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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FATOR INVISIVEL
O FATOR INVISIVEL

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

CONTINUA

O governador acabara de acender outro charuto. Olhou para a ponta esbrazeada e soprou-a. Depois respondeu: — Oh, não. Ela estava divertindo-se muito. Provavelmente sabia que aquilo não ia durar eternamente, mas era a coisa com que sempre sonhara — a coisa com que sonham as leitoras de revistas femininas e ela era bem típica dessa espécie de mentalidade. Tinha tudo — o melhor moço da ilha, amor sobre a areia embaixo das palmeiras, horas divertidas na cidade e no Mid-Ocean, corridas velozes no carro e na lancha — todos os acessórios do romance barato. E, para completar, um marido escravo bem fora do caminho e uma casa onde tomar banho, trocar de roupa e dormir um pouco. E sabia que podia fazer Philip Masters voltar. ele era tão abjeto. Não haveria dificuldade. Depois, poderia dar um giro, pedir desculpas a todos, aplicar de novo seu encanto e todos a perdoariam. Tudo daria certo. Se não desse certo, havia muitos outros homens no mundo além de Philip Masters — e homens mais atraentes que ele. Bastava olhar os homens do clube de golfe! Podia ter o que escolhesse entre eles com um simples gesto. Não, a vida era boa e, se a gente era um pouco leviana, afinal de contas muitos faziam o mesmo. Bastava olhar a maneira como agiam as estrelas de Hollywood.

— Bem, não demorou muito para que ela fosse posta à prova. Tattersall ficou um pouco cansado dela e, graças à esposa do governador, os pais de Tattersall estavam fazendo um barulho dos diabos. Isso deu a Tattersall uma boa desculpa para cair fora sem muita cena. Era verão e a ilha estava cheia de belas moças americanas. Era tempo de arranjar um pouco de sangue novo. Assim, deu o fora em Rhoda Masters. Sem mais aquela. Simplesmente lhe disse que estava tudo acabado. Que seus pais haviam insistido, ameaçando cortar-lhe a mesada. Foi uma quinzena antes do dia em que Philip Masters devia voltar de Washington e só posso dizer que ela reagiu bem. Ela era resistente e sabia que tinha de acabar mais cedo ou mais tarde. Não se queixou. Para dizer a verdade, não tinha mesmo a quem queixar-se. Limitou-se a procurar Lady Burford para dizer que sentia muito e que agora ia ser uma boa esposa para Philip Masters.

Voltou-se para a casa, limpou-a de alto a baixo e deixou tudo arrumado para a grande cena de reconciliação. A necessidade de promover essa reconciliação tornara-se clara para ela em vista da atitude de seus antigos companheiros no Mid-Ocean. De repente, começou a ser evitada lá também. Sabe como essas coisas podem acontecer, mesmo em um lugar liberal como um clube de campo nos trópicos. Agora, não apenas a turma do Palácio do Governo, mas a camarilha dos negociantes de Hamilton fechava-lhe a cara. De uma hora para outra, passou a ser mercadoria de refugo, usada e posta de lado. Tentou ser a mesma alegre namoradeira, mas não deu mais resultado. Foi repelida com aspereza uma ou duas vezes e deixou de ir lá. Agora era vital voltar a uma base segura e esforçar-se vagarosamente para subir de novo. Ficou em casa, ensaiando vezes e vezes o número que representaria — as lágrimas, os agrados de aeromoça, as longas e sinceras desculpas e explicações, a cama de casal.

— Depois, Philip Masters voltou para casa.

O governador fez uma pausa e olhou pensativamente por cima de Bond. Continuou:

— O senhor não é casado, mas penso que acontece o mesmo com todas as relações entre um homem e uma mulher. Podem sobreviver a tudo enquanto existe entre as duas pessoas alguma espécie de humanidade básica. Quando desaparece toda bondade, quando uma pessoa evidente e sinceramente não se importa que a outra esteja viva ou morta, então simplesmente não adianta. Esse insulto particular ao ego — ainda pior, ao instinto de conservação — nunca pode ser perdoado. Já observei isso em centenas de casamentos. Já vi flagrantes infidelidades serem remediadas. Vi crimes e mesmo homicídios serem perdoados pela outra parte, para não falar em falência e todas as outras formas de crimes sociais. Doença incurável, cegueira, desastre — tudo isso pode ser superado. Mas nunca a morte da humanidade comum em um dos parceiros. Pensei nisso e inventei um título altissonante para esse fator básico nas relações humanas. Chamei-o de Lei do Quantum de Refrigério.

— É um nome esplêndido para isso — disse Bond. — É sem dúvida bem impressionante. E naturalmente compreendo o que quer dizer. Quantum de Refrigério — a quantidade de consolação. Sim, creio que se poderia dizer que no fim todo amor e amizade é baseado nisso. Os seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas nos faz sentirmos inseguros, mas efetivamente parece querer destruir-nos, é evidentemente o fim. O Quantum de Refrigério baixa a zero. A gente precisa fugir para salvar-se. Masters compreendeu isso?

O governador não respondeu à pergunta e prosseguiu:

— Rhoda Masters devia ter percebido quando seu marido atravessou a porta do bangalô. Não era tanto o que ela viu na superfície — embora o bigode houvesse desaparecido e os cabelos de Masters estivessem de novo desgrenhados como estavam em seu primeiro encontro. Eram os olhos, a boca e o jeito do queixo. Rhoda Masters pusera seu vestido mais discreto. Tirara a maior parte de sua maquiage e arrumara-se em uma cadeira onde a luz da janela deixava seu rosto meio na sombra e iluminava as páginas de um livro em seu colo. Decidira que, quando ele atravessasse a porta, ergueria os olhos de seu livro, documente, submissamente, e esperaria que ele falasse. Então se levantaria, caminharia silenciosamente em direção a ele e ficaria diante dele com a cabeça curvada. Contar-lhe-ia tudo e deixaria as lágrimas correrem. ele a tomaria nos braços e ela prometeria e tornaria a prometer. Ensaiara a cena muitas vezes até ficar satisfeita.

— Ela ergueu devidamente os olhos de seu livro. Masters pôs silenciosamente sua mala no chão, caminhou devagar até a lareira e ficou em pé parado, olhando vagamente para ela. Seus olhos eram frios, impessoais e sem interesse. Pôs a mão no bolso de dentro e tirou um pedaço de papel. Disse com a voz indiferente de um corretor de imóveis: “Aqui está uma planta da casa. Dividi a casa em duas partes. Seus aposentos são a cozinha e seu quarto. Os meus são esta sala e o quarto de hóspedes. Você pode usar o banheiro quando eu não estiver lá.” Inclinou-se e deixou o papel cair sobre as páginas abertas do livro. “Você nunca entrará em meus aposentos, exceto quando tivermos amigos em casa.” Rhoda Masters abriu a boca para falar. ele ergueu a mão. “Esta é a última vez que falo com você em particular. Se falar comigo, não responderei. Se quiser comunicar-se comigo, pode deixar um bilhete no banheiro. Espero que minhas refeições sejam preparadas pontualmente e servidas na sala de jantar, que você pode usar depois que eu tiver terminado. Dar-lhe-ei vinte libras por mês para as despesas da casa e essa importância lhe será remetida por meus advogados no dia primeiro de cada mês. Meus advogados estão preparando os documentos para o divórcio. Vou divorciar-me de você e você não contestará a ação porque não pode. Um detetive particular obteve provas completas contra você. O divórcio será efetivado dentro de um ano, quando terminar meu tempo de serviço nas Bermudas. Até lá, em público, nós nos comportaremos como um casal normal.”

— Masters pôs as mãos nos bolsos e olhou cortêsmente para ela. A essa altura, as lágrimas estavam correndo pelo seu rosto. Ela parecia aterrorizada — como se alguém a tivesse espancado. Masters disse em tom indiferente: “Há mais alguma coisa que você queira saber? Se não, é melhor apanhar suas coisas daqui e levar para a cozinha.” Olhou para seu relógio. “Quero o jantar toda noite às oito horas. São sete e meia.”

O governador fez uma pausa e tomou um gole de seu uísque.

Juntei tudo isso — prosseguiu — do pouco que Masters me contou e de pormenores mais amplos que Rhoda Masters deu a Lady Burford. Pelo que parece, Rhoda Masters tentou por todos os meios comovê-lo — argumentos, súplicas, histerismo. ele ficou impassível. Ela simplesmente não podia alcançá-lo. Era como se ele tivesse ido embora e mandado outra pessoa à sua casa para representá-lo nessa extraordinária entrevista. E por fim ela teve de concordar. Não tinha dinheiro. Não tinha com que pagar a passagem até a Inglaterra. Para ter cama e comida, precisava fazer o que ele lhe dizia. E isso foi feito. Durante um ano viveram assim, corteses um com o outro em público, mas completamente silenciosos e separados quando sozinhos. Naturalmente, todos nós ficamos espantados com a mudança. Nenhum deles falou sobre a combinação. Ela teria vergonha de falar e Masters não tinha razão para isso. Pareceu-nos um pouco mais retraído do que antes, mas seu trabalho era de primeira categoria e todos soltaram um suspiro de alívio e concordaram que, por algum milagre, a união conjugal fora salva. O fato deu muito crédito a ambos, que se tornaram um casal popular, com tudo perdoado e esquecido.

— Passou-se o ano e chegou a época de Masters partir. ele anunciou que Rhoda ficaria para fechar a casa e os dois fizeram a ronda habitual de festas de despedida. Ficamos um pouco surpreendidos quando ela não foi despedir-se dele no navio, mas ele disse que ela não estava sentindo-se bem. Assim ficaram as coisas até que, umas duas semanas depois, começaram a chegar da Inglaterra notícias do divórcio. Então Rhoda Masters visitou o Palácio do Governo e teve uma longa entrevista com Lady Burford. Gradualmente, toda a história transpirou, inclusive o capítulo seguinte, realmente terrível.

O governador engoliu o resto de seu uísque. O gelo fez um barulho ôco quando ele pôs o copo vagarosamente sobre a mesa. Depois disse:

— Parece que um dia antes de partir, Masters encontrou um bilhete de sua esposa no banheiro. Dizia que ela precisava vê-lo para uma última conversa antes que a deixasse de uma vez. Tinha havido bilhetes como esse antes e Masters sempre os rasgara, deixando os pedaços sobre a estante em cima da pia. Desta vez escreveu um bilhete marcando-lhe um encontro na sala-de-estar às seis horas daquela tarde. Quando chegou a hora, Rhoda Masters entrou humildemente, vinda da cozinha. Havia muito tempo que deixara de fazer cenas emocionais ou tentar apelar à piedade dele. Agora limitou-se a ficar imóvel e dizer que só tinha dez libras, resto do dinheiro das despesas de casa daquele mês, e nada mais possuía no mundo. Quando ele partisse, ficaria na miséria.

“Você tem as jóias que lhe dei e o casaco de pele.”

“Terei sorte se encontrar cinquenta libras por elas.”

“Terá de arranjar algum serviço.”

“Para arranjar alguma coisa demora. Precisarei de algum lugar para viver. Terei de sair da casa dentro de uma quinzena. Você não vai dar-me coisa alguma mesmo? Morrerei de fome.”

— Masters olhou-a desapaixonadameníe. “Você é bonita. Não morrerá de fome.”

“Precisa ajudar-me, Philip. Precisa. Sua carreira não será beneficiada se eu fôr pedir esmola no Palácio do Governo.”

— Na casa, nada pertencia a eles, exceto algumas quinquilharias. Tinham alugado a casa mobiliada. O proprietário lá estivera uma semana antes e concordara com o inventário. Só restava seu automóvel, um Morris que Masters comprara usado, e um radiofônio que ele comprara como último recurso para tentar distrair sua esposa antes que ela tivesse se dedicado ao golfe.

— Philip Masters olhou para ela pela última vez. Nunca mais a veria. Disse: “Está bem. Você pode ficar com o carro e o radiofônio. Agora chega. Tenho de arrumar as malas. Adeus.” Saiu pela porta e subiu para seu quarto.

O governador olhou para Bond.

— Pelo menos, um último e pequeno gesto. Não acha? — perguntou com um sorriso sombrio. — Depois que ele partiu e Rhoda Masters ficou sozinha, ela tomou o carro e, levando seu anel de noivado, suas poucas jóias e seu casaco de pele de raposa, foi a Hamilton e correu as casas de penhor. Por fim, conseguiu quarenta libras pelas jóias e sete libras pelo pedaço de pele. Depois foi à agência de automóveis cujo nome estava no painel do carro e pediu para falar com o gerente. Quando lhe perguntou quanto daria pelo Morris, ele pensou que ela estivesse brincando. “Mas, minha senhora, o Sr. Masters comprou o carro em prestações e está muito atrasado com os pagamentos. Certamente ele lhe disse que precisamos mandar-lhe uma carta sobre isso por intermédio de nosso advogado há cerca de uma semana. Ouvimos dizer que ele ia partir. ele escreveu em resposta que a senhora viria fazer os arranjos necessários. Vejamos, disse ele apanhando um fichário e folhando-o. Sim, a dívida sobre o carro é exatamente de duzentas libras.”

— Bem, naturalmente, Rhoda Masters rompeu em lágrimas e, por fim, o gerente concordou em receber de volta o carro, embora então já não valesse mais as duzentas libras, mas insistiu em que o deixasse imediatamente, com a gasolina do tanque e tudo o mais. Rhoda Masters só podia aceitar e agradecer por não ser processada. Saiu da garagem para a rua quente e já sabia o que iria encontrar quando chegasse à loja de rádios. Tinha razão. Foi a mesma história, só que desta vez teve de pagar dez libras para convencer o homem a aceitar de volta o radiofônio. Arranjou uma carona até um ponto de onde podia ir a pé para o bangalô. Quando chegou em casa, jogou-se na cama e chorou pelo resto do dia. Ela já era uma mulher vencida. Agora Philip Masters lhe dava um pontapé quando estava caída no chão. O governador fez uma pausa.

— Muito extraordinário, realmente. Um homem como Masters, bondoso, sensível, normalmente incapaz de matar uma mosca. E ali estava executando uma das ações mais cruéis de que posso lembrar-me em toda minha experiência. Era a minha lei em ação.

O governador sorriu ligeiramente.

— Fossem quais fossem os pecados dela, se tivesse dado a ele o Quantum de Refrigério, ele nunca poderia tê-la tratado como tratou. Da maneira como ocorreram as coisas, ela despertou nele uma crueldade bestial — uma crueldade que talvez exista profundamente escondida em todos nós e que só uma ameaça à nossa existência pode trazer à superfície. Masters queria fazer a mulher sofrer, não tanto quanto ele sofrera pois isso seria impossível, mas o máximo que pudesse conseguir. E esse falso gesto com o automóvel e o radiofônio foi um bocado diabòlicamente brilhante de ação retardada para fazê-la lembrar, mesmo depois de ter partido, quanto a odiava, quanto ainda desejava feri-la.

— Deve ter sido uma experiência abaladora — disse Bond. — É extraordinário como as pessoas podem ferir-se entre si. Estou começando a sentir pena da moça. Que aconteceu no fim a ela... e a ele também?

O governador levantou-se e olhou seu relógio.

— Santo Deus, é quase meia-noite. E deixei o pessoal acordado até esta hora — disse sorrindo — além do senhor.

Caminhou até a lareira e tocou uma campainha. Um mordomo negro apareceu. O governador pediu-lhe desculpas por tê-lo conservado acordado e disse-lhe para fechar tudo e apagar as luzes. Bond levantou-se. O governador voltou-se para ele e disse:

— Venha comigo e lhe contarei o resto. Irei até o jardim com o senhor e farei com que a sentinela o deixe sair.

Caminharam vagarosamente através das compridas salas e desceram a larga escada que levava ao jardim. Era uma bela noite com uma lua cheia que corria sobre suas cabeças através de nuvens finas e altas.

— Masters continuou no serviço — prosseguiu o governador. — Mas nunca correspondeu a seu bom começo. Depois do negócio das Bermudas, alguma coisa parece tê-lo deixado. Parte dele foi morta pela experiência. Era um homem mutilado. Em grande parte por culpa dela, naturalmente, mas acho que aquilo que Masters fez a ela viveu com ele e talvez o tenha perseguido. ele era bom em seu trabalho, mas, não sei como, perdeu o toque humano e pouco a pouco ficou completamente seco. Naturalmente, nunca tornou a casar-se e por fim foi encostado no plano de nozes moídas. Quando isso malogrou, aposentou-se e foi viver na Nigéria, de volta à única gente do mundo que lhe demonstrara alguma bondade, de volta ao lugar onde tudo havia começado. Um pouco trágico, realmente, quando me lembro de como ele era quando moço.

— E a moça?

— Oh, ela passou por maus bocados. Corremos o chapéu para ela. Entrou e saiu de vários empregos, que eram mais ou menos caridade. Tentou voltar a ser aeromoça, mas a maneira como rompera seu contrato com a Imperial Airways barrou-lhe o caminho nessa direção. Naquele tempo não existiam tantas companhias de aviação e não havia escassez de candidatas para os poucos empregos de aeromoças que se encontravam. Os Burfords foram transferidos para Jamaica naquele mesmo ano e isso eliminou o principal apoio dela. Como disse, Lady Burford sempre tivera um fraco por ela. Rhoda Masters estava quase na miséria. Ainda tinha sua aparência e vários homens a sustentaram durante algum tempo. Mas não se pode fazer a ronda por muito tempo em um lugar pequeno como as Bermudas e ela já estava quase se tornando uma prostituta e tendo complicações com a polícia, quando a Providência interferiu de novo e decidiu que já havia sido suficientemente castigada. Chegou uma carta de Lady Burford com o dinheiro da passagem para a Jamaica, dizendo que lhe arranjara um emprego como recepcionista no “Blue Hills Hotel”, um dos melhores hotéis de Kingston. Assim, ela partiu e eu — que já havia sido então transferido para a Rodésia — creio que as Bermudas ficavam sinceramente aliviadas em ver-se livres dela.

O governador e Bond chegaram aos largos portões de entrada do Palácio do Governo. À frente deles, branca, preta e cor de rosa, brilhava Nassau, com sua confusão de ruas estreitas e bonitas casas de madeira com vistosos frontões e balcões. Com tremendo estardalhaço, a sentinela pôs-se em posição de sentido e apresentou armas. O governador ergueu a mão e disse: “Muito bem. Descansar.” A automática sentinela voltou novamente à vida por um instante e fez-se silêncio.

Virando-se para Bond, o governador disse:

— E esse é o fim da história, salvo quanto a um capricho final do destino. Um dia, um milionário canadense apareceu no “Blue Hills Hotel” e lá passou o inverno. Quando partiu, levou Rhoda Masters para o Canadá e casou-se com ela. Desde então ela vive na riqueza.

— Santo Deus. Isso foi um golpe de sorte. Dificilmente o mereceria.

— Acho que não. Não se pode saber. A vida é um negócio tortuoso. Talvez, apesar de todo o mal que fez a Masters, o Destino tenha decidido que ela já havia pago o suficiente. Talvez o pai e a mãe de Masters fossem os verdadeiros culpados. Fizeram dele um homem propenso a acidentes. Inevitavelmente, ele se envolveu no choque emocional que lhe estava reservado e para o qual o haviam condicionado. O Destino escolheu Rhoda para seu instrumento. Depois o Destino pagou-lhe seus serviços. É difícil julgar essas coisas. Seja como fôr, ela fez seu canadense muito feliz. Acho que ambos pareciam felizes hoje à noite.

Bond riu. De repente a violenta dramaticidade de sua própria vida pareceu muito ôca. O caso dos rebeldes de Castro e dos iates incendiados era o material de uma história de aventuras em quadrinhos em um jornal barato. Estivera sentado ao lado de uma mulher maçante em um jantar maçante e uma observação ocasional abrira à sua frente o livro da verdadeira violência — da Comédie Humaine onde as paixões humanas são cruas e reais, onde o Destino faz um jogo mais autêntico que qualquer conspiração do Serviço Secreto imaginada pelos governos.

Bond voltou-se para o governador e estendeu a mão, dizendo:

— Obrigado pela história. Devo-lhe uma desculpa. Achei a Sra. Harvey Miller uma mulher maçante. Graças ao senhor nunca mais a esquecerei. Preciso prestar mais atenção às pessoas. O senhor deu-me uma lição.

Trocaram um aperto de mão. O governador sorriu.

— Agrada-me saber que a história o interessou. Estava com medo que o senhor se aborrecesse. O senhor leva uma vida muito excitante. Para dizer-lhe a verdade, eu estava sem saber sobre o que poderíamos conversar depois do jantar. A vida no Serviço Colonial é muito monótona.

Despediram-se e Bond desceu a rua silenciosa em direção à baía e ao British Colonial Hotel. Pensou na conferência que manteria na manhã seguinte com a Guarda Costa e o FBI em Miami. A perspectiva, que antes o interessara, que chegara mesmo a entusiasmá-lo, estava agora marcada pelo tédio e futilidade.


“Risico”

 

 


Este negócio tem molto risico.

As palavras saíram baixinho através do grosso bigode castanho. Os olhos pretos e duros moveram-se vagarosamente sobre o rosto de Bond e desceram para as mãos de Bond, que estavam rasgando cuidadosamente um fósforo de papelão no qual havia impresso “Albergo Colomba d’Oro”.

James Bond sentiu a inspeção. O mesmo exame sub-reptício vinha sendo feito desde quando se encontrara com o homem duas horas antes no bar do “Excelsior”. Haviam dito a Bond para procurar um homem de grosso bigode que estaria sentado sozinho bebendo um Alexandra. A cremosa bebida feminina era muito mais inteligente que o jornal dobrado, a flor na botoeira, as luvas amarelas, velhas e batidas senhas entre agentes. Tinha também a grande vantagem de poder funcionar sozinha, sem o dono. E Kristatos começara com um pequeno teste. Quando Bond entrou no bar e olhou em roda, havia talvez umas vinte pessoas na sala. Nenhuma delas tinha bigode. Mas em uma mesa de canto, no lado mais distante da sala alta e discreta, ladeado por um pires de azeitonas e outro de nozes de caju, estava o copo de pé alto cheio de creme e vodca. Bond foi diretamente para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. O garçom aproximou-se.

— Boa noite, cavalheiro. O senhor Kristatos está falando ao telefone.

Bond acenou com a cabeça.

— Um negroni. Com Gordon’s, por favor. O garçom voltou para o balcão e gritou:

— Negroni. Uno. Gordon’s.

— Sinto muito. Precisei dizer uma palavrinha a Alfredo.

A grande mão peluda apanhou a pequena cadeira como se fosse tão leve quanto uma caixa de fósforo e colocou-a por baixo dos pesados quadris.

Não houve aperto de mão. Eram velhos conhecidos. Na mesma linha de negócios, provavelmente. Algo como importação e exportação. O mais novo parecia americano. Não. Não com aquelas roupas. Era inglês.

Bond rebateu o saque rápido.

— Como está o menino dele?

Os olhos pretos do Signor Kristatos estreitaram-se. Sim, haviam dito que esse homem era um profissional. Abriu as mãos.

— Mais ou menos do mesmo jeito. Que se pode esperar?

— Poliomielite é uma doença terrível.

O negroni chegou. Os dois homens acomodaram-se nas cadeiras, cada um deles satisfeito por ter de lidar com alguém da mesma liga. Isso era raro no “Jogo”. Tantas vezes, antes mesmo de iniciar-se uma missão dessas em dois, perdia-se a confiança no resultado. Nesses encontros, havia com muita frequência, pelo menos na imaginação de Bond, um fraco cheiro de coisa queimada no ar. Sabia ser esse o sinal de que a beirada de sua capa já começava a arder. No devido tempo, o tecido ardente explodiria em chamas e ele estaria brulé. Então o jogo estaria acabado e ele teria de decidir entre dar o fora ou esperar para ser alvejado por alguém. Mas nesse encontro não houve atrapalhada.

Mais tarde, naquela mesma noite, no pequeno restaurante perto da Piazza di Spagna, chamado “Colomba d’Oro”, Bond divertira-se ao descobrir que ainda estava sendo posto à prova. Kristatos ainda o estava observando e pesando, antes de decidir se poderia ter confiança nele. Essa observação sobre o negócio arriscado fora o mais perto que Kristatos já chegara no sentido de admitir que existia algum negócio entre eles dois. Bond sentiu-se entusiasmado. Não acreditaria realmente em Kristatos. Mas sem dúvida todas essas precauções só podiam significar que a intuição de M se justificara — que Kristatos sabia alguma coisa muito importante.

Bond deixou cair o último fragmento de fósforo no cinzeiro. Disse maciamente:

— Certa vez ensinaram-me que todo negócio que rende mais de dez por cento ou é realizado depois das nove horas da noite é perigoso. O negócio que nos reúne rende mil por cento e é realizado quase exclusivamente à noite. Por ambas as razões, é evidentemente um negócio arriscado.

Bond abaixou a voz e prosseguiu:

— Há recursos disponíveis. Dólares, francos suíços, bolívares venezuelanos... tudo conveniente.

— Isso me deixa satisfeito. Eu já tenho liras demais. — Disse o Signor Kristatos, apanhando o cardápio. — Mas vamos comer alguma coisa. Não se deve decidir negócio importante com estômago vazio.


Uma semana antes M chamara Bond. M estava de mau humor.

— Está fazendo alguma coisa, 007?

— Só trabalho burocrático, senhor.

— Que quer dizer com isso? Trabalho burocrático? — perguntou M sacudindo seu cachimbo sobre a repleta cesta de entrada de papéis. — Quem não tem trabalho burocrático?

— Quis dizer nada de ativo, Senhor.

— Bem, por que não disse, então?

M apanhou um maço de pastas vermelhas escuras amarradas por uma fita e jogou-as tão bruscamente através da mesa que Bond precisou segurá-las.

— E aqui está mais trabalho burocrático. Principalmente material da Scotland Yard... de seu pessoal de entorpecentes. Coisas do Ministério do Interior e do Ministério da Saúde, além de alguns bonitos e grossos relatórios do pessoal do Controle Internacional de Ópio de Genebra. Pegue isso e leia. Vai precisar de todo o dia de hoje e da maior parte da noite. Amanhã voará para Roma e sairá atrás dos homens graúdos. Está tudo claro?

Bond disse que estava. O estado de humor de M também estava explicado. Nada o deixava mais furioso do que precisar desviar seu pessoal de sua função primordial. Sua função era espionagem e, quando necessário, sabotagem e subversão. Tudo o mais era mau uso do Serviço e dos Fundos Secretos que, sabia Deus, já eram bem escassos.

— Alguma pergunta?

O maxilar de M avançava para a frente como a proa de um navio. O maxilar parecia dizer a Bond para apanhar as pastas, sair correndo da sala e deixar que M passasse a cuidar de algo mais importante.

Bond sabia que uma parte disso tudo — ainda que fosse apenas uma pequena parte — era encenação. M tinha certas abelhas em seu chapéu. Eram famosas no Serviço e M sabia disso. Mas nem por isso permitia que elas deixassem de zumbir. Havia abelhas rainhas, como o mau uso do Serviço e a procura de inteligência verdadeira, como coisa distinta do desejo de ser inteligente, e havia abelhas operárias. Entre estas se incluíam idiossincrasias como não empregar homens com barba ou homens completamente bilingues, dispensar instantaneamente homens que tentassem exercer pressão sobre ele através de relações familiares com membros do Gabinete, desconfiar de homens ou mulheres que se vestiam bem demais e daqueles que o chamavam de “senhor” fora do serviço; e ter uma fé exagerada em escoceses. Mas M era ironicamente cônscio de suas obsessões como, pensou Bond, Churchill ou Montgomery o eram das suas. Nunca se incomodava que seu blefe, como era em parte, fosse visto. Além disso, jamais sonharia em mandar Bond em uma missão sem dar-lhe as instruções apropriadas.

Bond sabia de tudo isso. Disse brandamente:

— Duas coisas, senhor. Por que estamos aceitando esse negócio e que informações a Estação I tem, se tiver, a respeito das pessoas envolvidas nele.

M lançou a Bond um olhar duro e agressivo. Girou sua cadeira de lado para poder olhar as altas e velozes nuvens de outubro através da larga janela. Apanhou o cachimbo, chupou-o violentamente e depois, como se essa ação tivesse feito sair um pouco do vapor, colocou-o delicadamente sobre a mesa. Quando falou, sua voz era paciente e moderada.

— Como pode imaginar, 007, não desejo que o Serviço se envolva nesse negócio de entorpecentes. No começo deste ano, tive de tirá-lo de outras funções por uma semana para que você pudesse ir ao México e perseguir aquele plantador mexicano. Você quase foi morto. Mandei-o como um favor ao Setor Especial. Quando me pediram de novo que você cuidasse dessa quadrilha italiana, recusei. Ronnie Vallance foi traiçoeiramente ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde. Os ministros fizeram pressão sobre mim. Eu disse que você era necessário aqui e que não podia dispensar os serviços de mais ninguém. Então os dois ministros foram ao primeiro-ministro. — M fez uma pausa — E acabou-se. Devo reconhecer que o primeiro-ministro foi muito convincente. Argumentou que a heroína, na quantidade que está chegando, é um instrumento de guerra psicológica, que mina o vigor de um país. Disse que não ficaria surpreendido se soubesse que não se trata apenas de uma quadrilha de italianos ganhando dinheiro grosso — que no fundo existe subversão e não dinheiro.

M sorriu amarguradamente, antes de acrescentar:

— Acho que Ronnie Vallance imaginou essa linha de argumentação. Pelo que parece, seu pessoal de entorpecentes vem tendo uma dificuldade dos diabos com o tráfico — tentando impedir que se estenda aos adolescentes, como aconteceu nos Estados Unidos. Parece que os salões de dança e os parques de diversões estão cheios de traficantes. A Patrulha Fantasma de Vallance conseguiu levar a linha até um dos intermediários e não há dúvida que tudo vem da Itália, escondido em automóveis de turistas italianos. Vallance fez o que pôde através da polícia italiana e da Interpol, mas nada obteve. Chegam até certo ponto da linha, prendem algumas pessoas de pequena importância e depois, quando parecem estar se aproximando do centro, surge um muro branco. O círculo interno de distribuidores está muito assustado ou é muito bem pago.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Talvez haja proteção em algum lugar, senhor. Aquele negócio de Montesi não parecia tão bom.

M encolheu os ombros com impaciência.

— Talvez, talvez. E você terá de observar isso também, mas minha impressão é que o caso Montesi resultou em uma limpeza bem ampla. Seja como fôr, quando o primeiro-ministro me deu ordem para cuidar disto, lembrei-me de manter uma conversa com Washington. A CIA foi muito atenciosa. Você sabe que o Departamento de Entorpecentes tem uma turma na Itália. Está lá desde a guerra. Nada tem a ver com a CIA. É dirigido pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por incrível que pareça. O Tesouro americano controla um suposto Serviço Secreto que lida com contrabando de entorpecentes e dinheiro falso. Um arranjo bastante maluco. Às vezes fico imaginando o que o FBI deve pensar disso. Contudo...

M girou vagarosamente sua cadeira de costas para a janela. Cruzou as mãos por trás da cabeça e inclinou-se para trás, olhando Bond por cima da mesa.

— O caso é que a Estação de Roma da CIA trabalha em estreita ligação com essa turminha de entorpecentes. Precisa fazer isso, para evitar linhas cruzadas e outras coisas. E a CIA — o próprio Alan Dulles, para dizer a verdade — deu-me o nome do principal agente usado pelo Departamento nas questões de entorpecentes. Pelo que parece, ele opera nos dois sentidos. Faz um pouco de contrabando como disfarce. Um sujeito chamado Kristatos. Dulles disse que naturalmente não podia envolver seu pessoal de maneira alguma e estava certo de que o Departamento do Tesouro não gostaria que seu Escritório em Roma agisse muito estreitamente conosco. Todavia, disse que, se eu desejasse, transmitiria a esse Kristatos que um de nossos... hum... melhores homens gostaria de estabelecer contato com ele para fazer negócio. Respondi que ficaria muito grato por isso e ontem recebi notícia de que o encontro está marcado para depois de amanhã.

Fazendo um gesto em direção às pastas colocadas à frente de Bond, concluiu:

— Encontrará todos os pormenores aí.

Houve um breve silêncio na sala. Bond estava pensando que o negócio todo parecia desagradável, provavelmente perigoso e certamente sujo. Tecendo em mente a última qualidade, Bond levantou-se e apanhou as pastas.

— Muito bem, senhor. Parece que se trata de dinheiro. Quanto pagaremos para cessar o tráfico?

M deixou sua cadeira inclinar-se para a frente. Abriu as mãos e colocou-as sobre a mesa, lado a lado. Disse rudemente:

— Cem mil libras. Em qualquer moeda. Essa é a cifra do primeiro-ministro. Não desejo, porém, que você se machuque. Principalmente para tirar do fogo a sardinha dos outros. Por isso, pode subir mais cem mil se houver muita complicação. O tráfico de entorpecentes é o maior e mais fechado círculo do crime.

M estendeu a mão para sua cesta de entrada de papéis e tirou uma pasta de mensagens. Sem erguer os olhos, disse:

— Tenha cuidado.


O Signor Kristatos apanhou o cardápio e disse:

— Eu não uso de rodeios, Sr. Bond. Quanto?

— Cinquenta mil libras por resultados cem por cento.

Kristatos disse com indiferença.

— Sim. São recursos importantes. Vou comer melão com presunto e um sorvete de chocolate. Não como muito à noite. Eles têm aqui um Chianti da casa. Eu o recomendo.

O garçom aproximou-se e houve uma animada troca de palavras em italiano. Bond pediu Tagliatelli Verdi com molho genovês, que segundo Kristatos provavelmente não era preparado com manjericão, alho e pinhas de abeto.

Quando o garçom se afastou, Kristatos ficou sentado mastigando silenciosamente um palito de dente. Sua fisionomia foi-se tornando gradualmente escura e sombria, como se estivesse fazendo mau tempo em seu espírito. Os olhos pretos e duros que se voltavam inquietamente para tudo quanto havia no restaurante, exceto Bond, cintilavam. Bond calculou que Kristatos estava pensando se devia ou não trair alguém. Disse encorajadoramente:

— Em certas circunstâncias, talvez haja mais.

Kristatos pareceu decidir-se. Disse:

— É? — Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Com licença. Preciso ir ao lavatório.

Virou-se e caminhou rapidamente para o fundo do restaurante.

Bond sentiu-se de repente com fome e com sede. Encheu um grande copo de Chianti e tomou metade. Partiu um pãozinho e começou a comer, acompanhando cada bocado com a manteiga bem amarela. Ficou pensando porque pãezinhos com manteiga só são deliciosos na França e na Itália. Não havia outra coisa em seu espírito. Era apenas uma questão de esperar. Tinha confiança em Kristatos. Era um homem grande e sólido em quem os americanos confiavam. Provavelmente estava dando algum telefonema que seria decisivo. Bond sentia-se animado. Olhou os transeuntes através da janela de vidro. Um homem vendendo um dos jornais do Partido passou em bicicleta. Esvoaçando sobre a cesta na frente do guidom haviam uma flâmula. Em vermelho sobre branco, dizia ela: “Progresso? Si! Avventuri? No!” Bond sorriu. Assim é que estava sendo. Que continuasse assim pelo resto do serviço.

Do outro lado da sala quadrada e quase modesta, na mesa de canto ao lado da caísse, a mulher gorducha de cabelos louros com boca dramática disse ao jovial e despreocupado homem cujo rosto estava ligado ao prato por uma grossa corda de espaguete:

— Ele tem uma boca quase cruel. Mas é muito bonito. Espiões geralmente não têm tão boa aparência. Tem certeza de que não está enganado, mein Töubchen?

Os dentes do homem cortaram a corda. Limpou a boca em um guardanapo que já estava manchado de molho de tomate, arrotou barulhentamente e disse:

— Santos nunca se engana nessas coisas. Tem faro para espiões. É por isso que o escolhi para seguir permanentemente Kristatos. E quem senão um espião pensaria em passar a noite com aquele porco? Mas nós procuraremos ter certeza.

O homem tirou do bolso uma daquelas pequenas matracas de lata que às vezes são distribuídas, com chapéus de papel e assobios, nas noites de carnaval. Deu um estalido seco. O maitre d’hôtel do outro lado da sala parou o que estava fazendo e correu em direção à mesa.

— Si, padrone.

O homem fez-lhe sinal para chegar mais perto. O maitre d’hôtel curvou-se e recebeu as instruções sussurradas. Acenou rapidamente com a cabeça, caminhou até uma porta perto da cozinha na qual estava escrito UFFICIO, entrou e fechou a porta depois de passar.

Fase por fase, em uma série de movimentos diminutos, um exercício que fora aperfeiçoado muito tempo antes começou então a ser cuidadosamente executado. O homem perto da caísse mastigou seu espaguete e observou criticamente cada passo da operação como se fosse um rápido jogo de xadrez.

O maitre d’hôtel saiu pela porta marcada UFFICIO, atravessou depressa o restaurante e disse em voz alta para seu Número 2:

— Uma mesa extra para quatro. Imediatamente.

O Número 2 lançou-lhe um olhar direto e acenou com a cabeça. Seguiu o maitre d’hotel até o espaço ao lado da mesa de Bond, estalou os dedos para pedir ajuda, tomou uma cadeira emprestada de uma mesa, outra cadeira de outra mesa e, com uma mesura e um pedido de desculpa, a cadeira vaga da mesa de Bond. A quarta cadeira estava sendo trazida da direção da porta marcada UFFICIO pelo maitre d’hôtel. Colocou-a formando um quadrado com as outras, uma mesa foi baixada no meio delas, e copos e talheres foram habilmente colocados. O maitre d’hôtel franziu a testa.

— Mas vocês prepararam uma mesa para quatro. Eu disse três... para três pessoas.

Apanhou casualmente a cadeira que ele próprio trouxera e transferiu-a para a mesa de Bond. fez um gesto com a mão para dispensar seus auxiliares e todos se dispersaram, indo cada um cuidar de seu serviço.

A pequena e inocente movimentação no restaurante levou talvez um minuto. Um inócuo trio de italianos entrou na sala. O maitre d’hôtel cumprimentou-os pessoalmente e levou-os até a mesa recém-arrumada. O gambito estava completado.

Bond mal percebeu a coisa. Kristatos voltou de onde quer que estivera, a comida foi servida e os dois passaram a comer.

Enquanto comiam falaram sobre coisas sem importância — as possibilidades da eleição na Itália, o último “Alfa Romeo”, os sapatos italianos em comparação com os ingleses. Kristatos conversava bem. Parecia conhecer a história de tudo. Dava informações tão casualmente que não parecia estar blefando. Falava sua própria espécie de inglês, com frases ocasionais emprestadas de outras línguas. Formavam uma mistura viva. Bond sentia-se interessado e divertido. Kristatos era um homem de dentro do negócio, um homem útil. Não surpreendia a Bond que o pessoal do serviço secreto americano lhe tivesse dado grande valor.

Chegou o café, Kristatos acendeu um fino charuto preto e continuou falando com ele na boca. O charuto saltava para cima e para baixo entre os lábios retos e apertados. Kristatos pôs as duas mãos abertas sobre a mesa à sua frente. Olhou para a toalha da mesa entre os dois e disse baixinho:

— Este negócio... Eu jogarei com vocês. Até agora só tinha jogado com os americanos. Não falei a eles sobre o que vou falar a você. Não houve necessidade. Esta máquina não opera com os Estados Unidos. Essas coisas estão bem reguladas. Esta máquina só opera com a Inglaterra. Sim? Capito?

— Compreendo. Cada um tem seu próprio território. É a maneira habitual de fazer essas coisas.

— Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes vamos estabelecer as condições. Está bem?

— Naturalmente.

O Signor Kristatos examinou a toalha da mesa mais de perto.

— Quero dez mil dólares americanos, em notas de pequeno valor, amanhã na hora do almoço. Quando você tiver destruído a máquina, quero mais vinte mil.

O Signor Kristatos ergueu rapidamente os olhos e examinou o rosto de Bond.

— Não sou ambicioso. Não tomo todos os seus recursos, não é?

— O preço é satisfatório.

— Bueno. Segunda condição. Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado.

— Muito justo.

— Terceira condição. O chefe dessa máquina é um homem mau.

O Signor Kristatos fez uma pausa e ergueu os olhos. Os olhos pretos tinham um brilho vermelho. Os lábios secos e apertados afastaram-se do charuto para deixar sair as palavras:

— ele precisa ser destrutto. .. morto.

Bond encostou-se para trás na cadeira. Olhou com ironia para o outro homem, que agora se inclinava ligeiramente para frente sobre a mesa, esperando. Então, haviam aparecido as rodas dentro da roda! Essa era uma vingança particular de alguma espécie. Kristatos queria arranjar um pistoleiro. E não ia pagar o pistoleiro. Era o pistoleiro quem ia pagar-lhe pelo privilégio de eliminar um inimigo. Nada mau! O quebra-galho estava sem dúvida quebrando um grande galho desta vez — usando o Serviço Secreto para acertar suas contas particulares. Bond disse brandamente:

— Por quê?

O Signor Kristatos respondeu em tom indiferente:

— Quem não faz perguntas não ouve mentiras.

Bond tomou seu café. Era a habitual história do grande sindicato do crime. Nunca se vê mais que a ponta do iceberg. Mas que lhe importava isso? Fora mandado para executar um trabalho específico. Se seu êxito beneficiasse outros, ninguém, e muito menos M, se importaria com isso. Bond recebera ordem de destruir a máquina. Se esse homem desconhecido era a máquina, destruí-lo seria simplesmente cumprir ordens.

— Não posso prometer isso — disse. — Você deve compreender. Só posso dizer que, se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.

O Signor Kristatos apanhou um palito no paliteiro, tirou-o do papel e pôs-se a limpar as unhas. Depois de ter terminado uma mão, ergueu os olhos e disse:

— Não jogo com muita frequência em coisas incertas. Desta vez vou jogar porque é você quem me está pagando, não eu quem lhe está pagando. Está certo? Por isso, agora vou dar-lhe as informações. Depois, você ficará sozinho. .. solo. Amanhã à noite voarei para Karachi. Tenho negócios importantes lá. Só posso dar-lhe as informações. Depois você corre com a bola e... — jogou o palito sujo sobre a mesa. — Che será, será.

— Muito bem.

O Signor Kristatos aproximou mais sua cadeira de Bond. Falou em voz baixa e rápida. Citou datas e nomes para documentar sua narrativa. Nunca hesitou antes de relatar um fato e não desperdiçou tempo com detalhes sem importância. Era uma história curta e expressiva. Havia no país dois mil gangsters americanos, italiano-americanos que tinham sido condenados e expulsos dos Estados Unidos. Esses homens estavam em má situação. Tinham o mais negro prontuário policial e, devido a seu passado, sua própria gente hesitava em empregá-los. Cem dos mais durões deles haviam reunido seus recursos e pequenos grupos dessa elite se fixaram em Beirute, Istambul, Tanger e Macau — os grandes centros de contrabando do mundo. Uma seção ainda maior agia como mensageiros e os chefes haviam adquirido, através de intermediários, um pequeno e respeitável negócio farmacêutico em Milão. Para esse centro os grupos de fora contrabandeavam ópio e seus derivados. Usavam pequenas embarcações através do Mediterrâneo, um grupo de comissários de uma companhia de aviação italiana e, como fonte semanal regular de abastecimento, o vagão diretor do “Expresso do Oriente” no qual partes inteiras de estofamento falso haviam sido adaptadas por membros subordinados da turma de limpeza do trem em Istambul. A firma de Milão — Pharmacia Colomba SA — servia como órgão central e como conveniente centro para a transformação do ópio bruto em heroína. De lá, os mensageiros, usando inocentes automóveis de várias marcas, mantinham um serviço de entrega aos intermediários na Inglaterra.

Bond interrompeu-o para dizer:

— Nossa Alfândega é muito boa para localizar essa espécie de tráfico. Não existe em um automóvel muitos esconderijos que seu pessoal não conheça. Onde esses homens levam o material?

— Sempre no estepe. Em um único estepe a gente pode levar heroína no valor de vinte mil libras.

— Nunca foram apanhados... entrando com o material em Milão ou saindo de lá?

— Claro. Muitas vezes. Mas são homens bem treinados. E todos são durões. Nunca falam. Quando são condenados, recebem dez mil dólares por ano passado na prisão. Se têm família, os outros cuidam dela. E quando tudo corre bem recebem bom dinheiro. É uma cooperativa. Cada homem recebe sua tranche do brutto. Só o chefe recebe uma tranche especial.

— Muito bem. E quem é esse homem?

O Signor Kristatos levou a mão ao charuto que tinha na boca. Conservou a mão lá e falou baixinho por trás dela.

— É um homem que chamam de “Pombo”, Enrico Colombo. É o padrono deste restaurante. Foi por isso que eu o trouxe aqui, para que o visse. É o homem gordo que está sentado com uma mulher loura. Na mesa ao lado da caisse. Ela é de Viena. Chama-se Lisl Baum. Uma prostituta de luxo.

— É, não é? — disse Bond pensativamente. Não precisava olhar. Havia reparado na mulher, logo que se sentara à mesa. Todo homem no restaurante devia ter reparado nela. Tinha a aparência alegre, ousada e acessível que a gente supõe que as vienenses têm, mas na realidade raramente têm. Havia nela uma vivacidade e um encanto que iluminavam seu canto da sala. Tinha cabelos louros acinzentados, um naris petulante, uma boca larga e sorridente, e uma fita preta em volta da garganta. James Bond sabia que os olhos dela se tinham fixado nele repetidas vezes durante a noite. Seu companheiro parecia exatamente o tipo de homem rico e alegre, de boa vida, que se contentaria em ter seu amor por algum tempo. Devia dar-lhe também uma boa vida. Devia ser generoso. Não haveria arrependimento de parte a parte. De modo geral, Bond aprovava vagamente o homem. Gostava de pessoas alegres e expansivas com gosto pela vida. Como ele, Bond, não podia ter a mulher, já era alguma coisa ela estar em boas mãos. Mas agora? Bond olhou através da sala. O casal estava rindo de alguma coisa. O homem deu um tapinha no rosto da mulher, levantou-se, caminhou até a porta marcada UFFICIO, entrou e fechou a porta. Então era esse o homem que dirigia o grande tráfico para a Inglaterra. O homem em cuja cabeça M pusera o preço de cem mil libras. O homem que Kristatos desejava que Bond matasse. Bem, faria melhor em pôr mãos à obra. Bond olhou rudemente através da sala para a mulher. Quando ela ergueu a cabeça e olhou para ele, Bond sorriu-lhe. Seus olhos não se fixaram nele, mas havia em seus lábios um meio sorriso, como se fosse para ela própria. Quando tirou um cigarro de seu maço, acendeu-o e soprou a fumaça para o alto, diretamente para o forro, havia um oferecimento da garganta e do perfil que Bond sabia ser para ele.

Estava chegando a hora do movimento depois do cinema. O maitre d’hôtel dirigia a limpeza das mesas desocupadas e a arrumação de outras. Havia a agitação habitual, como as batidas de guardanapos nos assentos das cadeiras e o tilintar de copos e talheres sendo postos nas mesas. Vagamente Bond notou que a cadeira desocupada de sua mesa era retirada e posta em uma mesa vizinha para seis pessoas. Começou a fazer perguntas específicas a Kristatos — quais eram os hábitos pessoais de Enrico Colombo, onde vivia ele, o endereço de sua firma em Milão, que outros interesses comerciais tinha. Não reparou no progresso casual da cadeira vaga, de uma mesa para outra e finalmente através da porta marcada UFFICIO. Não havia razão para que reparasse.


Quando a cadeira foi levada para seu escritório, Enrico Colombo fez um gesto para que o maitre h’hôtel se retirasse e trancou a porta atrás dele. Depois foi até a cadeira, levantou a almofada e colocou-a sobre sua mesa. Abriu o ziper de um lado da almofada e retirou de dentro um gravador de fita “Grundig”. Parou a máquina, fez a fita voltar, tirou-a do gravador, colocou-a em um tocador e ajustou a velocidade e o volume. Depois sentou-se à sua mesa, acendeu um cigarro e ficou ouvindo, fazendo de vez em quando novos ajustamentos e repetindo ocasionalmente alguns trechos. No fim, quando a voz fraca de Bond disse “É, não é?” e houve um longo silêncio, intercalado com o barulho de fundo do restaurante, Enrico Colombo desligou a máquina e ficou sentado olhando para ela. Olhou-a durante um minuto. Sua fisionomia não demonstrava senão aguda concentração em seus pensamentos. Depois desviou os olhos, ficou olhando sem ver e disse suavemente, em voz alta: “Filho da puta.” Levantou-se vagarosamente, foi até a porta e virou a chave. Voltou mais uma vez até o “Grundig”, disse de novo “Filho da puta” com mais ênfase, saiu e retornou à sua mesa.

Enrico Colombo falou rápida e urgentemente com a mulher. Ela acenou afirmativamente e olhou para Bond através da sala. Bond e Kristatos estavam-se levantando da mesa. Em voz baixa e colérica, a mulher disse a Colombo:

— Você é um homem repugnante. Todos diziam isso e me avisavam contra você. Tinham razão. Só porque me dá jantar em seu sujo restaurante, pensa que tem o direito de insultar-me com suas nojentas propostas...

A voz da mulher tornara-se mais alta. Agarrou sua bolsa e levantou-se violentamente. Ficou ao lado da mesa, diretamente no caminho de Bond para a porta de saída.

O rosto de Enrico Colombo estava preto de raiva. Agora ele também estava em pé.

— Sua maldita cadela austríaca...

— Não se atreva a insultar minha terra, seu sapo italiano.

A mulher apanhou um copo meio cheio de vinho e jogou-o com precisão no rosto do homem. Quando ele avançou em sua direção, foi fácil para ela recuar alguns passos sobre Bond, que estava parado com Kristatos esperando delicadamente para passar.

Enrico Colombo parou ofegante, enxugando o vinho do rosto com um guardanapo. Disse furiosamente para a mulher:

— Nunca mais mostre a cara dentro de meu restaurante. fez o gesto de cuspir no chão entre eles, virou-se e seguiu diretamente para a porta marcada UFFICIO.

O maitre h’hotel aproximara-se correndo. Todos no restaurante haviam parado de comer. Bond segurou a mulher pelo cotovelo e disse:

— Posso ajudá-la a arranjar um táxi?

Ela se soltou com um gesto brusco. Disse, ainda encolerizada:

— Todos os homens são porcos.

Lembrando-se de manter boas maneiras, acrescentou friamente:

— O senhor é muito bondoso.

Moveu-se altivamente em direção à porta, com os homens atrás.

Houve um zunzum no restaurante e ouviu-se de novo o tilintar de garfos e facas. Todos estavam encantados com a cena. O maitre d’hôtel, com ar solene, segurou a porta aberta. Dirigindo-se a Bond, disse:

— Desculpe, Monsieur. O senhor foi muito bondoso em prestar auxílio.

Um táxi que estava passando diminuiu a velocidade. Bond mandou-o encostar-se na calçada e abriu a porta.

A mulher entrou. Bond seguiu-a decididamente e fechou a porta. Através da janela, disse a Kristatos:

— Eu lhe telefonarei amanhã cedo. Está certo?

Sem esperar pela resposta, afundou-se no banco. A mulher recuara para o canto mais distante. Bond perguntou:

— Para onde mando ele ir?

— “Hotel Ambassadori”.

Rodaram algum tempo em silêncio. Depois Bond disse:

— Não quer ir primeiro a algum lugar tomar um drinque?

— Não, obrigada — disse ela, hesitando. — O senhor é muito bondoso, mas esta noite estou cansada.

— Talvez outra noite.

— Talvez, mas vou amanhã para Veneza.

— Eu também vou para lá. Quer jantar comigo amanhã à noite?

A mulher sorriu, dizendo:

— Pensei que os ingleses fossem acanhados. Você é inglês, não é? Qual é seu nome? Que é que você faz?

— Sim, sou inglês. Meu nome é Bond... James Bond. Escrevo livros... histórias de aventuras. Estou escrevendo um agora sobre tráfico de entorpecentes. Passa-se em Roma e Veneza. O mal é que não sei o suficiente sobre o tráfico. Estou procurando ouvir histórias sobre o assunto. Conhece alguma?

— Então é por isso que estava jantando com aquele Kristatos? Eu o conheço. ele tem má reputação. Não. Não conheço história alguma. Só sei o que todos sabem.

— Mas é precisamente o que eu quero — disse Bond, entusiàsticamente. — Quando disse “histórias” não quis dizer ficção. O que desejo é a espécie de mexerico de alto nível que provavelmente se aproxima muito da verdade. Essa espécie de coisa vale diamantes para um escritor.

A mulher riu.

— Está falando sério... ? Diamantes?

— Bem — respondeu Bond. — Eu não ganho tanto assim como escritor, mas já vendi uma opção dessa história para um filme e, se pudesse torná-la bastante autêntica, acredito que farão realmente o filme.

Estendeu a mão e colocou-a sobre a dela em seu colo. Ela não tirou a mão.

— Sim, diamantes. Um broche de diamantes de Van Cleef. Feito?

Ela tirou a mão. Estavam chegando ao Ambassadori. Ela apanhou a bolsa do banco a seu lado e virou-se no banco de modo a ficar com o rosto voltado para ele. O porteiro abriu a porta e a luz da rua transformou seus olhos em estrelas. Ela examinou o rosto de Bond com certa seriedade e disse:

— Todos os homens são porcos, mas alguns são menos porcos do que outros. Está bem. Eu me encontrarei com você. Mas não para jantar. O que tenho a dizer-lhe não é para lugares públicos. Tomo banho toda tarde no Lido. Mas não na praia elegante. Tomo banho no Bagni Alberoni, onde o poeta inglês Byron andava a cavalo. É na ponta da península. O Vaporetto pode levá-lo até lá. Você me encontrará lá depois de amanhã — às três horas da tarde. Estarei tomando meu último banho de sol do inverno. Entre as dunas da areia. Você verá um guarda-sol amarelo pálido. Embaixo estarei eu. Sorriu e acrescentou:

— Bata no guarda-sol e pergunte por Fräulein Lisl Beaum. Desceu do táxi. Bond seguiu-a. Ela estendeu a mão, dizendo :

— Obrigada por ter corrido em meu socorro. Boa noite.

— Então, às três horas — disse Bond — Estarei lá. Boa noite.

Ela se virou e subiu a escada curva do hotel. Bond acompanhou-a pensativamente com os olhos, depois se virou, voltou para o táxi e disse ao motorista que o levasse ao Nazionale. Sentou-se no fundo do banco e ficou olhando os anúncios luminosos passarem pela janela. As coisas, inclusive o táxi, estavam andando tão depressa que não podia sentir-se confortável. A única coisa que podia controlar era o táxi. Inclinou--se para a frente disse ao motorista que guiasse mais devagar.


O melhor trem de Roma para Veneza é o expresso “Laguna” que deixa diariamente a cidade ao meio-dia. Depois de uma manhã ocupada principalmente em difíceis conversas com seu quartel-general em Londres através do teletipo da Estação I, Bond tomou o expresso no último minuto. O “Laguna” é um trem elegante e moderno, que parece mais luxuoso do que é na realidade. Os bancos são feitos para italianos pequenos e o pessoal do carro-restaurante sofre da mesma doença que aflige seus irmãos nos grandes trens de todo o mundo — genuína aversão pelo viajante moderno e particularmente pelos estrangeiros. Bond tinha um banco no último vagão de alumínio. Se os sete céus estivessem passando diante da janela não lhes teria dado a menor importância. Conservou os olhos voltados para dentro do trem, leu um sacolejante livro, derramou Chianti na toalha da mesa, mudou a posição de suas compridas e doloridas pernas e amaldiçoou as “Ferrovie Italiane dello Stato”.

Mas finalmente ali estava o Mestre e a linha reta da ferrovia através da aquatinta que leva a Veneza. Depois houve o infalível choque de beleza que nunca falha, o suave e oscilante avanço ao longo do Grande Canal em um crepúsculo vermelho como sangue e o extremo prazer — assim parecia — do “Gritti Palace” onde Bond havia reservado o melhor quarto de casal no primeiro andar.

Naquela noite, espalhando notas de mil liras como folhas de árvores no Vallombrosa, James Bond procurou, no “Harry’s Bar”, no “Florian’s e finalmente no admirável “Quadri”, dar a todos quantos estivessem interessados a impressão que desejara proporcionar à mulher — a de um próspero escritor que vivia em alto padrão. Depois, no temporário estado de euforia que a primeira noite em Veneza provoca, por mais elevado e sério que seja o propósito do visitante, James Bond voltou para o “Gritti” e tirou oito horas de sono sem sonhos.

Maio e outubro são os melhores meses em Veneza. O sol é suave e as noites são frescas. A cena cintilante é mais branda para os olhos e há no ar uma frescura que ajuda a enfrentar aqueles longos quilômetros de pedra, terraza e mármore que são intoleráveis para os pés no verão. E há menos gente. Embora Veneza seja a única cidade do mundo capaz de engolir cem mil turistas com a mesma facilidade que mil — escondendo-os nas suas ruas transversais, usando-os nas cenas de multidão nas piazzas e abafando-os nos vaporetti — é ainda melhor partilhar Veneza com o menor número possível de excursões programadas e Lederhosen.

Bond passou a manhã seguinte andando pelas ruas secundárias na esperança de conseguir encontrar uma pista. Visitou duas igrejas — não para admirar seu interior, mas para verificar se alguém entrava atrás dele pela porta principal depois de ter saído pela porta lateral. Ninguém o estava seguindo. Bond foi ao Florian’s, tomou um Americano e ouviu um par de esnobes da cultura francesa discutindo o desequilíbrio da imponente fachada da praça de São Marcos. Por impulso, comprou um cartão postal e remeteu-o à sua secretária, que certa vez estivera na Itália com o Grupo Georgiano e nunca permitira a Bond esquecer-se disso. Escreveu: “Veneza está maravilhosa. Até agora examinei a estação ferroviária e a Bolsa de Títulos. Esteticamente muito satisfatórias. Vou ao Chafariz Municipal hoje à tarde e depois assistirei a um velho filme de Brigitte Bardot no cinema “Scala”. Conhece uma música maravilhosa chamada “O Sole Mio”? É muito romântica, como tudo o mais aqui. JB.”

Satisfeito com sua inspiração, Bond almoçou cedo e voltou ao hotel. Fechou com chave a porta do quarto, tirou o paletó e examinou a Walther PPK. Prendeu a trava, praticou uma ou duas sacadas rápidas e tornou a pôr a arma no coldre. Já era hora de partir. Foi ao desembarcadouro flutuante e tomou o vaporetto do meio-dia e quarenta para Alberoni, que ficava fora da vista, do outro lado das lagunas espalhadas. Sentou-se em um banco na proa e ficou imaginando o que iria acontecer-lhe.


Do desembarcadouro em Alberoni, do lado da península do Lido que se volta para Veneza, há uma poeirenta caminhada de uns oitocentos metros através do istmo para chegar aos Bagni Alberoni, que ficam do lado do Adriático. É um mundo curiosamente deserto, essa ponta da famosa península. Quilômetro e meio abaixo pela estreita língua de terra o luxuoso loteamento imobiliário termina em uma dispersão de vilas de estuque rachado e conjuntos residenciais falidos. Ali nada existe além da minúscula aldeia pesqueira de Alberoni, um sanatório para estudantes, uma abandonada estação experimental pertencente à Marinha Italiana e alguns maciços embasamentos de artilharia da última guerra, cobertos de mato. Na terra de ninguém, no centro dessa estreita língua de terra, fica o “Golf du Lido”, cujos campos pardacentos e ondulantes serpenteiam ao redor das ruínas de antigas fortificações. Não são muitas as pessoas que vão a Veneza jogar golfe e os grandes hotéis do Lido procuram manter o interesse pelo clube, apelando ao esnobismo. O campo de golfe é cercado por uma alta cerca de arame da qual pendem a intervalos, como se protegessem algo de grande valor ou segredo, ameaçadores Vietatos e Prohibitos. Ao redor desse bolsão cercado, o mato e as dunas de areia não foram sequer limpados de minas e entre o enferrujado arame farpado há avisos dizendo “MINAS, PERICOLO DI MORTE” por baixo de caveiras e tíbias cruzadas, toscamente desenhados. Toda a área é estranha e melancólica, em extraordinário contraste com o alegre mundo carnavalesco de Veneza a menos de uma hora de distância através das lagunas.

Bond estava suando um pouco depois de ter andado os oitocentos metros através da península para chegar à praia. Parou um momento embaixo da última das acácias que ladeavam a estrada empoeirada para refrescar-se ao mesmo tempo que procurava orientar-se. À sua frente havia um vacilante arco de madeira sobre o qual estava escrito BAGNI ALBERONI em desbotada tinta azul. Mais além ficavam as fileiras de cabinas de madeira igualmente estragadas, depois cem metros de areia e em seguida o calmo espelho azul do mar. Não havia banhistas e o lugar parecia estar fechado, mas quando atravessou o arco ouviu o som distante de um rádio tocando. Provinha de uma barraca em ruínas que anunciava “Coca-Cola” e vários refrigerantes italianos. Havia pilhas de cadeiras de lona encostadas na parede, dois pedallos e um cavalo marinho de criança meio inflado. O estabelecimento inteiro parecia tão arruinado que Bond não podia imaginá-lo fazendo negócio mesmo no auge da temporada de verão. Desceu do estreito passeio de tábuas para a areia macia e quente, e deu a volta por trás das cabinas para chegar à praia. Foi andando pela beirada do mar à esquerda, até desaparecer da névoa do calor do outono, a larga e vazia faixa de areia curvava-se ligeiramente em direção ao Lido propriamente dito. À direita, havia uns oitocentos metros de praia, terminando no quebra-mar na ponta da península. O quebra-mar estendia-se como um dedo pelo silencioso mar espelhado. Em cima do quebra-mar, a intervalos, viam-se as frágeis torres dos pescadores de polvos. Atrás da praia havia as dunas de areia e uma parte da cerca de arame que rodeava o campo de golfe. À beira das dunas de areia, talvez a uns quinhentos metros de distância, avistou uma mancha de amarelo vivo.

Bond avançou em direção a ela ao longo da linha d’água.

— Ham!

As mãos voaram para a minúscula parte superior do biquini e puxaram-no para cima. Bond entrou na linha de visão dela e ficou olhando para baixo. A sombra brilhante do guarda-sol só cobria o rosto. O resto dela — um corpo creme bronzeado em um biquíni preto sobre uma toalha de banho listrada de preto e branco — oferecia-se ao sol.

Ela ergueu os olhos para ele através dos cílios semi-cerrados.

— Você está cinco minutos adiantado e eu lhe disse para bater.

Bond sentou-se ao lado dela, na sombra do grande guarda-sol. Tirou um lenço e enxugou o rosto.

— Acontece que você é a dona da única palmeira em todo este deserto. Precisava abrigar-me embaixo dela o mais depressa possível. Este é um lugar infernal para um encontro.

— Sou como Greta Garbo — disse ela, rindo. — Gosto de ficar sozinha.

— Estamos sozinhos?

Ela abriu muito os olhos.

— Por que não? Ou pensa que eu trouxe alguém para segurar vela?

— Como pensa que todos os homens são porcos...

— Ah, mas você é um porco cavalheiro — disse ela, dando uma risadinha. — Um milorde porco. Além do mais, está quente demais para esse tipo de coisa. E há areia demais. Além disso, este é um encontro comercial, não é? Eu lhe conto histórias sobre entorpecentes e você me dá um broche de diamantes. De Van Cleef. Ou mudou de ideia?

— Não. É exatamente isso. Onde começamos?

— Você faz as perguntas. Que deseja saber?

Sentou-se e puxou os joelhos entre os braços. O coquetismo desapareceu de seus olhos, que se tornaram atentos, talvez um pouco cautelosos.

Bond percebeu a mudança. Disse casualmente, observando-a:

— Dizem que seu amigo Colombo é um homem importante no jogo. Fale-me sobre ele. ele seria um bom personagem para meu livro — disfarçado, naturalmente. Mas é de pormenores que eu preciso. Como ele age e coisas semelhantes. Essa é a espécie de coisas que um escritor não pode inventar.

Os olhos dela velaram-se. Disse: — Enrico ficaria muito zangado se soubesse que contei algum de seus segredos. Nem sei o que faria comigo.

— Ele não ficará sabendo.

Ela o olhou com expressão séria.

— Lieber Sr. Bond, há muito pouca coisa que ele não saiba. E é também perfeitamente capaz de agir por palpite. Eu não ficaria surpreendida — Bond percebeu que ela olhara rapidamente para seu relógio — se ele tivesse tido a ideia de mandar-me seguir. É um homem muito desconfiado.

Estendeu a mão e tocou a manga de Bond. Agora parecia nervosa. Disse em tom urgente:

— Penso que é melhor ir-se embora agora. Isto foi um grande erro.

Bond olhou abertamente para seu relógio. Eram três e meia. Virou a cabeça de modo a poder olhar para trás do guarda-sol e para o fundo da praia. Bem longe, ao lado das cabinas de banho, havia três homens de roupas escuras. Caminhavam decididamente pela praia, com os pés marcando passo, como se formassem um pelotão.

Bond levantou-se. Olhou para a cabeça curvada e disse secamente:

— Compreendo o que quer dizer. Diga apenas a Colombo que daqui por diante vou escrever sua biografia. Sou um escritor muito persistente. Até logo.

Bond começou a correr pela areia em direção à ponta da península. De lá, poderia descer para a outra praia em direção à aldeia e à companhia segura de gente.

No fundo da praia, os três homens partiram em um rápido trote, com os cotovelos e as pernas movendo-se simultaneamente, como se fossem corredores de longa distância ou estivessem treinando corrida. Quando passaram pela mulher, um deles ergueu a mão. Ela também ergueu a mão em resposta e depois se estendeu na areia e virou-se de costas — talvez para queimar também as costas ou porque não queria ver a caçada humana.

Bond tirou a gravata enquanto corria e guardou-a no bolso. Estava quente e ele já suava abundantemente. Mas o mesmo devia acontecer com os três homens. Era uma questão de ver quem estava melhor treinado. Na ponta da península, Bond saltou sobre o quebra-mar e olhou para trás. Os homens quase não haviam ganho distância, mas agora dois deles estavam-se separando para dar a volta na beirada do limite do campo de golfe. Pareciam não dar atenção aos sinais de perigo com caveiras e tíbias cruzadas. Bond, correndo velozmente pelo largo quebra-mar, medindo ângulos e distâncias. Os dois homens estavam cortando através da base do triângulo. Ia ser uma chegada apertada.

A camisa de Bond já estava ensopada e seus pés começavam a doer. Havia corrido talvez quilômetro e meio. Quanto ainda faltaria para chegar a lugar seguro? A intervalos, ao longo do quebra-mar, as culatras de canhões antigos haviam sido enterradas no concreto. Deviam servir como postes de amarração para as frotas pesqueiras que procuravam a proteção das lagunas antes de sair para o Adriático. Bond contou seus passos entre dois deles. Cinquenta metros. Quantos calombos pretos ainda havia até o fim do quebra-mar — até as primeiras casas da aldeia? Bond contou até trinta antes que a fileira desaparecesse na névoa do calor. Provavelmente mais um quilômetro e meio. Conseguiria chegar até lá e com suficiente velocidade para derrotar os dois homens que avançavam pelos flancos? A respiração de Bond já estava raspando na garganta. Agora até seu terno estava ensopado de suor e o pano da calça incomodava as pernas. Atrás dele, a uns trezentos metros de distância, corria o único perseguidor. À direita, serpenteando entre as dunas de areia e convergindo rapidamente, iam os outros dois. À esquerda, havia uma parede de alvenaria de seis metros que descia ingremente para as águas verdes, desaparecendo no Adriático.

Bond estava planejando diminuir o passo e começar a andar, para conservar fôlego suficiente a fim de enfrentar os três homens, quando duas coisas aconteceram em rápida sucessão. Primeiro, viu através da névoa à frente um grupo de pescadores armados de arpões. Havia uma meia dúzia deles, alguns na água e outros tomando sol em cima do quebra-mar. Depois, das dunas de areia veio o ronco surdo de uma explosão. Terra, vegetação e o que talvez fosse pedaços de um homem ergueram-se rapidamente no ar. Uma pequena onda de choque atingiu Bond. Bond diminuiu o passo. O outro homem nas dunas havia parado. Estava paralisado. Tinha a boca aberta e dela saía uma algaravia assustada. De repente, caiu ao chão, com os braços em volta da cabeça. Bond conhecia os sinais. O homem não voltaria a mover-se até que alguém o tirasse de lá. Bond sentiu-se aliviado. Agora faltavam apenas uns duzentos metros para chegar até onde estavam os pescadores. Estes já se reuniam em grupo, olhando para ele. Bond procurou lembrar algumas palavras em italiano e ensaiou-as. “Mi inglês. Prego, dove il carabinieri.” Bond olhou para trás. Era estranho, mas apesar dos pescadores que observavam tudo, o homem ainda vinha correndo. Havia ganho distância e estava apenas uns cem metros atrás. Agora, à frente, os pescadores abriram-se em leque através do caminho de Bond. Tinham espingardas de arpão prontas para disparar. No centro estava um homem grande, com um minúsculo calção de banho vermelho pendurado embaixo da barriga. Tinha uma máscara verde empurrada para trás sobre a cabeça. Estava em pé com as nadadeiras azuis apontando para fora e as mãos nos quadris. Parecia Mr. Toad, de Toad Hall em tecnicolor. A ideia engraçada morreu no nascedouro na cabeça de Bond. Ofegante, diminuiu a marcha e passou a andar. Automaticamente sua mão suada procurou a arma embaixo do paletó e puxou-a para fora. O homem no centro do arco de arpões que apontavam para ele era Enrico Colombo.

Colombo observou-o aproximar-se. Quando estava a vinte metros, disse calmamente:

— Guarde seu brinquedo, Sr. Bond do Serviço Secreto. Estas são espingardas de arpão C02. E fique onde está. Se não quiser tornar-se uma cópia de São Sebastião de Mantegna.

Virou-se para o homem à sua direita e falou em inglês:

— A que distância estava o albanês na semana passada?

— Vinte metros, padrone. E o arpão atravessou seu corpo. Mas ele era um homem gordo — talvez duas vezes mais gordo do que este.

Bond parou. Um dos calombos de ferro estava a seu lado. Sentou-se sobre ele e descansou a arma sobre o joelho. A arma estava apontada para o meio da grande barriga de Colombo.

— Cinco arpões em mim não impedirão uma bala em você, Colombo — disse Bond.

Colombo sorriu e fez um aceno com a cabeça. O homem que se aproximava silenciosamente por trás de Bond bateu com força na base do crânio com o cabo de sua Luger.


Quando uma pessoa volta a si depois de ter sido atingida na cabeça, sua primeira reação é um acesso de vômito. Mesmo em sua miséria. Bond tinha consciência de duas sensações: estava em um barco no mar e alguém, um homem, limpava sua testa com uma toalha úmida e fresca, murmurando encorajadoramente em mau inglês:

— Está okay, amigo. Calma. Calma.

Bond deixou-se cair de costas em sua tarimba, exausto. Era uma cabina pequena e confortável com perfume feminino, belas cortinas e cores. Um marinheiro com blusa e calça esfarrapadas — Bond acreditou reconhecê-lo como um dos pescadores de arpão — estava curvado sobre ele. Sorriu quando Bond abriu os olhos.

— Está melhor, sim? Súbito okay.

Esfregou sua própria nuca como manifestação de simpatia e acrescentou.

— Dói durante algum tempo. Logo ficará só uma mancha, embaixo dos cabelos. As garotas não verão.

Bond sorriu dèbilmente e concordou com um aceno de cabeça. A dor que o movimento causou fê-lo fechar os olhos. Quando os abriu, o marinheiro sacudiu a cabeça como uma advertência. Aproximou seu relógio-pulseira dos olhos de Bond. Marcava sete horas. Apontou com o dedo mínimo para o número nove.

— Mangiare com padrone, si?

Bond disse: — Si.

O homem pôs a mão no rosto e inclinou a cabeça de lado.

— Dormire.

Bond disse de novo “Si” e o marinheiro saiu da cabina, fechando a porta sem passar a chave.

Bond levantou-se cambaleante da tarimba, foi até a pia e começou a limpar-se. Em cima da cômoda, em uma pilha bem arrumada, estavam seus objetos pessoais. Tudo estava lá, com exceção de sua arma. Bond guardou as coisas no bolso. Sentou-se de novo na tarimba e ficou pensando e fumando. Seus pensamentos eram absolutamente inconclusivos. Estava sendo sequestrado, mas pelo procedimento do marinheiro não parecia ser considerado como inimigo. No entanto, haviam-se dado a muito trabalho para fazê-lo prisioneiro e, no processo, um dos homens de Colombo chegara a morrer, embora inadvertidamente. Não parecia que se tratasse apenas de matá-lo. Talvez esse tratamento suave fosse a preliminar de uma tentativa de negociar com ele. Qual seria o negócio — e qual seria a alternativa?

Às nove horas, o mesmo marinheiro foi buscar Bond, levou-o por um curto corredor até uma pequena e desarrumada sala e deixou-o lá. Havia uma mesa e duas cadeiras no centro da sala e, ao lado da mesa, um carrinho niquelado coberto de comidas e bebidas. Bond experimentou uma portinhola na extremidade da sala. Estava trancada. Abriu uma das vigias e olhou para fora. Havia apenas luz suficiente para ver que o navio tinha umas duzentas toneladas e poderia ter sido antes um grande barco pesqueiro. O motor parecia ser um único diesel e estava sendo forçado. Bond calculou a velocidade do barco em seis ou sete nós. No horizonte escuro havia um pequeno amontoado de luzes amarelas. Parecia provável que estivessem descendo ao largo da costa do Adriático.

O trinco da portinhola rangeu. Bond pôs a cabeça para dentro. Colombo desceu os degraus. Estava vestido com camiseta, calça de algodão grosseiro e sandálias. Havia em seus olhos um brilho malicioso e divertido. Sentou-se em uma cadeira e fez um gesto mostrando a outra.

— Vamos, meu amigo. Comida, bebida e muita conversa. Agora vamos deixar de agir como meninos e ser adultos. Está bem? Que vai querer? Gim, uísque, champanha? E esta é a melhor salsicha de toda a Bolonha. Azeitonas de minha própria fazenda. Pão, manteiga, Provolone — isso é queijo defumado — e figos frescos. Comida de camponês, mas boa. Vamos. Aquela corrida toda deve ter-lhe dado apetite.

Seu riso era contagioso. Bond serviu-se de uma boa dose de uísque com soda e sentou-se. Disse:

— Por que precisou dar-se a tanto trabalho? Poderíamos ter-nos encontrado sem todo esse drama. Deste jeito, você arrumou uma porção de encrenca para si próprio. Avisei meu chefe de que alguma coisa deste tipo poderia acontecer-me. A maneira como a garota agarrou-me em seu restaurante foi muito infantil para convencer. Eu disse que ia cair na cilada para ver do que se tratava. Se amanhã ao meio dia não estiver novamente livre, a Interpol e toda a polícia italiana estarão atrás de você.

Colombo parecia perplexo.

— Se estava disposto a cair na cilada — disse — por que tentou fugir de meus homens hoje à tarde? Mandei-os buscá-lo e trazê-lo para meu navio. Teria sido muito mais amistoso. Agora, eu perdi um bom homem e você poderia facilmente ter ficado com o crânio quebrado. Não compreendo.

— Não gostei da aparência daqueles três homens. Conheço assassinos quando os vejo. Imaginei que você poderia estar pensando em fazer alguma estupidez. Você devia ter usado a garota. Os homens eram desnecessários.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Lisl estava disposta a descobrir mais coisas a seu respeito, mas nada além disso. Ela agora vai ficar tão zangada comigo quanto você. A vida é muito difícil. Gosto de fazer amizade com todo o mundo e agora fiz dois inimigos em uma tarde. É muito mau.

Colombo parecia genuinamente sentido. Cortou uma grossa fatia de salsicha, tirou impacientemente a pele com os dentes e começou a comer. Com a boca ainda cheia, tomou um copo de champanha e empurrou a salsicha com ele. Sacudindo a cabeça recriminadoramente, disse:

— É sempre assim. Quando estou aborrecido preciso comer. Mas a comida que como quando estou aborrecido não é digerida. E agora você me deixou aborrecido. Você diz que poderíamos ter-nos encontrado e discutido as coisas... que eu não precisaria ter-me dado a todo este trabalho.

Estendeu as mãos desamparadamente.

— Como poderia eu saber disso? Dizendo isso, você põe o sangue de Mário nas minhas mãos. Não o mandei tomar um atalho por aquele lugar.

Colombo bateu na mesa e gritou colericamente com Bond.

— Não concordo em que tudo isso tenha sido por minha culpa. Foi culpa sua. Você concordou em matar-me. Como pode alguém arrumar um encontro amistoso com seu próprio assassino? Eh? Explique-me isso?

Colombo arrancou um pedaço de um comprido pão e enfiou-o na boca, com os olhos furiosos.

— De que diabo está falando?

Colombo jogou o resto do pão sobre a mesa e levantou-se, sem desviar seus olhos dos de Bond. Caminhou de lado, ainda olhando fixamente para Bond, até uma cômoda, tateou o puxador da gaveta superior, abriu-a, enfiou a mão dentro e tirou o que Bond reconheceu ser uma máquina de tocar fita de gravação. Ainda olhando acusadoramente para Bond, levou a máquina até a mesa. Sentou-se e apertou um botão.

Quando ouviu a voz, Bond apanhou seu copo de uísque e olhou para dentro dele. A voz distante dizia: “Exatamente. Agora, antes de dar-lhe as informações, como bons comerciantes, vamos estabelecer as condições. Está bem?” A voz continuou: “Dez mil dólares americanos... Não vai dizer onde obteve essas informações. Mesmo que seja derrotado... O chefe dessa máquina é um homem mau... ele precisa ser destrutto... morto.” Bond esperou que sua própria voz surgisse acima dos baralhos do restaurante. Houve uma longa pausa enquanto ele pensava na última condição. Que havia dito? Sua voz saiu da máquina, respondendo-lhe: “Não posso prometer isso. Você deve compreender. Só posso dizer que se o homem tentar destruir-me, eu o destruirei.”

Colombo desligou a máquina. Bond engoliu seu uísque. Agora podia erguer os olhos para Colombo. Disse defensivamente:

— Isso não faz de mim um assassino.

Colombo olhou-o pesarosamente.

— Para mim, faz. Vindo de um inglês. Trabalhei para os ingleses durante a guerra. Na Resistência. Recebi uma Medalha do Rei.

Pôs a mão no bolso e jogou sobre a mesa a medalha “Freedom” de prata, com a fita listrada de vermelho, branco e azul.

— Está vendo? — perguntou.

Bond continuou fitando obstinadamente os olhos de Colombo. Disse:

— E o resto do negócio naquela fita? Você há muito tempo deixou de trabalhar para os ingleses. Agora trabalha contra eles, por dinheiro.

Colombo resmungou. Bateu na máquina com o dedo indicador. Depois disse impassivelmente:

— Ouvi tudo. É mentira.

Bateu com o punho sobre a mesa, fazendo os copos saltarem, e gritou furiosamente:

— É mentira, mentira. Tudo aquilo é mentira. Levantou-se de um salto. Sua cadeira caiu para trás.

Curvou-se vagarosamente e apanhou-a. Estendeu a mão para a garrafa de uísque, deu a volta na mesa e derramou quatro dedos no copo de Bond. Voltou à sua cadeira, sentou-se e pôs a garrafa de champanha sobre a mesa à sua frente. Agora sua fisionomia estava calma e séria. Disse serenamente:

— Nem tudo aquilo é mentira. Há um grão de verdade no que aquele bastardo lhe disse. É por isso que resolvi não discutir com você. Você poderia não acreditar em mim. Teria chamado a polícia. Haveria muita encrenca para mim e meus camaradas. Mesmo que você ou alguma outra pessoa não encontrasse razão para matar-me, haveria escândalo e ruína. Em lugar disso, decidi mostrar-lhe a verdade... a verdade que mandaram você descobrir na Itália. Dentro de horas, amanhã de madrugada, sua missão estará terminada. Presto... assim — concluiu Colombo, estalando os dedos.

— Que parte da história de Kristatos não é mentira? — perguntou Bond.

Os olhos de Colombo fixaram-se nos de Bond, calculando. Finalmente, disse:

— Meu amigo, eu sou um contrabandista. Essa parte é verdadeira. Sou provavelmente o mais próspero contrabandista do Mediterrâneo. Metade dos cigarros americanos que entram na Itália são trazidos de Tanger por mim. Ouro? Sou o único fornecedor do mercado negro de moeda. Diamantes? Tenho meu próprio fornecedor em Beirute com linhas diretas para Serra Leoa e África do Sul. Antigamente, quando essas coisas eram escassas, eu também lidava com aureomicina, penicilina e outros remédios. Suborno nos hospitais das bases americanas. E houve muitas outras coisas... até mesmo belas garotas da Síria e da Pérsia para as casas de Nápoles. Também contrabandeei sentenciados foragidos. Mas — o punho de Colombo bateu sobre a mesa — entorpecentes, heroína, ópio, haxixe, não! Nunca! Nada quero ter com essas coisas. Essas coisas são más. Nas outras não há pecado. Erguendo a mão direita, Colombo acrescentou:

— Meu amigo, isso eu juro pela cabeça de minha mãe.

Bond estava começando a ver a luz. Estava preparado para acreditar em Colombo. Sentia mesmo uma curiosa simpatia por esse pirata ambicioso e impetuoso que quase tinha sido condenado por Kristatos.

— Mas por que Kristatos apontou o dedo para você? — perguntou Bond. — Que tinha a ganhar com isso?

 

 

                                        CONTINUA