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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FARAÓ MERNEPHTAH
O FARAÓ MERNEPHTAH

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Mas, se por um lado meu ódio estava satisfeito com arrancar a mulher amada dos braços do rival, meu ciúme atingia as torturas do inferno, ao contemplar as tocantes
despedidas dos dois esposos, ao constatar o amor infinito daqueles olhos embaçados buscando os do marido; a ternura, a carícia daquelas mãos desfalecentes, tateando-lhe
o pescoço.

Não me contive mais. Impunha-se precipitar o desenlace. Eu sabia que bastava uma emoção mais forte para romper o último fio de vida.

Assim, afastei Omifer, a pretexto de examinar a ferida e, colocando-me de forma que só a agonizante pudesse ver-me, abri o manto e lhe deixei visível a minha cicatriz,
murmurando com a minha voz natural - Smaragda!

Apavorada, abriu os olhos.

- Pinehas!

Quase roçando os lábios roxos, inclinei-me.

- Quem te trouxe as flores fui eu. Morres tal como quiseste matar-me!

Dou um grito, estendeu o braço e adivinhei que diria:

- É ele!

A voz extinguiu-se, os olhos se lhe avivaram pela última vez e um relâmpago de ódio e desprezo me envolveu; depois, a cabeça pendeu, as pálpebras fecharam-se, e
a respiração cessou estava morta!

Nessa mesma tarde, vieram ter comigo Necho e Omifer; aquele queria mostrar a este a múmia de Henais e fazê-lo confiar-me o embalsamento de Smaragda.

Omifer admirou, sinceramente, a perfeição do meu trabalho o disse que nessa mesma noite traria o corpo, bem como os adornos que lhe destinava.

Exultou meu coração e quando saíram, preparei festivamente o compartimento da gruta destinado a esses trabalhos. Tochas e lâmpadas foram acesas e, sobre uma mesa
coloquei os óleos e essências, cujo segredo só eu conhecia, para darem ao cadáver flexibilidade e aparência de vida.

Era quase meia-noite, quando um ruído exterior me anunciou a diligência. Saí com os dois criados munidos de tochas e percebi um cortejo. Além da liteira coberta,
que trazia o corpo, numerosos escravos sobraçando cestas e caixas e, finalmente, Omifer desfeito em lágrimas.

Precedi a liteira, que mandei depor na sala de trabalho e depois entraram os criados com os objetos que ali ficaram igualmente. Omifer ajoelhou-se junto do corpo,
e pareceu orar, mas sem descobrir o rosto. Depois, levantou-se e disse:

- Trouxe-te o que tenho de mais caro, mas não desejo revê-la senão quando estiver como viva.

Apontando estojos e cestas:

- Aí estão a mais delicada tela, os perfumes mais esquisitos, tecidos e jóias; no saco, ouro para o que ainda se fizer necessário. Nada economizes, sábio Colchis,
pois se fizeres conforme os meus desejos, far-te-ei rico para o resto da vida.

Em sinal de assentimento inclinei-me e, quando ele saiu com o seu pessoal, afastei também os meus domésticos, puxei a cortina de couro que fechava a gruta e, aproximando-me
da liteira, afastei a coberta e descobri o rosto pálido de Smaragda, belo mesmo depois de morta!

- Pertences-me enfim, murmurei - não mais poderás fugir como fizeste no acampamento; far-te-ei bela, tal como em vida; amar-te-ei sem que me possas repelir; e tua
alma sofrerá, porque testemunhará meu gozo, cruel e traidora Smaragda.

Com um sentimento de triunfo, tomei-lhe o corpo, estendi-o num banco de pedra, despi-o e muni-me de uma lâmina para as incisões necessárias. Antes de tudo, queria
extrair-lhe o coração, o coração ingrato, que só aversão me votara; desejava embalsamá-lo separadamente para trazê-lo sempre colado ao peito e, impregnando-o do
meu calor, ressonasse a cada batimento do meu coração, e sofresse duplamente sua impotência.

Trabalhei dia e noite desde aquele instante, concedendo-me apenas algumas horas de repouso. Era a obra-prima que criava. Nesse embalsamento pus toda a minha ciência,
todos os requintes de artista. Não se tratava de um cadáver, mas de um corpo flexível, encantador, ressumando os mais suaves perfumes. Enfim, dei as últimas demãos.
Alisei e trancei os longos cabelos pretos; colori lábios e faces, como em vida, parecendo que o sangue ainda circulava naquela epiderme delicada o transparente,
adornei o pescoço e a cabeça de gemas preciosas, enfaixei o corpo de finíssimas sedas e depositei-o no magnífico sarcófago de cedro enviado por Omifer.

Com o coração ofegante eu admirava minha obra e não podia dela afastar-me; parecia que a maravilhosa múmia me havia enfeitiçado; acreditava amá-la ainda mais que
em vida, quando seu coração rebelde sempre me repeliu. Eia ali estava muda, olhos de esmalte a me fitarem sem exprobração e, na sombra misteriosa da gruta, eu a
velaria com a fidelidade de escravo, apenas receando perder meu tesouro! Qualquer ruído fazia-me estremecer; não seria Omifer que vinha reclamar a esposa, com pleno
direito? Só ao pensar nessa eventualidade ficava como louco e vinha-me o desejo de defender minha obra prima com todas as forças. Assim, pouco a pouco, resolvi eliminar
Omifer.

Com essa intenção, coloquei em uma mesa próxima do sarcófago uma garrafa de vinho com sutil veneno, e esperei. Enfim uma manhã, ele chegou. Levei-o para junto do
sarcófago. Erguendo o véu de gaze que o cobria, aproximei o archote, que iluminou em cheio o rosto em êxtase. Eu o observava, com ciúme e ódio. Poderia ele que,
em vida se embriagara dos olhares amorosos de Smaragda, estar satisfeito com esses olhos de esmalte, parados, frios e imóveis como o escaravelho de ouro que substituía,
em seu peito, o coração que só palpitara por ele? Aqueles olhos, que já não traduziam os sentimentos da alma, só podiam agradar a quem os tinha visto enfurecidos
ou indiferentes.

Depois de longo silêncio, Omifer levantou-se e estendeu a mão:

- Agradeço-te, sábio Colchis - disse - trabalhaste maravilhosamente; é como se estivesse viva. Posso levá-la imediatamente?

- Amanhã. Se tiveres pressa, avisarei cedo para vires buscar o teu tesouro; esta noite darei o último retoque, e amanhã poderás mandar teus servos buscar o sarcófago.
Entretanto, como estás pálido e abatido! Toma um copo deste vinho que te reconfortará.

Agradeceu-me, esvaziou o copo e saiu.

- Nunca mais voltarás - pensei satisfeito, retomando meu posto junto do sarcófago. Agora, Smaragda, só a mim pertences.

Soube, dois dias depois, que Omifer havia morrido e, desde então, tratei logo de abandonar Tanis, não admitindo mais visitas, porque sabia que a casta dos médicos
e embalsamadores me observava suspeitosa. Já tinham tentado descobrir meu segredo; era de temer algum ato de violência e por esse motivo queria fugir com o meu ídolo
e a enorme fortuna adquirida. Entretanto, a doença me impediu de partir; a saúde violentamente abalada pelo ferimento mal curado, não pode resistir ao excesso de
trabalho e emoção dos últimos tempos; em virtude disso emagrecia a olhos vistos. Algumas frutas e goles de vinho eram toda a minha alimentação; o sono fugia e eu
receava a morte com a consequente responsabilidade, na qual acreditava. Noite e dia, martelava o cérebro por descobrir um meio de me subtrair à inevitável passagem,
reter a força vital no corpo gasto, sem deixar escapar a alma e assim evitando comparecer ao Tribunal vingador.

Em uma dessas noites intermináveis de insônia, experimentei ardente desejo de saber o que era feito de Enoch e Kermosa. Concentrei neles o pensamento e, com grande
espanto, renovou-se o fenômeno que Bartus me mostrara. As paredes da gruta pareceram afastar-se; vi a planície imensa e árida do deserto e ao longe numerosas tendas
do acampamento. Em uma vala deserta, cujo solo pedregoso estava ensanguentado, Jaziam montes de cadáveres e num deles, com o rosto em decomposição voltado para mim
reconheci Enoch.

Tremendo de terror, voltei à realidade. Só mais tarde, já no plano espiritual, desencarnado, soube que, tendo-se envolvido numa revolta contra Moisés, Enoch havia
sido vitimado num dos massacres com que Jeová vingava a desobediência ao seu profeta.

A estranha visão me reavivou o passado e os fatos que testemunhara; também recordei Eliezer e com isso estremeci: havia descoberto o modo de evitar a morte. Seria
bastante entorpecer todo o organismo conservando-lhe a força vital. Para isso, era preciso tão só permanecer de forma que ninguém me tocasse e poderia assim viver
uma eternidade, sem que o fluído vital se esgotasse, jamais, do corpo adormecido.

Minha resolução foi logo tomada e, sem delongas, iniciei os preparativos necessários.

Mandei embora os criados recomendando-lhes não tentarem nunca penetrar nas grutas, mas, ao contrário, lhes disse simular a entrada o mais possível, pois quem tentasse
abri-las deixaria escapar perigosos demônios, que matariam o temerário e espalhariam na cidade e no país, calamidades horrorosas. Levantei por dentro, um muro vedando
a entrada; reuni na sala de operação tudo que possuía de mais precioso e estendi um tapete junto do sarcófago.

Todos esses preparativos tomaram-me três dias, durante os quais nem uma gota d'água me suavizara o rigoroso jejum. Por fim, chegou o momento de agir.

Banhei-me, vesti roupas novas, prendi um archote na parede, de forma que, ao extinguir-se, não ocasionasse incêndio. Ajoelhei-me perto do sarcófago. Uma última vez
contemplei a incomparável múmia; beijei-lhe os lábios, a fronte perfumada e sentei-me de pernas cruzadas no tapete.

Com pequeninas bolas de cera tapei os ouvidos e virei a língua, de modo a fechar o conduto nasal; concentrei-me em mim mesmo, de olhos semicerrados.

Não demorei a sentir pesado torpor assenhorear-se de mim: as paredes e objetos dançavam, rodopiavam em torno do corpo, que parecia balançar no espaço; depois tudo
se turvou à minha vista e perdi os sentidos. Dormia um sono que os viventes acreditariam eterno.

Quanto tempo durou esse sono? Ignoro-o; apenas sei que uma corrente de ar frio e úmido me fez despertar. Não podia reconhecer minha situação; dor aguda me transpassava;
a garganta cerrava-se e todo o corpo se estorcia como a fragmentar-se. Uma torrente de fogo caía sobre mim, vinda não sei de onde e me queimava; o sofrimento era
tão intenso que, novamente, perdi os sentidos; e contudo, quase imediatamente, o atordoamento se dissipou e notei que balançava no ar, envolto em um manto pardacento
e flutuante; baça claridade avermelhada iluminava os objetos circundantes. Estava na minha gruta, com o meu tesouro, o sarcófago, os vasos de ouro, prata e outros
objetos preciosos. Nada me roubaram durante o sono... De onde provinha aquela segunda múmia de pele negra e encarquilhada, cujos braços, dissecados como cordas de
couro, se cruzavam sobre o peito?

De repente estremeci: reconhecia aqueles traços pronunciados, a cabeleira negra e espessa, o amuleto preso ao pescoço por uma corrente de ouro e contendo o coração
de Smaragda; era e não era eu! Havia-me tornado horroroso! Notei um orifício negro, antes uma chaga e, sobre os joelhos, uma serpente enrolada em espiral, cujos
olhos fosforescentes brilhavam na escuridão.

Refletia sobre minha estranha situação sem poder compreendê-la; recordava ter provocado o entorpecimento para evitar a morte. Por que motivo me havia acordado?

Quis demolir a barragem da gruta, mas não pude mover-me. Aturdido, inquieto, uma voz oculta sussurrou-me:

- Tens, então, tua bela múmia? Guarda-a bem, sentinela fiel, para que não te escape.

Permaneci, no entanto, flutuando sobre o espectro horrível - o meu sósia - até que, pouco a pouco, comecei a experimentar um mal cuja origem não saberia explicar.
O ar parecia-me espesso, e invencível peso oprimia-me todos os membros. Tristeza mortal sufocava-me o coração,

Uma vez que olhava o sarcófago, esse pareceu-me vazio; no mesmo instante, vi Smaragda passar rente a mim, na companhia de Omifer. Louco de raiva, quis detê-los:

- Ladrão - exclamei - devolva meu amor.

- Foi para roubar-me a bem-amada que me assassinaste! respondeu Omifer menoscabando - agora, retomo-a, pois há muito que a reténs...

E desapareceram.

Fora de mim, quis persegui-los, mas as pernas paralisadas recusaram obedecer-me e ali fiquei pregado ao lugar onde suportei, muitas vezes, o reaparecimento de ambos,
que me afrontavam desdenhosamente e ridicularizavam minha impotência.

Paulatinamente, a situação tornava-se insustentável. Em vão meu cérebro trabalhou para remediá-la. Eu estava convencido de que, sozinho, nada podia; mas a quem dirigir,
a quem implorar auxílio e alívio?

Os egípcios, nas suas necessidades, oravam a Osiris, Isis, Ptah e muitos outros; mas essas divindades me. pareciam mesquinhas ao lembrar as palavras de Moisés, de
que blocos de madeira ou de pedra que adorávamos eram incapazes de nos valer. Eu não podia fazer uma idéia do grande Uno, criador do Universo, de que faziam menção
os mistérios. Pensava também em Jeová, o deus de Moisés, que conduziu os Hebreus para fora do Egito; mas este tinha-se mostrado, por todos os seus atos, de uma tal
crueldade, de caráter tão vingativo para cada desobediência - o destino do Faraó e do seu exército bem o comprovava - que eu temia. Evidentemente, Jeová se vingaria
da minha traição, tornando-me responsável, diante dele, ao fugir do campo hebreu; foi ele, sem dúvida, que me inspirou a matar Smaragda e enviou a serpente para
me picar e assim me despertar.

A esse deus implacável, que preceituava o dente por dente e a quem havia ofendido, não ousava dirigir-me.

Não havia, igualmente, ofendido os deuses egípcios, renunciando-os em favor de Jeová? Eles, então, também me repeliriam.

Senti-me extremamente infeliz. Com todas as forças de minha alma pedia um alívio, mas a quem dirigir-me para obtê-lo? Ignorava-o, porquanto me envergonhava de orar,
às divindades que renegara. No auge da aflição, lembrei-me da terna aparição que Moisés me inculcara como sendo o seu guia, e que havia aconselhado clemência, renúncia
e paciência.

Lembrei-me de que seu nome era Cristna-Cristo; que ele não poderia ser severo e vingador como o grande deus do povo de Israel e logo se me dissiparam as dúvidas.
O orgulho e a obstinação desapareceram, porque, perante essa divindade, eu não havia procedido mal, como fizera em relação à outras.

Concentrando toda a minha vontade, orei:

- "Benevolente divindade; ajuda-me e alivia-me, não te. pertenço mas sempre pensei em ti, respeitosamente; não desdenhes, pois, minha súplica: perdoa-me sem julgar-me".

Enquanto formulava essa evocação, com grande dificuldade, sentia uma torrente de calor benéfico invadir-me os membros entorpecidos. Como que atraído para essa fonte
reconfortante, elevei-me pouco a pouco num espaço nevoento, que atravessei com velocidade crescente.

Subitamente parei; o espaço cinzento parecia ter-se fendido, descortinando vasto horizonte luminoso. No fundo dessa imensidade, desenhava-se claramente uma visão
que a pena humana é impotente para descrever: sobre um fundo anulado, circundado de nuvens brancas de neve, cintilando aos raios do sol, pairava um ser cuja túnica
flutuante irradiava como feixes líquidos de uma fonte iluminada por milhares de sóis. Rodeavam-no seres semelhantes, porém menos brilhantes: um deles me evocou a
visão de Isis; mas o brilho resplendente ofuscava-me de tal forma que não podia ver-lhe as feições. Um véu prateado cobriu a radiosa visão e sobre esse fundo mais
nebuloso, se desenharam dois olhos como não é dado aos mortais admirar. Não procurarei mesmo descrever-lhes a forma e a cor; mas diante dessa manifestação de caridade
e clemência divina, devia prosternar-se o ser mais endurecido; sob esse olhar de mansidão sobre-humana, a alma culposa podia, sem pejo e sem humilhação, desvendar
os mais sombrios arcanos da consciência e os maiores segredos do coração. Tudo se esquecia, tudo desaparecia sob esse olhar regenerador.

Se os encarnados, cegos pelo esquecimento do passado, guardassem ao menos uma vaga lembrança da clemência infinita do Guia Divino do Nosso Mundo! Qual dentre eles
seria capaz de desdenhar a prece, por orgulho e desgosto, privando-se dessa consolação?

Chegaram aos meus ouvidos sons mais suaves que a mais bela música terrestre. Não eram palavras, mas uma mensagem cujo sentido era-me compreensível.

- Pobre filho do espaço - dizia essa vibração harmoniosa - enceguecido pela carne, pudeste crer que o Criador Todo-Poderoso, cuja bondade povoa de mundos incontáveis
o espaço infinito, poderia como vós, seres imperfeitos, experimentar ódio ou vingança? Ora e arrepende-te, Pinehas; esse Deus que temos não tem para ti outra coisa
mais que indulgência e perdão; fez-te apto a tudo compreender e obter, legando-te, como Pai infinitamente bom, uma parcela da divindade com que te criou. Se queres
quebrar e dominar as paixões que obscurecem tua alma, ele te dará toda a sabedoria e te abrirá as largas e luminosas portas da perfeição; e quando, depurado pelas
quedas e provas, reencarnações e sofrimentos, te apresentares diante Dele, puro e luminoso, poderás dizer-lhe: - "Pai Celestial, volto, digno de ser chamado teu
filho para que me indiques a tarefa que me corresponde no espaço infinito, onde quero proclamar tua sabedoria".

- Para que atinjas essa meta luminosa, porém, Pinehas, as cadeias que ligam tua alma à carne devem ser quebradas pela prece, arrependimento e caridade.

- Por quê, Espírito misericordioso, não te conheci assim lá na Terra? Por que ídolos mudos e severos lá representam o Pai Celestial?

- Meu filho, o culto da divindade, continuou a entidade - tu o conduzes no teu próprio ego e em qualquer lugar onde nasceres. Desde que o homem eleve um altar a
essa divindade e a invoque, um servo do Pai Celestial se lhe apresenta e o instrui no bem. De todos os tempos, gerações e cultos, dos mais selvagens aos mais refinados,
a divindade sempre pregou o bem, de acordo com o meio e o nível intelectual aos homens; jamais ensinou o mal. Procura invocá-la simplesmente e não serás abandonado.
Quantas vezes, porém, espírito vacilante, já te falamos dessa mesma forma? Sempre reincides nos teus vícios para estacionar um tempo infinito no mesmo degrau de
elevação. Pobre ser que te punes a ti mesmo, porque tuas paixões te estimulam e te prostram exausto, para novamente recomeçar teu roteiro criminoso?

Fiquei esmagado pela verdade dessas palavras! Eu mesmo era o meu pior inimigo; nada me torturava mais, agora, do que as próprias fraquezas; mas, onde encontrar forças
para resistir ao mal?

No olhar do meu Guia divino refletiam-se bondade e mansidão infinitas:

- Quando teu coração, Pinehas, houver adquirido o verdadeiro amor; quando recusares infligir sofrimentos aos que te cercam, a virtude te auxiliará e, amparado por
esses dois aliados, sairás da luta armado de inquebrantável vontade, voltado unicamente para o bem. Serás forte e nenhuma tentação te abalará. Vai, pois, ao encontro
do teu guia e prepara-te para uma vida diferente, por meio da prece e da humildade perante teus inimigos; depois, tenta novamente dominar tuas paixões e despertar
teus nobres sentimentos, a fim de que teu amor te transforme em fonte de felicidade e não de suplícios para aqueles a quem te devotares.

Extinguiu-se a visão e encontrei-me no espaço plúmbeo, acompanhado de um espírito luminoso, que me disse:

- Crendo escapar à lei imutável do Criador, retardaste por longuíssimo tempo o desprendimento do corpo; agora estás livre, mas perdeste muito tempo. Teu grupo já
foi julgado e seus membros tiveram, desde então, muitas reencarnações; prepara-te, pois, pelo arrependimento e pela humildade, diante dai tuas vítimas, para uma
nova etapa expiatória.

 

* * *

 

O que acabo de descrever, o ditei voluntariamente a Rochester.

Depois disso, muitas vezes, tenho comparecido diante dos meus juizes, sempre sobrecarregado de crimes e apenas mais refinado nas minhas fraquezas. Lenta, demoradamente,
subo um degrau na escala da perfeição e como espírito, em parte liberto (enquanto dito isto), vejo com tristeza e amargura que minha encarnação atual também fracassou
no seu principal objetivo. O espírito que valorosamente devia combater pela nova causa da iluminação das almas deixou que passassem em ociosidade moral todos os
momentos graves de sua existência, todas as ocasiões de se ligar à grande família espírita.

Preso por mesquinhos interesses, tenho julgado com indiferença os esforços realizados nesse sentido, empregando todas as energias de minha alma e do meu saber, na
aquisição de ouro, a eterna causa de minhas quedas.

Não me inflamou ainda a luz da virtude. Ligado a velhos companheiros do passado criminoso, o egoísmo e a libertinagem secreta me dominaram.

Gozarei o fruto de meu esforço? Ou antes, morte imprevista, quando em repouso, virá chamar-me a prestar contas da vida que me concederam em grave circunstância,
correspondente ao importante movimento das inteligências terrestres e extra-terrestres?

Não me é dado sabê-lo; um vago sentimento de inquietação e tristeza envolve meu espírito, em parte livre, à lembrança de tudo abandonar após tanto trabalho, visando
unicamente a satisfação dos meus apetites materiais.

Fortes como são as paixões humanas, é difícil dominá-las; minto mais terrível, porém, para o espírito, é voltar ao espaço após uma vida desperdiçada.

Que Deus preserve de semelhante situação qualquer dos meus irmãos encarnados!

 

Pinehas

 

O FARAÓ MERNEPHTAH

 

Volume II

 

NARRATIVA DO ESPIRITO DE NECHO

 

Para o espírito, centelha indestrutível e eterna, o tempo não existe.

Ao evocar particularidades duma vida encoberta aos homens, pela poeira de trinta e dois séculos, elas revivem na minha lembrança com tanta clareza e frescor, como
se fora ontem que houvesse testemunhado os graves e terríveis acontecimentos relatados na Bíblia, e revejo a luta desesperada entre o meu rei e seu tremendo antagonista
Moisés - o grande legislador hebreu - de quem fui contemporâneo.

Na época em que começa esta narrativa, eu era um rapaz de vinte e cinco para vinte e seis anos e servia como oficial na guarda do Faraó Mernephtah, filho do grande
Ramsés II, que empunhava então o cetro do Egito e havia instalado a Corte em Tanis, tão apreciada por ele quanto por seu pai.

Não merecem referências, esses primeiros anos de minha vida, calmos e venturosos, até que um dia fui despertado por extraordinária ocorrência, que, de certo modo,
engendrou o prólogo das calamidades que se seguiram.

Foi em Tanis, repito, e num dia de audiência pública, na enorme sala das colunas.

Sentado no trono de ouro maciço, no alto de alguns degraus e junto do qual pareciam velar dois leões do mesmo metal, estava o Faraó. Próximo a ele agrupavam-se portadores
de abanos, conselheiros, dignatários e, finalmente, formando grande semi-círculo na sala e tomando as entradas, oficiais e soldados da guarda, perfilados e imóveis.

Já haviam sido atendidas em suas queixas ou pretensões, inúmeras pessoas, recebendo graças ou justas sentenças, quando ocorreu ligeiro tumulto na porta de entrada.
A compacta multidão abriu larga passagem e vimos avançar solene o grão-sacerdote do Templo de Isis, seguido de uma fila de acólitos, todos revestidos de longos hábitos
brancos e, na cabeça a pena de avestruz - símbolo de iniciação superior.

Inclinaram-se reverentes e ergueram os braços em sinal de benção, diante do trono. Saudou-os o Faraó e perguntou-lhes o motivo que até ali levava os veneráveis servidores
da grande deusa.

- Poderoso filho de Ra, grande Faraó a quem; os deuses concedam longa vida, saúde e glória - exclamou o grão-sacerdote - aqui estamos para dar-te conhecimento de
graves e extraordinários acontecimentos e dizer-te que, se a raça odiosa e abominável dos hebreus não for severamente reprimida, acabará desencadeando a desgraça
sobre o Egito, porque os Espíritos infernais que eles instigam atacam até as virgens sagradas e votadas ao serviço da deusa.

O Faraó deu um salto na cadeira e nós empunhamos as nossas armas, prontos para, a um gesto seu, atirar-mo-nos aos hebreus e massacrá-los. Mas já o rei, precatado
de que era impróprio de sua dignidade exteriorizar tal emoção, assentara-se calmamente, dizendo com gravidade:

- Servidores de Isis, se vindes trazer-me uma queixa, ser-vos-á feita justiça. Falai, pois, veneráveis sacerdotes; se os hebreus ousarem tocar no que quer que seja,
pertinente à honra e dignidade de uma mulher agregada ao vosso Templo, asseguro-vos que pagarão com sangue o nefando sacrilégio.

Bateu no peito e toda a assembléia se prosternou.

- Trata-se - começou o sumo-sacerdote - de um judeu chamado Eliezer, homem rico e influente entre os seus, que, após uma ausência de dois anos, aqui se encontra
residindo novamente, numa casa que confina com uma de tuas vinhas. Sorrateiramente, ele persuadiu os operários de que nós os oprimimos e, com essa aleivosia, promoveu
uma revolta dos teus trabalhadores. Nesse motim, o fiscal, funcionário consciencioso, filho de distinta família egípcia, foi massacrado e a vinha quase destruída.

Isto ocorreu há seis meses e o vigilante de Faraó, o nobre Aamés, que mandara prender os culpados, os condenou após rigoroso inquérito, uns ao trabalho nas minas,
outros a bastonadas, devendo o instigador Eliezer ser enforcado, depois de lhe arrancarem e atirarem aos corvos a pérfida língua.

A sentença foi proferida há seis dias, mas dá-se que, quando os executores entraram na prisão de Eliezer, lá o encontraram morto. O corpo foi levado ao lugar da
execução, mas, quando tentaram abrir-lhe a boca, viram que os dentes estavam de tal maneira cerrados, que seria forçoso quebrar os maxilares; e como na ocasião ameaçasse
tempestade, contentaram-se em suspendê-lo pelos pés.

A violência do vento à tarde foi tanta que a forca levantada à beira do rio tombou e várias pessoas viram horrorizadas, o corpo projetado nas águas sagradas do Nilo,
tragado pelas vagas.

Esse fato lastimável foi precursor de outro pior, pois essa noite fomos despertados por gritos lancinantes, partidos da sala onde repousavam as mulheres consagradas
ao culto da deusa. Todo o Templo ficou em polvorosa e quando, à frente dos mais veneráveis sacerdotes, entrei na referida sala, triste espetáculo se nos deparou;
algumas mulheres jaziam por terra, desmaiadas, outras encolhidas nos cantos tapavam o rosto com as mãos e finalmente outras se movimentavam, contorcendo as mãos
ao redor de um leito onde, estendida, rija, imóvel, permanecia Snefru, a mais bela das virgens consagradas ao serviço de Isis. No pescoço, uma ferida semelhante
a uma dentada.

Foi-nos impossível tranquilizar as mulheres desesperadas, cujos gritos angustiosos repercutiam longe. Por fim, uma das jovens me explicou, trêmula, que Eliezer aparecera
de chofre entre elas, atirando-se a Snefru, que se deixara tomar de culposa paixão por um belo semita. O pai, temendo, com razão, que os deuses punissem aquela inclinação
impura, conduziu-a ao Templo e consagrou-a ao serviço da deusa.

Pálido e suando por todos os poros o Faraó ouvira atônito a estranha narrativa.

- Por que não prenderam o miserável - perguntou - se o viram?

- Ele foi visto - disse o grão-sacerdote - mas nenhum vivente teria podido prendê-lo, porque fundiu-se na parede, atravessando-a qual sombra.

- Consultastes, então, os deuses sobre o que fazer nesta terrível emergência?

- Sim. Mandaram-nos procurar o cadáver do réprobo e, se o encontrarmos, os deuses me revelarão, apenas a mim, o que se deverá fazer dele; portanto, grande Faraó,
aqui estamos a implorar-te auxílio. Concede-nos barcos e soldados que, munidos de ganchos e fisgas, revolvam o Nilo, enquanto os acompanhamos com cantos sagrados.

- De acordo - disse o rei levantando-se - eu próprio e meu séquito nos reuniremos a vós e ainda esta noite todo o Egito procurará nas águas turvas do rio sagrado
o cadáver do tétrico vampiro.

Os que estavam presentes, inclusive os suplicantes e o povo que se comprimia à entrada da sala, prorromperam em aclamações e brados de contentamento pela sábia providência.

Mernephtah desceu do trono e, acompanhado do séquito, recolheu-se aos aposentos privados.

Duas horas mais tarde, livre do serviço, tomei o carro e dirigi-me ao lar paterno. Meu pai, homem rico e honrado, desempenhava na Corte a função de fiscal dos animais
- cargo correspondente, pouco mais ou menos, ao de chefe das cavalariças, em nossos dias; esta função o obrigava a acompanhar o Faraó por toda parte. Como possuía,
porém em, Tanis uma casa e outras propriedades consideráveis, minha mãe e minha irmã o acompanharam.

Fatigado pelo serviço em palácio, que me obrigava a permanecer dê pé longas horas, imóvel qual estátua no meu uniforme, procurei alcançar meu quarto o mais depressa
possível, mas o velho escravo que guardava a entrada participou-me que uma serva de minha mãe o encarregara de prevenir-me que a procurasse sem demora. Dirigi-me,
então, à sala contígua ao terraço, onde, como de costume, se reuniam todos os meus nas horas mais quentes do dia.

Quando entrei vi minha mãe deitada num divã, envolta em leve vestido branco, abanada por duas negrinhas. Alguns passos afastada, minha irmã Ilsiris, assentada num
banco, mirava-se num espelho redondo, mantido por pequenina escrava ajoelhada diante dela, e experimentava o efeito de diversos berloques de ouro retirados de um
estojo, para os colocar nos belos cabelos negros. Ao centro do grande terraço, ornamentado de flores e arbustos raros, meu pai, junto da mesa abastecida de refrescos,
examinava atentamente, num extenso rolo de papiro as contas apresentadas pelo intendente.

Vendo-me, Ilsiris e minha mãe exclamaram ao mesmo tempo:

- Finalmente, Necho! Nós te esperávamos com ansiedade; - acrescentou minha irmã deixando as jóias e afastando o espelho - decerto não ignoras as estranhas novidades
que por aí se propalam.

- Deixa-o ao menos sentar e tomar fôlego - atalhou minha mãe, atraindo-me para uma cadeira junto dela e afagando-me o rosto orgulhosamente. Mentuhotep, deixa também
tuas áridas contas e vem ouvir o nosso Necho, pois ninguém pode estar melhor informado e conhecer as ordens emanadas da boca do próprio Faraó.

Meu pai levantou-se sorridente e apertando-me a mão disse:

- Tua mãe tem em alta conta a tua importância, meu rapaz. Por conseguinte, se puderes, explica-nos o que significa a estranha ordem de varejar o Nilo esta noite,
tal como dizem os arautos por todos os quarteirões da cidade.

- Isso decorre de um fato bem desagradável; - expliquei - mas antes de tudo, dêem-me um copo de vinho, porque tenho a garganta seca.

- Alguma guerra, invasão ou moléstia contagiosa? - perguntaram as mulheres espantadas, enquanto uma escrava se esforçava por entregar-me o copo de vinho.

- Nada disso, respondi-lhes, mas tão só por causa de Eliezer, o miserável conspirador judeu, executado há dias; transformado, sem dúvida, em demônio impuro, ou vampiro,
mercê dos seus crimes, introduziu-se esta noite no dormitório das mulheres consagradas ao culto de Isis e a bela Snefru, que todos conhecemos, foi vítima do horroroso
espectro, segundo ouvi da boca do próprio grão-sacerdote.

Insinuou-se, nesse momento, entre as cortinas da porta, a cabeça de uma negra velha e o sorriso de triunfo que lhe escancarava a boca indicava que tinha ouvido toda
a conversa.

- Vem, Acca - disse minha mãe. Foi ela quem trouxe a notícia de que no Templo de Isis uma sacerdotisa havia sido assassinada por um fantasma que lhe mordera o pescoço,
sugando-lhe o sangue - acrescentou voltando-se para mim.

- Minha pobre Snefrú - exclamou Ilsiris lacrimosa - mesmo morto, não a abandonou o infeliz Eliezer, que tão horrivelmente a enfeitiçara, porque, de outro modo, uma
donzela de sua condição e fortuna não teria amado um miserável hebreu!

- Deixem de interromper Necho - disse meu pai impaciente - pois assim não logrará explicar-nos o que significam as batidas no rio.

- Querem descobrir o cadáver do executado lá caído. Os deuses ordenaram essas buscas e indicarão o que se deverá fazer dele Afirmo-vos, porém, que diante da incrível
revelação do grão-sacerdote, o próprio Mernephtah, apesar da sua intrepidez, tremeu o empalideceu: entretanto, com a sabedoria que lhe é peculiar, ordenou imediatamente
as pesquisas para esta noite, porque o sono nos torna impotentes e o vampiro pode atravessar as paredes sem probabilidades de captura. A fim de evitar esse perigo
ao povo, nosso grande rei, incorporado aos sacerdotes e soldados, munidos de ganchos, varas e redes, irá em pessoa ao Nilo, dirigir e ativar as buscas; todo bom
egípcio está na obrigação de o acompanhar na sua embarcação, e estou certo de que não faltarás, pai, a esse dever.

- Naturalmente! Acaso não estamos todos ameaçados pelo perigoso fantasma que atravessa paredes e zomba até da santidade dos Templos?

- Irás também, Necho? perguntou Ilsiris suspirando.

- Claro! Não sou oficial da guarda do Faraó? - respondi alçando os ombros - meu lugar é junto dele.

- Crês, Mentuhotep, que as mulheres também poderiam assistir a esse grandioso e interessante espetáculo? - perguntou maliciosamente minha mãe.

- A minha não - respondeu meu pai contrariado - pois suponho que nenhuma senhora sensata e de boa condição social se intrometerá nessa balbúrdia; em compensação,
penso que deves ir amanhã ao Templo de Isis e oferecer-lhe um sacrifício para obter proteção contra esse perigo,

- Tens razão; amanhã irei ao Templo com Ilsiris e aproveitarei o ensejo para visitar a nobre Herneka, esposa do grão-sacerdote; ela está com um pé doente e não pode
sair, mas, por seu intermédio, saberei mais alguns detalhes da horrorosa morte de Snefrú.

Nossa conversa foi interrompida por um escravo, que veio anunciar a refeição.

Recolhi-me aos aposentos depois do repasto para dormir algumas horas, recomendando ao escravo que me despertasse a tempo.

Levantei-me refeito e bem disposto à hora marcada; tomei um banho e tendo-me fardado e armado, encaminhei-me ao palácio real.

Caía a noite e todo o palácio regurgitava, dando passagem aos conselheiros do rei e outros funcionários que acorriam. Galguei a larga escadaria e fui até a sala
próxima dos aposentos particulares do rei, reuni-me ali a um grupo de oficiais e jovens que animadamente conversavam.

Discutiam-se as possibilidades de encontrar o cadáver do judeu e comentava-se a recompensa oferecida por Mernephtah, de vultosa quantia e um anel de próprio uso,
a quem fizesse a descoberta, ainda que fosse um mísero escravo.

- Quem sabe se a sorte não te favorecerá, Necho! - disse alguém rindo e batendo-me no ombro; - tens sempre tanta sorte na luta e nos jogos!

- Pescar o cadáver do hebreu não me interessa - respondi - prefiro ganhar na guerra um anel, da mão do Faraó; mas creio que o espetáculo será grandioso.

- Também o creio. Olha que o rio já está coberto por toda uma multidão; as embarcações se comprimem enfileiradas nas margens, assim como nas proximidades do Templo
de Isis, onde se antecipará o Faraó, a fim de trazer os sacerdotes.

Continuamos a conversar e analisar os que passavam, até que o chefe e o mestre do cerimonial dessem o sinal para se organizar o cortejo.

Pusemo-nos em fila, de um e outro lado da porta dos aposentos reais, enquanto os demais ocupavam os lugares, de acordo com a função que cada um desempenhava.

Abriu-se logo a porta e Mernephtah, revestido das insígnias reais, apresentou-se acompanhado dos porta-abanicos e dignatários.

Junto à escadaria, galgou a magnífica liteira aberta em forma de trono, conduzida por doze rapazes, príncipes e parentes da família real.

Precedido por batedores que, com os seus bastões dourados abriam caminho, por músicos e soldados, com suas bandeiras dirigiu-se o séquito enorme e vagaroso, pelas
ruas iluminadas como em pleno dia por archotes e lampiões, até as margens do Nilo.

Recebendo aclamações da multidão que se comprimia por toda parte, Mernephtah tomou a barca dourada, que, seguida de centenas de outras embarcações, rumou ao Templo
de Isis.

Tomei lugar na embarcação que seguia de perto a do rei; ao nos aproximarmos do antigo edifício cuja silhueta maciça se refletia nas águas, ouvimos cânticos sagrados
e descortinamos imponente procissão descendo os degraus. À frente, o grão-sacerdote conduzindo o sistro da deusa, as sacerdotisas com suas harpas, frontes ornadas
com flores de lótus e uma extensa fila de sacerdotes de todas as categorias com suas longas vestes brancas.

O soberbo barco do grão-sacerdote emparelhou com o do Faraó e começaram as mais ativas pesquisas.

Em vão, porém, percorreram o rio da montante à jusante; em vão sondaram rebojos e caniçadas; o cadáver do miserável sugador de sangue continuava inatingível. O sol
já ia alto no horizonte, quando a barca real atracou e Mernephtah, sombrio e pensativo, regressou ao palácio.

Cansado e desanimado, entrei em casa e mergulhei em pesado sono, para só me levantar chamado à refeição, aliás servida muito tarde, porque meu irmão, que havia tomado
parte na expedição noturna também repousava.

Quando ficamos sós, livres dos criados, trocamos impressões do feito, contando pormenores das pesquisas infrutíferas. A seguir, meu pai perguntou o que minha mãe
colhera no Templo.

- Tenho muito que contar - disse ela erguendo a cabeça - a terrível história do sugador de sangue não é a única que alarma o Templo; outro acontecimento, não menos
emocionante, verificou-se esta manhã.

Descobriram uma ligação amorosa entre Menchtu, a mais bela das sacerdotisas e cantoras, com um nobre egípcio cujo nome ignoram, ou pretendem ocultar. Essa infeliz,
que mereceu a honra insigne de representar a deusa nos últimos mistérios, teve a audácia de introduzir o amante no bosque sagrado, onde um velho pastor os surpreendeu.
O indigno sedutor, forte como um búfalo e ágil como um símio, conseguiu fugir empurrando violentamente o velho, quando tentava barrar-lhe a passagem. Menchtu está
presa e, se conseguirem capturar o comparsa, será julgado sem misericórdia, porque, não só transpôs o muro sagrado, como ergueu a mão contra um venerável sacerdote.

- Qual será a punição? - perguntou Ilsiris.

- A morte, naturalmente. Quanto a Menchtu, sei que será enterrada viva; o escândalo é tremendo. Fica sabendo, Mentuhotep, que, à vista de tais horrores, penso chegados
os tempos. A nobre Herneka também me contou, sob segredo, que os astros anunciam grandes calamidades.

- Pobre Menchtu! - exclamou Ilsiris comprimindo o peito. - Que coisa horrível! Enterrada viva, sentir-se sob uma abóbada de pedra, asfixiar-se na treva... Só de
pensar, estremeço e já sei que não vou pregar olho à noite; falemos de outras coisas. Sabe, mãe, quem vi hoje no Templo? Smaragda. Chegou na sua liteira, bela é
adereçada como sempre, enquanto eu esperava tua saída da casa de Herneka. No momento em que ela se dispunha a descer, Seti, o herdeiro do trono, saía com sua comitiva
e, vendo-a aproximou-se imediatamente; não pude perceber o que disseram, mas ele se mostrou muito amável e lhe ofertou uma rosa. Moça feliz! - acrescentou despeitada
- novas jóias todas as semanas e, ainda por cima, um rosto tão claro que atrai até mesmo as homenagens de um filho de rei.

Nesse momento nossa conversa foi interrompida por um escravo que me apresentou um rolo de papiro, trazido por um jovem que recusou nomear o remetente.

Curioso abri o rolo e vi, surpreso, que era uma carta de Mena, o irmão da bela Smaragda, que minha irmã havia pouco nomeara e que foi meu companheiro de infância.
Pedia-me, com insistência que o procurasse alta noite, fora da cidade, num local designado. Pelo tom da missiva, calculei que se tratava de assunto grave e pedi
licença para retirar-me, a fim de redigir a resposta. De saída, percebi sorrisos dos meus, que imaginavam alguma aventura galante. Não procurei dissuadi-los e recolhi-me
ao quarto.

Quando a noite desceu mandei encilhar um cavalo, envolvi-me numa capa escura e parti sozinho. O local da entrevista era o remanescente de um Templo consagrado a
Hathor, cuja construção fora abandonada. Naquele labirinto de abóbadas inacabadas, de colunas e blocos de granito espalhados no solo, nenhum vivente se aventuraria,
máxime à noite.

Diante de mim, avistei logo as maciças construções, que, esbatidas fantasticamente ao luar, apresentavam-se como gigantescas ruínas.

Saltei da montaria ocultando-a entre os enormes blocos de pedra e, piando três vezes como coruja, (sinal convencionado na carta), esperei. Logo surgia Mena e, apertando-me
a mão, reconhecido, conduziu-me para o santuário da deusa, meio construído.

- Muito obrigado por teres vindo, Necho - disse com voz disfarçada - compreendes que não te chamaria a este local por coisa de somenos; trata-se de minha vida...

Surpreso exclamei, ao notar-lhe o semblante pálido e inquieto:

- De tua vida?

- Justamente, o amor perdeu-me. Seduzi Menchtu, sacerdotisa de Isis e fomos surpreendidos no bosque, perto do lago sagrado; se os sacerdotes conseguirem deitar-me
a mão, terei castigo horrendo, e contudo não me posso conformar em abandonar Menchtu; dá-me um conselho, Necho, porque não tenho cabeça.

Estimava Mena sinceramente, como homem leal e generoso, apesar das suas paixões violentas. Resolvi, de pronto, fazer tudo para salvá-lo.

Depois de pensar um momento, disse-lhe:

- Ouve-me - é preciso fugir o mais depressa possível, porque nada podes fazer em favor de Menchtu. Penso ter tido uma feliz idéia: amanhã sai para a Síria uma grande
caravana; o chefe é pessoa de confiança, discreto e sobrinho do nosso antigo intendente; prepararei tua partida com essa caravana que passará por aqui. Só não sei
se convirá daqui partires, ou se deva levar-te para minha casa...

- Silêncio! - interrompeu Mena segurando-me as mãos - e, na calma da noite, ouvimos então, distintamente, passos de gente que se aproximava e o murmúrio de muitas
vozes.

- Silêncio! - repetiu Mena, levando-me para um nicho profundo, onde nos agachamos, inteiramente encobertos pela escuridão.

Passado algum tempo, vários homens embuçados surgiram à nossa frente.

Uma voz profunda e metálica disse:

- Aqui poderemos conversar à vontade, porque ninguém, salvo os chacais, visita este terreno, onde não há a temer a presença de espiões.

Quem assim falava era um homem de imponente estatura, ultrapassando a dos companheiros. Deu alguns passos à frente e tirou a capa. A lua iluminou em cheio um rosto
notável, que, visto uma vez, não mais se poderia esquecer: longos cabelos escuros e cerrada barba enquadravam traços pronunciados e regulares; espessas sobrancelhas
se reuniam à raiz do nariz aquilino, e sombreavam uns olhos severos e sombrios. O conjunto dessa fisionomia era a personificação da energia e da inteligência. Como
fascinado, eu fitava o imponente personagem, que ainda não me fora dado encontrar. Sua conversa atraiu de pronto toda a minha atenção; eu não falava perfeitamente
o hebraico, mas minha ama, judia, algo me ensinara desse idioma (de resto, conhecido por muitos egípcios), o que me permitiu apanhar a conversa.

Dizia a voz sonora:

- Irmãos - Jeová está convosco, para que se cumpram os destinos preditos ao nosso povo; mão sábia e hábil deverá libertar-vos do jugo, para fundar um novo reino,
onde cada hebreu viverá sob as leis justas e misericordiosas e não sob abominável tirania. Não é revoltante que todo um povo trabalhe e, com o suor do seu rosto,
permita que outro se farte nos prazeres e na indolência? Que funde cidades e construa monumentos que causarão inveja à posteridade e atravessarão os séculos como
padrões de arte egípcia, conquanto erigidos por mãos dos nossos patrícios maltratados?

Um murmúrio de aprovação percorreu a assembléia.

- Não ignoro - continuou - que é uma luta de gigantes a que vou empreender contra o Faraó e os sacerdotes, porque é o nosso povo que os sustenta por toda parte.
Nos campos como nos vinhedos, nos lares como nas obras públicas, vemo-nos de lombo curvo sob o bastão egípcio. Mas não desespereis, meus irmãos, o Deus único e poderoso
que me salvou das águas do Nilo e permitiu que os nossos próprios inimigos me colocassem nos seus Templos para lhes aprender a ciência e a sabedoria; esse mesmo
Deus me dará a força e as armas necessárias à libertação do meu povo, porque assim me foi prometido lá no deserto. Na próxima assembléia, a reunir-se noutro local,
que designarei - porque nunca é demais a máxima prudência - marcarei o dia de minha apresentação a Mernephtah.

Um dos anciãos falou em tom de aprovação:

- Nossas preces te acompanharão, Moisés.

Passaram, depois, a discutir diversas providências para estabelecer estreita ligação entre todas as tribos e fazer chegar, rapidamente, a todas elas, as ordens do
chefe. Dispersaram-se logo.

Quando cessaram os últimos passos, saímos do esconderijo.

- Conspiração curiosa - disse a Mena. Que pensas? Não seria prudente avisar o rei? Mas, quem poderá ser esse Moisés, que pretende apresentar-se a Mernephtah com
tão absurda proposta? Imagino como será bem recebido...

- Segundo o que disse sobre sua miraculosa permanência na superfície das águas do Nilo, sou levado a crer que se trata do filho adotivo da princesa Thermutis, que
pescou o tesouro quando se banhava e o protegeu até a morte, com uma tenacidade muito feminina. Foi meu pai quem me contou isso - acrescentou Mena; - ele conheceu
Thermutis na sua mocidade e não gostava dela. - Há trinta anos passados, mais ou menos - continuou Mena - Moisés foi banido por haver assassinado um egípcio; agora
esquecido, quer apresentar-se pessoalmente ao Faraó. Creio não ser preciso avisá-lo e mesmo não poderias explicar tua presença aqui, porque assim me comprometerias.

- Tens razão. Tratemos de ti. Que recomendações tens a dar-me com relação à tua irmã, que ficará inteiramente só? Naturalmente com o tempo e muito dinheiro, poderás
acalmar os sacerdotes e regressar um dia, Agora o que é necessário é garantir o presente. Para não despertar suspeitas, mandar-te-ei grossa quantia do meu bolso,
e mais tarde me indenizarás.

Mena conservava-se cabisbaixo.

Pesaroso ele falou:

- Minha pobre Smaragda, tão jovem e tão bela, quão ingênua, não poderá viver solitária, precisa casar-se. Escuta, Necho; dois egípcios requestam-lhe a mão. Um é
ó nosso antigo condiscípulo Pinehas, homem sombrio, calado e até, dizem, dado à feitiçaria; o outro que suponho muito do agrado de minha irmã, é Rhadamés, condutor
do carro de Faraó; não é rico, mas estimado por Mernephtah e, em consequência do meu desaparecimento, nossa imensa riqueza reverterá unicamente para Smaragda. É
a este que escolho e peço transmitires à minha mana este meu último desejo.

Rapidamente tirou tabuinhas e escreveu: "Preciso exilar-me e te concedo a mão de minha irmã; protege-a, até que um dia venha pedir-te contas da felicidade dela".

- Envia-lhe estes escritos amanhã cedo; penso poder confiar nele. Não me-trairá... comunica depois a Smaragda.

Conversamos, ainda, sobre vários pormenores, ficando definitivamente assentado que partiria com a caravana para a Síria e de lá mandaria notícias. Separamo-nos e
voltei para casa agradecendo aos deuses me haverem livrado de um amor como esse, que perdera o pobre Mena.

Na manhã seguinte, fui à casa de Rhadamés, que morava em companhia de sua mãe e duas irmãs. Casa de modesta aparência, mas ornamentada exterior e interiormente com
pretensões de elegância. O condutor do carro já havia saído para o palácio e foi lá que o encontrei para entregar a mensagem. Lendo as palavras de Mena um clarão
de alegria e triunfo iluminou-lhe o semblante duro e impassível; mas, logo procurando dissimular essa impressão, apertou-me a mão:

- Agradeço-te, Necho, a boa notícia que me trouxe, mas onde está Mena?

Nunca depositei grande confiança em Rhadamés, e o olhar dissimulado e penetrante com que me fez a pergunta reforçou minhas presunções.

- Não é conveniente dizê-lo aqui onde tantos ouvidos indiscretos podem ouvir-nos, - respondi evasivamente, e logo me afastei.

Fui ao palácio de Mena, porque tencionava, a todo custo, falar com Smaragda antes que Rhadamés se apresentasse.

Ao chegar diante da porta ornada de esfinges e bandeiras, alguns escravos ricamente trajados se precipitaram para deter o veículo e me ajudar a descer. Eu não era,
evidentemente, o primeiro visitante, porque também lá estava uma elegante liteira; e quando perguntei se poderia falar à irmã de Mena, um velho mordomo respondeu,
respeitosamente, que a senhora se encontrava no terraço e prontificou-se a acompanhar-me.

Passamos por uma série de salas ricamente mobiliadas e, a seguir, extensa galeria, sustentada na parte externa por colunas cuja pintura imitava palmeiras. À entrada
dessa galeria, troquei um aperto de mão com um jovem já conhecido, por já havê-lo encontrado várias vezes em outra casa. Chamava-se Omifer e era fabulosamente rico,
mas de linhagem medíocre, pelo lado materno. Nesse momento, sua bela fisionomia irradiava contentamento e os grandes olhos negros espelhavam radioso triunfo, que
me fez pensar:

- Se foi tua entrevista com a bela Smaragda que te pôs tão contente, logo te sentirás desencantado, pobre Omifer; quando o insulso e tirânico Rhadamés aqui mandar,
este palácio perderá muito do seu encanto...

Terminava a galeria no vasto terraço aberto para o jardim. Esse era ornamentado de cortinas raiadas de vermelho e branco e literalmente ensombrado pelas flores mais
raras. Numa espécie de bosque havia uma mesa rodeada de cadeiras do ébano com incrustações de ouro e marfim. Lá deparei a bela Smaragda, tão abstrata que nem deu
pela minha chegada.

A irmã de Mena era uma criatura realmente encantadora, esbelta e delicada. Herdara da genitora uma tez de alvura incomparável, realçada por cabelos e olhos de azeviche;
traços mimosos e infantis. Entretanto, um friso de ironia, que por vezes lhe retraía os lábios róseos, o olhar acerado e a mobilidade das narinas, indicavam a mulher
enérgica, dotada de paixões ardentes.

Estava radiante e toda sua atenção se concentrava em maravilhosa cesta, onde, como em cochim de flores, figuravam magnífico colar e precioso diadema ornado de esmeraldas
de tamanhos invulgares.

Seria presente de Omifer... - pensei - e eu que lhe vinha anunciar que estava prometida a Rhadamés! Fatal incumbência!

A voz do mordomo, que de braços cruzados, me anunciou, Smaragda levantou-se e recebeu-me amavelmente. Falamos, a princípio, de coisas superficiais, pois custava-me
abordar o assunto, na verdade inoportuno para o momento. Finalmente, pedi que afastasse os criados, porque cumpria confiar-lhe coisas graves.

Surpresa, despediu o anão e as damas de companhia, conservando apenas a velha ama que a abanava, acocorada a seus pés. Então, em poucas palavras, expus a tragédia
de Mena e o desejo que manifestava de vê-la casada com Rhadamés.

Ao ouvir tais palavras, sua fisionomia tomou súbita expressão de cólera e contrariedade.

- Não quero Rhadamés, nem o aceitarei - exclamou de rosto esfogueado. Que idéia de Mena! Dispor da minha pessoa, como se eu fosse um camelo ou um escravo!

- Mas - objetei - ele supõe que tu o amas e o escolheu de preferência a Pinehas, que te é antipático.

Ela baixou os olhos e sacudiu nervosamente a echarpe vermelha, bordada a ouro, que lhe cobria os ombros.

- Sim - amei-o até... isto é, pensei que o amava... mas, agora não! Nunca!

Cobriu o rosto com as mãos e desatou a soluçar.

Vendo essa cena a velha ama, largando o leque, abraçou os joelhos da jovem senhora e pôs-se a lamentar desesperadamente. Eu também sentia-me constrangido.

Tocando-lhe no braço, disse:

- Smaragda, enxuga as lágrimas e ouve um conselho do amigo: evita ofender Rhadamés, que possui engodos pelas quais tua mão lhe foi confiada e que, por outro lado,
lhe revelam o segredo de Mena. Será neste que se vingará, se preferires um outro. És bela e rica e Rhadamés, que é vaidoso, mau e pobre responderá a uma recusa com
a perda e a desonra do teu irmão.

Ela ergueu a cabeça e disse com tristeza:

- Tens razão, Necho, não posso romper abertamente. Mas preciso ganhar tempo, até que Mena esteja em segurança. Tratarei, então, de mim.

Um pequeno nubiano apareceu naquele momento, esbaforido, no terraço, anunciando que o carro do nobre Rhadamés acabava de parar à porta.

- Que seja bem-vindo; acompanha-o até aqui - disse Smaragda dando-me uma prova da dissimulação extraordinária de que são capazes as mulheres.

Rapidamente, as jóias desapareceram de entre as flores e entregando a cesta à ama, acrescentou:

- Leva daqui estas flores, cujo perfume aborrece-me.

E aproveitando o momento em que a ama se afastara, murmurou:

- Se és meu amigo, nem uma palavra sobre o meu descontentamento e meu amor a outro.

Ajeitou-se na cadeira e tomando no prato um bago de uva, pôs-se a chupá-lo com ar displicente.

Achava-me ainda admirado com aquela atitude, quando Rhadamés entrou alegre, seguido de dois escravos sobraçando enormes cestas.

Jogando às mãos de um criado a capa e o capacete, foi ajoelhar-se diante de Smaragda.

- Caro amor - disse, abraçando-a e beijando-lhe a face - teu irmão abençoou o nosso amor e me concedeu o direito de proteger-te.

Levantou-se, acenou aos escravos para que se aproximassem e depusessem as cestas aos pés da jovem.

- Recebe esta insignificância, que espero ver-te usar, um dia.

Aproveitando o momento em que Smaragda inclinava-se, pálida mas sorridente, sobre as cestas cheias de sedas, jóias e preciosos frascos de perfumes e cosméticos,
Rhadamés tirou da cintura uma bolsa que atirou aos escravos e, risonho, afivelou no pescoço da ama um cordão de ouro.

Antes que houvesse terminado meu copo de vinho, em homenagem aos noivos, Rhadamés arrastou a cadeira para junto da futura esposa e lhe disse com ternura:

- Fui informado da desgraça sobrevinda ao teu pobre irmão e considero dever de honra tudo envidar para socorrê-lo; vejamos, pois, como proceder. Necho, que lhe conhece
o paradeiro, tem a palavra.

Posto assim em evidência, expus o mais sucinta e evasivamente o plano por mim idealizado.

Rhadamés sacudiu a cabeça em sinal de aprovação.

- Não se poderia conseguir nada melhor; as caravanas partem todos os dias, em todas as direções e quem o descobrirá entre elas? Uma vez fora do Egito, estará garantido.

Smaragda tudo ouvira suspeitosa, de cenho carregado.

- Escuta, Necho, uma coisa - disse ela por fim. - Vou carregar dez camelos, de ouro e objetos preciosos e indispensáveis; um velho escravo, fiel como um cão, os
levará e tu te Incumbirás de os incorporar à caravana, sem despertar suspeitas, pois eu não posso consentir que meu pobre Mena permaneça no exílio sujeito à pobreza
e passando privações.

- Isso é fácil. Logo à tarde, mandarei pessoa de confiança levar os camelos ao pouso da caravana.

Ao ouvir as palavras de Smaragda, Rhadamés franziu a testa e corou como um pimentão. Compreendi que temia perder as riquezas que lhe pareciam imensas, porque sua
avareza era conhecida.

- Deixa que te observe - disse ele, esforçando-se por conservar um tom de voz conciliador - que assim te desfazes de coisas cujo valor mal podes apreciar; sabes
quanto valem dez camelos carregados de riquezas? Não há dúvida de que, a todo momento, poderemos enviar recursos a teu irmão, mas não uma fortuna de uma só vez.
Tu não entendes de negócios, minha querida, e como Mena me constituiu teu protetor, torno-me automaticamente gestor dos teus bens e não posso autorizar um tal desperdício.

Lábios desdenhosamente crispados, um clarão sinistro a jorrar-lhe os olhos, Smaragda levantou-se.

- Sempre soube governar minha vida e não serás tu quem há de cassar-me este direito! Recusas dez camelos carregados de riquezas ao senhor deste palácio! Aquele a
quem deves quanto esperas? Tranquiliza-te, pois mesmo sem esses dez camelos, ainda sobrarão muitos haveres na casa de Mena, para manter seu esplendor.

Deu um passo para sair, mas Rhadamés já tinha caído em si e reteve-a, dizendo:

- Smaragda, perdoa. Estamos de acordo, faze como quiseres pois que meu amor é desinteressado.

O olhar equívoco e o tremor de seus lábios contradiziam as ternas palavras. Sem dúvida, a dissimulação lhe custava tanto, que se levantou para sair, pretextando
serviço no palácio.

- Ficai cientes - acrescentou - de que a caçada marcada para amanhã foi transferida, em vista do acidente havido com o herdeiro, que, ao descer uma escada, escorregou
e luxou o pé.

Conversamos ainda um pouco a esse respeito, mas Smaragda manteve-se calada. Logo que ele desapareceu, ela deixou-se cair na cadeira com um suspiro abafado.

- Que insolente! - disse comprimindo o seio ofegante - cedo se desmascara! Que fazer para desembaraçar-me dele? Tenho uma idéia. Seti, o herdeiro do trono, me quer
muito bem, prestando-me sempre muita atenção; vai procurá-lo, Necho, confia-lhe tudo, suplicando em meu nome que me socorra se for possível.

Foi banhada em lágrimas que me fez esse pedido e eu prometi ir sem demora ao palácio, tanto mais quanto precisava apresentar a Seti o meu pesar pelo acidente que
sofrerá.

Assim dirigi-me ao pavilhão ocupado pelo herdeiro e fui, sem demora, levado à sua presença.

Estava na grande sala contígua ao terraço. A um canto, sobre um estrado, estava o leito de ouro maciço, e, sobre almofadas de púrpura e peles de leão, Seti deitado.
Belo rapaz, esbelto e elegante, mas cuja fisionomia altiva e olhar profundo, davam sempre a idéia da sua dignidade. O pé machucado estava envolvido em ataduras,
mas parecia não lhe causar maior sofrimento, de vez que acompanhava com visível interesse os trejeitos de um prestidigitador acocorado no tapete.

Para não incomodá-lo, meti-me entre a multidão de oficiais e cortesãos que enchiam a sala e, somente quando ele me fixou, aproximei-me e o saudei respeitoso.

Falou-me com bondade e aproveitei o ensejo para dizer que tinha a incumbência de lhe transmitir, em particular, uma petição feminina. Sorriu e, com um gesto, ordenou
que saíssem todos, passando a ouvir-me atentamente.

Quando terminei, disse:

- Sinto que este acidente me impeça de falar pessoalmente à bela Smaragda, mas outra coisa não lhe poderia dizer senão isto, que peço transmitir-lhe. Sou de opinião
que ela se conforme com o inevitável, porque, dado o caráter de Rhadamés, este lhe moverá tremenda guerra e não cederá. Se, ainda assim, ela fizer questão de esposar
Omifer, de quem tenho boas referências (e com o que poria termo a velhas rixas), deverá fugir e opor ao noivo indesejado o fato consumado do casamento, o que não
deixa, aliás, de ser uma solução perigosa, por vários motivos, além de que o rei, como sabes, muito estima Rhadamés e poderá levar a mal a afronta ao condutor do
seu carro.

Cumpria-me ficar satisfeito com essa resposta, porque o príncipe me despediu e voltou-se para um harpista que acabava de entrar.

Ao descer do estrado, notei aborrecido, que um oficial de nome Setnecht, ajudante de ordens do príncipe herdeiro, me observava desconfiado. Felizmente, nada pôde
ouvir da conversa. Setnecht era primo de Rhadamés.

Cheguei à casa cansado e com fome e lá soube que todos já tinham almoçado e se encontravam no terraço. Mandei que me servissem a refeição no quarto, e depois de
ligeiro repouso, reuni-me aos meus familiares.

Estavam todos reunidos em torno do hóspede, que falava com grandes gestos e parecia despertar grande interesse com a sua loquacidade.

O visitante era um bom amigo, que não via há várias semanas, porque tinha ido a negócios, à cidade de Ramsés. Homem dos seus trinta e cinco anos, mais ou menos,
gordo e algo pretensioso, mas amável, bem falante e muito abastado. Chamava-se Chamus. Ele apenas me inspirava fraca simpatia, mas minha mãe apreciava-lhe a palrice
e eu sabia que ela desejava casá-lo com Ilsiris.

Chamus cumprimentou-me cordialmente e, quando pretendi saber o que narrava e suscitava tanto interesse, disse, com ares de mistério, que estava investigando uma
grande conspiração, cuja descoberta tornaria Faraó e o Egito reconhecidos à sua atuação. As idéias lhe galopavam sem freios, vendo-se já como o falecido José, que
salvara o país da fome, num carro triunfal cingindo o colar de honra, com anel da própria mão do Faraó, precedido de batedores a proclamarem-no salvador da pátria.

Desconfiado, perguntei-lhe como havia descoberto a pista da conjura que se propunha denunciar.

- Foi em Ramsés - devo dizer que, aborrecido com a vida que levava nessa cidadezinha, eu alimentei as fantasias de uma jovem judia, que se tomou de frenética paixão
por mim. Por muito bonita, não a repeli. O mais interessante é que Léa devia ocultar o seu amor, porque o pai, velho muito rico, tem ridículas idéias sobre a virtude
e foi precisamente devido a esses preconceitos que descobri a conspiração.

Tudo aconteceu poucos dias antes do meu regresso. Léa desesperada por não me ver durante uma semana, mandou-me um bilhete marcando encontro em certo lugar secreto,
de cuja entrada fornecia minuciosa descrição. Na noite combinada, lá fui ter, pois bem sabes que sou destemido, máxime em assuntos amorosos, nos quais sou ousado
até a loucura. Dá-se que essa entrada misteriosa era uma velha cisterna esgotada. Numa das paredes, rodava uma pedra sobre gonzos ocultos, com acesso a galerias
e cavernas subterrâneas. Lá me aguardava Léa, que disse arriscar a própria vida ao revelar-me aquele esconderijo, onde seu pai e parentes guardavam o que possuíam
de mais precioso.

Acomodamo-nos em enorme caverna abarrotada de cofres e cubas, e onde vinha dar uma escada de pedra. Estávamos no melhor da entrevista quando ressoaram passos ao
longe. Ela me levou para um canto onde nos acocoramos atrás de duas grandes cubas, apagando a lâmpada. Prontamente, luz e passos se aproximaram e o grupo espalhou-se
na caverna. Eu tudo observava por uma fresta entre duas cubas e reconheci no primeiro que chegava, Abrahão, pai de Léa, depois um homem alto, de aspecto distinto,
rosto pálido emoldurado de cabelos pretos e espessos como uma juba de leão, e olhos que também lembravam pelo brilho e expressão, o rei dos animais.

Comecei a prestar mais atenção à narrativa de Chamus. Se o homem que ele acabava de descrever fosse Moisés é claro que, antes de vir a Tanis, teria pregado a revolta
em Ramsés e a coisa se complicava.

- Ouço-te com toda atenção. Continua, pois - disse a Chamus, que fizera uma pausa abanando-se com afetação.

- Caro amigo - secundou minha mãe - não nos faças esperar pelo que tanto nos interessa, pois suponho que esses miseráveis querem atentar contra a vida do nosso grande
Mernephtah, a quem concedam os deuses longa existência, glória e saúde.

Chamus continuou:

- O velho Abrahão pendurou o archote na parede e todos, cerca de doze pessoas, acomodaram-se como lhes foi possível. Arrependo-me de saber muito pouco a língua hebraica,
pelo que muitas palavras me escaparam. Entretanto, ouvi o bastante para saber que o personagem destacado de que falei era Moisés, nem mais nem menos que o menino
judeu salvo do Nilo pela princesa Thermutis. O que ele disse, compreendi muito bem, porque sua pronúncia é lenta. Falou longamente; depois, referiu-se a um deus
chamado Jeová, que lhe apareceu no deserto e ordenou que se dirigisse a Mernephtah - que os deuses conservem - a fim de o dominar por milagres. Disse ainda, que
um brilhante destino aguardava os hebreus, que fundaram, não sei onde, um reino de que ele, Moisés, era o soberano, sem dúvida... Ah! Ah! Ah! Um reino de judeus,
que Idéia extraordinária não achas?

Falaram ainda muito, porém tão rapidamente que nada pude entender. Naturalmente, tratava-se dos milagres que deveriam impressionar Faraó, porque trouxeram grande
cesta que depuseram aos pés de Moisés, e donde este retirou enorme serpente, segurando-a pelo meio. Como a luz do archote o iluminava em cheio, pude notar que depois
elevou os braços e fez um apelo a Jeová. A seguir, voltou a olhar com terrível fixidez o animal, enquanto com a mão livre, meio fechada, parecia acariciar lentamente
todo o corpo do réptil.

Fato estranho! A serpente eriçou-se e transformou-se em um bastão, com o qual ele bateu na cuba que me ocultava. Depois, o passou aos assistentes para examiná-lo,
e, quando lhe voltou às mãos, aplicou-lhe novamente gestos, pronunciando estas palavras: - "Em nome de Jeová, retoma o teu estado!"

Imediatamente o animal agitou-se enroscando-se em espiral.

Outras experiências foram ainda feitas por ele, mas nada pude ver, porque os circunstantes se comprimiam ao seu redor e eu estava muito estarrecido para compreender
o que ele dizia. Agora, estou convencido de que Moisés é um grande mágico, que quer enfeitiçar o nosso Faraó, mas irei denunciar a Mernephtah os planos desse homem
perigoso.

Em vista dessa descoberta adiei a partida de Ramsés. Quanto a Léa, não me trairá, pois, tem muito medo, sabendo que essa aventura poderá custar a vida do pai.

Estou agora convicto de que Moisés tem um grande plano bem urdido, mas não querendo revelar que também já o havia surpreendido aqui, deixei que continuassem a comentar
a narrativa de Chamus e retirei-me para meu quarto, porque já se fazia tarde e, de um momento para outro poderia chegar o portador de Smaragda com os dez camelos.
Havia prevenido o nosso velho intendente, e com a sua ajuda tudo consegui. Os camelos foram incorporados à caravana.

Ao escurecer, fui para as ruínas abandonadas do Templo de Hatbor, onde Mena aguardava-me. Com a notícia de que lhe trazia uma fortuna e o seu velho e fiel escravo,
tornou-se visivelmente calmo e animoso, abraçou-me calorosamente e incumbiu-me de agradecer à irmã.

Alguns instantes depois, o fiel nubiano abraçava os joelhos de Mena, com lágrimas de contentamento. Trocamos um último aperto de mão e o amigo cavalgou o camelo,
acompanhando a caravana.

Permaneci de pé seguindo-os com a vista até desaparecerem na bruma. Suspirando, montei o cavalo. Não sabia que, nesta existência, não mais reveria o amigo.

Na manhã do dia seguinte, procurei Smaragda para informá-la da partida do irmão e também da resposta de Seti. Senti-me desagradavelmente surpreendido de ali encontrar
Rhadamés, o que me impediu de desempenhar meu intento. Contudo Smaragda soube, por iniciativa própria, afastá-lo um momento, que aproveitei para tudo dizer.

- Compreendo. Seti tem razão, - ela falou empalidecendo - esse insolente me espiona e começo a detestá-lo.

A chegada de Rhadamés interrompeu a confidência e logo me despedi.

Passados dois dias, o Faraó dava nova audiência pública. Eu estava de serviço e me postara junto ao trono. Um pouco distante, incorporado ao séquito, vi Chamus que
se tinha apresentado ao grão-mestre da Corte, solicitando uma audiência particular, para revelar ao rei importante segredo.

A audiência estava prestes a terminar, quando entrou na sala um grupo de pessoas e qual não foi meu espanto reconhecendo Moisés à frente, seguido de um homem de
porte médio, fisionomia velhaca, astuta e vários anciãos hebreus. A expressão aflitiva de Chamus convenceu-me de que também ele acabava de identificar o conspirador.

Ao ficar em frente ao trono, Moisés parou sem fazer as saudações obrigatórias.

O Faraó olhou-o com espanto e desagrado, e perguntou bruscamente:

- Quem és e o que queres?

O olhar coruscante de Moisés fixou-se em Mernephtah, mas fosse porque se perturbasse com a gravidade do momento, ou com a presença do rei, o certo é que só depois
de prolongado silêncio, respondeu vagaroso, com certa dificuldade:

- O Deus de todos os deuses, Jeová, que o povo de Israel adora, enviou-me à tua presença para pleitear a libertação dos hebreus, e para que o deixes partir para
o deserto oferecer-lhe sacrifícios, porque Israel é o povo escolhido e amado por Jeová, acima de qualquer outro.

- Os hebreus estão ocupados em trabalhos úteis, que não Interromperei para facultar passeios ao deserto - respondeu Mernephtah tranquilamente.

Os olhos de Moisés lançaram chamas.

- Sim, é verdade e eles sucumbem aos milhares nos trabalhos úteis com que os egípcios os sobrecarregam. Tu te julgas grande e poderoso rei. Desprezas como impuros
os meus irmãos; entretanto, nem tu, nem os teus súditos, desdenham alimentar-se à custa do seu suor. Sacrificas aos teus deuses, que recompensam a virtude e a caridade.
Crês que a alma culpada e cruel deve expiar seus crimes no corpo de um animal e deixas maltratar seres indefesos, criados como tu, e que, tal como os egípcios, são
teus súditos e como estes últimos, trabalham para ti, aumentando teu luxo e riquezas e pagando impostos. Em compensação, vêem-se desprezados, maltratados e esmagados
no trabalho. Jeová, o deus grande e único, cuja justiça iguala a sabedoria e cuja paciência afinal chegou ao fim, falou:

"Deixei passar mais uma dinastia de Faraós sem lhes fazer sentir minha cólera, mas agora retirarei aos egípcios os homens que os sustentam e para eles trabalham,
porque são injustos, ingratos e cruéis".

É Jeová quem manda dizer-te, Faraó Mernephtah; consente na partida dos filhos de Israel para que eles lhe ofereçam sacrifícios no deserto.

Silêncio de morte reinava no grande salão.

Diante de tão insolente discurso o monarca parecia mudo. Depois, vivo rubor esfogueou-lhe a face e os olhos fuzilaram. Nós próprios estávamos de armas prontas, acreditando
que ele ia ordenar que parasse ou puníssemos de morte o temerário. Mas o que sobreveio à cólera real foi um sorriso escarninho e zombeteiro.

- Que deus é esse - disse ele - que tem a pretensão de me julgar e aos meus antepassados? Seu poder não me inspira temor nem respeito, de vez que se proclama pai
e protetor de um povo tão preguiçoso, qual o de Israel, criados para o cativeiro, tanto que procria rapidamente, a ponto de não se saber o que fazer de tanta gente
que nasce.

O que é nobre é raro: entre milhares de bois encontra-se um Apis. A massa é sempre vulgar. Desiste, pois, de importunar-me com o teu deus.

- Não desdenhes Jeová, grande rei! - disse então com voz clara e fácil o companheiro de Moisés (eu soube mais tarde que se tratava de seu irmão Aarão); o poder desse
Deus é imenso e poderás ter a prova sem mesmo te afastares desse trono.

Moisés atirou no mesmo instante o bastão no assoalho e ergueu os braços. Vimos Mernephtah estremecer, e todas as cabeças se inclinarem para a frente e um grito de
espanto partiu da assistência. Uma serpente deslizava nos degraus do trono, silvando e contorcendo-se em espirais. Então, Moisés abaixou-se, agarrou o animal pelo
meio e passou a outra mão pelo seu corpo, tal como havia contado Chamus. A serpente transformou-se novamente em um bastão cinzento, com o qual bateu fortemente no
assoalho.

Todos estavam inquietos e pálidos; apenas Mernephtah havia recobrado a calma.

- És um grande mágico - disse - mas não vi o poder do teu deus.

Moisés retrucou:

- Olha minha mão, está inteiramente sã? E metendo-a nas vestes, retirou-a pouco depois coberta de chagas leprosas.

O rei recuou com asco. O profeta tomou a colocar nas vestes a mão e retirou-a completamente limpa e sã.

Erguendo a cabeça e encarando Moisés com olhar perquiridor, disse Mernephtah:

- Tu te dizes o enviado do grande deus dos hebreus e que o desejo dele e teu, é levar esse povo para o deserto. Mas, consultaste os filhos de Israel que aqui vivem
há séculos, fartos, sem que nada lhes falte? Quererão eles acompanhar-te?

- Queremos! - responderam em uníssono os anciãos que acompanhavam Moisés e o irmão.

- Então, consultaste-os, recebeste-lhes as observações e explicaste as vantagens de uma mudança? Porque não posso crer sejam teus irmãos tão imprudentes para concordarem,
sem conhecer de antemão, todas as possibilidades da empresa.

Ao ouvir essa pergunta insidiosa, Moisés voltou-se vivamente para trás, pretendendo impor silêncio aos companheiros, mas fê-lo tardiamente, pois já um sim havia
escapado.

Admirando a habilidade de Faraó e todas as cabeças se esticaram avidamente, quando ele prosseguiu com desdenhoso sorriso:

- Dize ao teu deus, enviado do grande Jeová, que, se o seu poder não vai senão ao ponto de criar alguns conspiradores, que excitam habilmente uma legião de preguiçosos
que muito pouco produzem, então, o povo escolhido não sairá jamais do Egito. Darei ordens para que esses ouvidos ociosos tenham outras ocupações que não ouvir discursos
deletérios e sediciosos. Vai-te e leva ao teu Deus esta proposta de Mernephtah.

Altivamente levantou-se, demonstrando, assim, que dava por encerrada a recepção. Lentamente desceu os degraus do trono e passou junto dos hebreus sem lhes dar a
honra de um olhar.

Braços cruzados, Moisés seguiu o rei com olhar bastante estranho.

- Retornarei - disse com voz surda mas bastante forte para que todos ouvissem, e voltando-se, saiu acompanhado dos anciãos hebreus.

Em seus aposentos, o Faraó despediu a comitiva, com exceção de alguns altos dignatários, conselheiros e oficiais de serviço. Despiu as insígnias reais e pôs-se a
caminhar de um lado para outro, pensativo. Por fim, atirou-se numa poltrona e tomando tabuinhas de sobre a mesa, disse:

- Enviai imediatamente ao herdeiro e dizei que venha até aqui.

Depois de escrever qualquer coisa e entregando a um dos conselheiros, acrescentou:

- A conspiração que nos revelou o insolente, hoje, Aahmés, não é de pouca importância como parece. Providencia, pois, para que as ordens agora expedidas sejam executadas
o mais depressa possível, e que todos os chefes e fiscais dos hebreus, assim como os governadores das cidades onde eles residem, sejam convocados para uma reunião
que eu próprio presidirei.

Saiu Aahmés e o rei, apoiando os cotovelos nas almofadas, pôs-se a pensar com ar sombrio e cenho carregado.

A entrada do herdeiro fê-lo erguer a cabeça. Evidentemente, o príncipe já estava inteirado da ocorrência, porque seu rosto altivo estava pálido e os lábios contraídos.
Com o passo rápido dirigiu-se para o rei, beijando-lhe a mão, e agradeceu a cadeira que este lhe indicou, permanecendo encostado à mesa para dizer com voz vibrante
de paixão mal contida:

- Não deixes sair os hebreus, pai, pois isso seria a ruína do país!

- Acalma-te; eles não partirão jamais. Como, porém, impedí-los de murmurar, conspirar e desejar a liberdade? Seu número é considerável e uma sedição é sempre perigosa.

Com uma expressão fria e cruel ele respondeu:

- O chicote e o trabalho dobrado mudarão suas idéias. Os desejos e projetos de viagem - disse com voz imperiosa - desaparecerão com a falta de tempo e as fadigas.
Eles se considerarão felizes em aproveitar o que lhes sobrar para o repouso.

Mernephtah levantou-se prazenteiro e bateu no ombro do príncipe:

- Vê-se bem que és meu filho. A mesma divindade nos inspirou. Já dei ordens para se reunirem os governadores e fiscais dos hebreus e vamos estabelecer os trabalhos
que lhes deverão corrigir o desejo de conspirar. Moisés e o grande Jeová ficarão impotentes.

- Por que não mandas prender esse perigoso intrigante? - perguntou Seti.

- Porque não convém atribuir-lhe o papel de vítima, a fim de não excitar o interesse que essa condição desperta. Sua incapacidade torná-lo-á desprezado. O malogro
dos seus grandes projetos o tomarão detestado. Deixemos este assunto por hoje, tanto que desejo divertir-me com uma caçada; que tudo esteja pronto e se teu pé o
permitir, irás comigo.

E Mernephtah, cujo espírito inquieto não gostava de se demorar muito tempo num mesmo assunto, falou alegremente da caçada e da excelência dos seus cães.

O herdeiro pediu que lhe desculpasse, pois não poderia acompanhá-lo. Após a partida do rei (que escolheu ele próprio os que deveriam segui-lo), solicitei e obtive
do meu chefe uma dispensa até o dia seguinte.

Ao chegar à casa, encontrei os meus reunidos; Chamus lá estava e naturalmente não acabava mais de falar dos acontecimentos que testemunhara.

Quando entrei, ele ainda comentava o atrevimento do judeu impuro, a insolência do seu discurso, a dignidade de Mernephtah e a impressão própria e dos demais que
assistiram à memorável audiência.

Minha mãe e minha irmã crivaram-me de perguntas, apenas dando tempo de tomar um copo de vinho.

Um grande conselho vai ser convocado - disse eu -, Aahmés levou ao governador da cidade uma ordem para convocar quanto antes os chefes e fiscais dos hebreus, cujos
trabalhos serão regulamentados, pois tanto Mernephtah quanto Seti são de opinião que é preciso fazer abortar essa conspiração, não deixando aos hebreus, tempo para
ouvirem discursos subversivos.

- Tem muita razão - redarguiu meu pai - essas hordas impuras trabalham muito pouco, mas, sabes se o conselho será secreto?

- Não sei dizer-te. Além dos funcionários que já nomeei, convocaram também os principais sacerdotes, porque o tal Moisés é um grande mago e é perigoso meter-se com
essa gente sem o auxílio dos sábios.

Por muito tempo conversamos sobre todos esses assuntos. A inquietação era grande, na previsão de calamidades. Minha mãe me recordou as terríveis previsões que lhe
havia contado a nobre Herneka e ficamos sabendo que Chamus ouvira a mesma coisa em Thebas, da boca de um primo, sacerdote de Amon.

Passados dois dias, o Faraó resolveu ir ao templo de Ra para sacrificar ao deus de sua devoção, porquanto, na tarde desse dia, deveria congregar o grande conselho.

Quando o rei descia do carro para tomar a barca, um grupo de homens foi ao seu encontro. Eram Moisés e seus companheiros, pelo que, logo empunhamos as espadas, mas
Mernephtah fez sinal para que ficássemos calmos e perguntou com desdenhosa firmeza:

- Que queres ainda, Mesu? Já não tiveste minha resposta?

O hebreu fixou seus olhos no rei com tal insistência que parecia devorá-lo e, depois dessa contemplação silenciosa, disse:

- O que pretendo é sempre a mesma coisa. Deixa partir o povo de Israel; o grande Deus que me envia assim o exige; seu poder é sem limites e isso ele te provará.
Hoje eu ainda peço e suplico, mas livra-te da minha ameaça e treme diante do castigo à tua teimosia.

Enquanto falava, os olhos despediam chispas e pareciam pregados nos do rei. Mernephtah estava como que oprimido, seu olhar amortecia, e por vezes passava a mão pela
fronte.

Moisés continuou tomando à pequena carregadora de água o cântaro que trazia à cabeça:

- Vê, a vontade do meu Deus pode mudar em sangue esta água pura e límpida...

Despejando o cântaro, todos vimos, trêmulos, grosso filete de sangue espalhar-se no solo. Gotas cintilantes ao sol, como rubis, ainda ficaram matizando as bordas
do vaso.

- Quero prevenir-te, pois, que se continuares retendo o povo escolhido, Jeová mudará em sangue as águas do Nilo; os peixes morrerão e tudo será empestado.

Pálido e imóvel, como fascinado pelos olhos incendidos de Moisés e de seu irmão o rei tudo ouvira. Imediatamente, porém, meneou a cabeça como para aliviar um peso,
corou, os olhos flamejaram e, fugindo ao olhar de Moisés, saltou para a embarcação, dizendo-lhe altaneiro:

- Tu te enganas supondo intimidar-me com os teus sortilégios; não passas de um grande mágico, mas, por tão pouco não libertarei os hebreus.

Vi Moisés bater o pé e acompanhar a barca real com olhar sombrio; depois, voltou-se e desapareceu entre a multidão.

Faraó parecia pensativo e assim esteve muito tempo no santuário, a sós com o grão-sacerdote. Quando de lá saiu, mostrava-se desembaraçado e calmo. Gracejando amavelmente
com as ameaças de Moisés e com os doces envenenados que pretendia ofertar-nos, reentrou no palácio.

Na pequena sala do conselho, brilhantemente iluminada, reuniram-se à tarde, os fiscais dos hebreus, os governadores das cidades e os mais veneráveis sacerdotes,
entre os quais o ilustre e sábio Amenofis, da casa de Seti, pessoalmente conhecido do monarca e por ele distinguido. Eu e outros oficiais da guarda vigiávamos as
portas.

Presentes todos os convocados, Menerphtah entrou acompanhado do herdeiro, ocupando o trono, enquanto o filho tomava assento mais abaixo; os funcionários se prosternaram
mas com voz musicada, Faraó ordenou que se levantassem e perguntou, em seguida, se o conspirador já se tinha mostrado entre os operários a eles confiados.

Os chefes disseram ostensivamente que não.

- Porém, - informaram - sabiam que à noite os hebreus faziam reuniões a que compareciam provavelmente, portadores dos planos de Moisés, visto que manifestavam nas
atitudes e na preguiça, imprudente grosseria e negligência, numa crescente resistência.

- Quais os principais trabalhos a que se entregam presentemente? - indagou Faraó.

- Edificações na cidade de Ramsés, reparação de canais e preparo de tijolos para essas obras - responderam os governadores.

- Então ouvi o que resolvo e transmiti aos vossos subordinados, - disse Mernephtah - o trabalho dos hebreus deverá ser aumentado de tal maneira que o cansaço lhes
tire o gosto e o tempo de conspirar; mas de que modo pensais que lhes poderíamos aumentar a tarefa diária?

- Pensamos, grande rei, - respondeu um arquiteto - que se obrigarmos a cortar eles mesmos a palha de que necessitam e que agora recebem já pronta, exigindo-lhes,
simultaneamente, a fabricação da mesma quantidade de tijolos, como anteriormente, isso bastará para ocupá-los até o esgotamento.

Ainda discutiram os pormenores da providência, até que o rei levantou-se e disse, dando por finda a reunião:

- Deverá entrar em execução a partir de amanhã, o que ficou resolvido.

Passaram-se mais de doze dias sem consequências dignas de menção. Moisés e seu irmão não eram vistos em parte alguma; os hebreus trabalhavam dobrado e pareciam muito
combalidos; todo mundo se tinha acalmado e eu me ocupava dos meus afazeres de família, acrescidos com a perspectiva do próximo enlace de minha irmã Ilsiris, assim
triunfando a vontade materna em relação a Chamus.

Na manhã de um certo dia, achando-me de folga, meu pai me incumbiu de visitar um vinhedo muito retirado, cujo zelador tinha adoecido. À certa distância da cidade,
percebi, próximo da estrada, um ajuntamento considerável. Ouvi exclamações e ameaças, enquanto braços erguidos pareciam designar algo que eu não podia ver. Dirigi
o cavalo para o local e nessa massa de gente de todas as idades, cansados e quase nus, reconheci os hebreus a carregarem palha para uma olaria.

De pé, fiscais egípcios, tranquilamente se mantinham à parte, observando o tumulto com indiferença; muito admirado, alcei-me na sela e vi, no meio do grupo, Moisés
em pessoa, seguido do irmão.

A multidão furiosa o acusava; instrumentos de trabalho e pedras nas mãos erguidas, provavam que a raiva ia transformá-los em armas de agressão.

Uma voz dominando a celeuma, gritou:

- Pérfido impostor - nada podes fazer; em vez de libertar-nos apenas desencadeaste a cólera do grande Faraó; anda a ver todas as construções e fornos de cozer tijolos,
contempla a tua obra; por toda parte nossos irmãos morrem de fadiga e trabalho.

Centenas de vozes roucas e dissonantes, exclamaram:

- Matem-no.

Pensei que, se os próprios judeus massacrassem o chefe, prestariam real serviço a Mernephtah, mas não queria imiscuir-me em coisa alguma, temendo atritar-me com
o grande mágico. Contentei-me em observá-lo.

Moisés parecia calmo e impassível; braços cruzados, cenho carregado, fitava com olhar profundo e indefinível a multidão enfurecida que o cercava; seu companheiro,
agitadíssimo, rosto afogueado, gesticulava atrás dele, tentando certamente persuadir os mais próximos. Nesse momento, o profeta elevou a voz e seu timbre poderoso
e metálico tudo abafou como um sino de bronze:

- Tende paciência e confiança em Jeová, que prometeu vos libertar, homens pusilânimes e cegos - Mernephtah pagará pela sua crueldade e teimosia; antes que o sol
se erga pela terceira vez, os trabalhos não mais vos serão impostos e tereis permissão de partir.

Cessaram os gritos e clamores, e a multidão dissolveu-se entreolhando-se espantada; as pedras lhes caíram das mãos. O companheiro de Moisés, evidentemente muito
inquieto, puxou-o pelo manto procurando afastá-lo o mais depressa possível; ele, porém, se desprendeu lesto e, devagarinho, dirigiu-se para a estrada, atravessando
as compactas filas.

Ao passar ao meu lado, fitou-me com olhar de fogo, dizendo:

- Jovem guerreiro, dize ao teu senhor que o trabalho dobrado com que sobrecarregou o povo eleito o forçará a vir pedir-me, imediatamente, que o procure, para acabar
com as calamidades que vão assaltar o Egito.

Sem se deter continuou seu caminho e fiquei estupefato da ousadia do feiticeiro, que, certo do temor que inspirava tornando-se invulnerável, ultrapassava todos os
limites.

Ao regressar a casa, muito tarde, os meus já se haviam recolhido. A ninguém falei, nem vi e deitei-me fatigadíssimo; mas eis que fui despertado a gritos e empurrões.
Abri os olhos sonolentos e percebi meu pai pálido e nervoso a sacudir-me, dizendo:

- Levanta-te, Necho, pois estão passando coisas extraordinárias. Todo o Egito está como assomado de loucura, porque Typhão enfureceu-se contra nós.

- Que está acontecendo? - perguntei aparvalhado, ao mesmo tempo que me levantava. Sem dizer palavra, meu pai conduziu-me a um mirante, de cujo cimo avistava-se a
rua e um bairro confinante. Inúmeras pessoas corriam de todos os lados, rasgando a roupa e dando gritos desesperados; alguns aguadeiros quebravam ás bilhas e rolavam
pelo chão.

- Parece, - disse meu pai - que, ao clarear do dia, quando os aguadeiros se aproximaram para encher as vasilhas, verificaram que o Nilo se mudara em sangue; ninguém
se atreveu a aproximar-se do rio sagrado; mas, coisa singular: a pequenina fonte do nosso jardim continua inalterada.

- São obras das feitiçarias desse maldito Moisés - repliquei - e devo ir já ao palácio. Aposto que todo o povo está se encaminhando para lá.

Descia a escada quatro a quatro e vesti-me enquanto atrelavam o carro. Ao atravessar uma sala, encontrei minha mãe e irmã, que vinham ao meu encontro, lacrimosas.

- O Nilo está mudado em sangue! - exclamou Ilsiris.

- Já sei; mas, por Osiris, acalmai-vos! - respondi, abraçando-as - e como temos aqui água pura, enchei todas as ânforas, bilhas e bacias disponíveis, para o caso
de vir o maldito mágico a contaminar também as fontes. Vou de caminho para junto de Faraó, que encontrará, sem dúvida, um meio de livrar-nos desta calamidade; e
tão logo tenha qualquer novidade, procurarei comunicar-vos.

Açoitei os cavalos e o carro voou pelas ruas de Tanis.

Nas proximidades do palácio a multidão era tal, que com muita dificuldade consegui avançar; todos os acessos estavam invadidos pelo povo, a custo contido por dupla
fila de soldados, que só deixavam passar as liteiras e carros dos dignatários que se aproximavam apressadamente. Assim, assisti à chegada do grão-sacerdote do templo
de Amon, acompanhado do sábio Amenophis, e entrei atrás deles.

No interior do palácio não era menor a agitação. Por todos os lados, rostos ansiosos, grupos que conversavam gesticulando; a maior parte dirigindo-se para o salão
de recepção, onde todos se reuniam por ordem do rei.

Quando os clarins e o pregão dos arautos anunciaram a aproximação do Faraó, fez-se profundo silêncio. Mernephtah entrou pálido e carrancudo, acompanhado do herdeiro
e seguido do governador da cidade, sacerdotes e conselheiros. Ao tocar o primeiro degrau do trono, parou. Os clamores do povo que, vez em quando alcançavam a sala,
lhe chegaram aos ouvidos.

- É o povo alarmado que clama; cumpre-me falar-lhe - disse ele. E atravessando salas e galerias, dirigiu-se para uma varanda que dominava a redondeza.

Ao avistá-lo, brados de alegria e esperança estrugiram da multidão e milhares de braços súplices se estenderam para ele, de quem esperavam saúde e proteção. Mernephtah
ergueu o cetro indicando que ia falar. Como por encanto, acalmou-se o tumulto e reinou profundo silêncio.

- Fiéis egípcios, acalmai-vos - articulou a voz clara e sonora do nosso Faraó - não vos deixeis intimidar pelo mágico hebreu, que nos quer compelir a entregar nossos
escravos e trabalhadores. Estais de acordo com isso?

- Não, jamais! - berrou a turba.

- Ficai calmos então, e aguardai o que o conselho reunido vai deliberar. Convoquei os sábios egípcios; talvez eles possam anular essa feitiçaria; ficai tranquilos,
voltai para casa e guardai cuidadosamente os poços e as fontes não contaminados.

Prorromperam em brados de aclamação e louvor e enquanto o rei voltava à sala do trono, a turba se dispersou célere.

- O mago quer nos intimidar com repugnante malefício agindo sobre o rio sagrado e a maior parte dos poços e fontes; conselheiros, que providências sugeris?

- É preferível tudo sofrer que ceder, deixando partir os judeus! - declarou o príncipe Seti com voz firme.

- Sim, sim, tudo sofrer, jamais ceder; mas, consultar os sábios: - tal foi o grito que ecoou tumultuosamente na assembléia.

- Sejam, então, convocados os sábios e feiticeiros! - ordenou o rei.

Destacou-se um grupo e defrontando o trono prosternou-se. A maior parte vestia o longo hábito branco dos sacerdotes; outros, inteiramente nus, salvo o avental que
lhes cingia os rins bronzeados, pulseiras de ouro nos braços e pesados argolões nas orelhas, eram os magos.

Fez-lhes sinal o Faraó para que se levantassem e perguntou:

- Podereis fazer aqui, diante de mim, os milagres que opera o hebreu? Vós, sacerdotes, haveis estudado na mesma escola que ele. Saberá ele mais do que vós?

Inclinaram-se os sábios e operaram diante de todos o milagre da serpente transformada em bastão; o da mão doente e, enfim, numa bacia, mudaram a água em sangue.

Satisfeito Mernephtah sacudiu a cabeça.

- Estou contente - disse - porque os meus egípcios não se deixam ultrapassar em saber por um impuro; entretanto, vossa grande sabedoria não merecerá louvores senão
quando desembaraçardes o país da calamidade que o aflige.

- Grande rei, a quem os deuses concedam longa vida, glória e saúde, não poderemos fazê-lo - responderam, os sábios e magos inclinando-se - senão quando soubermos
de que modo Mesu transforma a água em sangue; somente depois disso poderemos contrabalançar o seu poder.

- Que se mande imediatamente buscar o hebreu - ordenou o Faraó.

Insensivelmente, estremeci ao lembrar que ele o havia previsto.

Um oficial apresentou-se, dizendo que o emissário tinha, por feliz acaso encontrado Moisés na rua e acabava de entrar com ele no palácio. Imediatamente, Moisés,
seguido do seu inseparável companheiro, altivo e reservado estava diante do trono. Contudo, um lampejo de triunfo lhe brilhava nas pupilas, quando o olhar penetrante
do rei cruzou com o dele, como se cruzam as lâminas de dois sabres.

Disse Mernephtah com sutil ironia:

- Enviado do grande Jeová, com a ajuda dos nossos deuses, os sábios que aqui estão operam os mesmos milagres que fazes, e alem disso, pretendem que o sangue que
fabricam é o único verdadeiro e não o teu; prova-me de que lado está a verdade; se contigo, deixarei partir teu povo.

O companheiro de Moisés pareceu-me querer impedi-lo, cochichando-lhe no ouvido; Moisés, porém, certo da vitória, ordenou, de olhos brilhantes, que trouxessem um
vaso d'água; elevando os braços, fez vários gestos, no que foi imitado pelos sábios; imediatamente, as duas vasilhas estavam cheias de sangue - sangue tão real,
que o rei se viu embaraçado para decidir a quem conferir o prêmio.

- És poderoso mágico, bem vejo - disse Mernephtah, depois de confabular um instante com o grão-sacerdote de Amon, que se havia aproximado por trás do trono. Se,
pois, ao fim de três dias os meus sábios não tiverem restituído ao Nilo a pureza, desfazendo tu o malefício, procura-me e os hebreus serão libertados.

Retirou-se Moisés e o rei voltou aos aposentos, acompanhado pelos conselheiros e sábios.

- Agora explicai-me - disse - como procederei?

- Grande rei - respondeu o grão-sacerdote - agora sabemos como ele opera. Ainda por três dias, teremos que sofrer, e o apodrecimento dos peixes dar-se-á como ele
o disse; mas depois, tendo-lhe tu prometido a libertação de seu povo, uma vez cessado o flagelo, ele retirará a sugestão que nos faz ver sangue e as águas do Nilo
voltarão à sua pureza natural. Isto feito, dominá-lo-emos e impediremos a renovação do feito.

Entrei em casa contentíssimo e tranquilizei os parentes que me aguardavam ansiosos, embora também preferindo todo sofrimento à libertação dos judeus.

Passaram-se três dias aflitivos; o malefício continuava e os peixes colhidos ou relegados à praia exalavam podridão.

Raiou, enfim, o quarto dia e, ao alvorecer, quando me dirigia para o palácio, notei que o Nilo continuava a correr sanguinolento.

Em uma galeria exterior que levava ao terraço (de onde falara ao povo), o Faraó perambulava impaciente, quando Moisés e o indefectível companheiro se apresentaram
diante dele, reclamando o cumprimento da promessa.

- Muito bem! respondeu Faraó, em atitude serena - livra-nos das águas ensanguentadas e poderás levar teu povo.

Moisés falou e um clarão iluminou-lhes os olhos:

- Esta tarde estareis livre do flagelo...

Vindo de fora, grande clamor cortou-lhe a palavra; o rei avançou lesto para o terraço, acompanhado pelo seu séquito e pelos dois hebreus.

De todos os lados acorria gente com exclamações de alegria incontida, abraçando-se e elevando os braços aos céus, abençoando o rei.

Do Nilo, que novamente resplandecia ao sol, qual mar cristalino, avançava uma onda humana conduzindo em triunfo os sábios e magos, que, (segundo me contaram mais
tarde), enquanto Moisés se encontrava diante do rei, se tinham reunido á margem do rio, conjurando as águas e elevando ardentes preces aos deuses; então, à vista
de todos, o vermelho empalideceu e as águas se tornaram límpidas.

Olhei o profeta. Pálido, lábios crispados, permanecia junto à balaustrada e seu olhar flamejante parecia querer reduzir a cinzas a multidão satisfeita, que tumultuava
em baixo.

- Muito bem! grande mensageiro dos deuses - disse o rei, voltando-se - vês que os nossos sábios nos desembaraçaram dos teus malefícios; vai-te, pois, e dize ao teu
Jeová que imagine alguma melhor para libertar os seus eleitos.

O rosto pálido de Moisés enrubesceu e, sem nada responder, deu as costas e saiu a passos rápidos, seguido pelo irmão trêmulo de raiva e como que a censurá-lo em
surdina.

Irônica explosão de riso saiu dos lábios do Faraó e essa risada real, reforçada pela dos que o cercavam, parecia repercutir em todas as salas, galerias e escadarias,
acompanhando como um eco escarninho os dois hebreus.

- Vamo-nos todos ao templo, para agradecer aos deuses e lhes oferecer sacrifícios dignos da alta proteção que acabam de nos dispensar - disse Mernephtah.

O tempo que se seguiu foi de grande contentamento; todos pareciam libertos de um perigo mortal e buscavam uma compensação para os aborrecimentos experimentados;
Moisés não aparecia e o bom humor do rei nunca foi tão evidente.

Certo dia, após o repasto da noite, o Faraó ainda saboreava seu vinho, rodeado de príncipes e íntimos, quando viu Rhadamés caminhar para ele e ajoelhar-se.

- Tu, meu fiel condutor do carro, que desejas de mim? .

Se é uma graça, dize, pois nunca me senti tão bem disposto para concedê-la.

Ouvindo palavras tão animadoras, Rhadamés corou de satisfação e formulou o pedido:

- Oh! maior dos reis, tu que, como Ra, de quem descendes, douras e embelezas tudo o que te é vizinho, concede-me a graça de honrar com tua presença os festejos do
meu casamento com Smaragda, a irmã de Mena; desejaria celebrá-lo o mais breve possível e suplico fixares a data.

O Faraó, sorridente, esvaziou a taça e depois, dando a mão a beijar, disse com bonomia:

- Tua súplica está atendida. De hoje a quatro dias festejaremos teus esponsais.

Após agradecer e obter também a promessa do herdeiro, o postulante retirou-se rapidamente cheio de alegria. De mim para mim, não podia compreender que artimanha
ele empregara para conseguir que a moça tivesse assim abreviado o casamento. Intrigadíssimo, resolvi procurar Smaragda no dia seguinte, pois há muito que não nos
víamos.

Cheguei ao palácio, levando, como homenagem à noiva, magníficas flores e uma caixinha de perfumes. No primeiro pátio lobriguei Rhadamés cercado de intendentes e
mordomos, aos quais dava ordens, vaidoso, tanto que nem me viu. Velho criado prontificou-se logo a conduzir-me à presença da senhora.

Por toda a parte, no palácio, evidenciavam-se os preparativos da festa. Criados que conduziam ou instalavam enormes jarrões com flores raras, outros que estendiam
tapetes, adornavam aparadores com baixelas de ouro e prata, e circulavam colunas de guirlandas floridas. Quando cheguei ao terraço, notei que a heroína da festa
em perspectiva não estava contente. Recostada numa espreguiçadeira, tendo junto de si a ama que dispunha jóias num estojo, vi Smaragda com a cabeça pousada nos travesseiros,
tranças semi-desfeitas e semblante anuviado. Parecia absorvida em triste e desolado cismar.

Ao ouvir meu nome levantou-se e, envolvendo-se em amplo véu, fino e transparente, deu-me as boas vindas e convidou-me a sentar. Ofereci-lhe as flores e apresentei
minhas felicitações.

- Necho, por que me felicitas? - disse com amargura - melhor farias se apenas me visitasses; teus conselhos me seriam úteis. Não sabes que minha tentativa de evasão
fracassou? Eu deveria reunir-me a Omifer em Thebas; Setnecht, que me demonstrou muita amizade, ficou incumbido de preveni-lo; mas, quando cheguei ao sítio combinado,
não encontrei Omifer e sim Rhadamés, saído não sei donde, e que me reconduziu para aqui, apesar da minha relutância.

Agora ele me espiona sem tréguas e assumiu atitudes de senhor; estou certa, entretanto, de que só ambiciona minha riqueza e não minha pessoa... Como sou infeliz!

Escutei-a admirado.

- Acalma-te, Smaragda - disse por fim - não te surpreendas com a sua arrogância, de vez que, depois de amanhã ele será teu marido; ontem à noite, convidou Mernephtah,
que prometeu honrar tuas núpcias com a sua presença.

Saltou, de olhos flamantes.

- Que miserável! Ousou fazer isso?

- E por isso nada se pode fazer, Mernephtah felicitou-a. Sê razoável, portanto, Smaragda; conforma-te com o inevitável.

Rhadamés apareceu no terraço nesse momento com o seu melhor sorriso.

- Que há por aqui? - perguntou. Smaragda, tremes e tens as faces vermelhas. Que te falta, querida?

- O que me falta é que te odeio! - exclamou fora de si, esquecendo minha presença; impediste-me de fugir agora, sem pedir meu consentimento, marcaste o casamento
e convidaste o rei. Mas, não te quero, porque amo Omifer, compreendes?

Pálido, Rhadamés falou:

- As mulheres não podem viver sem caprichos e sem histórias, pois Mena concedeu-me tua mão e eu não desistirei, jamais; não te fui indiferente, porque quando te
falei de amor, não me repeliste; e agora que os deuses te concedem a felicidade, procedes como insensata.

- Julguei amar-te, sim, - disse Smaragda, de cenho carregado - porque não te conhecia tal como és. Não eras tão impertinente, enquanto eu possuía apenas uma parte
dos nossos haveres; e se Mena ainda fosse o senhor, voluntariamente, te desfarias de mim. Desde aquele dia em que me regateaste asperamente os dez camelos enviados
a meu irmão, te tornaste odioso e indigno do meu amor.

Transfigurada de repente e de mãos postas, deu um passo na direção de Rhadamés, que à ouvia calado, mordendo os lábios.

- Ouve-me, dar-te-ei tudo. Este palácio, minhas terras, rebanhos, ouro, os vinhedos que me pediste para dotar tuas irmãs; somente peço que renuncies a mim. Dá-me
a tabuinha de Mena e aceita, em troca, toda a minha fortuna; a pé, com minha ama, deixarei esta casa para ir ter com Omifer. Ele me receberá sem um anel de ouro,
sequer, pois que me ama!

Estava fascinante naquele momento. Os cabelos negros e soltos, lhe realçavam a brancura da tez e os olhos brilhavam através das gotículas de lágrimas que lhe bordavam
os lindos cílios.

Olhei Rhadamés; a proposta era tentadora e podia demovê-lo, mas, logo à primeira vista, pensei: pobre Smaragda, és bela demais para que te renunciem! Tão claramente
como se ele falasse, li nos seus olhos: "Hei de possuir-te, mulher sedutora, e contigo tudo o mais que me ofereces".

Enlaçando-lhe o busto esbelto, atraiu-a para a espreguiçadeira e cobriu-lhe de beijos o rosto inundado de lágrimas.

- Retrata-te, Smaragda, pensas que não te aceitaria também assim, sem nada de teu? Desconheces meus profundos sentimentos, para pensares que te ceda a outrem. Acreditas
amar Omifer, mas este capricho passará, porque fui eu quem primeiro te inspirou amor e nesta convicção baseio a felicidade do nosso futuro.

Ajoelhou-se e inclinando-se para ela, acrescentou sorrindo:

- Olha bem para mim... Serei assim tão feio? Terei mudado tanto depois que esses teus lábios me encorajaram? Enxuga essas lágrimas, querida, perdoa-me se te ofendi,
eu, o último dos escravos.

Mais uma vez abraçou-a, porém, não obtendo resposta, levantou-se e deixou o terraço em minha companhia.

Parou na galeria, semblante já transfigurado, denotando profundo descontentamento.

- Lastimo, Necho - disse em tom glacial - que o acaso te fizesse testemunha desta cena e das tolices que proferi; mas, deves compreender que tudo é lícito quando
se trata de acalmar os caprichos de uma bela mulher.

Secamente despedi-me e saí pensando comigo mesmo: pobre Smaragda! Que vida terrível te aguarda!

No dia do casamento, tudo que Tanis tinha de melhor na sociedade lá estava no palácio de Mena. Não assisti à cerimônia, mas participei do séquito real, que veio
para a festa. A noiva no seu rico enxoval, coberta de jóias estava mais fascinante, mas tão pálida e triste que todo mundo reparou.

Depois que felicitou os nubentes e presenteou a noiva com uma caixinha repleta de pérolas, o Faraó assentou-se à mesa do festim, ocupando uma cadeira alta, a ele
destinada.

No início a presença do rei impunha certo constrangimento, mas, tão logo foram esvaziados os copos de capitosos vinhos, que os criados rapidamente tomavam a encher,
as línguas se desataram e a alegria generalizou-se.

Não descreverei a festa. Os ágapes desse gênero se assemelham sempre; em todos os tempos. Os homens sempre gostaram de comer bem; mas desta vez, a sorte não permitiu
saborear à vontade finas iguarias que se ofereciam, porque, no instante em que a animação e a alegria atingiram o auge, gritos e clamores ecoaram fora. Mernephtah
depôs a taça que ia levar aos lábios e seus grandes olhos arregalados, se voltaram para a porta de onde irrompiam muitos escravos, trêmulos e assustados, a exclamarem:

- Os ratos! Os ratos tudo devoram!

O tumulto estabeleceu-se no salão; comensais que se levantavam derrubando cadeiras, mulheres quê gritavam. A um gesto imperioso do rei, todos se contiveram.

- Verifiquem o que ocorre! - ordenou.

Lancei-me com outros pela grande escadaria, para o local de onde provinha o alarido, que aumentava de momento a momento e logo se nos deparou um espetáculo verdadeiramente
inaudito. No grande pátio e numa parte reservada dos jardins, estavam armadas mesas enormes, sortidas de cerveja, bolos e assados para os pobres e o populacho; no
momento, esse lugar da festa estava transformado em campo de batalha; parte das mesas e dos tonéis emborcados, inextricável mistura de homens, mulheres, crianças
e escravos corriam, saltavam, sacudiam-se como loucos, dando gritos de angústia, debatendo-se contra legiões de ratos, ratazanas, sapos e outros animais, que, surgindo
sabe Deus de onde, assaltavam as mesas e devoravam os pratos, subindo nas pessoas apavoradas.

Nós recuamos, fechamos as portas para impedir a invasão, mas filas dos imundos já haviam alcançado as escadas. Voltamos à sala do banquete, onde o tumulto era indescritível;
uma parte das senhoras e entre elas Smaragda, estavam desmaiadas. Outras haviam galgado as mesas, pedindo em altos brados que as conduzissem às suas casas enquanto
os homens e os criados abatiam a golpes de sabre, bastonadas e mesmo cadeiradas, os repugnantes animais que pareciam surgir de todos os cantos, dependurando-se nas
roupas e devorando as iguarias e doces espalhados a esmo. Nós, os oficiais, cercamos o Faraó e o herdeiro, que permaneciam de pé e de espada desembainhada, contemplando
a cena incrível.

Mernephtah falou, com ar sombrio:

- É uma nova feitiçaria de Moisés. Volto a palácio e que se transmita aos Sábios a ordem de ali comparecerem imediatamente! ...

Fizemos, com os escudos, uma cadeira improvisada e, erguendo o rei sobre nossos ombros, atravessamos com precaução o salão do festim, inundado de vinho a correr
das ânforas entornadas pelas escadas coalhadas de sangue e detritos animais. Em baixo, o Faraó tomou a liteira, mas, desde que o povo que invadira as ruas o avistou,
prorrompeu em brados medonhos e todos os braços se voltaram para ele. Nesse instante, enorme rato, subindo por um dos condutores, alcançou a liteira; Mernephtah
o agarrou pela cauda, estrangulando-o, e, erguendo-se dentro da liteira para que todos pudessem ver, suspendeu o animal e exclamou com voz retumbante:

- Egípcios! Assim faremos com os miseráveis hebreus, que, pelas feitiçarias do seu chefe, querem nos intimidar; mas acalmai-vos, voltai para vossos lares e defendei-vos;
os sábios já foram convocados e vos livrarão dos animais imundos, assim como vos livraram da água sanguinolenta.

Vendo o rei matar corajosamente o rato, sem demonstrar receio nem asco, enorme energia se apoderou do povo e aclamações entusiásticas acompanharam o cortejo real.

Voltei ao palácio de Mena, chamei meu irmão, minha mãe e Ilsiris e auxiliei-os a tomar a liteira.

Foi com dificuldade que conseguimos chegar à casa pois as ruas estavam apinhadas de gente e em todas as residências ecoavam brados de desespero.

No átrio da nossa casa, o primeiro intendente, todo lacrimoso, se agarrava aos joelhos de meu pai como louco. Chão, vestíbulo, escadarias, tudo estava juncado de
cadáveres de ratos, ratazanas, sapos, etc.

Meu pai deu ordens para que acendessem grandes fogueiras diante das portas; mas, coisa estranha; como cegos, os animais se precipitavam nas chamas e aí pereciam.
Outros as atravessavam para estrebuchar meio carbonizados logo adiante. Escravos que chegavam, pálidos, anunciavam que os paióis, assim como os depósitos, tinham
sido invadidos.

- É a ruína - disse meu pai, pondo as mãos na cabeça - lá se vão todas as provisões; vá depressa ao palácio, Necho, talvez os sábios encontrem um recurso; eu cuidarei
da defesa aqui.

Rumei para as cavalariças, onde pretendia tomar um animal encilhado. Lá me aguardava nova desilusão: o exército negrejante atirava-se aos cavalos, vacas, carneiros;
os empregados dominavam à força os roedores enraivecidos, que pareciam multiplicar-se sob suas mãos e os animais, desesperados pelas dentadas relinchavam e pateavam.
O relincho dos cavalos e das mulas formavam um ruído discordante e ensurdecedor.

Com a cabeça a escaldar, montei e parti a toda brida, dirigindo-me à residência real, onde não era menos tumultuosa e agitada a situação. A severa pragmática estava
relaxada, e sem dificuldades consegui chegar a uma sala dos apartamentos privados do rei, onde este se encontrava em companhia do herdeiro. Estavam sentados sobre
uma mesa de vários degraus, cercados de oficiais que se esforçavam em não consentir a aproximação dos animais. Multidão de gatos corria pela sala, guerreando bravamente
seus mortais inimigos e alguns se mantinham aos pés do Faraó. Outros, encima do espaldar da cadeira e mesmo nos ombros do herdeiro. Se a coisa não fosse tão trágica,
ter-me-ia rido gostosamente desses gatos e do drama cômico que se desenrolava em torno do rei, habitualmente cercado de solene majestade e honras quase divinas.

Atingia o auge a impaciência de Mernephtah quando, enfim, chegaram os sábios caminhando no assoalho coberto de animais, o que os impediu de se prosternarem, como
exigia o protocolo.

- Vejamos o que há e livrai-nos dos nojentos animais que o hebreu nos envia! - exclamou o monarca dando um murro na mesa, que fez caírem os copos e entornar a ânfora.

Os sábios, finalmente, alegaram ser indispensável um prazo de três dias.

- Três dias! - Bradou o Faraó - até lá estaremos devorados; é preciso encontrar um remédio imediato.

- Grande rei! - um dos sábios reiterou - Mesu empregou uma raiz, que, indubitavelmente, mandou queimar por toda parte e cujo odor atrai e enfurece os animais imundos,

- Procurai, então, outra planta cuja fumaça os afugente! - exclamou o rei. Darei dois talentos de Babilônia a cada um de vós, se, antes do amanhecer, nos desembaraçardes
deste flagelo.

- Poderoso filho de Ra - respondeu tristemente o mais idoso dos sábios - toda a erva cujo odor os escorraçaria foi cuidadosamente subtraída; se tardamos em aqui
chegar, foi precisamente por estarmos à cata dessa erva, no intuito de imunizar, antes de tudo, o teu palácio.

Todos fomos assaltados por angustioso tremor. Onde iríamos parar?

Pálido de raiva, Mernephtah levantou-se e trovejou no ambiente:

- Ide, agarrai os hebreus. Eles que procurem a erva salvadora, pois devem saber onde encontrá-la; dizei-lhes que, se não a descobrirem, suas cabeças serão decepadas
e atiradas como pastos, aos ratos desencadeados contra nós pelo seu libertador. Tal a minha vontade.

Seguiu-se um triste silêncio, apenas interrompido pelo grunhir dos roedores e uma ou outra exclamação do monarca ou do príncipe. Cada qual permanecia no seu posto,
triste, apreensivo, preocupado em livrar-se dos bichos que subiam pela roupa.

Intermináveis horas passaram-se na mais dolorosa expectativa, e os sábios não regressavam.

Por fim, não mais me contive, inquieto pelo que pudesse estar ocorrendo em casa; saí tomando o cavalo, que, de crina eriçada, pateava e empinava, porque o fâmulo
que o mantinha não conseguia defendê-lo dos terríveis roedores.

Todos, na rua, estavam exaltados; por toda parte ardiam grandes fogueiras e notei, admirado, a tenacidade com que os egípcios se defendiam, não só os servos, como
os senhores, a pau, enxada e forcado. Febris, suarentos, massacravam os invasores.

- Coisa horrível! - pensei; creio que se o miserável Mesu me caísse ali nas unhas, o estrangularia como a um rato.

Ao chegar a casa, notei o grande pátio aclarado por enormes fogueiras e tochas. Lá estavam os escravos na mesma faina; uns a matarem os animais; outros a juntarem
e varrerem os destroços, atirando-os ao fogo em combustão nauseante e sufocante.

Fui informado de que meu pai se encontrava atrás dos jardins, perto dos celeiros, para onde me encaminhei apressado.

Brados, ordens diversas, logo me advertiram de que a luta era intensa. Perto de um depósito, vi meu pai de pé sobre uma cuba emborcada, dando ordens com voz rouca.
Utilizando-se de escadas de emergência, saco às costas, escravos removiam o trigo para resguardá-lo em lugares ainda incólumes, mas os vorazes inimigos, não lhes
davam trégua, ainda assim. Nesse instante, passava perto de mim um escravo vergado ao peso de enorme saco de farinha, ao qual se penduravam ratos como sangue-sugas
a roerem-lhe o tecido e assim deixando vazar o precioso pó. Detive-me por instantes a. observar o quadro, enquanto ia contando a meu pai as ocorrências do palácio
e terminando por dizer-lhe:

- Deixemos isto, que é trabalho perdido; vamos lá para dentro.

- Eu fico, - retrucou ele - pois talvez consiga salvar ao menos uma parte dos nossos bens; vai tu para junto de tua mãe e de tua irmã, e trata de confortá-las.

Fui para os meus aposentos, que apresentavam aspecto lastimável. Nas mesas, móveis, tapetes, formigavam sombras negras e via-se distintamente que tudo estragavam
e remoíam. Ao entrar no quarto de minha mãe, enorme gato ao saltar-me entre as pernas fez-me quase perder o equilíbrio; disse uma blasfêmia mas no mesmo instante,
o quadro cômico que se me deparou provocou-me um acesso de riso. É que, num tamborete em cima de uma mesa, estatelava-se Chamus pálido e sucumbido, segurando com
a esquerda um gato entre os joelhos e tendo na destra um chicote com o qual matava os assaltantes que ousavam acercar-se da sua fortaleza. À sua frente, tábuas,
cadeiras e almofadas empilhadas, constituíam exótico monumento, em cujo cimo estavam minha mãe e Ilsiris, aconchegando gatos ao colo e de olhos inchados de tanto
chorar.

- Necho, finalmente chegaste! - exclamou minha mãe exaltada - e ainda te ris vendo-nos semi-devorados? Trazes alguns socorro?

Sempre rindo, saltei à mesa e assentei-me junto de Chamus, passando a narrar o que ocorrera no palácio.

Ilsiris exclamou soluçando:

- Se não for encontrada essa erva, seremos devorados vivos ou morreremos de fome, porque não só os ratos tudo roem, como as rãs e os sapos infestam a comida, as
leiteiras estão cheias, não se pode amassar trigo sem os ter entre os dedos. As frutas nos armários ou nos cestos, estão sujas e contaminadas!

- Ê verdade - disse Chamus rodopiando furioso o seu chicote - esta guerra é pior que a dos Líbios, e creio que jamais houve um casamento igual ao da bela Smaragda.

Minha mãe suspirou:

- Eu esperava divertir-me bastante e afinal vejam como acabou a festa. Nossas toiletes completamente inutilizadas e o que mais me entristece é que, na confusão,
perdi o magnífico bracelete ornado com um escaravelho de legitimas esmeraldas, presente de Mentuhotep no dia do nosso casamento.

Procurei consolá-la e as horas difíceis passaram em palestra. Por fim, impaciente, resolvi voltar ao palácio, onde talvez estivessem os sábios.

Quando montei a cavalo os primeiros raios do sol tingiam o horizonte. Despedi-me de meu pai, que, cansado e suarento, continuava defendendo nossas provisões.

Raiva e tristeza me ferviam no coração, ao conjeturar os enormes prejuízos que nos causava o maldito feiticeiro, quando, ao ladear algumas casas hebréias, percebi,
irado, que ali reinava a maior tranquilidade. Nesse instante, abriu-se uma porta e saíram dois velhos judeus que, ao me verem, se esgueiraram por uma ruela e desapareceram.
Tive, então uma idéia: apeei e bati com o punho da espada na porta de uma das casas. De pronto ninguém se manifestou no interior, mas, quando os gonzos começaram
a ranger sob a pressão dos meus braços vigorosos, a porta abriu-se e surgiu na brecha a cabeça de um velho hebreu.

Sem lhe dar tempo de falar, dei-lhe na cabeça com o punho da espada. Ele se dobrou e entrei para atravessar apressadamente um corredor escuro, ao fundo do qual havia
uma porta entreaberta, que dava para grande sala, de onde provinha um odor acre, mas agradável. Num simples relance, percebi que ali não haviam entrado ratos nem
sapos. No meio da sala, um fogareiro em brasas e uma jovem judia que nele deitava uma erva que enchia cestos próximos. Na galeria que dava para o pátio, outras mulheres,
outros fogareiros e a mesma tarefa.

- Ah! - exclamei saltando para junto do fogareiro - vós vos garantistes, cães impuros!

À mulher e alguns homens que acorriam do pátio quiseram enfrentar-me, mas brandi a espada ameaçando-os de morte, tanto que recuaram aos gritos, enquanto as mulheres
fugiam. Apossei-me, então, de duas grandes cestas de erva e de um saco com um pó branco, desconhecido, cujos restos eu notara junto do fogareiro.

De posse do precioso achado, lancei-me para fora e voltei para casa a toda pressa. Gritando por meu pai, tudo lhe contei. Num abrir e fechar de olhos, preparou-se
um fogareiro deitando-se-lhe um punhado da erva e do pó. Observamos ansiosos o turbilhão de fumo que se desprendia, então - maravilhoso espetáculo! - apenas o aroma
ativo se difundiu no ambiente, os ratos, rãs e sapos se evadiram, desaparecendo nos buracos e gretas de onde haviam saído.

Diante disso, elevou-se um verdadeiro clamor de alegria. Todos os presentes trataram de obter fogareiros e instalá-los por toda parte, mas eu não esperei o resultado;
tornei a montar levando um cesto e metade do saco de pó e me dirigi para o palácio do Faraó. Lá nada havia mudado; notava-se enorme angústia em todas as fisionomias.
Diante do rei, havia uma comissão de sacerdotes da cidade dos mortos que, com as vestes rasgadas, rostos salpicados de lama, contavam que os ratos haviam invadido
os edifícios de embalsamamento e os túmulos, roendo as múmias. A cidade e os templos reboavam clamores desesperados dos parentes dos defuntos, que temiam ver seus
mortos queridos presa dos animais.

O suor escorria pela fronte melancólica do Faraó, quando abri passagem até junto dele. Depondo o saco e a cesta no estrado da cadeira que ocupava, contei-lhe em
breves palavras a minha aventura. Iluminou-se o rosto de Mernephtah.

- És um bravo egípcio - disse - e grande será tua recompensa, se é que encontraste o remédio. Tragam um fogareiro!

Pediu que o fogareiro fosse colocado à sua frente e que eu próprio lhe deitasse os ingredientes. Tal como em casa, o efeito foi maravilhoso. Desde que a espessa
e acre fumarada se espalhou, os animais eclipsaram-se, buscando um buraco e desaparecendo como por encanto.

Demonstrando contentamento o rei bateu palmas e, dirigindo-se aos sacerdotes, disse:

- Apossai-vos da maior parte dessa erva e do pó e ide o mais depressa possível. Os mortos são os nossos mais preciosos tesouros, pois, menos que ninguém, eles não
podem defender-se; a eles, portanto, os primeiros socorros.

Radiantes de alegria, ao saírem os sacerdotes encontraram os sábios, de regresso, também já providos da erva benfazeja, embora em quantidade muito diminuta. O rei
lhes ordenou que a distribuíssem pelos quarteirões da cidade e fiscalizassem o seu emprego racional nas ruas e pontos mais atacados.

Depois das primeiras providências, o Faraó chamou-me para que o informasse com pormenores como obtivera a erva e, depois de elogiar o feito, deu-me um magnífico
anel de seu próprio uso. O príncipe Seti também aproximou-se e, retirando do pescoço um colar, com ele me cingiu, completando esse gesto real com palavra amáveis
e lisonjeiras.

Feliz e satisfeito, voltei para casa a passos vagarosos, para melhor observar a calma que se restabelecia nas ruas. Quando cheguei em frente ao palácio de Mena,
lembrei-me da festa tão desastradamente interrompida na véspera e resolvi entrar para indicar-lhe o remédio, caso ainda não o conhecesse.

Amarrei o animal num dos mastros que ornavam a frente da casa e penetrei no pátio onde a desordem era ainda tão grande, que nenhum dos servos notou minha presença;
enormes pilhas de animais mortos por toda parte, enquanto os homens se entretinham em acender um fogareiro. Por entre corpos esmagados e avalanches de animais vivos,
que ainda corriam de um lado para outro, dirigi-me para o salão deserto e devastado. Numa sala contígua, porém, deparou-se-me Rhadamés, de pé numa espreguiçadeira,
parecendo ter enlouquecido. Boca espumejante, olhos esbugalhados, gritava brandindo uma arma em cada mão, enquanto alguns ratos corriam em torno dele e uma ferida
sangrenta na face demonstrava não ter-se defendido convenientemente. Tentei falar-lhe, mas, como não visse nem ouvisse, continuava a gritar e sapatear.

Voltei-lhe as costas e logo no ângulo oposto da sacada vi Smaragda, pálida como um cadáver, ainda com o vestido de noiva sujo e dilacerado. Diante dela, ajoelhado,
um escravo a soprar as brasas de um fogareiro enquanto a ama segurava uma cestinha cheia de planta odorífera.

Ao vistar-me, exclamou:

- Que noite terrível, Necho!

- Agora acabou-se - disse - atirando eu mesmo a erva nas brasas - vejo que os sábios aqui chegaram prestos.

- Essa erva não me foi dada pelos sábios e sim por uma velha judia. Grata por lhe haver sustentado e cuidado o filho cego. Mas vê, Necho, o que ocorre com Rhadamés.
Parece louco e não posso socorrê-lo. Faze-o tu.

Não restando mais nenhum dos animais, graças à defumação, aproximei-me do bravo condutor do carro.

- Rhadamés, desperta - exclamei - tomando-o pelo braço - tudo terminou; basta de molinetes, os ratos não voam.

Como não me ouvisse, tomei um copo de vinho e atirei-lhe o conteúdo. Com isso, despertou.

- É verdade, tudo acabou - repetiu em voz calma e olhar desvairado, descendo da cadeira para ficar sentado de braços caídos, sem dirigir um olhar à esposa.

Com desprezo ela falou:

- Deixa repousar esse poltrão!

Depois, afastado os longos cabelos soltos, estendeu-me a mão:

- Adeus, Necho. Estou exausta de fadiga e emoção, preciso repousar; recomenda-me à tua mãe e à Ilsiris. Dize-lhes que espero revê-las aqui, tão logo as coisas se
normalizem, num festival mais tranquilo que o de ontem.

Todos estavam satisfeitos em casa, ocupados em restabelecer a ordem e preparar uma refeição qualquer para patrões e empregados esfaimados. Extenuado, comi às pressas
e atirei-me no leito.

Despertei quando já era dia alto; sentia-me indisposto e com uma coceira em todo o corpo; reagi, porém, levantei-me e desci à sala de estar, onde apenas encontrei
meu pai, que caminhava de um lado para outro, inquieto, a coçar ora a testa, ora as costas.

- Sentes alguma coisa? - perguntou surpreso.

- Tenho o corpo como em brasas e tu não sentes nada?

- Insuportáveis coceiras.

- Era o que pensava, pois todos Se queixam da mesma coisa; mas trata de observar e descobrirás a causa.

Inquieto, examinei-me e logo notei que tanto o corpo como a roupa estavam crivados de piolhos. Enojado, deixei-me cair numa cadeira. Para nós, egípcios, habituados
à mais rigorosa higiene, aquela praga era talvez a pior de todas.

- Vou ao palácio e se lá também houver piolhos, é necessário convocar os sábios - disse fora de mim e saí mesmo sem me despedir de meu pai.

Quando entrei na sala, o rei andava impaciente, de um lado para outro. Lancei o olhar em torno e não pude conter o riso: não havia dúvida de que os terríveis parasitas
formigavam nos velhos dignatários, tanto quanto nas jovens, como o demonstravam os gestos, piruetas e contorções com que procuravam disfarçar seu mal estar.

Nesse instante, porém, o olhar de lince de Mernephtah me descobriu entre os circunstantes.

- Aproxima-te, Necho! - disse com um aceno de mão. Ontem, meu bravo guerreiro, trouxeste-nos o socorro; não conhecerás um remédio contra esses novos inimigos? -
acrescentou apontando os asquerosos animalejos que lhe passeavam nas vestes de púrpura. Estes são menos perigosos que os sapos e ratos, mas não deixam de ser incômodos
e repulsivos.

Quando ia confessar minha ignorância, a chegada dos sábios desviou a atenção do rei. Desta vez, eles nos deram poucas esperanças e acabaram confessando ignorar o
meio de produzir piolhos, e, portanto, de eliminá-los.

Em vão procurou-se defumar, aplicar diversas pomadas, lavar-se, e até conjurar e sacrificar aos deuses.

Passaram-se muitos dias. As mulheres estavam exaltadas e enraivecidas. A cólera de Mernephtah ultrapassava os limites. Quanto a Moisés, ninguém o via.

Uma manhã, o rei ordenou que lhe apresentassem um hebreu, a fim de interrogá-lo. Um destacamento de soldados e alguns oficiais partiram imediatamente e em menos
de uma hora já um velho trêmulo e pálido estava diante de Mernephtah.

- Se prezas tua cabeça, cão impuro e miserável - disse com desprezo - vais dizer-me de que modo vos imunizais contra estes imundos parasitas.

O hebreu pretendia nada falar, mas, quando o rei chamou o executor, que acorreu imediatamente de machado em punho, prostrou-se em terra e confessou que Moisés havia
proibido, formalmente, revelar o segredo.

- Então - disse o rei- jogas a cabeça, tanto aqui como lá; e nessas condições, só te resta escolher a quem preferes entregá-la: se a mim ou a Mesu. Mesmo assim,
se confessares, prometo livrar-te da cólera de Moisés. Ao contrário, serás decapitado agora mesmo. Escolhe!

Angustiado, o velho contorceu-se no chão, mas, vendo o machado pronto a funcionar, acabou gaguejando ser preciso friccionar o corpo com azeite doce esfregando-o
também em todas as frestas, buracos de fechadura, rebordos de cama, rampas de escada, etc.; depois tomar banho de folhas de loureiro e defumar-se com folhas de oliveira.
Só assim os parasitas desapareceriam.

Satisfeito, Menerphtah ordenou que levassem o informante a uma sala do palácio e lá o retivessem até que se normalizasse a situação. Em seguida entrou, foi tomar
seu banho, dispensando quantos estavam de serviço.

Voltei também para casa e depois de ensinar o remédio contra os piolhos, febril atividade apoderou-se de todos; trouxeram enormes vasilhas com azeite e eu próprio
fiscalizava os escravos ocupados em esfregar as portas, frestas, camas, etc.

Quando, enfim, muito cansado, fui procurar meu pai, já o encontrei no banho e sua fisionomia traduzia inefável bem-estar.

- Louvados sejam os deuses! - disse ele - não esperava mais experimentar esta sensação de limpeza; esta guerra dos piolhos foi pior que a primeira dos ratos e sapos.

- Pareces uma rã nessa água verde, pai, - disse-lhe a rir.

- Vai depressa, também tu, metamorfosear-te em rã - respondeu de bom humor. Estás exausto, meu rapaz, e dormirás logo; fizeste jus a isso!

Saí e depois de mandar incinerar toda a roupa que trazia, banhei-me deliciosamente para deitar-me logo e dormir profundamente. A vaga lembrança das terríveis emoções
dos últimos tempos, contudo, me perseguia mesmo em sonho; assim, vi Moisés a desencadear contra nós, todos os crocodilos do Nilo; eles invadiam ruas e casas e, por
fim, era eu a defender Mernephtah de um enorme réptil, lutando corpo a corpo e acabando por enterrar-lhe na goela o punhal, até que dei um grito de vitória e despertei.

A alcova estava inundada pelo sol e logo convenci-me de que essa nova praga não passava de sonho. Levantei-me e fui para a sala de jantar, onde toda a família já
estava reunida. Ilsiris, louca e radiante, atirou-se-me ao pescoço e nos felicitamos humoristicamente de não mais sermos formigueiros ambulantes. Minha mãe, que
conversava com, Chamus sobre os preparativos do casamento, fez um apelo para que não mais se falasse desse desagradável episódio e fui assentar-me perto de meu pai,
que dava instruções ao primeiro intendente para distribuir recompensas a todos os escravos e criados, pela brava e corajosa conduta dos dias calamitosos.

Era geral o contentamento e todos se visitavam e narravam ocorrências espantosas, ou cômicas, das quais compartilhavam como heróis, ou simples testemunhas, calculando
os prejuízos sofridos e ridicularizando Moisés. Eu, porém, estava sobrecarregado de maus presságios e pensava que, de um momento para outro, alguma nova calamidade
desabaria sobre nós; entretanto, tudo estava sossegado, os hebreus retraídos e nenhum ousava imiscuir-se na multidão jubilosa e bem trajada que enchia as ruas.

Chegou, pois, o dia da nova audiência pública, que a todos facultava apresentar-se ao rei, para expor suas quer elas e petições.

Ao entrar na sala da guarda, um colega disse-me que, pela manhã, fora encontrado estrangulado; em sua própria sala, o judeu que revelara o remédio contra os piolhos,
sem que pudessem descobrir o autor do delito e muito menos como pudera consumá-lo.

Depois de muito comentarmos o caso, fomos ocupar nossos postos na sala, que rapidamente se encheu. Displicente, observava a multidão que se comprimia diante do trono,
quando repentinamente estremeci, ao reconhecer Moisés e o irmão, tranquilamente postados na primeira fila. Que poderia ainda pretender o mensageiro da desgraça?

Ao entrar, o Faraó notou logo a presença do profeta hebreu e enrubesceu de cólera. Detendo-se nos degraus do trono, mediu com olhar sombrio os dois homens, que,
em toda a assembléia, eram os únicos que não se haviam prosternado.

- Bem se vê - disse o Faraó com voz tonitroante - que és um enviado do inferno e que teu deus é uma força do mal, que te ensina a colocar assassinos mesmo dentro
do meu palácio. Tens a audácia de te apresentares diante de mim, depois de, por três vezes, perturbares meu povo com as tuas feitiçarias! E como te atreves, miserável
feiticeiro, a não dobrares o joelho diante do teu rei?

Avançando alguns passos e, cravando olhar profundo em Mernephtah, Moisés disse calmamente:

- Não dobro os joelhos senão diante do Deus todo poderoso que aqui me envia, e te repito, rei, que deixes partir o povo de Jeová, ou então, as pragas continuarão
a chover sobre ti e teu povo, até que tua teimosia seja dominada e te hajas curvado à sua vontade. Eu sou apenas o instrumento e nada faço sem ordem do Deus de todos
os deuses.

- Não farás nada mais, feiticeiro de todos os feiticeiros, porque minha paciência está esgotada - exclamou Mernephtah com olhos que transbordavam cólera e batendo
o pé: - Prenviam-nos! - acrescentou apontando-os.

Um oficial e dois soldados munidos de cordas avançaram para manietar os culpados. Moisés empalideceu e recuou; seu olhar parado voltou-se para os dois homens que
iam prendê-lo e, elevando os braços, fez um gesto como se manejasse uma arma invisível. Como lambidos por faísca elétrica, os militares estacaram lívidos, sem vista,
braços caídos, qual estátuas petrificadas...

O profeta voltou-se para o rei, calmo, como se nada houvesse acontecido e disse:

- Recusas? tu te arrependerás! E retirou-se lentamente, seguido de Aarão.

Durante alguns instantes, todos na sala, ficaram mudos de espanto, com os olhares concentrados nas duas estátuas humanas que continuavam de pé, imóveis, segurando
as cordas nas mãos estendidas. Mernephtah deixou-se cair assentado no trono, enxugando o suor copioso que lhe escorria pelo rosto.

O príncipe Seti foi o primeiro que voltou a si e se precipitou para os dois soldados; todos o acompanharam e rodearam, mas, em vão tentaram sacudir os dois homens
e despertá-los, gritando-lhes no ouvido. Eles continuavam rígidos, imóveis, e não houve força capaz de baixar-lhes ou dobrar-lhes os braços inteiriçados. O rei,
mudo, acompanhava as diligências infrutíferas e por fim ordenou, com voz surda, que chamassem os sábios para libertar as duas vítimas do feiticeiro, que lhes arrebatara
o espírito.

Reunidos em conferência, sábios e médicos, longamente cochicharam entre si e acabaram, requisitando duas bacias com água do Nilo. Depois de muito exortar e esconjurar,
aspergiram os infelizes, abanando-os fortemente com folhas de palmeira e ordenando em voz alta: "Vamos! Despertem!"

Curiosa, a assistência guardava religioso silêncio.

Os dois soldados já considerados mortos, de repente estremeceram; os olhos se reanimaram, e suspirando profundamente, tombaram ao solo. Minutos depois, confessavam-se
curados, mas fraquíssimos e absolutamente inconscientes do que lhes sucederam.

Depois de recomendar que fossem gratificados, o Faraó retirou-se acabrunhado, seguido dos príncipes e áulicos. Uma festa que deveria realizar-se no dia seguinte
foi cancelada e todos se dispersaram apreensivos. Também voltei a casa, possuído de vago temor. Palpitava-me que uma nova desgraça pairava no ar e que éramos impotentes
para evitá-la. Fui encontrar minha mãe e Ilsiris rodeadas de fâmulas e montes de fazendas preciosas, que escolhiam para o enxoval da noiva. Contei-lhes o sucedido
e com isso foi-se-lhes o bom humor e o desejo de concluir a tarefa.

Os dias corriam tristes, de uma tristeza enervante, que ensombrava toda a cidade. Só quem era forçado a negócios ou deveres profissionais saía à rua; a maioria da
população retraía-se em casa, presa de vagos temores. O profeta não era visto, mas ainda que se exibisse em público, acredito que ninguém ousaria afrontá-lo, no
supersticioso temor de ficar petrificado pelo olhar do feiticeiro.

Após o jantar e assaltado por íntima inquietação, resolvi uma noite fazer uma visita, há muito projetada, a um velho discípulo chamado Pinehas.

Havia-o perdido de vista, desde que deixara Menphis, mas em Tanis já o havia encontrado várias vezes, em casa de Mena. Havido por grande sábio, ele poderia ser-me
útil naqueles tempos difíceis e esta perspectiva desfez as últimas prevenções oriundas da reputação, pouco recomendável, que a mãe dele desfrutava. Essa mulher,
de nome Kermosa, era de boa família egípcia, mas depois que lhe morreu subitamente o marido, todos os parentes se afastaram dela e falava-se que cultivava ciências
misteriosas e mantinha ligação amorosa com um hebreu rico. Quanto a Pinehas, era um rapaz taciturno e estudioso e por Mena eu sabia que ele amava Smaragda, cuja
mão de esposa obstinadamente disputara. Todas essas circunstâncias me vinham, à medida que me aproximava da casa de Kermosa.

Ao chegar diante da modesta vivenda de madeira, desci do carro e perguntei a um preto que varria a entrada se Kermosa e o filho estavam em casa. Respondeu que sim
e me conduziu a uma sala modestamente mobiliada, onde encontrei Kermosa assentada a uma mesa cheia de frutas, bolos e uma bilha de vinho.

Junto dela, dois criados se ocupavam em escolher legumes.

Ao ver-me, Kermosa levantou-se e recebeu-me cortesmente.

Possuidora de alto porte, ombros largos e feições regulares e antipáticas, seus olhos negros espelhavam dureza e crueldade.

Convidou-me a tomar assento, mas ao dizer-lhe que desejava falar a Pinehas, ordenou a uma mulher que me guiasse até junto dele.

Passei por uma galeria que dava para amplo é descuidado jardim, onde havia um pavilhão isolado. A serva ergueu uma cortina de grossa fazenda fenícia e penetrei numa
grande sala luxuosamente decorada, na extremidade da qual, debruçado à mesa atopetada de tabuinhas e rolos de papiros, estava Pinehas sentado de costas, escrevendo.

- Uma visita, senhor - disse a mulher.

Voltou-se surpreso, mas, ao reconhecer-me, levantou-se e estendeu a mão, dando-me boas vindas.

Enquanto chegava a cadeira e desembaraçava a mesa de parte dos papéis que a cobriam, notei, admirado, que suas feições muito mudaram de quando o vira pela última
vez. Emagrecera e profundo sulco retraía-lhe os lábios. Mesmo assim, era um belo rapaz, desempenado e elegante, tez pálida, cabelos negros e abundantes, sobrancelhas
arqueadas tocando a base de nariz aquilino e sombreando os grandes olhos negros, duros, impassíveis e profundos como o mar.

Inicialmente falamos sobre diversos assuntos até que encaminhei a palestra para as calamitosas ocorrências dos últimos tempos.

- Desejaria saber como te livraste dessa catástrofe e ouvir tua opinião e conselho, pois talvez como sábio, terás implementos desconhecidos, e nesse caso espero
que não recuses auxílio e conselho ao velho condiscípulo.

- Juro-te, Necho, que tenho sido muito pouco incomodado por esses distúrbios, mesmo porque raras vezes saio de casa, e apenas notei que minha mãe defumou a casa
toda. Tanto é verdade que nem interrompi meus estudos.

- Como és feliz! Quanto a nós, quase fomos devorados pelos ratos, depois da tragédia imprevista que assinalou o casamento da bela Smaragda.

Contive-me logo ao notar a palidez mortal que assaltou Pinehas, de punhos crispados. Estabeleceu-se doloroso silêncio até que, dominando-se, ele pôde dizer com simulada
indiferença:

- Informaram-me de que a festa nupcial da bela irmã de Mena foi perturbada e compreendo como todos teriam ficado impressionados com esses acontecimentos que vos
parecem sobrenaturais; no entanto, tudo isso não passa de forças da Natureza, empregadas a preceito. Está provado, pela ciência, que tudo no universo se mantêm por
contra-peso, com a eterna permuta de elementos; que uns exalam, outros absorverá; e que a velocidade dessa permuta produz e mantém a rotação, o movimento de toda
a Criação.

Notando minha admiração, continuou:

- Necho, receio que não me compreendas; eu quis apenas dizer que existem, na Natureza, forças que certos homens têm o poder de captar e movimentar; para isso, eles
se apoderam do contra-peso, ou da mola. Um exemplo far-te-á entender melhor meu pensamento.

Pegou pequena harpa com uma mão e com outra, puxou um vaso que destampou; então vi, surpreso, que uma serpente das mais venenosas ali estava enroscada. Pinehas tangeu
as cordas, ensaiou uma melodia e quase de chofre a serpente permaneceu de olhos fixos no músico; depois, estirou-se e entrou a balançar como se dançasse acabando
por enroscar-se no braço, sem lhe fazer qualquer dano.

Eu tremia espantado, mas, sem deixar de cantar. Pinehas agarrou a serpente, colocou-a novamente no vaso, que tampou, depondo a harpa.

- Necho, vês o que é a música? Um som imponderável, não tem peso, não ocupa lugar, é invisível e sem embargo, domina completamente o animal. Depois de longas e minuciosas
investigações, convenci-me de que a música é matéria gasosa, que entra no corpo da serpente, causando-lhe profundo bem-estar e formando o contra-peso dos instintos
ruinosos que lhe são peculiares. Pois bem: Moisés é um homem que conhece a fundo todas essas forças ocultas e que sabe maravilhosamente empregá-las; não é um feiticeiro
vulgar como supões; é sábio proficiente, que aplica seus conhecimentos com determinado fim.

Ao notar que eu o compreendia muito imperfeitamente, calou-se. Então, abriu uma caixeta, tirou uma amuleto de pedra amarela que me ofereceu, dizendo:

- Toma este amuleto, ele te imunizará contra o efeito de qualquer vontade estranha.

Agradeci calorosamente e coloquei o amuleto no pescoço. Como ó amigo parecia fatigado, despedi-me.

Menciono aqui, apenas de passagem, uma invasão de rãs, que, apesar dos estragos que causou, produziu menor impressão, porque foi rápida e seguida de outra calamidade
bem mais horrorosa, principalmente por suas consequências.

Depois de alguns dias tranquilos, começaram a chegar de toda parte más notícias: perigosa epizootia explodira nos rebanhos e, zombando de todos os remédios, aumentava
de intensidade, de momento a momento; profunda angústia assaltava os corações, porque os rebanhos constituíam nossa principal riqueza e sua destruição seria a ruína!
Dentro em pouco, o terror atingia também a cidade. Por toda parte os animais eram atingidos. Cavalos, mulas e camelos caiam pelas ruas. As estrebarias estavam entupidas
de cadáveres e nenhum tratamento se mostrava eficaz; as esconjurações e aspersões com água do Nilo nada adiantavam.

O povo novamente se reuniu diante do palácio, a bradar desesperado. O Faraó, inquieto e taciturno, tentou acalmá-lo, prometendo as mais enérgicas providências para
conjurar a calamidade

Por sua ordem fui designado, com outros oficiais, para verificar se os rebanhos dos hebreus eram igualmente atacados e, se não o estivessem, procurarmos descobrir
o remédio, ainda que isso custasse centenas de cabeças judias.

Fizemos grande verificação; nas zonas percorridas os rebanhos ofereciam aspecto lastimável; os animais morriam como moscas e os cadáveres que, ninguém sabia como
enterrá-los, empestavam o ar. Quando avistamos terrenos pertencentes aos hebreus, notamo-los desertos. Os rebanhos tinha sido encerrados em quintais murados de pedras,
ou em baias absolutamente indenes.

Cheios de ódio invadimos algumas casas judias para conseguir, a qualquer preço, o segredo da imunidade, mas nada conseguimos. Evidentemente, a morte do delator estrangulado
no palácio de Faraó apavorara os hebreus e eles ficaram mudos. A despeito das mais severas ameaças e castigos, não foi possível arrancar-lhes a menor confissão.

Desencorajados, regressamos ao palácio, onde os colegas nos contaram que, na véspera, os sábios haviam-se reunido, decidindo que se fizesse minuciosa inspeção em
todos os poços e fontes onde os animais se alteravam.

Fomos imediatamente à presença de Faraó para relatar o resultado da nossa missão. Sentado à mesa, pálido e constrangido, o monarca parecia intranquilo e insone.

Apenas acabara meu relato, gritos e clamores tumultuosos partiram das galerias e pareciam propagar-se por todo o palácio. O Faraó franziu a testa e voltou-se para
um dos dignatários, mas antes que pudesse ordenar qualquer coisa, um homem ofegante e extenuado surgiu na sala. Era um jovem sacerdote com as vestes rasgadas, coberto
de poeira, tendo o rosto salpicado de lama. Avançou cambaleante para o estrado real e, após haver dito com voz soturna - morreu Ápis - tombou ao solo

A terrível notícia provocou lúgubres gemidos da assistência; uns rasgavam as roupas, outros batiam no peito ou se rojavam por terra; quanto a Mernephtah, vi que
empalideceu mortalmente e empurrando com violência a cadeira, deixou a sala. Em poucos minutos, os que puderam, abandonaram o palácio, pois cada qual tinha pressa
de comunicar à família a nova desgraça, que feria o Egito. Eu também voltei para casa acabrunhado e lá encontrei meu pai desesperado, arrancando os cabelos, minha
mãe e Ilsiris pareciam transformadas em fonte, tal a abundância de lágrimas que vertiam. Refugiei-me no meu quarto, mas não pude dormir durante toda a noite.

Tive uma idéia salvadora, no decorrer dessas angustiosas horas de insônia. Iria procurar Pinehas. Sendo sua mãe amiga do rico hebreu Enoch, este, certamente, ter-lhe-ia
ensinado o meio de preservar os rebanhos.

Levantei-me alta madrugada e ordenei que selassem o cavalo, mas o escravo logo veio dizer-me lastimoso, que o animal adoecera. Com o coração trespassado, voltei
para que não visse que também lacrimejava e mandei aprestar a liteira.

Quando cheguei à casa de Pinehas, perguntei a um pretinho que me ajudou a descer, se os rebanhos do senhorio tinham sido contaminados.

- Não, os deuses sejam louvados! - respondeu.

Ao atravessar a galeria, vi Kermosa e um velho de tipo semítico desaparecerem furtivamente num bosquezinho. Presumi que fosse Enoch.

Pinehas estava só e perguntou-me no que me poderia ser útil.

Expliquei sucintamente o que desejava.

Ao terminar disse-lhe:

- Teus rebanhos não foram atingidos. Sem dúvida a amizade de Enoch os preservou. Ajuda-me, pois, por tua vez.

O rosto pálido de Pinehas tornou-se escarlate, quando o jovem ouviu a alusão às relações da genitora com o rico hebreu.

- De nada sei - disse em tom glacial e contrafeito; e mesmo que soubesse, nada diria, porque estou preso a um juramento.

Indignado exclamei:

- Que dizes, Pinehas? Tu, um egípcio?! Teu povo tudo arrisca, trata-se do bem-estar de tua pátria, de milhares de famílias atiradas à miséria pela maldade de um
homem, e te manténs ligado por um juramento a esse ingrato e miserável conspirador que destrói teus irmãos!

Ele voltou-me as costas e passou a folhear seus papéis. Sem lhe dar a honra de uma palavra, saí furioso, mas, chegando à porta, nova idéia me ocorreu: Pinehas estava
enamorado; aquilo que me recusava, não recusaria, talvez, a Smaragda.

 

 

CONTINUA