Os olhos por trás dos grandes óculos pretos de borracha eram frios como gelo. no torvelinho criado pela ululante velocidade de um BSA m20 correndo a 120 quilômetros, eram as únicas coisas paradas na mistura de carne e metal em alta velocidade. Protegidos pelo vidro dos óculos, fitavam fixamente à frente, colocados pouco acima do centro do guidom. Sua fixidez sombria e inabalável assemelhava-se à da boca de um revólver. Abaixo dos óculos, o vento penetrara através da boca e abrira os lábios para trás em uma careta quadrada que mostrava grandes dentes tumulares e tiras de gengiva esbranquiçada. De ambos os lados da boca, as bochechas haviam sido sopradas para fora pelo vento, formando bolsas que trepidavam ligeiramente. À direita e à esquerda do rosto deformado sob o capacete, as compridas luvas pretas, dobradas sobre os comandos, pareciam as garras de um grande animal pronto para atacar.
O homem vestia o uniforme de mensageiro do Real Corpo de Sinalização e sua máquina, pintada de verde-oliva, era, com certas modificações nas válvulas e no carburador, além da remoção de algumas placas do silenciador para dar mais velocidade, idêntica à motocicleta padronizada do Exército Britânico. No homem e em seu equipamento, nada havia capaz de sugerir que ele não fosse o que parecia ser, exceto uma Luger plenamente carregada presa por um grampo sobre o tanque de gasolina.
Eram sete horas de uma manhã de maio e a estrada que cortava em reta a floresta cintilava sob a luminosa garoa da primavera. De ambos os lados da estrada, o terreno atapetado de musgo e flores que se afundava entre os grandes carvalhos tinha o teatral encanto das florestas reais de Versalhes e St. Germain. A estrada era a D98, rodovia secundária que dava vazão ao tráfego local na região de St. Germain. O motociclista acabara de passar por baixo da auto-estrada Paris-Nantes, já movimentada pelos veículos que se dirigiam à capital. Seguia para o norte, rumo a St. Germain, e não havia mais ninguém à vista em direção alguma, exceto, talvez um quilômetro à frente, outra figura quase idêntica — outro mensageiro do Real Corpo. Era um homem mais moço e mais magro, sentado confortàvelmente em sua máquina, desfrutando a manhã e mantendo sua velocidade aí pelos 65 quilômetros por hora. Tinha muito tempo e era um belo dia. Pensava se iria comer ovos fritos ou mexidos quando voltasse ao quartel-general lá pelas oito horas.
Quinhentos metros, quatrocentos, trezentos, duzentos, cem. O homem que vinha atrás reduziu sua velocidade para oitenta. Pôs a luva direita entre os dentes e puxou-a da mão. Enfiou a luva entre os botões da túnica, abaixou a mão e desprendeu a arma.
Agora devia estar aparecendo bem no espelho retrovisor do moço à frente, pois este de repente virou a cabeça para trás, surpreendido por encontrar outro mensageiro em seu trajeto a essa hora da manhã. Pensou que fosse alguém da polícia militar americana ou talvez francesa. Poderia ser alguém de qualquer das oito nações da OTAN que constituíam o pessoal do SHAPE. Mas quando reconheceu o uniforme do Corpo, ficou admirado e encantado. Quem poderia ser?
Ergueu jovialmente o polegar direito como sinal de reconhecimento e diminuiu sua velocidade para quarenta, esperando que o outro homem o alcançasse. Com um olho na estrada à frente e outro na silhueta que se aproximava no espelho, relembrou os nomes dos mensageiros britânicos da Unidade de Serviço Especial de Transporte à disposição do Comando do Quartel-General. Albert, Sid, Wally — poderia ser Wally, que era assim encorpado. Bom encontro! Poderia brincar um pouco com ele a respeito daquela franguinha na cantina — Louise, Elise, Lise, como era mesmo seu nome?
O homem com a arma diminuíra bem a velocidade. Estava agora a cinquenta metros de distância. Seu rosto, não deformado pelo vento, apresentava linhas grosseiras e rudes, talvez eslávicas. Uma faísca vermelha ardia no fundo dos olhos pretos, que pareciam canos de revólver. Quarenta metros, depois trinta. Uma gralha solitária saiu voando da floresta, à frente do mensageiro mais moço. Atravessou desajeitadamente a estrada e entrou no mato atrás de um cartaz da Michelin, que anunciava faltar ainda um quilômetro para St. Germain. O jovem sorriu e ergueu ironicamente um dedo como saudação e autoproteção — “Uma gralha sozinha dá azar.”
Vinte metros atrás, o homem com a arma tirou ambas as mãos do guidom, ergueu a Luger, descansou-a cuidadosamente no antebraço esquerdo e disparou um tiro.
As mãos do jovem soltaram os comandos e encontraram-se no centro de sua espinha, que se curvava para trás. Sua máquina atravessou a estrada, saltou uma estreita vala e mergulhou em uma área de capim e lírios do vale. Lá se ergueu sobre a rangente roda traseira e vagarosamente caiu para trás por cima do mensageiro morto. A BSA tossiu e sacudiu-se rasgando as roupas do jovem e as flores. Depois ficou imóvel.
O assassino fez uma curva fechada e parou com sua máquina voltada para o lado de onde viera. Abaixou o suporte da roda, puxou a máquina sobre ele e penetrou entre as flores silvestres sob as árvores. Ajoelhou-se ao lado do homem morto e ergueu bruscamente uma de suas pálpebras. Com igual brutalidade arrancou a pasta de couro preto do cadáver e abriu os botões da túnica para retirar uma velha carteira de couro. Arrancou tão bruscamente um relógio barato do pulso esquerdo que a pulseira elástica de cromo partiu-se em duas. Levantou-se e pendurou a pasta no ombro. Enquanto guardava a carteira e o relógio no bolso da túnica, escutava. Havia apenas sons vindos da floresta e o lento estalar do metal quente da BSA desmantelada. O assassino voltou para a estrada. Caminhou vagarosamente, jogando folhas sobre as marcas dos pneus na terra e musgo moles. Deu-se ainda ao trabalho de apagar as profundas marcas na vala e na beirada da grama. Depois, ficou em pé ao lado de sua motocicleta, olhando para o lugar coberto de lírios do vale. Não estava mau! Provavelmente só os cães policiais descobririam. E, com quinze quilômetros de estrada para esquadrinhar, demorariam horas, talvez dias — tempo mais que suficiente. O principal nesses trabalhos era ter uma boa margem de segurança. Poderia ter atirado no homem a quarenta metros, mas preferia fazê-lo a trinta. E tirar o relógio e a carteira fora um belo remate — remate de profissional.
Satisfeito consigo mesmo, o homem levantou a máquina de seu suporte, saltou agilmente sobre o selim e apertou a partida. Vagarosamente, para não deixar marcas de derrapagem, acelerou de volta pela estrada. Um minuto depois, estava novamente fazendo cento e vinte e o vento tornou a estampar em seu rosto a careta vazia de nabo.
Em torno da cena do assassínio, a floresta, que prendera a respiração enquanto aquilo acontecia, vagarosamente começou a respirar de novo.
James Bond tomou seu primeiro trago da noite no “Fouquet’s”. Não foi um trago sólido. Não se pode beber seriamente em cafés franceses. Ao ar livre na calçada sob o sol não é lugar para vodca, uísque ou gim. Um fine à l’eau é bastante sério, mas embriaga sem ter bom gosto. Um quart de champagne ou um champagne à l’orange é muito bom antes do almoço, mas à tarde um quart leva a outro quart, e uma garrafa de champanha indiferente é base ruim para a noite. Pernod é possível, mas deve ser bebido com companhia e, na verdade, Bond nunca gostara daquilo porque o sabor licoroso lembrava-lhe a infância. Não, em cafés a gente tem de beber a menos ofensiva das bebidas de comédia musical que combina com eles e Bond sempre tomava a mesma coisa: um Americano — Bitter Campari, Cinzano, uma grande fatia de casca de limão e soda. Quanto à soda, sempre exigia Perrier, pois em sua opinião soda cara era o meio mais barato de melhorar uma bebida ruim.
Quando estava em Paris, Bond invariavelmente mantinha o mesmo endereço. Ficava no “Terminus Nord”, porque gostava de hotéis de estação e porque esse era o menos pretensioso e o mais anônimo deles. Almoçava no “Café de la Paix,” na “Rotonde” ou no “Dome”, porque a comida era bem boa e agradava-lhe observar as pessoas. Se desejava uma bebida sólida, tomava-a no “Harry’s Bar”, tanto por causa da solidez das bebidas como porque, em sua primeira e ignorante visita a Paris com dezesseis anos de idade, fizera o que o anúncio do “Harry’s” no “Continental Daily Mail” lhe dissera para fazer e dissera ao motorista do táxi: “Sank Roo Doe Noo”. Isso dera início a uma das noites memoráveis de sua vida, que culminara com a perda, quase simultânea, de sua virgindade e de sua carteira. Para jantar, Bond ia a um dos grandes restaurantes — “Véfour”, “Caneton”, “Lucas Carton” ou “Cochon d’Or.” Considerava que esses, apesar de tudo quanto o “Michelin” pudesse dizer sobre o “Tour d’Argent”, o “Maxims” e outros semelhantes, tinham de alguma maneira evitado o deslustre da conta de despesas e do dólar. Fosse como fosse, preferia a comida deles. Depois do jantar, geralmente ia à Place Pigalle para ver o que lhe aconteceria. Quando, como de hábito, nada acontecia, atravessava Paris a pé até a Gare du Nord e ia para a cama.
Nessa noite, Bond decidira rasgar seu empoeirado livrinho de endereços e fazer um baile à moda antiga. Estava de passagem por Paris, depois de uma missão lamentavelmente malograda na fronteira austro-húngara. Tratava-se de tirar certo húngaro de seu país. Bond fora mandado de Londres especialmente para dirigir a operação, passando por cima da Estação V. Isso não agradara à Estação de Viena. Houvera mal-entendidos — propositais. O homem fora morto no campo de minas da fronteira. Ia haver um tribunal de inquérito. Bond devia voltar ao seu quartel-general em Londres no dia seguinte para fazer o relatório, e pensar nisso tudo deprimia-o. O dia fora tão belo — um daqueles dias em que a gente acredita que Paris é linda e alegre — e Bond resolvera dar à cidade mais uma oportunidade. Arranjaria uma garota que fosse uma verdadeira garota e a levaria jantar em algum lugar falsificado no Bois, como o “Armenonville”. Para tirar de seus olhos a expressão de dinheiro — que certamente lá estaria — dar-lhe-ia logo que possível cinquenta mil francos. Diria a ela: “Pretendo chamá-la de Donatienne ou possivelmente de Solange, porque esses são nomes que combinam com minha disposição e com a noite. Já nos conhecemos antes e você me emprestou este dinheiro porque eu estava em dificuldades. Aqui está e agora vamos contar um ao outro o que estivemos fazendo desde quando nos encontramos pela última vez em St. Tropez exatamente há um ano. Enquanto isso, aqui está o cardápio e a lista de vinhos. Você deve escolher o que a deixe feliz e gorda.” E ela pareceria aliviada por não precisar mais esforçar-se e diria rindo: “Mas, James, eu não quero ser gorda.” E lá estariam eles, começando com o mito de “Paris na Primavera”. Bond ficaria sóbrio e se interessaria por ela e por tudo quanto ela dissesse. E, por Deus, no fim da noite não seria culpa sua se transpirasse que não restava realmente um fiapo de recheio na velha e encanecida história de fadas de “Uma noitada alegre em Paris”.
Sentado no “Fouquet’s, esperando o Americano, Bond sorriu de sua veemência. Sabia que estava apenas brincando com essa fantasia pela satisfação de dar um último pontapé na cidade pela qual tinha cordial aversão desde a Guerra. Desde 1945, nunca passara um dia feliz em Paris. Não era pelo fato de a cidade ter vendido seu corpo. Muitas cidades fizeram isso. Era seu coração que se fora — penhorado aos turistas, penhorado aos russos, rumenos e búlgaros, penhorado à ralé do mundo que gradualmente tomara conta da cidade. E, naturalmente, penhorado aos alemães. Podia-se ver isso nos olhos do povo — sombrios, invejosos, envergonhados. Arquitetura? Bond olhou através da calçada para as brilhantes tiras pretas de carros nos quais o sol cintilava dolorosamente. Por toda parte era a mesma coisa, como nos Champs-Elysées. Havia apenas duas horas nas quais se podia ver a cidade — entre as cinco e as sete da manhã. Depois das sete, ela mergulhava em uma trovejante corrente de metal preto com a qual nenhum belo edifício, nenhum bulevar espaçoso e ladeado de árvores podia competir.
A bandeja do garçom bateu sobre o mármore da mesa. Com uma só mão, em um movimento rápido, que Bond nunca fora capaz de imitar, o abridor de garrafas do garçom tirou a tampa da Perrier. O homem enfiou a ficha embaixo do balde de gelo, disse um mecânico “Voilà, M’sieur” e afastou-se rapidamente. Bond pôs gelo na bebida, encheu o copo até em cima com soda e tomou um longo trago. Encostou-se para trás na cadeira e acendeu um Laurens jaune. Naturalmente, a noite seria um desastre. Mesmo supondo que encontrasse a garota dentro de uma hora mais ou menos, o conteúdo certamente não corresponderia ao envoltório. Examinada mais de perto, ela mostraria ter a pele grossa, úmida e porosa da francesa burguesa. Os cabelos louros por baixo da atrevida boina de veludo seriam castanhos nas raízes e grossos como cordas de piano. O cheiro de menta no hálito não esconderia o alho do meio-dia. A atraente figura seria complicadamente escorada com arame e borracha. Ela seria de Lille e lhe perguntaria se era americano. E, Bond sorriu consigo mesmo, ela ou seu maquereau provavelmente lhe roubaria a carteira. La ronde. ele voltaria ao lugar onde começara. Isto é, mais ou menos. Bem, que fosse tudo para o diabo!
Um maltratado Peugeot 403 preto saiu repentinamente da corrente central de tráfego, atravessou a linha interior de carros e parou em fila dupla na esquina. Houve o costumeiro ranger de freios, buzinadas e gritos. Absolutamente impassível, a moça desceu do carro e, deixando que o trânsito se arranjasse sozinho, atravessou decididamente a calçada. Bond endireitou-se na cadeira. Ela tinha tudo, mas absolutamente tudo quanto existia em sua fantasia. Era alta e, embora seu corpo estivesse escondido por uma capa leve, a maneira como se movia e a maneira como se portava prometiam que seria belo. O rosto tinha a alegria e o arrojo que combinavam com sua maneira de guiar. Mas agora havia impaciência nos lábios apertados e os olhos agitavam-se quando abriu caminho diagonalmente através da multidão que se movia na calçada.
Bond observou-a cuidadosamente quando chegou à beira das mesas e subiu pelo corredor. Naturalmente, não havia esperança. Ela ia encontrar-se com alguém — seu amante. Era a espécie de mulher que sempre pertence a outro homem. Estava atrasada para o encontro. Por isso é que tinha tanta pressa. Que azar miserável! Correspondia em tudo, até mesmo nos compridos cabelos louros por baixo da atrevida boina! E estava olhando diretamente para ele. Estava sorrindo...!
Antes que Bond pudesse refazer-se, a moça chegara à sua mesa, puxara uma cadeira e sentara-se.
Sorriu tensamente para dentro dos olhos admirados de Bond.
— Sinto muito ter chegado tarde e acho que temos de partir imediatamente. Você está sendo procurado no escritório.
Em voz baixa, acrescentou: — Mergulho-relâmpago.
Bond sacudiu-se e voltou à realidade. Fosse quem fosse, ela certamente pertencia à “firma”. “Mergulho-relâmpago” era uma expressão de gíria que o Serviço Secreto tomara emprestada do Serviço de Submarinos. Significava más notícias — o pior. Bond enfiou a mão no bolso e tirou algumas moedas, que pôs sobre a mesa. Disse: “Certo. Vamos.” Levantou-se e seguiu-a através das mesas e até seu carro. Este ainda estava obstruindo a fila interna do tráfego. A qualquer momento apareceria um guarda. Fisionomias coléricas voltaram-se para eles quando entraram no carro. A moça deixara o motor funcionando. Engatou em seguida e mergulhou no trânsito.
Bond olhou de lado para ela. A pele pálida era como veludo. Os cabelos louros eram como seda — até as raízes. Disse: — De onde você é e de que se trata?
Ao mesmo tempo que prestava atenção ao trânsito, ela respondeu: — Da estação. Assistente grau dois. Em serviço, número 765. Fora do serviço, Mary Ann Russell. Não tenho a menor ideia do que se trata. Vi apenas o aviso do QG — pessoal de M para o Chefe da Estação. Muito urgente e tudo o mais. ele devia encontrá-lo imediatamente e, se necessário, pedir o auxílio do Deuxième. O chefe da F disse que você sempre ia aos mesmos lugares quando estava em Paris. Eu e outra moça recebemos uma lista. Sorriu e prosseguiu: — Eu só havia tentado o “Harry’s Bar” e, depois do “Fouquet’s”, ia começar pelos restaurantes. Foi maravilhoso encontrá-lo assim.
Dando um rápido olhar a Bond, acrescentou:
— Espero não ter sido muito inábil.
— Você foi magnífica — respondeu Bond. — Que faria se houvesse uma garôta comigo?
— Faria a mesma coisa que fiz, só que o chamaria de senhor — disse ela rindo. — Eu só estava preocupada em pensar como você se livraria da gorôta. Se ela começasse uma cena, eu me prontificaria a levá-la para casa em meu carro e você tomaria um táxi.
— Você parece muito engenhosa. Há quanto tempo está no Serviço?
— Cinco anos. Esta é a primeira vez que trabalho em uma Estação.
— Que está achando?
— Gosto muito do trabalho. As noites e os dias de folga aborrecem um pouco. Não é fácil fazer amigos em Paris sem — sua boca virou-se para baixo com um ar de ironia — sem tudo o resto. Quero dizer — apressou-se em acrescentar — eu não sou pudica e tudo o mais, mas os franceses tornam o negócio muito aborrecido. Quero dizer que precisei deixar de tomar o metrô ou ônibus. Seja qual fôr a hora do dia, a gente acaba sempre com o traseiro preto e azul.”
Riu enquanto continuava:
— Além da caceteação de não saber o que dizer ao homem, alguns dos beliscões doem realmente. É o máximo. Para evitar tais coisas, comprei este carro barato e os outros carros parecem afastar-se do meu caminho. Desde que não olhe nos olhos do outro motorista, a gente pode levar vantagem mesmo sobre o mais miserável deles. Sentem medo de que a gente não os tenha visto. E ficam preocupados com o ar arrebentado do carro. Dão todo o espaço para a gente.
Haviam chegado à Rond Point. Como para demonstrar sua teoria, ela deu a volta em disparada e avançou diretamente para a corrente de tráfego que vinha da Place de la Concorde. Milagrosamente, a corrente se abriu e deixou-a entrar na Avenue Matignon.
— Muito bem — disse Bond. — Mas não faça disso um hábito. Pode haver por aí algumas Mary Anns francesas.
Ela riu. Entrou na Avenue Gabrielle e parou diante do quartel-general parisiense do Serviço Secreto.
— Só tento essa espécie de manobra no cumprimento do dever.
Bond desceu e deu a volta até o outro lado do carro.
— Bem — disse ele. — Obrigado por ter ido buscar-me. Quando esta complicação terminar, posso ir buscá-la em troca? Eu não recebo beliscões, mas estou tão aborrecido em Paris quanto você.
Seus olhos, azuis e bem separados, procuraram os dele, enquanto ela dizia:
— Gostaria disso. A telefonista daqui poderá encontrar-me sempre.
Bond estendeu a mão através da janela e apertou a mão que repousava sobre o volante.
— Ótimo — disse, virando-se e caminhando rapidamente para o arco de entrada.
O comandante de ala Rattray, chefe da Estação F, era um homem gorducho de face rosadas e cabelos louros penteados para trás. Vestia-se de maneira afetada, com punhos virados e aberturas duplas no paletó, gravata borboleta e colete exagerado. Dava impressão de boa vida, de quem frequenta a sociedade dos vinhos e comidas, na qual só os olhos azuis, vagarosos e quase ardilosos, punham uma nota falsa. Fumava Gauloises sem parar e o cheiro deles enchia sua sala. Cumprimentou Bond com alívio.
— Quem o encontrou?
— Russell. No “Fouquet’s”. Ela é nova?
— Seis meses. É muito eficiente. Mas sente-se. Há uma complicação dos diabos e tenho de transmitir-lhe as informações para que você se ponha em ação.
Curvou-se para seu aparelho de comunicação interna e baixou uma chave, dizendo depois:
— Comunique-se com M, por favor. Pessoal do Chefe da Estação. “007 localizado agora recebendo instruções. Okay?”
Soltou a chave.
Bond puxou uma cadeira para perto da janela aberta a fim de fugir à fumaça dos Gauloises. O trânsito nos Champs-Elysées era um ronco surdo no fundo. Meia hora antes, sentia-se cheio de Paris, ansioso por ir embora. Agora, esperava ficar.
O chefe da F disse: — Alguém pegou o mensageiro da madrugada do SHAPE para a Estação de St. Germain ontem de manhã. Era a remessa semanal da Divisão de Informações do SHAPE com os Sumários, documentos do serviço secreto conjunto, Ordem de Batalha da Cortina de Ferro — tudo coisa importante. Um tiro nas costas. Tiraram sua pasta, assim como a carteira e o relógio.
— Isso é ruim — disse Bond. — Não poderia ter sido um assalto comum? Ou eles pensam que a carteira e o relógio foram disfarce?
— O pessoal da Segurança do SHAPE não consegue decidir-se. De maneira geral, acham que foi disfarce. Sete horas da manhã é uma hora pouco conveniente para assalto. Mas você poderá discutir isso com eles se for até lá. M vai mandá-lo como seu representante pessoal. ele está preocupado como o diabo. Além da perda de documentos do serviço secreto, o pessoal da Divisão de Informações jamais gostou de ter uma de nossas Estações fora da “Reserva”, por assim dizer. Há anos eles vêm tentando incorporar a unidade de St. Germain ao conjunto de serviço secreto do SHAPE. Mas você sabe como é M, aquele velho diabo independente. Nunca esteve muito contente com a Segurança da OTAN. Mesmo porque, não apenas há um par de franceses e um italiano dentro da Divisão de Informações do SHAPE, mas também o chefe de sua seção de contraespionagem e segurança é alemão!
Bond assobiou.
— O mal é que o SHAPE não precisa senão deste maldito negócio para fazer M curvar-se. Seja como fôr, ele disse para você ir lá imediatamente. Arrumei tudo para você. Já obtive os passes. Deve apresentar-se ao coronel Schreiber, no Setor de Segurança do Comando do Quartel-General. É americano. Cara eficiente. Está cuidando do negócio desde o começo. Pelo que pude saber, já fez quase tudo quanto podia ser feito.
— Que fez ele? Que aconteceu realmente?
O chefe da F apanhou um mapa em sua mesa, levantou-se e abriu-o. Era o “Environs de Paris” de Michelin em grande escala. Apontou com um lápis, dizendo:
— Aqui está Versalhes e aqui, logo ao norte do parque, fica a grande junção das auto-estradas Paris-Nantes e Versalhes. Uns duzentos metros ao norte, na N184, fica o SHAPE. Toda quarta-feira, às sete da manhã, um mensageiro dos Serviços Especiais deixa o SHAPE com a remessa semanal de material do serviço secreto de que lhe falei. Deve ir a esta pequena aldeia chamada Fourqueux, pertinho de St. Germain, entregar seu material ao oficial de serviço em nosso QG e estar de volta ao SHAPE às sete e meia. Por motivos de segurança, ao invés de passar por toda esta área construída, tem ordem de tomar esta N307 até St. Nom, virar à direita para entrar na D98, passar por baixo da auto-es-trada e atravessar a floresta de St. Germain. A distância é mais ou menos de doze quilômetros e, indo devagar, ele faz o trajeto em menos de um quarto de hora. Bem, ontem era um cabo do Corpo de Sinalização, homem bom e sólido chamado Bates. Quando não se apresentou de volta ao SHAPE até sete e quarenta e cinco, mandaram outro mensageiro procurá-lo. Não havia traços dele. Não se apresentara também em nosso QG. Às oito e quinze o Setor de Segurança estava em ação e às nove já haviam sido estabelecidas barreiras rodoviárias. A polícia e o Deuxième foram informados, organizando-se então grupos de busca. Os cães encontraram-no, mas só ao cair da tarde, mais ou menos às seis horas. A essa hora, se houvesse alguma pista na estrada, teria sido apagada pelo trânsito.
O chefe da F entregou o mapa a Bond e voltou para sua mesa, enquanto prosseguia:
— E isso é praticamente tudo, só que foram também adotadas todas as providências habituais — fronteiras, portos, aeroportos etc. Mas coisas dessa espécie não ajudam. Se foi um trabalho profissional, quem o executou poderia estar com o material fora do país ao meio-dia ou em uma embaixada em Paris uma hora depois da ocorrência.
Bond disse impacientemente:
— Exatamente! E nesse caso que diabo M espera que eu faça? Que diga à Segurança do SHAPE para fazer tudo de novo, mas melhor! Coisa dessa espécie absolutamente não é minha função. Maldito desperdício de tempo.
O chefe da F sorriu com uma expressão de simpatia.
— Para dizer a verdade, expus o mesmo ponto de vista a M pelo aparelho. Com muito tato. O velho foi perfeitamente razoável. Disse que desejava mostrar aos homens do SHAPE que levava o negócio tão a sério quanto eles. Por acaso, você estava disponível e mais ou menos no local. ele disse que você tem a espécie de cérebro capaz de apanhar o fator invisível. Perguntei-lhe o que queria dizer e ele respondeu que em todo quartel-general cuidadosamente guardado há sempre um homem invisível — um homem cuja presença todos acham tão natural que não lhe prestam atenção — jardineiro, limpador de vidraças, entregador de correspondência. Expliquei-lhe que o SHAPE pensava nisso e que todos os serviços dessa espécie eram executados por homens alistados. M disseme para não ter mentalidade tão literal e desligou.
Bond riu. Podia ver a testa franzida de M e ouvir sua voz ríspida. Disse:
— Então, está muito bem. Verei o que posso fazer. Para onde devo mandar minhas informações?
— Para cá. M não quer que a unidade de St. Germain se envolva no caso. Tudo quanto você tiver a dizer mandarei pelo teletipo diretamente para Londres. Mas posso não estar aqui quando você chamar. Destacarei alguém para servir como seu oficial de plantão, com quem você poderá entender-se a qualquer momento nas vinte e quatro horas do dia. Russell poderá fazer isso. Ela o encontrou e pode continuar trabalhando com você. Serve-lhe assim?
— Sim — respondeu Bond. — Está tudo certo.
O maltratado “Peugeot”, posto à disposição de Bond por Rattray, tinha o cheiro dela. Havia restos dela no porta-luvas — meio pacote de chocolate “Suchard”, um embrulho de papel com grampos para cabelos, uma brochura de John O’Hara e uma luva de camurça preta. Bond pensou nela até chegar à Etoile, depois expulsou-a da mente e fez o carro correr velozmente através do Bois. Rattray havia dito que levaria quinze minutos a oitenta por hora. Bond pedira para reduzir a velocidade à metade e dobrar o tempo, dizendo ao coronel Schreiber que o procuraria às nove e meia. Depois da Porte de St. Cloud havia pouco trânsito e Bond manteve o carro a mais de cem na auto-estrada até aparecer o desvio onde havia uma flecha vermelha indicando o SHAPE. Bond subiu a ladeira e entrou na NI84. Duzentos metros adiante, no meio da estrada, estava o guarda de trânsito que haviam dito a Bond para procurar. O guarda fez-lhe sinal para entrar pelo grande portão à esquerda. Bond entrou e parou no primeiro posto de inspeção. Um policial americano em uniforme cinzento pendurou-se para fora da cabina e olhou de relance para seu passe. Disse-lhe que entrasse e parasse. Depois um policial francês tomou seu passe, anotou os detalhes em uma fórmula impressa grampeada em uma tábua, deu-lhe um grande número de plástico para o para-brisa e mandou-o prosseguir. Quando Bond entrou no pátio de estacionamento, com teatral instantâneidade, uma centena de luzes brilhou e iluminou as numerosas barracas baixas à sua frente como se fosse dia. Sentindo-se nu, Bond atravessou a área pedregulhada descoberta sob as bandeiras dos países da OTAN e subiu os quatro degraus baixos até as largas portas de vidro que davam entrada para o Supremo Quartel-General das Potências Aliadas na Europa (SHAPE). Agora ali estava a mesa principal de Segurança. Policiais militares americanos e franceses conferiram seu passe e anotaram os detalhes. Bond foi entregue a um policial militar britânico de quepe vermelho e levado pelo corredor principal, passando por intermináveis portas de escritórios. Nelas não havia nomes, mas o habitual abracadabra alfabético de todos os quartéis-generais. Um deles dizia “CONSTRIKFLTLANT AND SACLANT LIAISON TO SACEUR”.
Bond perguntou o que significava. O polícia militar, por ignorância ou, mais provavelmente, por mentalidade de segurança, respondeu fleugmaticamente:
— Não sei dizer ao certo, senhor.
Por trás de uma porta que dizia “Coronel G. A. Schreiber, Chefe de Segurança, Comando do Quartel-General”, estava um americano de meia idade, reto como uma vareta de fuzil, com cabelos grisalhos e as maneiras cortêsmente negativas de um gerente de banco. Em sua mesa havia várias fotografias de família em molduras prateadas e um vaso contendo uma única rosa branca. Na sala não havia cheiro de fumaça de tabaco. Depois de preliminares cautelosamente amáveis, Bond congratulou-se com o coronel por seu serviço de segurança.
— Todas essas inspeções e duplas inspeções — disse ele — fazem com que o negócio não fique fácil para a oposição. Já havia perdido alguma coisa anteriormente ou encontrado sinais de alguma tentativa séria de golpe?
— Não a ambas as perguntas, comandante. Estou perfeitamente satisfeito com o Quartel-General. São só as unidades externas que me preocupam. Além dessa seção de seu Serviço Secreto, temos várias unidades de sinalização separadas. Há também, naturalmente, os Ministérios do Interior de quatorze nações diferentes. Não posso responder pelo que venha a transpirar desses setores.
— Não deve ser um trabalho fácil — concordou Bond. — Agora, quanto a essa embrulhada. Apareceu alguma coisa desde quando o comandante Rattray falou consigo pela última vez.
— Recebi a bala. Luger. Cortou a medula espinhal. Disparada provavelmente de uns trinta metros, com uma margem de dez metros para mais ou para menos. Supondo-se que nosso homem estivesse correndo em linha reta, a bala deve ter sido disparada diretamente de trás em trajetória horizontal. Como não pode ter sido um homem em pé no meio da estrada, o assassino devia estar-se movendo dentro de um veículo ou sobre ele.
— Então seu homem o teria visto no espelho retrovisor?
— Provavelmente.
— Seus mensageiros têm instruções para executar uma ação evasiva no caso de perceberem que estão sendo seguidos?
O coronel sorriu ligeiramente.
— Claro. Têm ordem para correr como o diabo.
— E em que velocidade estava seu homem quando caiu?
— Eles acham que não ia muito depressa. Entre trinta e cinquenta. Onde está querendo chegar, Comandante?
— Estava pensando se vocês já decidiram se foi um trabalho de profissional ou de amador. Se seu homem não estava tentando fugir e supondo-se que tenha visto o assassino em seu espelho, o que reconheço ser apenas uma probabilidade, isso sugere que aceitou o homem em sua cola como amigo e não como inimigo. Isso poderia significar alguma espécie de disfarce que se adaptasse ao ambiente daqui — algo que seu homem pudesse aceitar mesmo àquela hora da manhã.
Uma pequena ruga estava-se formando na testa lisa do Coronel Schreiber.
— Comandante — havia uma ponta de tensão em sua voz — estivemos, naturalmente, considerando todos os ângulos deste caso, também o que menciona. Ao meio-dia de ontem, o General-Comandante declarou emergência nessa questão, foram formadas comissões de atividades de segurança e, a partir daquele momento, em todos os ângulos, toda sugestão de indício foi sistematicamente investigada. E posso afirmar-lhe, Comandante, — o Coronel ergueu uma mão bem manicurada e deixou-a descer em suave ênfase sobre seu mata-borrão — que qualquer homem capaz de apresentar uma ideia mesmo remotamente original sobre este caso precisará estar intimamente ligado a Einstein. Não há nada, absolutamente nada, repito, de onde se possa partir neste caso.
Bond sorriu com uma expressão de simpatia e levantou-se.
— Nesse caso, Coronel, não tomarei mais seu tempo esta noite. Se eu pudesse apenas obter as minutas das várias reuniões para pôr-me a par dos fatos e se um de seus homens pudesse mostrar-me o caminho para a cantina e para meu alojamento...
— Claro, claro — disse o Coronel, apertando uma campainha.
Um jovem ordenança entrou.
— Proctor — ordenou o Coronel — mostre ao Comandante seu quarto na ala de VIP e depois leve-o ao bar e à cantina.
Virando-se para Bond, acrescentou:
— Terei aqueles documentos prontos para o Senhor depois que tiver tomado uma refeição e uma bebida. Estarão em meu escritório. Não podem ser retirados de lá, naturalmente, mas encontrará tudo à mão na sala vizinha e Proctor poderá dar-lhe informações sobre qualquer coisa que esteja faltando.
Ergueu a mão e concluiu:
— Tudo certo? Então nós nos encontraremos de novo amanhã cedo.
Bond disse boa-noite e seguiu o ordenança. Enquanto caminhava ao longo dos corredores de cor neutra e cheiro neutro, refletiu que essa era provavelmente a missão mais sem esperança que já recebera. Se os melhores cérebros do serviço de segurança de quatorze países estavam desnorteados, que esperança poderia ter ele? Naquela noite, quando se deitou na cama, no luxo espartano do alojamento para pousada de visitantes, Bond já decidira que dedicaria ao caso mais uns dois dias — principalmente para manter-se em contato com Mary Ann Russell o mais tempo possível — e depois daria o fora. Com essa decisão, caiu imediatamente em profundo e tranquilo sono.
Não dois, mas quatro dias depois, quando amanheceu na Floresta de St. Germain, James Bond estava deitado sobre o grosso galho de um carvalho montando guarda a uma pequena e vazia clareira, bem escondida entre as árvores que ladeavam a D98, a estrada do crime.
Estava vestido da cabeça aos pés com a camuflagem dos para-quedistas — verde, marrom e preto. Até mesmo as mãos estavam cobertas com o material e havia sobre sua cabeça um capuz com aberturas para os olhos e a boca. Era boa camuflagem que ficaria ainda melhor quando o sol estivesse mais alto e as sombras mais escuras. De lugar nenhum no solo, mesmo diretamente embaixo do alto ramo, poderia ser avistado.
Acontecera mais ou menos isto. Nos primeiros dois dias no SHAPE, havia sido a esperada perda de tempo. Bond nada conseguira, a não ser tornar-se mais ou menos impopular com a persistência de suas perguntas de reinvestigação. Na manhã do terceiro dia, estava para ir despedir-se quando recebeu um telefonema do Coronel.
— Oh, comandante, achei que devia comunicar-lhe que o último grupo de cães policiais voltou tarde da noite ontem... Foi sua ideia de que talvez valesse a pena rebuscar toda a floresta. Sinto muito — o tom da voz não indicava o menor pesar — mas foi negativo, absolutamente negativo.
— Oh! Foi por culpa minha a perda de tempo. Quase que só para aborrecer o Coronel, Bond acrescentou:
— Não se importa se eu tiver uma conversa com o treinador?
— Claro, claro. Tudo quanto quiser. A propósito, Comandante, até quando pretende ficar por aqui? Temos o maior prazer em que fique conosco quanto tempo quiser, mas o problema é seu quarto. Parece que dentro de poucos dias vai chegar da Holanda um grande grupo. Curso de Estado-Maior de alta categoria ou coisa semelhante e a administração diz que está com um pouco de falta de espaço.
Bond não esperara dar-se bem com o Coronel Schreiber e não se dera. Disse amàvelmente:
— Vou ver o que meu chefe acha e falarei de novo consigo, Coronel.
— Faça isso, por favor.
A voz do Coronel era igualmente cortês, mas as maneiras de ambos os homens estavam se tornando tensas e os dois fones interromperam a ligação ao mesmo tempo.
O treinador chefe era um francês das Landes. Tinha os olhos astuciosos de um caçador furtivo. Bond encontrou-o nos canis, mas a proximidade do treinador era demais para os alsacianos e, para fugir ao barulho, ele levou Bond à sala de serviço, minúsculo aposento com binóculos pendurados em pregos e impermeáveis, botas de borracha, arneses de cães e outros materiais empilhados ao longo das paredes. Havia duas cadeiras de madeira e uma mesa coberta por um mapa em grande escala da Floresta de St. Germain. O mapa estava marcado com quadrados traçados a lápis. O treinador fez um gesto em sua direção.
— Nossos cães vasculharam isso tudo, Monsieur. Nada existe aí.
— Quer dizer que eles não pararam uma única vez?
O treinador coçou a cabeça.
— Tivemos dificuldades com alguns animais de caça, Monsieur. Havia uma ou duas lebres. Umas duas tocas de raposas. Demoramos um pouco para tirá-los de uma clareira perto do Carrefour Royal. Provavelmente ainda sentiram o cheiro dos ciganos.
— Oh — fez Bond, apenas ligeiramente interessado. — Mostre-me isso. Onde estavam esses ciganos?
O treinador apontou delicadamente com um dedo sujo.
— Esses são os nomes de antigamente. Aqui está a Etoile Parfaite e aqui, onde ocorreu o assassínio, é o Carrefour des Curieux. Ali, formando a base do triângulo, fica o Carrefour Royal. Forma — acrescentou dramaticamente — uma cruz com a estrada da morte.
Tirou um lápis do bolso e fez um ponto bem perto da encruzilhada.
— E aqui fica a clareira, Monsieur. Um trailer de ciganos esteve aqui durante a maior parte do inverno. Os ciganos partiram no mês passado. Limparam bem o lugar, mas, para os cães, seu cheiro ainda estará lá durante meses.
Bond agradeceu e, depois de examinar e admirar os cães, e conversar um pouco sobre a profissão de treinador, tomou o “Peugeot” e foi à gendarmaria em St. Germain. Sim, certamente tinham sabido da presença dos ciganos. Gente de aparência genuinamente romani. Mal falavam uma palavra de francês, mas comportaram-se bem. Não houve queixas. Eram seis homens e duas mulheres. Não. Ninguém os vira partir. Certa manhã, simplesmente não estavam mais lá. Poderiam ter partido uma semana antes, pelo que se sabia. Haviam escolhido um local bem isolado.
Bond tomou a D98 através da floresta. Quando a grande ponte da auto-estrada apareceu uns quinhentos metros à frente, Bond acelerou e depois desligou o motor, deixando o carro correr silenciosamente até chegar ao Carrefour Royal. Parou e desceu do carro, sem fazer um som. Sentindo-se um pouco tolo, entrou quietamente na floresta e caminhou com grande cuidado na direção em que devia ficar a clareira. Vinte metros adiante, entre as árvores, encontrou-a. Ficou na orla de arbustos e árvores, e examinou-a cuidadosamente. Depois, entrou e atravessou-a de um lado para o outro.
A clareira era mais ou menos do tamanho de duas quadras de tênis. O chão estava coberto de mato cerrado e musgos. Havia um grande canteiro de lírios do vale e, embaixo das árvores circundantes, uma porção de campainhas azuis. De um lado, havia um montículo baixo, completamente cercado e rodeado de espinheiros e roseiras bravas, agora todas floridas. Bond caminhou em roda e olhou entre as raízes, mas nada havia para ver exceto a terra do montículo.
Bond olhou em volta pela última vez e depois foi até o canto da clareira que ficava mais perto da estrada. Ali havia fácil acesso através das árvores. Haveria traços de uma trilha, folhas ligeiramente amassadas? Não mais do que teria sido deixado pelos ciganos ou pelos participantes de piqueniques do ano anterior. À beira da estrada havia uma estreita passagem entre duas árvores. Casualmente, Bond curvou-se para examinar os troncos. Enrijeceu-se e agachou-se. Com uma unha, raspou delicadamente uma pequena lasca de barro. Escondia um fundo raspão no tronco da árvore. Apanhou os pedacinhos de barro com a mão livre. Cuspiu e umedeceu o barro, que colocou de novo cuidadosamente sobre o raspão. Havia três raspões camuflados em uma árvore e quatro na outra. Bond caminhou rapidamente do meio das árvores para a estrada. Seu carro estava parado em uma ligeira inclinação que levava para debaixo da ponte da auto-estrada. Embora houvesse certa proteção com o ruído do trânsito na auto-estrada, Bond empurrou o carro, saltou para dentro e só ligou o motor quando já estava embaixo da ponte.
Agora, Bond estava de novo na clareira, acima dela, e ainda não sabia se seu palpite era certo. Fora a observação de M que o fizera sentir o faro — e era um faro — juntamente com a menção aos ciganos. “Foi o cheiro dos ciganos que os cães sentiram. A maior parte do inverno... partiram no mês passado. Não houve queixas.. . Certa manhã, simplesmente não estavam mais lá.” O fator invisível. O homem invisível. Pessoas que se harmonizam tão bem com o fundo a ponto de não se saber se lá estão ou não. Seis homens e duas mulheres, que mal falavam uma palavra de francês. Bom disfarce, ciganos. Pode-se ser um estrangeiro, sem ser estrangeiro, por ser apenas um cigano. Alguns deles haviam partido com o trailer. Outros teriam ficado, construído um esconderijo durante o inverno, um lugar secreto de onde a primeira sortida fora o roubo dos documentos altamente secretos? Bond pensara estar criando fantasias, até quando descobriu os raspões, os raspões cuidadosamente camuflados, nas duas árvores. Estavam exatamente na altura em que os pedais de uma bicicleta ou motocicleta poderiam raspar na casca das árvores. Tudo poderia não passar de um sonho fantástico, mas para Bond era o suficiente. A única dúvida em seu espírito era se essa gente dera um único golpe ou se, confiada em sua segurança, tentaria de novo. Confidenciou apenas na Estação F. Mary Ann Russel disse-lhe para ter cuidado. O chefe da F, mais construtivamente, ordenou à sua unidade de St. Germain que cooperasse com ele. Bond despediu-se do Coronel Schreiber e transferiu-se para uma cama de campanha na sede da unidade — uma casa anônima em uma rua sem importância de uma aldeia anônima. A unidade fornecera o material para a camuflagem e os quatro homens do Serviço Secreto que a formavam puseram-se alegremente às ordens de Bond. Compreendiam, tanto quanto Bond, que se este conseguisse dar uma lição a toda a máquina de segurança do SHAPE, o Serviço Secreto conquistaria um triunfo inestimável em face do Alto Comando do SHAPE e M não precisaria mais preocupar-se com a independência de sua unidade.
Deitado sobre o galho do carvalho, Bond sorriu consigo mesmo. Exércitos privados, guerras privadas. Quanta energia sugavam da causa comum, quanto fogo disparavam para longe do inimigo comum!
Seis e meia. Hora do desjejum. Cautelosamente a mão direita de Bond rebuscou entre suas roupas e subiu para a abertura da boca. Bond fez o tablete de glicose durar o mais possível e depois chupou outro. Seus olhos nunca se desviavam da clareira. O esquilo vermelho, que aparecera ao primeiro clarão do dia e que desde então vinha comendo sem parar brotos novos de faia, aproximou-se mais um pouco das roseiras que cresciam sobre o montículo e apanhou alguma coisa, que começou a virar em suas patas e mordiscar. Dois pombos que se cortejavam ruidosamente entre o capim cerrado começaram a amar-se desajeitada e nervosamente. Um casal de pardais pôs a catar apressadamente lasquinhas para o ninho que estava tardiamente fazendo em um arbusto. O gordo tordo localizou finalmente sua minhoca e começou a puxá-la, com as pernas retesadas. Abelhas enxameavam entre as rosas sobre o montículo e de onde se encontrava, talvez a uns vinte metros longe e acima do montículo, Bond só podia ouvir seu zumbido estival. Era uma cena saída de uma história de fadas — as rosas, os lírios do vale, os pássaros e os grandes feixes de luz do sol que caíam através das altas árvores sobre o pequeno lago de um verde cintilante. Bond, que subira para seu esconderijo às quatro horas da madrugada, nunca havia examinado tão de perto ou por tanto tempo a transição da noite para um dia glorioso. De repente sentiu-se como um tolo. A qualquer momento um maldito pássaro viria pousar sobre sua cabeça!
Foram os pombos que deram o primeiro alarma. Com grande estardalhaço, levantaram voo e dispararam para dentro das árvores. Todos os pássaros seguiram o exemplo e o esquilo fez o mesmo. Agora a clareira estava silenciosa, a não ser pelo suave zumbido das abelhas. Que provocara o alarma? O coração de Bond começou a bater forte. Seus olhos caçavam, esquadrinhando a clareira à procura de um indício. Alguma coisa estava-se movendo entre as rosas. Era um movimento minúsculo, mas extraordinário. Vagarosamente, centímetro a centímetro, um único caule espinhoso, um caule estranhamente reto e muito grosso, estava subindo através dos ramos superiores. Continuou subindo até ficar uns trinta centímetros acima da roseira. Então parou. Havia uma solitária cor de rosa na ponta do caule. Separada da roseira, parecia muito pouco natural, mas só para quem tivesse observado ocasionalmente todo o processo. A um olhar casual, era um caule desgarrado e nada mais. Silenciosamente, as pétalas da rosa pareceram girar e expandir-se, os pistilos amarelos separaram-se e o sol cintilou sobre uma lente de vidro do tamanho de uma pequena moeda. A lente parecia estar olhando diretamente para Bond. Depois, vagarosamente, muito vagarosamente, o olho da rosa começou a girar sobre seu caule. Continuou girando até a lente ficar novamente voltada para Bond e toda a clareira ter sido minuciosamente examinada. Como se estivessem satisfeitas, as pétalas giraram delicadamente para cobrir o olho e muito vagarosamente a rosa solitária desceu para juntar-se às outras.
Bond soltou a respiração de um jato. Fechou momentaneamente os olhos para descansá-los. Ciganos! Se aquela peça de máquina servia de indício, dentro do montículo, bem no fundo da terra, havia certamente a mais profissional unidade de espionagem que alguém já inventara para deixar atrás — muito mais brilhante que tudo quanto a Inglaterra preparara para operar depois de uma bem sucedida invasão alemã, muito melhor do que aquilo que os próprios alemães haviam deixado para trás nas Ardennes. Um calafrio de excitação e antecipação — quase de medo — correu pela espinha de Bond. Então tinha razão! Mas qual seria o próximo ato?
Da direção do montículo, saiu um zumbido agudo — o som de um motor elétrico em rotação muito alta. A roseira tremeu ligeiramente. As abelhas alçaram voo, pairaram no ar e pousaram de novo. Vagarosamente, uma fenda denteada formou-se no centro da grande roseira e alargou-se suavemente. As duas metades da roseira estavam-se abrindo como portas duplas. A escura abertura alargou-se até Bond poder ver as raízes da roseira penetrando na terra de ambos os lados da porta. O zumbido da maquinaria estava mais alto e houve um brilho de metal nas beiradas das portas curvas. Era o mesmo que ver abrir um ovo de Páscoa com dobradiças. Em um momento, os dois segmentos estavam separados e as duas metades da roseira, ainda cheias de abelhas, ficaram completamente abertas. O interior do caixão de metal que sustentava a terra e as raízes da roseira ficou exposto ao sol. No buraco escuro entre as portas curvas surgiu o brilho pálido de uma lanterna elétrica. O zumbido do motor cessou. Uma cabeça e ombros apareceram, seguidos pelo resto do homem. Este subiu para fora cuidadosamente e se agachou, olhando atentamente a clareira em volta. Em sua mão havia uma arma — uma Luger. Satisfeito, virou-se e fez um gesto para dentro do buraco. Apareceram a cabeça e os ombros de um segundo homem, que estendeu o que parecia ser três pares de calçados para neve e desapareceu novamente. O primeiro homem escolheu um par, ajoelhou-se e amarrou-o sobre suas botas. Movia-se agora mais livremente, sem deixar pegadas, pois o capim só se achatava momentaneamente por baixo da tela grossa e depois subia de novo vagarosamente. Bond sorriu para si mesmo. Bastardos astuciosos!
O segundo saiu. Foi seguido por um terceiro. Os dois juntos tiraram uma motocicleta do buraco e seguraram-na no ar entre eles, enquanto o primeiro homem, que evidentemente era o chefe, se ajoelhava e amarrava os calçados de neve sob suas botas. Depois, em fila indiana, moveram-se através das árvores na direção da estrada. Havia algo de extraordinariamente sinistro na maneira como caminhavam através das sombras, erguendo e baixando cuidadosamente cada um dos pés com o grande calçado de neve.
Bond soltou um longo suspiro de alívio da tensão e descansou a cabeça sobre o galho para relaxar os músculos do pescoço. Então era essa a realidade! Até mesmo o pequeno detalhe podia agora ser juntado ao quadro. Enquanto os dois subalternos vestiam macacões cinzentos, o chefe usava o uniforme do Real Corpo de Sinalização e sua motocicleta era uma BSA M20 verde-oliva com um número de registro do Exército Britânico marcado sobre o tanque de gasolina. Não era de admirar que o mensageiro do SHAPE o tivesse deixado chegar bem perto. E que fazia a unidade com seu butim altamente secreto? Provavelmente irradiava a nata dele à noite. Em lugar do periscópio, um caule erguer-se-ia da roseira para servir de antena, o gerador de pedal começaria a funcionar no fundo da terra e grupos de cifras seriam transmitidos em alta velocidade. Cifras? Haveria muitos bons segredos inimigos dentro daquele buraco se Bond pudesse apanhar a unidade quando estivesse fora do esconderijo. E que oportunidade de enviar informações falsas ao GRU, o Mecanismo de Informação Militar Soviético, que presumivelmente controlava a unidade! Os pensamentos de Bond disparavam.
Os dois subalternos estavam voltando. Entraram no buraco e a roseira fechou-se sobre eles. O chefe com sua máquina devia estar entre os arbustos à beira da estrada. Bond olhou para seu relógio. Seis e cinquenta e cinco. Era claro! Estaria esperando para ver se aparecia outro mensageiro. Ou não sabia que o homem por ele assassinado executava uma missão semanal, o que era improvável, ou presumia que o SHAPE agora modificaria sua rotina para maior segurança. Essa gente era cuidadosa. Provavelmente tinha ordem de conseguir o máximo possível antes que chegasse o verão e houvesse muitos veranistas na floresta. Depois a unidade poderia ser retirada para voltar no inverno. Quem poderia dizer quais eram os planos a longo prazo? Bastava saber que o chefe estava-se preparando para outro homicídio.
Os minutos demoraram a passar. Às sete e meia o chefe reapareceu. Ficou na sombra de uma grande árvore na beirada da clareira e assobiou uma nota breve e aguda, como um pássaro. Imediatamente a roseira começou a abrir-se. Os dois subalternos saíram e encaminharam-se para onde o chefe estava entre as árvores. Dois minutos depois estavam de volta, com a motocicleta suspensa entre eles. O chefe, depois de olhar cuidadosamente em roda para ver se não haviam deixado traços, seguiu—os para dentro do buraco e as duas metades da roseira fecharam-se rapidamente atrás deles.