas
semanas e que supunha muito diferente; sua atitude, reservada e altaneira, transformou-se num sorriso de apaixonada ternura.
- Querida esposa! exclamou, desfazendo-se do capacete e da capa e estendendo-lhe os braços. - Eis-me aqui. Graças aos deuses, que te conservaram para o teu fiel
Rhadamés que passou dias e noites em desespero inominável.
Ela levantara-se e, trêmula, apoiava-se à mesa perto do leito. Pálida, colérica, olhar a transbordar desprezo, mediu desdenhosamente ô marido, na atitude de quem
desejaria fulminá-lo.
Rhadamés deixou pender os braços até então erguidos.
- Meu fiel Rhadamés, falta-te memória - disse-lhe por fim com mordaz ironia. - Tu te esqueces de que, quando enferma da peste, me expulsaste de casa e, fugindo horrorizado,
temeroso de que o meu hálito empesteasse o ar que respiravas, recusaste-me um aposento, esquecendo totalmente que é na minha casa e nas minhas propriedades que mandas.
Acabou-se a minha doença e com ela o teu reinado. Quando voltar ao meu palácio, não mais consentirei que outro qualquer lá administre. Por enquanto, não posso expulsar-te;
mas todos os teus - e aqui a voz tornou-se imperiosa - devem abandonar minha casa hoje mesmo. Compreendeste-me? Apenas não te reterei, se desejares acompanhar tua
mãe e irmãs.
O condutor do carro estava lívido de raiva.
- Tu te esqueces com quem falas - retrucou batendo o pé. Sou teu marido e senhor: o que possuis me pertence. Nenhum dos meus abandonará o palácio, ouviste? Veremos
quem vence, e por agora vais acompanhar-me. Acreditas que te deixarei, assim tão bela, a Omifer, ou mesmo ao judeu Pinehas?
Rapidamente estendeu o braço para agarrá-la, mas, de um salto, interpus-me entre eles, e empurrei o condutor, amparando Smaragda, que ainda fraca e nervosa, desmaiou
soltando um grito surdo.
Deitei-a no leito, palpei-lhe as mãos geladas e o coração que apenas palpitava.
- Não importam teus tardios amores e cuidados - disse, voltando-me para Rhadamés. - Como médico e dono desta casa, ordeno que saias; tua esposa teve uma recaída
e tu demonstras temer à moléstia.
Era meu único intento arredar o importuno, que, por sua brutalidade, me ajudava a reter Smaragda até o momento decisivo.
Não me enganei quanto ao efeito das minhas palavras: o "valente guerreiro" saiu correndo, sem mesmo lançar um olhar à jovem esposa desmaiada.
Notando que ele esquecera o próprio capacete é capote ri-me com prazer. Mandei logo as peças por um escravo, que foram recebidas quando ele tomava o carro.
Ainda procurava reanimar Smaragda, quando chegou Enoch, dizendo ter coisas graves e urgentes a confiar-me.
Apenas a jovem senhora despertou, ressentindo-se de extrema fraqueza, fi-la adormecer por meio de passes, e colocando junto dela a fiel criada, fui com Enoch à casa
contígua, onde ele morava.
- Pinehas - disse, quando ficamos sós - devo comunicar-te grandes acontecimentos em preparo; Moisés recebeu de Jeová a ordem de matar todos os primogênitos egípcios,
desde o de Faraó ao do mais modesto operário. Deus protegerá os de nossos irmãos, que executarão esse justo castigo à teimosia desse povo rebelde. Para facilitar
os assassínios no palácio real, o profeta corrompeu a peso de ouro dois oficiais da guarda: um é Rhadamés, o condutor do carro de Faraó, outro é Setnecht, ajudante
de ordens de Seti, o herdeiro do trono. Na noite do quinto para o sexto dia, a partir de hoje, os dois estarão de serviço, e nessa ocasião, portanto, tudo deverá
estar pronto para a partida. Logo mais à noite, reunir-se-á grande assembléia em casa de Abrahão, de todos os anciãos das tribos, chefes e auxiliares do profeta.
Não deixes de comparecer. Moisés dará as últimas instruções e transmitirá as ordens de Jeová.
Ao regressar a casa, absorvia-me nos próprios pensamentos pouco agradáveis; se eu não amasse tão loucamente Smaragda, já me teria afastado de todo esse negócio,
que dia a dia se tornava mais perigoso e escabroso. Se falhasse o massacre, como sucedera às calamidades precedentes e se descobrissem que eu, egípcio, estava comprometido
na conjura dos hebreus, podia ficar certo de apodrecer nas minas ou nas pedreiras da Etiópia. Mas o fato é que já estava muito comprometido para recuar, e um olhar
deitado a Smaragda mudou todo o curso dos meus pensamentos.
Fui à noite à casa do velho Abrahão. Já conhecia esse judeu rico, da residência de Enoch, onde nos havíamos encontrado; era um homem cruel e cúpido, imbuído de ódio
fanático contra os egípcios, possuidor de imensos rebanhos dirigia um exército de sacerdotes e sua influência sobre os anciãos era considerável.
Ao chegar, já estavam todos a postos e logo apareceu Moisés seguido de Aarão e Josué; tinha o rosto austero, pálido, como assombrado por tempestuosa nuvem. Braços
cruzados sobre o peito, falou:
- Anciãos e chefes do povo de Israel! A teimosia dos egípcios e do seu rei, sua rebeldia aos desígnios de Jeová tiraram-lhe a paciência. É terrível a resolução que
vos transmite por meu intermédio. Na noite do quinto para o sexto dia, a contar de hoje, todos os egípcios primogênitos deverão morrer! Pais de família, escolhei
entre os vossos filhos os mais dignos de serem os mandatários do Eterno. O anjo do Senhor lhes guiará o braço e os cobrirá com suas asas. Quando houverem ferido
o inimigo, recolherão na tigela um pouco do sangue e com este farão, na porta da própria casa, ao deixá-la, uma cruz que ateste o cumprimento da missão e o prêmio
da liberdade.
Todas as famílias devem estar prontas a partir, preparando a massa do pão sem, fermento; o chefe da casa derramará, então, nessa massa, o sangue trazido na tigela;
cada pessoa da família deverá comer um pedaço desse pão; o resto será guardado para o futuro e empregado em parcelas, uma vez por ano, em memória de vossa miraculosa
libertação do cativeiro egípcio. Todos os pais deverão transmitir aos primogênitos de sua família, de geração em geração, este preceito, enquanto existir o povo
hebreu, porque são estas as palavras de Jeová: "Quero mostrar a todos que amo esse povo mais que a qualquer outro, e que me vingo de cada gota de sangue, derramada
pelo Faraó que ordenou o massacre dos vossos filhos varões; salvei um dentre eles, para que viesse diante de vós como enviado meu e vos repete que, tão logo meu
povo beba o sangue dos seus inimigos, prosperará, reinará sobre eles, nutrir-se-á do seu suor, como os egípcios se saciam do suor do meu povo eleito".
Moisés, perfilando-se e fazendo ecoar sua voz metálica acrescentou:
- Será, porém três vezes maldito o que trair o juramento, de segredo inviolável sobre este mistério, estabelecido pelo próprio Eterno; esse tal perecerá de morte
horrível e sua descendência será destruída por calamidades piores do que as que feriram o país indigno, porque Jeová é infinito na sua misericórdia com os fiéis,
quanto implacável na sua cólera contra os desobedientes, e diz a todos vós: "olho por olho e dente por lente!"
Fixou o olhar inflamado em toda a assembléia, aturdida e trêmula e calou-se; depois, todos o cercaram beijando-lhe os pés, as mãos, as vestes, e com palavras entrecortadas
proclamavam o poder de Jeová e seus agradecimentos ao grande profeta escolhido para libertá-los.
A inveja, pela primeira vez assaltou-me o coração. Por que - pensei - não tive a idéia desse homem hábil, fazendo-me rei de Israel? Como ele, também eu era iniciado
nas ciências secretas e não me teria faltado energia; mas, quem sabe? Talvez nesse longínquo país, para onde Moisés queria conduzir os hebreus, ainda tivesse ocasião
de suplantá-lo e ocupar o lugar que ele preparava para si próprio. Batia com violência meu coração e a ambição desdobrava a meus olhos um futuro de riquezas e poderio;
a exemplo de Moisés, também podia utilizar o nome desse Deus cruel, que ordenava o roubo e o assassínio, e cuja divisa era: "olho por olho e dente por dente". Fundamentais
porém tremendas palavras do Antigo Testamento, que se incrustaram na alma dos povos, fazendo correr rios de sangue, e que, por sua tenacidade, dominaram e fizeram
muitas vezes esquecer as palavras de um outro profeta, cheio de mansidão divina, que pregou o perdão das ofensas e o amor do próximo.
Quando voltei à casa, informei minha mãe e ela ajudou-me a terminar os últimos aprestos da partida; empacotamos os meus papiros e os remédios mais necessários; os
cavalos, mulas e camelos, foram trazidos do pasto e reunidos no pequeno pátio interno, prontos para serem carregados.
Transportaria Smaragda adormecida e narcotizada.
Para acomodá-la no dorso de um camelo, preparei comprida cesta de vime, forrada de seda e cobertura comi orifícios que permitissem a renovação do ar. Também por
sua causa, adquiri rica tenda estofada de seda fenícia, raiada de branco e azul, com suportes e vigas douradas, bem como almofadas, mesas, cadeiras de marfim e ébano,
tudo para que minha amada, acostumada a um luxo principesco, não se mofinasse em sua vivenda errátil.
Smaragda mal suspeitava de tais preparativos. Depois da cena com o marido, mostrava-se abatida e nervosa. Omifer visitou-a duas vezes, mas eu lhe proibi que voltasse
antes de alguns dias, alegando que sua presença exacerbava a enferma. Ele pretextou viagem imprescindível, para não inquietar a jovem senhora com sua ausência.
Assim tranquilizado, pude ocupar-me ativamente dos muitos negócios que me foram confiados por ordem de Moisés, porquanto, para cada quarteirão da cidade, fora designado
um fiscal, encarregado de visitar as casas israelitas, dirigir os preparativos e velar para que tudo estivesse pronto, nada deixando para trás.
A noite decisiva chegou enfim. Entreguei à minha mãe o narcótico para Smaragda, pedindo-lhe que a vestisse para a viagem, tendo tudo pronto para quando eu regressasse.
Depois dessas providências, saí para a última inspeção.
Era estranho o aspecto daquelas moradias, tão tranquilas externamente, mas agitadíssimas desde que se lhes transpunham os umbrais. Em todos os pátios os animais
de carga estavam pesadamente carregados. Os cômodos vazios, mas toda a família vestida de roupas novas; os homens, de bordão em punho, agrupavam-se ao redor da mesa,
onde havia um cordeiro assado, frutas e vinho, ou cerveja, aguardando os convivas. Em parte alguma faltava a gamela de madeira contendo a massa crua.
Todos estavam silenciosos e a inquietação expectante podia notar-se nas fisionomias; os velhos, sobretudo, pareciam desencorajados e, entre as mulheres com os filhos,
assentadas nos embrulhos, percebi mais de uma enxugando furtivas lágrimas.
Constatando que tudo estava em ordem, dirigi-me à casa de Abrahão, onde Moisés deveria passar a noite memorável, e onde também Enoch marcara entrevista comigo. A
entrada estava cuidadosamente guardada, e só depois da senha convencionada, pude franqueá-la. Atravessei dois enormes pátios, repletos de mulas e camelos carregados.
A casa parecia mergulhada em profundo silêncio, mas Enoch, que me esperava à porta, levou-me para um salão iluminado, porém oculto a vistas exteriores e no centro
do qual havia uma mesa repleta de iguarias. Também ali a massa crua. A um canto, comprimia-se uma centena de homens, mulheres e crianças de todas as idades e empregados
de Abrahão. Do outro lado, a família e alguns parentes próximos, e bem ao fundo, solitário, sentado junto de pequena mesa, Moisés com a cabeça apoiada na mão. Profundas
rugas lhe vincavam a fronte; a boca contraída, lampejos brilhantes no olhar. Pensaria no massacre, ou caso não fosse bem sucedido, na necessidade de renunciar ao
trono de Israel?
Aarão e Josué, os dois fiéis companheiros postavam-se, imóveis, atrás do chefe irredutível.
Calado, sentei-me junto a Enoch e analisei a numerosa assembléia. Em algumas fisionomias não pude descobrir expressão de alegria e confiança na esperada liberdade;
as cabeças permaneciam baixas, e dos velhos, apoiados em bordões de viagem, escapavam longos suspiros, como a denunciar que lhes era penoso deixar os sítios onde
viveram e encaneceram, para enfrentar azares duma viagem cujo objetivo ignoravam quando o organismo senilizado só requeria repouso.
Sem o querer, veio-me à idéia que, se um homem enérgico soubesse arengar, demonstrando àquela gente os riscos que corriam abandonando o Egito para enfrentar um futuro
desconhecido, a multidão vacilante recuaria e poucos acompanhariam Moisés.
Também notei estranha agitação entre os componentes da família de Abrahão, cuja esposa não cessava de chorar e mesmo ele parecia desesperado.
- Que significa a tristeza dos nossos hospedeiros? - perguntei baixinho a Enoch.
- A filha desapareceu, acreditando-se apaixonada por jovem egípcio; Abrahão receia que ela tenha traído o nosso segredo para salvá-lo.
Passaram-se algumas horas pesadas como chumbo.
Moisés, incapaz de dominar o desassossego íntimo, havia-se encaminhado ao terraço, sondando o céu estrelado, por duas vezes.
A porta da sala abriu-se de repente com estrépito e uma Jovem pálida, descabelada, com as vestes em desalinho, apareceu comprimindo ao peito um punhal ensanguentado
e mantendo na outra mão um vaso, no fundo do qual se via um líquido negro. Vendo-a, a esposa de Abrahão deu um grito, estendendo-lhe os braços; mas a jovem não pareceu
notá-la nem ouvi-la; seus olhos cintilavam e no rosto transparecia um ódio feroz. Avançando para Moisés, apresentou-lhe o vaso:
- Está morto! Eu mesma o matei! - disse com voz entrecortada.
O profeta tomou-lhe das mãos a arma e o vaso, mas não teve tempo de falar, porque a porta já se abria novamente para deixar passar um homem vestido de longo manto
branco, cabeça coberta por véu negro, e que avançou célere.
Vi que era Eliezer, rubicundo e triunfante, tendo na mão direita pesado vaso de ouro cravejado de gemas.
- Foi executada a ordem de Jeová; o anjo exterminador guiou meu braço. O filho do Faraó está morto! - exclamou exaltado.
O semblante de Moisés foi iluminado por um sorriso cruel de satisfação e vitória; por um momento, ele ergueu os olhos e os braços ao céu; depois, tomou o vaso e,
derramando na massa preparada o sangue do herdeiro do Alto e Baixo Egito, amassou-a e disse com voz soturna:
"Assim deveis fazer sempre e por toda parte, comemorando a hora solene em que o Anjo do Senhor vos retirou do pescoço o jugo da escravidão; bebendo o sangue dos
inimigos, triunfareis."
Presos de supersticiosa emoção, todos se prostraram e Moisés fundou nessa noite memorável o grande mistério do repasto cruento, que, em parte, se perpetuou até nossos
dias entre os descendentes do povo de Israel.
Os raios do sol nascente iluminavam a residência de Abrahão, quando pancadas violentas se fizeram ouvir na porta principal; eram dois oficiais da guarda de Faraó,
seguidos de um destacamento de soldados que, por toda a parte; procuravam Moisés, intimado a comparecer imediatamente perante Mernephtah.
Recebendo o chamado, irônico sorriso frisou os lábios do Profeta.
Seguiu a escolta, ordenando-nos que o esperássemos.
Seguiram-se horas de penosa expectativa. Finalmente, regressou, rosto incendido e olhos chamejantes, anunciando com voz retumbante qual sino de bronze:
- O grande Faraó Mernephtah autorizou-me a capitanear o povo de Jeová e com ele emigrar, sem perda de um minuto. Antes do pôr-do-sol, devemos ter abandonado Tanis;
ponde-vos, pois, em marcha sem tardança, dirigindo-vos para a cidade de Ramsés, que designei como ponto de reunião de todas as tribos. Mas, antes de nos dispersarmos,
rendamos graças ao Senhor.
Elevando os braços, prostrou-se e cantou:
- Aleluia! Nós te agradecemos, Senhor!
A assembléia em coro o imitou e depois saíram todos, precipitadamente.
Nas ruas que atravessei para chegar à casa, reinava a maior confusão; arautos munidos de longas tubas proclamavam a decisão de Mernephtah; destacamentos policiais
egípcios circulavam por toda parte, a fim de impedir atritos sangrentos entre o povo exasperado e os hebreus, que, em massas compactas, se agrupavam nas praças com
suas bagagens, enquanto os chefes organizavam as colunas para encaminhá-las às portas da cidade.
Inquieta e curiosa, minha mãe recebeu-me anunciando que, conforme lhe recomendara, Smaragda lá estava adormecida no meu aposento.
Avisei-a que, dentro de três horas, no máximo, deveríamos abandonar a casa e, com o coração palpitante de alegria e triunfo, dirigi-me ao pavilhão em que habitava.
Alcançava, enfim, a meta: partir com a mulher amada, sequestrando-a ao marido miserável e ao amante devotado. Dali por diante, só a mim pertenceria.
Abeirei-me do leito onde estava Smaragda, mergulhada em sono tão profundo que parecia morta; Kermosa vestiu-a de branco e utilizou todas as jóias que Omifer havia
trazido para distraí-la. Penso que jamais me apareceu tão bela.
Reverente, beijei-lhe as mãos, os lábios e a perfumada cabeleira. Desta vez, não podia repelir-me com frases desprezíveis; depois, cauteloso, acomodei-a na cesta,
cobrindo-a ligeiramente e fechei o escrínio precioso dos meus tesouros.
Disfarcei-me com barba para não ser reconhecido e, duas horas mais tarde, cavalgava o camelo que transportava Smaragda. Assim, abandonei a casa que me vira nascer.
Reuniu-se minha pequena caravana a uma coluna de hebreus que, passo a passo, se dirigia para uma das portas de saída.
Como somos felizes por desconhecer o futuro!
Pudesse eu prever o que me esperava, a mim que, por uma mulher, traía e abandonava a pátria e a religião, talvez tivesse recuado!
Não relato a saída da minha cidade, bem como a de Ramses por entre a multidão curiosa e rancorosa dos egípcios, que contorciam as mãos exasperados, ou nos mostravam
os punhos cerrados, cobrindo-nos de maldições.
Atingimos enfim, o deserto e continuamos a caminhar folgados. A estrada, contudo, era má nessas planícies áridas, sob os raios escaldantes do sol e num areai abrasador.
As mulheres e crianças sofriam mais que todos. Havia já quem lastimasse ter deixado o Egito, as cabanas ensombradas de palmeiras, a água clara das fontes e os banhos
refrescantes. As murmurações surgiam aqui e acolá, reclamando repouso.
Moisés decidiu fazer alto e conceder um dia de descanso aos homens e animais extenuados.
Resolvi aproveitar esse alto para despertar Smaragda do longo torpor, explicando que tudo havia terminado e a sua sorte irrevogável consistia em acompanhar-me e
amar-me, porque jamais veria o Egito e os seus.
Assim instalei minha tenda junto da de Kermosa; um dos camelos foi descarregado e mobiliou-se a tenda provisoriamente atapetada. Depois coloquei Smaragda, ainda
desacordada, sobre almofadas cobertas com pele de tigre. Ao lado, sobre a mesinha, uma cesta de frutas e um copo de vinho; depois friccionei-lhe a fronte e os lábios
com uma essência revigorante, deitando num fogareiro em brasa algumas ervas aromáticas. Recobri de uma colcha a cesta de vime e sentei-me um pouco mais alto para
observar o despertar da jovem senhora.
Agitação violenta oprimia-me o coração. Como comportar-me diante daquela criatura por quem tudo havia sacrificado, no momento decisivo?
Era impelido pelo meu caráter a ser duro e implacável, para sufocar qualquer veleidade de revolta; a razão, porém, aconselhava a ser amável e bondoso, para conquistá-la.
Passei algumas horas nessa luta íntima; os ruídos do acampamento que envolviam minha tenda extinguiam-se pouco a pouco; tudo, agora, repousava em profundo silêncio.
Uma lamparina de alabastro ardia a um canto, projetando luz fraca e vacilante sobre o leito de almofadas, fantasticamente contrastando com o vestido branco da jovem
Smaragda e as jóias que lhe ornavam pescoço e braços.
A qualquer momento, poderia despertar porque o ar fresco da noite e as emanações perfumadas das plantações queimadas dissipavam o efeito do narcótico.
Meu coração batia descontroladamente. Qual não seria o seu espanto ao encontrar-se num acampamento? Que emoção a empolgaria vendo-se entregue à minha discrição,
forçada a esquecer Omifer, para amar-me? Esse pensamento fez-me recordar o jovem egípcio; sem dúvida ele procurava a eleita, e se desconfiasse que fora raptada,
não haveria de seguir-nos? Convulsivamente tateei o cabo do punhal que levava na cintura... Se tivesse tal audácia, pagaria com a vida!
Um ligeiro tilintar dos anéis de ouro, do colar e pulseiras de Smaragda chamou-me à realidade.
Rapidamente afastei-me para o escuro, a fim de não ser visto desde logo e observei os movimentos da jovem; imediatamente percebi a sombra que se projetava na parede
da tenda; a seguir, vi-a empalidecer com os grandes olhos negros, assustadiços, à luz da lâmpada; finalmente, levantou-se e a passos vacilantes, dirigiu-se para
a porta de saída.
- Vai, vai - pensei - não irás longe.
Ao erguer a cortina que servia de porta, Smaragda deteve-se estupefata diante do inesperado panorama: tão longe quanto a vista podia alcançar, espalhavam-se milhares
de tendas entre as quais ardiam fogueiras, havendo uma em frente à minha, que a iluminou com um tom avermelhado.
A fisionomia pálida e orgulhosa pareceu petrificada de espanto e deixou escapar um grito.
- Que é isto? Onde estou e por que sozinha?
Não me pude conter. Avancei, colhendo-a pela cintura, e murmurei, estreitando-a ao peito.
- Smaragda, não estás só e abandonada; aqui estou para adorar-te. O grande amor que te voto levou-me a raptar-te para não mais te abandonar.
Com um grito de horror repeliu-me:
- Que dizes, insensato? Mentes!
Pálida de cólera, mãos crispadas, olhos transbordantes de orgulho e desprezo, deu um passo para mim:
- Fala! Onde estamos? Fala - insistiu, batendo o pé - que lugar é este? A quem pertence esta tenda?
Logo perdi a embriaguez apaixonada, mas, desta vez, era dono da situação e podia, enfim, fazer-lhe sentir o meu poder absoluto, de modo a convencê-la que não devia
maltratar assim o seu senhor.
Forcei-a a sentar-se na cadeira mais próxima, segurando-a violentamente pelo braço.
- Smaragda, não é mais a ti que cabe julgar e pedir contas da minha conduta - disse, cruzando os braços ao peito ofegante - deves compreender que estás diante do
teu senhor, neste acampamento dos hebreus que Mernephtah finalmente libertou. Para separar-te de tudo, acompanhei este povo, tornei-me um filho de Israel; aqui todos
me estimam e consideram. Não tentes, pois, fugir, tu, que és uma estrangeira, filha do inimigo, pois caro seria o preço da ousadia. Arrancada para sempre do Egito,
não tens outro asilo além desta tenda e deves, pois, reconhecer tua impotência; domina o teu orgulho e ama-me, como te pedi por todas as formas em Tanis e, neste
caso, ser-te-ei um marido indulgente, atento à tua beleza e condição social. - Mas nessa altura minha voz tomou expressão feroz e implacável: - Não tentes, jamais
desobedecer-me e repelir meus afagos, porque, impiedosamente, te dobrarei à minha vontade e, esquecendo que pertences à ilustre família de Mena, empregarei meios
que normalmente apenas se aplicam aos escravos.
Uma resposta insolente, uma chuva de impropérios, era o que esperava, mas com espanto vi que emudecera. Pálida como um cadáver, com os belos e sombrios olhos arregalados,
continuava imóvel. Comecei a recear que a minha rispidez lhe houvera perturbado a razão. Temia haver sido muito cruel e era preciso amenizar essa impressão.
Tomando-lhe as pequeninas mãos geladas, sentei-me a seu lado e murmurei:
- Depende só de ti, Smaragda, que eu me torne bom e indulgente.
Enlacei-a e beijei-lhe a cabeleira. Não ofereceu a mínima resistência e pareceu mesmo não me ver nem ouvir.
- Desperta, Smaragda! Serei teu escravo se o quiseres; sabes que meu amor não tem limites; reanima-me com um meigo olhar e meu coração será como a cera e nunca mais
pronunciarei palavras tão duras. Mas, por Osiris, que tens? Estás inteiramente gelada! Cerras os olhos! Smaragda, não quero que morras, não podes morrer.
Sacudiu-a com violência, trêmulo e temeroso de perdê-la. Estremeceu e fitou-me com olhar esgazeado; depois, ocultou o rosto com as mãos.
Fez-se um silêncio de morte.
Contemplei-a, coração opresso, inteiramente iluminada pelo fulgor do braseiro exterior.
Então, seria aquela a hora tão sonhada, tão apaixonadamente almejada! Quem o diria! Constatar, ainda uma vez, que a mulher amada não experimentava senão aversão
por mim. Oh! Se Omifer a houvesse conduzido até ali, ela não se lembraria dos parentes nem da pátria, porque o ditoso amante concentraria em si todas as forças fascinadoras.
Sua tenda teria sido o paraíso.
Amargura, raiva e desespero apoderaram-se de mim. Apoiando o cotovelo à mesa, ocultei os olhos com a mão: sim, era dono de seu corpo mas não do coração; horrível
coisa, forçar o amor e ter nos braços uma mulher que, só em pensar no meu domínio, gelava de pavor.
Em minhas dolorosas reflexões fui interrompido pelo contato de pequenina mão que procurava descobrir meus olhos; ergui a cabeça e vi Smaragda ajoelhada diante de
mim; grossas lágrimas rolavam-lhe pela face, e fitava-me súplice.
- Pinehas - disse de mão postas - se o teu amor por mim é tão grande como dizes, sé bom e generoso, deixa-me partir, pois do contrário morrerei no meio deste povo.
De que te pode servir uma mulher que não te ama? És moço, belo, sábio; podes encontrar um coração que te vote o amor que mereces, e eu te seria eternamente reconhecida,
considerando-te o meu melhor amigo. A porta de minha casa te estaria sempre aberta e contigo compartilharia minha ventura, como se fosse uma irmã; mas, tem piedade,
não me deixes morrer no deserto, nesta promiscuidade odiosa; consente que volte ao Egito ou volta comigo, sê meu irmão, o hóspede querido e honrado da casa de Mena.
Oh! Pinehas, deixa que teu coração se sensibilize com as minhas preces, crê que manterei minha promessa; poderei ser tua amiga, tua irmã, mas nunca tua esposa! Não
digas não, Pinehas, sê meu irmão, porque de outra forma, será uma desgraça, eu o pressinto.
Extinguiu-se-lhe a voz num soluço e as lágrimas molhavam-me as mãos, que ela apertava entre as suas.
Não me é possível descrever os sentimentos que me agitaram a alma; aquela voz súplice, o contato da sua cabeleira solta me embriagavam, e o sentido de suas palavras
me gelava; queria dividir comigo, conceder-me a esmola da sua amizade em troca do amor que eu aspirava, mas isso era impossível. Não podia amá-la como irmão.
- Pinehas - murmurou novamente - vê, humilho-me suplicando-te de joelhos que me concedas a liberdade, a vida, porque aqui morrerei e tu que me amas podes desejar
tal coisa?
E Smaragda ergueu para mim o belo rosto banhado em lágrimas.
Coitada! Mal sabia que o encanto fascinador da sua pessoa era o maior inimigo da sua causa; ceder, era perdê-la para sempre.
Meu coração fechou-se. Não! Tudo, mesmo seu ódio, era preferível à tortura de uma renúncia. E quem sabe se a convivência, o tempo, venceriam a causa? Deixei-me empolgar
por uma formal intransigência e, erguendo-a, murmurei:
- Tu te enganas. Não quero tua humilhação nem tua riqueza, mas não te posso libertar; meu amor é mais ardente que a areia do deserto; pensa bem e não desencadeies
a tempestade, pois prefiro morrer a renunciar-te; sê indulgente, enxuga as lágrimas, dize que me perdoas e te esforçarás por amar-me, pois doutra forma usarei da
força, que uma vez já me proporcionou a promessa que quebraste em favor de Rhadamés.
Ouvindo essas palavras imprudentes, trêmula de pavor e cólera, Smaragda recuou.
- Queres aprisionar minha alma pela feitiçaria, fazendo-me confessar o que não sinto? Não faças tal coisa, Pinehas. Ainda tremo à lembrança dessa luta travada pela
razão contra a magia, que, me impunha um falso amor.
Enfim, havia encontrado um meio de dominá-la e ela o temia...
- Smaragda - disse-lhe, - podes perfeitamente habituar-te comigo, bastando que demonstres boa vontade, para que me torne paciente; doutra forma, repito, usarei da
força que receias; se concordas, dá-me espontaneamente a mão e um beijo, como promessa para o futuro.
Seu rosto expressivo refletia os mais desencontrados sentimentos e ela permaneceu imóvel por um instante; os olhos erravam como velados, ao redor dá tenda; depois
se fixaram em mim. Estendeu a mão, aproximou a cabeça baixa e os lábios trêmulos.
Cingi-a, exclamando:
- Enfim conformada.
Nenhuma resistência opôs, mas com destreza incrível, escapou-me dos braços e arrebatou-me do cinto o punhal. Um lampejo me feriu a retina e um frio mortal me invadiu
o peito. Petrificado, fixei Smaragda, cujo semblante encantador me pareceu então demoníaco; os olhos brilhantes exprimiam a ferocidade do tigre e um riso sardônico
lhe contraía a boca.
Turvou-se-me a vista, e perdi os sentidos.
Não sei quanto tempo assim estive, até que reabri os olhos, atordoado e confuso. De nada recordava, a não ser a vaga impressão do sofrimento e uma dor atroz no peito;
sentia extrema fraqueza e todos os membros como moídos por contínuos solavancos. Tentei coordenar as idéias: seria o balanço de um navio? Mas que significava, então,
o ruído ensurdecedor que me cercava, rugir de animais, gritos e imprecações de homens que pareciam altercar? A cabeça entrou a rodar e novamente desmaiei. Um forte
solavanco me fez despertar e percebi, então, que estava no lombo de um camelo, que acabava de ajoelhar-se. Ao redor e a perder de vista, armavam tendas e acendiam
fogueiras; por toda parte, febril atividade. Nesse instante recuperei a memória: era o acampamento dos
hebreus e ali, diante daquela tenda já erguida, estava Enoch dando ordens; alguns passos adiante Kermosa, auxiliada por mulheres, desembrulhava um cesto de provisões;
mas onde estaria Smaragda? O coração martelava-me o peito; teria sido condenada à morte, pelo atentado contra mim? Ou estaria ainda viva e presa alhures?
Alguns homens aproximaram-se de mim nesse momento e transportaram-me para a barraca.
Tomei a mão de Enoch e perguntei com voz sumida enquanto me punham no leito:
- Onde está Smaragda?
- Paciência, pobre filho - respondeu - fortalece-te um pouco e depois tudo te contarei.
Kermosa lavou-me o rosto com água fresca, dando-me em seguida uma bebida reconfortante. Devorado pela sede, bebi com avidez e comi algumas frutas. A inquietação,
entretanto, não me abandonava.
- Responde-me, disse novamente, apoiando o cotovelo no travesseiro - onde está Smaragda? Quero saber toda a verdade.
- Pobre filho - repetiu Enoch, com expressiva tristeza, apertando-me a mão - o que te vou contar não é agradável; mas precisamos aceitar o inevitável. O tempo cura
todas as chagas da alma. Depois do atentado, ela fugiu e errou pelo acampamento; o acaso permitiu que se encontrasse com Moisés, que fazia a ronda e aos pés de quem
se arrojou. O que confidenciaram, ninguém soube; mas o profeta ergueu-a com benevolência, mandou um mensageiro prevenir-me do teu estado e depois levou-a, ele mesmo,
à extremidade do acampamento, onde lhe forneceu montaria e um guia egípcio que nos havia acompanhado.
Foi assim que Smaragda deixou o acampamento e deve estar longe a estas horas. No dia seguinte, perguntando a Moisés por que assim procedera, - respondeu - "porque
Pinehas é um homem útil à nossa causa, dados seus conhecimentos e energia, e não quero que ele tenha a existência ameaçada a todo instante. Por outro lado, uma paixão
cega, como a dele, enerva a alma e o corpo; e o que não mais se vê, se esquece. Eis porque libertei a jovem egípcia, que, além do mais, é casada e ama outro".
- Impossível não lhe dar razão - continuou Enoch - e lhe sou muito grato, porque veio duas vezes visitar-te, meu filho, Impondo as mão sobre o teu ferimento e fornecendo
um bálsamo que operou maravilhosamente, pois já estás quase restabelecido. Sê, pois, razoável; esquece a ingrata, e tudo irá bem.
Fiquei calado. Intimamente abatido, recaí nos travesseiros. Ela estava, então, livre e, sem dúvida, perto de Tanis, onde o amante a receberia de braços abertos;
e Moisés, a quem fielmente servi e a quem só aderi por causa dessa mulher, acabava de trair-me e havia-me separado de Smaragda! Poderia ele apagar a imagem dela
em meu coração?
Como fui insensato, pensei! Desprezei pátria, religião, ocupações gratas, para errar no deserto, tornar-me um instrumento útil nas mãos desse hábil personagem e,
mais ainda, seu prisioneiro, visto que no acampamento ele era o todo-poderoso!
Foi tão forte minha emoção que perdi os sentidos. Ao recobrá-los, um único e tenaz pensamento me dominou o espírito: recobrar as forças o mais depressa possível
para fugir a todo custo e reunir-me à traidora, fazendo-lhe pagar caro as minhas torturas.
Essa decisão pareceu fortalecer-me; pedi meus unguentos e tratei eu mesmo do ferimento. A natureza moça e robusta ajudou-me maravilhosamente, e apesar do cansaço
de uma jornada pelo deserto, refazia-me a olhos vistos.
Quando os balanços e as sacudidelas do camelo me molestavam, ou quando me entristecia ao considerar que me afastava cada vez mais da ingrata, consolava-me em ver
o magnífico cavalo árabe que Omifer me ofertara e que marchava a meu lado. Então, pensava: "Tu, rápido como o vento, me levarás ao Egito e ressarcirei o tempo perdido".
Uma tarde acampamos à margem do Mar Vermelho, o Mar dos Sargaços, como o designávamos. Minha tenda, bem como a de Enoch, ficou muito à retaguarda do acampamento.
Assentado à porta, eu podia contemplar a planície que se estendia atrás de nós. Como sempre, estava absorvido nos meus planos de fuga, quando Enoch interrompeu-me,
dizendo:
- Pinehas, como tens melhor vista, repara e dize-me se não percebes algo de suspeito no horizonte?
Fitei a planície espantado e logo distingui nuvens de poeira por sobre as colinas escuras, donde partiam reflexos brilhantes.
Um grupo se formou junto a nós e todos os olhares se fixaram ansiosos nos pontos negros. Já não havia dúvida que lá se movimentavam colunas de homens, marchando
em boa ordem, carros e cavaleiros, cujas armas brilhavam aos raios do sol poente, um exército, enfim.
- São os egípcios que nos perseguem!
O alarme correu de boca em boca, espalhando o pânico entre a turba medrosa. Num instante expandiam clamores, imprecação e libelos contra o profeta que tirara o povo
do Egito para deixá-lo massacrar-se miseravelmente.
Moisés, pouco depois, deu uma volta pelo acampamento, pronunciou um discurso alentador e mandou reunir em sua barraca todos os chefes e conselheiros. Fui também
convocado mas escusei-me, pretextando grande fraqueza. Que me importava a sorte dos hebreus e de seu chefe, a quem odiava? Meu pensamento único era fugir na primeira
oportunidade, sem mesmo considerar se tal coisa seria possível, uma vez travada a batalha.
Passei a observar, curioso, a aproximação dos egípcios sentado em um montículo de areia; assim, pude notar que ainda se detinham a grande distância, estabelecendo
acampamento, em cujo centro logo se ergueu a imensa tenda de Faraó.
Quando Enoch voltou do conselho, disse-me que Moisés não estava absolutamente preocupado; sob pena de morte, havia ordenado que todos se calassem; na extremidade
oposta do campo, já começaram a desarmar as tendas, silenciosamente e, à hora do refluxo, o povo e os animais deveriam atravessar o mar num lugar que Jeová designara.
Com a chegada da noite tudo foi executado segundo as ordens. Desde que as águas começaram a refluir, o povo descendo ao leito do mar, que ali formava um vau, desfilou
para a outra margem.
Entrei na minha barraca, tomei uma arma, escondi sob o manto um boné egípcio e desfilei para fora; ninguém me percebeu naquele momento de confusão. Atrás do primeiro
montículo de areia, cavalguei a mula que levava pelo cabresto e célere me dirigi para o acampamento egípcio.
O dia raiava quando o alcancei; espessos vapores se elevavam do mar e me ocultavam o acampamento hebreu.
A primeira sentinela que me interpelou, exclamei:
- Leva-me a qualquer chefe com urgência; que fazes aqui? Os hebreus fogem e passarão o mar antes que possais alcançá-los!
O soldado ficou trêmulo e, chamando um companheiro, inundou que me apresentasse a um oficial. Perto encontramos alguns, aos quais participei, igualmente, o que ocorria.
Dispersaram-se com exclamações de raiva e, dentro de poucos minutos, a notícia se espalhava por todo o acampamento, provocando febril atividade. Toques de corneta,
soldados armando-se e entrando em forma, carros que se atrelavam ou cavalos que se encilhavam; oficiais acorrendo a seu posto, um barulho terrível.
Graças a essa confusão entre soldados e animais que empinavam, abri caminho até a tenda de Faraó: lá reinava, igualmente, o maior tumulto. No momento em que me aproximava,
traziam-lhe o carro e quase no mesmo instante apareceu Mernephtah; ostentava a coroa e uma couraça de escamas de peixe; rosto pálido e olhos brilhantes, saltou para
o carro e, tomando as rédeas, brandiu o feixe de armas, exclamando com voz potente, que abafou o ruído do acampamento:
- Avante, egípcios! Tripulai vossos carros, súditos fiéis, cada qual conduza dois homens a pé. Corramos, antes que os miseráveis nos escapem!
Açoitou os animais fogosos que arrancaram com o ligeiro veículo e tudo se deslocou na sua esteira; primeiramente, os carros com um ruído ensurdecedor de metais,
relinchos e trotar de alimárias; depois, o grosso da infantaria a passo acelerado, brandindo as armas com gritos selvagens. Num instante o campo se esvaziou e em
breve tudo desaparecia à distância.
Permaneci sentado à sombra de uma barraca para aguardar o resultado da luta. De uma coisa apenas me admirava: por que Mernephtah partira sem o condutor do seu carro?
Onde estaria Rhadamés? Entretanto, eu tudo devia esquecer para lembrar-me de mim próprio, pois abusara das minhas forças, os ouvidos me zumbiam e a ferida ardia
como fogo.
Do cinto retirei pequeno pote de pomada, apliquei-a na ferida quase cicatrizada e depois retirei-me para uma barraca onde um escravo, mediante propina, me forneceu
água e me instalou num leito de peles.
O triste fim de Faraó e do seu exército será descrito por Necho em sua narrativa. Apenas mencionarei aqui que, quando acordei, após um sono reconfortante, chegava
ao acampamento a notícia do pavoroso desastre, levado por alguns soldados feridos, ao redor dos quais se acumulavam, pálidos e petrificados, os restantes guerreiros,
escravos e criados.
Seguro de que não seria incomodado pelos proprietários, resolvi dar uma batida nas tendas abandonadas e comecei pela de Mernephtah, onde ao entrar, recuei horrorizado:
no tapete, poucos passos distantes do leito do Faraó, jazia num mar de sangue o cadáver de um homem com extenso ferimento no peito. Passado o efeito da primeira
impressão, inclinei-me e reconheci, com indescritível espanto a Rhadamés!
Que misterioso drama se teria passado? Por que esse homem estimado por Mernephtah perecera sob as vistas do seu soberano?
Haviam desaparecido os que me poderiam responder, mas... meu coração fremiu: Smaragda estava viúva!
Senti insopitável desejo de voltar quanto antes ao Egito. Confabulei com alguns escravos e, com promessa de recompensa, ajudaram-me a carregar vários camelos com
ouro e objetos preciosos que ficaram sem dono.
Ao anoitecer, deixamos o acampamento abandonado; meu coração estourava de alegria; revia-me, enfim, livre dos hebreus e imensamente rico.
Depois de uma viagem extremamente fatigante descortinei, muito longe, as portas de Tanis. Era tempo de chegar. O calor sufocante, a areia, os abalos constantes,
haviam-me extenuado; a ferida reabriu e me sentia nos limites de minha resistência.
Assim, foi com redobrada alegria que saudei o aparecimento da cidade natal; apressei o camelo, o que ocasionou um passo em falso; o abalo foi muito violento, e apenas
sei que experimentei dor viva no peito, a cabeça num escuro abismo sem fundo, até que perdi os sentidos.
Ao despertar não pude compreender onde me encontrava. Estava deitado num leito de peles, numa espécie de gruta sombria e abobadada, apenas iluminada por uma tocha,
colocada, ao fundo, numa trípode de ferro. Junto a mim, pequenina mesa na qual se encontravam um copo de alabastro e uma cesta de uvas e sob o archote, perto de
grande mesa de pedra, cheia de ervas e vidros, um homem de meia idade lia um papiro.
Tal personagem, cujo semblante típico se enquadrava na barba negra que lhe chegava à cintura era-me totalmente estranho. Junto a ele, acocorado, um anão, ricamente
vestido, ocupado a encher e rotular frascos de diversos tamanhos, De vez em quando, apresentava ao senhor pequenina caixa dourada, na qual este colocava, sem desviar
os olhos, qualquer coisa que ele levava aos lábios.
Esforcei-me por falar o mais claramente possível, apesar da fraqueza.
- Onde estou?
O homem barbado levantou-se imediatamente, fitou-me com os grandes olhos negros, brilhantes, dizendo:
- Até que enfim despertaste, Pinehas!
Admirado observei-o; como poderia ter sabido o meu nome?
E ele, sorridente:
- Meu nome é Bartus, e, ainda que sejamos velhos conhecidos, tu me esqueceste. Mas, não importa! Agora, sinto-me feliz por ver-te em teu pleno juízo; bebe isto:
e apresentou-me um copo cheio de um líquido esverdeado, que, tão logo esvaziei, fez-me sentir maravilhosamente reconfortado.
Bartus sentou-se junto ao leito, compassivamente.
- Por que acaso me encontro em sua casa? - perguntei.
- Foste trazido aqui, desfalecido, por serviçais do Faraó, morto no Mar dos Sargaços. Disseram-me que viajavas com eles e que, forçados a continuar a viagem, não
sabiam onde deixar-te.
Faz pouco tempo que me estabeleci num subúrbio de Tanis, mas já consegui alguma reputação como médico e feiticeiro. Assim que te acolhi e tratei, e dado não tenhas
onde ficar, nem meios de subsistência, ficarás comigo. Vivo só e necessito de um auxiliar amigo e instruído, como tu.
- Que estás dizendo? - exclamei apavorado - onde foram parar meus sacos de ouro, baixelas e jóias preciosas que os camelos conduziam?
- Não sei de nada, nem vi tais coisas - disse Bartus - sem dúvida, teus companheiros, vendo-te desacordado, abandonaram-te e fugiram com os ricos despojos. Mas,
não desesperes, pobre amigo; fica, restabelece-te, não te abandonarei e dar-te-ei ocupações que te farão esquecer tuas desgraças.
Mergulhei a cabeça entre as mãos, acabrunhado. Smaragda não me seria mais acessível, agora que estava indigente! Como a odiava! Se naquele instante dispusesse de
uma arma, teria dado cabo dos meus dias.
Ergui a cabeça estremecendo ao contato de pesada mão que me pousou no ombro. Bartus falou, cravando-me o seu olhar profundo:
- Pinehas, a paciência nos leva ao fim. O trabalho restabelece a calma do espírito. Deves ainda aprender que a ingratidão se colhe mais frequentemente lá onde semeamos
o amor; e que a vingança não é realmente agradável, senão quando não se sofre mais em si mesmo. Além disso, a mulher que te atormenta o coração deixou Tanis. Mas,
pobre cego desatinado, ignorando o passado, desejas o impossível no presente. Aquela que foi Foemés não pode amar-te, e, sim, só odiar-te.
Bartus, ao notar minha extrema perturbação, colocou a destra sobre meu coração e a esquerda em minha fronte escaldante. A esse contato, pareceu-me que aragem fresca
me saturava o corpo; rosada nuvem parecia oscilar acima da fronte de Bartus, exalando delicioso aroma que me acalmou os nervos excitados. Apesar de estarem os lábios
do sábio cerrados, ouvi distintamente uma voz que dizia:
- Coração impetuoso, cessa de bater violentamente; cérebro superexcitado, ordeno-te que expulses os pensamentos que te assaltam.
Inclinara-se para mim e seu olhar percuciente e estranho penetrava-me pouco a pouco; um torpor repleto de bem-estar invadiu-me inteiramente; as pálpebras se velaram.
Tive, então, um sonho singular. Vi uma clareira enorme no meio de colossal e luxuriante floresta. Larga estrada aberta no maciço verde, deixava entrever ao longe
edifícios de compacta e bizarra arquitetura. Ao centro da clareira, enorme e grotesco ídolo, a cujos pés, servindo de altar, jazia estendida uma mulher com o peito
descoberto, o rosto pálido e contraído, fixos em mim, cheios de horror e angústia, os olhos grandes e negros... Reconheci Smaragda e percebi que era eu quem, cutelo
em punho, estava de pé diante dessa pedra, pronto a desferir o golpe mortal na vítima; mas, nenhum arrependimento, nenhuma compaixão me constrangiam. Meu olhar,
frio e atrevido percorria a multidão que se comprimia na clareira, até que parou um homem, de pé, à frente de todos, ricamente vestido e ostentando na cabeça uma
coroa de penas multicores.
Gritos soaram nesse momento e vi um cortejo que rapidamente avançava pela estrada. Numa espécie de liteira aberta, conduzida por alguns homens, estava um moço assentado,
coberto de magníficos ornamentos, a gritar e gesticular, acenando-me para que compreendesse a ordem de sustar o sacrifício.
Raiva, ciúme, orgulho de autoridade inflamaram-me. Eu era grão-sacerdote e, pelos deuses, a vítima me pertencia; no momento em que, a poucos passos, o moço saltou
da liteira, eu, cheio de ódio satisfeito, enterrei o cutelo no peito da mulher, pura logo o sacar e mostrar ao povo. E isso o fiz impassível, de coração frio.
Petrificado, o moço parou: mas logo avançou para mim, arrebatando-me a ensanguentada e sagrada arma exclamando com voz rouca:
- Onde estiver Foemés, quero estar igualmente - e enterrou o punhal no próprio peito.
Fez-se um tumulto, vi o homem com a coroa de penas cair com o rosto contra o chão e o povo imitá-lo, depois o quadro se esfumou, desapareceu, e acordei sobressaltado.
Meu primeiro olhar foi para Bartus, de pé ao meu lado; no mesmo instante vi uma sombra, parecendo refletida por um espelho de metal, passar como um raio e desaparecer
no peito de Bartus; o olhar do sábio animou-se e ele me disse sorrindo:
- Teu sonho, Pinehas, é o passado, aquele passado que cavou um abismo entre teu coração e o de Foemés.
A partir daquele dia, tive uma sensação de calma e de paz interior; a imagem de Smaragda me vinha à memória como uma sombra pálida, sem deixar atrás de si um inferno
de paixões; soube até, com indiferença, que a viúva de Rhadamés voltara para Tebas e Omifer a seguira; só um sentimento estava adormecido no meu coração, era a esperança
de vingança, mas eu aguardava pacientemente, pois Bartus tinha razão: a paciência leva ao fim.
Durante minha convalescença, procurei obter detalhes sobre a vida de Bartus, mas ele jamais me disse quem era, nem de onde vinha; apenas fiquei sabendo que pensava
em partir logo; não recebia ninguém (com exceção de doentes, em número limitado) a não ser um jovem egípcio que lhe demonstrava uma veneração extraordinária e com
o qual se trancava horas a fio. Um dia ele me disse espontaneamente:
- Não te admires, Pinehas, com o interesse que devoto a esse jovem, foi por ele que vim para cá; em mais de uma vida eu o conheci e ele me seguirá para uma terra
distante, que é mãe de toda a sabedoria do Egito.
Compreendi que ele viera da índia. Sentindo-me completamente restabelecido, pedi-lhe que me confiasse algum trabalho.
- Bem - respondeu -, quero ensinar-te uma ciência que permitirá manter-te honradamente quando eu não estiver mais aqui; devemos separar-nos, pois prevejo que cometerás
crimes que não me permitirão, de forma alguma, respirar o mesmo ar que respiras.
A partir daquele dia começou a ensinar-me uma maneira muito especial de embalsamamento, diferente da usada entre nós, mas bem mais perfeita e que conservava nos
corpos um frescor sem igual.
- Ensino-te isto para proporcionar-te um bom ganha-pão - repetia com freqüência - mas em geral desaprovo o embalsamamento; os egípcios estão bem atrasados na conservação
de cadáveres e, por isso mesmo, na vinculação da alma a um invólucro destinado à destruição.
- Mas - observei - a alma perderá a plenitude de suas faculdades se seu corpo material for destruído.
- Errado, errado! A alma é uma chama, o fogo deve separá-la do invólucro perecível; então, a morte pelo fogo, que tudo depura, é a morte mais nobre que existe.
Devotava-me com ardor àquele novo estudo e consagrava-lhe as vezes noites inteiras; naquelas horas muitas vezes ficava intrigado com o que faria Bartus, trancado
sozinho numa pequena gruta interna onde, no entanto, eu ouvia sons estranhos e, não raro, o murmúrio distinto de vozes. Não me contendo, um dia pedi-lhe explicações.
Ele sorriu.
- Alguns amigos vêm visitar-me disse - e poderia mostrar-te um deles, pois o conheceste, mas também odiaste, e temo que perturbes nossa entrevista.
Jurei-lhe que não me moveria e então, chegada a noite, ele me levou para a pequena gruta e fez-me sentar a uma mesa redonda. Pensei em Amenophis e na visão de Isis.
- Sim, é a mesma coisa - disse o sábio que muitas vezes parecia ler meu pensamento.
Ficamos imóveis e em silêncio e logo uma agradável sonolência invadiu-me; eu não estava dormindo, pois via claramente diante de mim a gruta debilmente iluminada,
pela chama oscilante de uma lamparina de alabastro pousada no chão, e no entanto parecia-me estar flutuando na atmosfera, levemente embalado por um vento fresco
e agradável; as paredes e a abóbada de pedra pareciam expandir-se, afastar-se, depois fundir-se; acima de mim vi o céu estrelado e a lua cujos raios prateados iluminavam
uma planície solitária e uma vasta extensão de água polida e cintilante como um espelho. Aquilo não era um sonho: eu aspirava o aroma puro e fresco da noite, ouvia
o marulho da água e o leve rumor do vento nos caniços, depois a voz de Bartus dizendo: "Amigo, vem falar-me".
Todo meu ser estava concentrado nos olhos e eu vi, estremecendo, que entre os juncos levantava-se pouco a pouco a alta e imponente figura de um homem coberto por
uma armadura, a cabeça cingida com a coroa do Alto e Baixo Egito, e quando a lua iluminou o belo rosto pálido, contraído pelo sofrimento, reconheci Mernephtah, mas
tal como devia ter sido na juventude.
- Pobre amigo - disse Bartus, estendendo os braços à visão - acalma-te, deixa esse lugar fatídico a que te prende teu ódio, e segue-me.
A espectro pousou em nós os olhos tristes e brilhantes e abanou a cabeça. Ligeira palestra se travou entre eles, em linguagem desconhecida; depois, a visão se voltou
lentamente, cumprimentando Bartus com um gesto de mão e de cabeça, e deslizando à flor d'água, mergulhou.
Senti no mesmo instante, uma corrente de ar fresco e encontrei-me na gruta.
- Terei sonhado, Bartus? - exclamei entusiasmado.
- Não. Viste, realmente, Mernephtah, meu amigo de muitos séculos.
Nem sei quanto teria dado para saber o motivo que ligara Bartus ao espírito do nosso infeliz Faraó; mas sobre este assunto ele se manteve sempre mudo. Em compensação,
discorria muitas vezes sobre a imortalidade da alma, indestrutível centelha autora de todas as nossas ações. Com austera gravidade, falava das responsabilidades
do espírito após a separação dó corpo perecível, sujeito à decomposição.
- Não são ridículos e dignos de piedade aqueles que sacrificam suas melhores aspirações, mancham a sede do pensamento pelo ignóbil desejo de vingança, inveja e rapacidade,
Pinehas? Quantas cogitações importantes e sublimes poderiam, durante esse tempo, circular em seus cérebros! E por que os homens fazem todos esses sacrifícios? Para
o mais ingrato dos ingratos, esse corpo grosseiro e frágil, sujeito a todos os incômodos, a todas as doenças e que, para cada excesso ou abuso de paixões, vinga-se
parecendo dizer: "Sou poeira, e cheguei nu e nu hei de voltar, nada levando comigo". Viste Mernephtah, poderoso soberano de uma rica região; senhor a cujo menor
gesto obedeciam milhares de guerreiros. De que precisa ele no sargaço, onde jaz seu corpo decomposto? Assim, Pinehas, todos os crimes que praticardes para satisfazer
a vaidade desta vida perecível, levareis para o espaço transparente, mais povoado que a terra, e onde todos nós iremos dar conta de nossos atos e expiar duramente
nossas faltas, porque não é o corpo que goza, mas o espírito que inventou para si as delícias culpáveis.
Procurou convencer-me que o perdão constitui um bálsamo para a alma. Que eu devia renunciar ao ódio e viver unicamente para a ciência e o trabalho, porque os crimes
que perpetrasse, haveria de os pagar dolorosamente em futuras encarnações.
Para mim, porém, mais fácil me seria renunciar à vida, que a esperança de vingar-me. Ele, talvez, pudesse agir como aconselhava; ele, cujo olhar sempre sereno parecia
demonstrar nunca haver experimentado paixão e sofrimento.
Já inteiramente integrado nessa vida em comum, certa manhã, ao levantar-me, encontrei a gruta solitária. Bartus desaparecera, deixando sobre a mesa um pergaminho
aberto, com o qual se despedia. Legava-me tudo que a gruta continha e renovava o afetuoso conselho de banir do pensamento qualquer idéia de vingança.
Foi grande a tristeza por ver-me absolutamente só. Gostaria de evitar qualquer contato com os homens, mias a necessidade de ganhar a vida impelia-me ao trabalho,
e assim, curava os enfermos, predizia o futuro, preparava filtros mágicos, auxiliava os herdeiros impacientes, embalsamava múmias pelo meu sistema, tudo aliás bem
pago e, portanto, materialmente falando, não havia de que me queixar. Contudo, o Isolamento completo em que vivia e o vazio de minha alma eram responsáveis pelas
horas tristes que vivia. Pensava sempre em Enoch e Kermosa que, talvez já tivessem, atingido a Terra Prometida, e que também ignoravam meu paradeiro.
Mais uma vez encontrei velhos conhecidos, mas ninguém reconhecera Pinehas, o egípcio, naquele sombrio mágico de longas barbas que o vulgo chamava de Colchis - o
feiticeiro.
Assim passaram-se mais ou menos oito anos, após meu despertar na gruta de Bartus, quando, uma noite em que me senti mais triste e aborrecido que de costume, resolvi
dar um passeio noturno.
Grande festa religiosa havia sido celebrada nesse dia. Toda a cidade era um caos de ruídos e movimento; o Nilo formigava de embarcações embandeiradas e iluminadas
e eu esperava distrair-me entre a turba festiva.
Depois de muito perambular, já buscava o caminho de casa, quando o povo à minha frente teve de parar diante das portas iluminadas de um grande palácio, ornamentado
de grandes mastaréus embandeirados. Evidentemente, os convidados dispersavam-se, pois a rua estava congestionada de carros, liteiras, batedores e escravos. Quase
no mesmo instante, pequeno cortejo, precedido de portadores de tochas, se destacou e passou rente a mim. Maquinalmente, ergui a cabeça e a luz das tochas iluminou
uma liteira conduzida por oito escravos e na qual iam duas senhoras magnificamente vestidas. Uma, já idosa, era-me desconhecida; a outra, porém, jovem, bela, coberta
de jóias e cujo semblante alvo denotava orgulho e completa felicidade, era Smaragda.
Como meu coração parasse de bater, senti uma dor aguda como se ele fosse comprimido por pinças; todos os sentimentos, recalcados e adormecidos, acabavam de reflorir
com violência desconhecida, diante daquela por quem tudo sacrificara e que me havia desdenhado e odiado de morte.
Inteiramente transtornado entrei em casa, despedi os dois criados e, de cotovelos fincados na mesa, esvaziando copos sobre copos, ruminava o meio de acabar com a
bela traidora, pois deixá-la viver e gozar a venturosa companhia de Omifer, por mais tempo, ultrapassava o limite das minhas forças.
Fez-me despertar desses devaneios o crepitar da lâmpada, que se apagava por falta de combustível. Levantei-me e espreguiçando satisfeito, estendi-me no leito. Tinha
planejado a vingança.
Na manhã seguinte mandei comprar uma cesta com as mais lindas flores e despachei os criados, encarregando-os de negócios, por assim dizer, urgentes. Uma vez só,
dispus artisticamente as flores na rica cesta de ouro e escondi sob as mesmas uma serpente, cuja picada era mortal; depois, tingi o corpo, disfarcei-me e, transformado
em escravo de casa nobre levando na cabeça a cesta coberta com um lenço de seda, encaminhei-me ao palácio de Mena. No dia seguinte a uma festa, era bem presumível
que algum admirador anônimo enviasse à bela egípcia a homenagem discreta. Se ela o aceitasse e se inclinasse para aspirar o perfume das flores, minha mensageira
lhe transmitiria o beijo que ela me recusara.
Quando penetrei na rica mansão, inúmeras recordações me assaltaram. Que diferença do dia que ali entrara, cheio de esperanças! Agora, era simplesmente mensageiro
da morte!
Fiz-me anunciar e, após minutos de espera, um escravo veio dizer que a esposa de Omifer estava no terraço e me receberia.
Com o coração agitado, acompanhei o nubiano e, ao franquear o terraço todo florido, avistei Smaragda recostada num leito de repouso. Duas raparigas a abanavam e
um anãozinho, acocorado no tapete, apresentava-lhe ora uma taça, ora uma cesta de doces. Repousando displicentemente, a jovem bebericava e comia uma fatia de bolo.
Aproximando-me respeitoso, depus as flores a seus pés e, ajoelhando-me, retirei o lenço de seda.
- Ilustre esposa de Omifer, digna-te de aceitar, da parte do meu senhor, estas flores do seu jardim.
Ela fitou-me curiosa sem' me reconhecer.
- Teu senhor quem é? - indagou.
- Ele prefere ficar incógnito, mas conhece teu marido, que lhe prometeu trazê-lo até aqui.
Eu a fitava e sugestionava que aceitasse e guardasse as flores junto de si, enquanto falava.
- Se teu senhor conhece Omifer, aceito o presente - concluiu enternecida. - Aqui tens tua parte - disse - atirando-me um anel de prata. - Bek, põe esta cesta no
tamborete, aqui ao lado, pois quero aspirar o perfume dessas flores.
Humildemente agradeci e saí.
Logo que alcancei o último degrau da escada, um grito agudo repercutiu no terraço. A mensageira havia cumprido a tarefa.
Grande tumulto, vozes femininas, agudas e penetrantes, chamavam por socorro. Aproveitei a confusão para ganhar a rua e confundir-me com a multidão.
Regressei à casa satisfeitíssimo é fui para a sala de trabalho. Ali, sobre a mesa de pedra, jazia uma velha conhecida, a bela Henaís, aquela moça outrora educada
por minha mãe e tornada, por obra do acaso, esposa de Necho. Ela acabava de falecer e o antigo condiscípulo confiara-me o corpo para o embalsamar pelo processo maravilhoso
que dava ao cadáver toda a aparência de vida.
Enquanto preparava as faixas que deveriam envolver o corpo até o pescoço, pensava comigo mesmo. "Se me confiassem Smaragda para o mesmo fim, apoderar-me-ia da sua
múmia e fugiria. Os deuses bem podiam conceder-me esta compensação mínima". Mal sabia que a sorte me reservava coisa melhor: a satisfação de contemplar sua agonia.
Passada uma hora, um escravo anunciou que uma liteira com emissários de Omifer estacionava à entrada da gruta. Pediam que os atendessem quanto antes no socorro de
Smaragda.
Imediatamente tomei o estojo de medicamentos, coloquei o manto e acompanhei os mensageiros.
O palácio de Mena estava mergulhado na maior desolação; pessoas pálidas, inquietas, cochichavam em grupos. Com a minha chegada, muitos se precipitaram para mim e,
antes que me levassem à sala contígua, fui conduzido diretamente ao terraço onde Smaragda, com o lindo semblante já ensombrado de morte, jazia, estendida no leito.
Ajoelhado, Omifer mantinha entre as suas as mãos da esposa. Suas feições alteradas denotavam desespero que raiava pelo estupor. Um pouco afastados, dois médicos
egípcios conversavam em voz baixa; por essa atitude e gestos, compreendia-se claramente que haviam perdido toda a esperança. Em torno do leito, comprimiam-se algumas
mulheres lacrimosas e a velha ama de Smaragda, que banhada em lágrimas, lhe aplicava compressas no seio descoberto.
- Colchis, o feiticeiro!
Estas palavras correram de boca em boca até Omifer. Os médicos olharam-me de soslaio e saíram precipitadamente.
Omifer apertou-me a mão e levou-me para junto do leito, murmurando com voz sumida e entrecortada:
- Salve-a e a metade dos meus bens lhe pertencerá.
Examinei-lhe o seio alabastrino, já arroxeado, e o ponto negro da letal picada.
Nesse instante Smaragda abriu os olhos e me fitou com tal expressão de sofrimento, terror e muda súplica, que o coração de bronze me tremeu. Sim! Ela era feliz,
temia a morte e era a mim que pedia lhe conservasse a vida, mas... para outrem, para Omifer... Tornei-me insensível. Ter-lhe-ia tremido a mão ao enterrar-me o punhal
no peito?
Inclinando-me para Omifer, disse: - Senhor, chamaste-me muito tarde; nada posso contra a morte. Poderei apenas, se quiserdes, aliviar os últimos instantes de vossa
esposa.
- Emprega tudo que tua ciência indicar para aliviá-la.
Ali me detive, verificando como a morte se apoderava pouco a pouco de sua vítima.