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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FATOR INVISIVEL
O FATOR INVISIVEL

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

CONTINUA

Agora Bond percebia porque M estava perturbado, porque desejava que outra pessoa tomasse a decisão. Porque aqueles eram amigos de M. Porque havia um elemento pessoal envolvido, M trabalhara no caso sozinho. Mas agora chegara o momento em que era preciso fazer justiça e castigar aquelas pessoas. Mas M estava pensando: isto será justiça ou será vingança? Nenhum juiz aceitaria um caso de homicídio no qual tivesse conhecido pessoalmente a vítima. M desejava que outra pessoa, Bond, proferisse o julgamento. No espírito de Bond não havia dúvidas. Não conhecia os Havelocks nem lhe importava saber quem eram. Hammerstein aplicara a lei da selva em dois velhos indefesos. Como não era possível aplicar outra lei, a lei da selva devia ser imposta a Hammerstein. De nenhuma outra maneira seria possível fazer justiça. Se fosse vingança, seria vingança da coletividade.

— Eu não hesitaria um minuto, Senhor — disse Bond. — Se bandidos estrangeiros acharem que podem fazer essas coisas impunemente, decidirão que os ingleses são tão moles quanto outras pessoas parecem pensar que somos. Este é um caso para rude justiça — olho por olho.

M continuou olhando para Bond. Não deu encorajamento, nem fez comentário. Bond acrescentou:

— Não é possível enforcar essas pessoas, Senhor. Mas elas precisam ser mortas.

Os olhos de M deixaram de focalizar Bond. Por um momento ficaram vazios, olhando para dentro. Depois, M estendeu vagarosamente a mão para a gaveta de cima de sua mesa, do lado esquerdo, abriu-a e tirou dela uma fina pasta sem o habitual título na capa e sem a estrela vermelha que designava matéria altamente secreta. Colocou a pasta diretamente em sua frente e sua mão voltou à gaveta aberta. A mão saiu com um carimbo de borracha e uma almofada de tinta vermelha. M abriu a caixa da almofada, apertou o carimbo de borracha sobre ela e depois cuidadosamente, de modo que ficasse perfeitamente alinhado com o canto superior direito da pasta, apertou-o sobre a capa cinzenta.

M tornou a guardar o carimbo e a almofada de tinta na gaveta e fechou-a. Virou a pasta e empurrou-a delicadamente para Bond através da mesa.

As letras vermelhas, em tipo grotesco, ainda úmidas, diziam: PARA VOCÊ SOMENTE.

Bond nada disse. Acenou com a cabeça, apanhou a pasta e saiu da sala.


Dois dias mais tarde, Bond tomou o “Comet” de sexta-feira para Montreal. Não gostava do avião. Voava alto demais, com excessiva velocidade e levava muitos passageiros. Tinha saudade do tempo do velho “Stratocruiser” — aquele velho, magnífico e desajeitado aparelho que levava dez horas para atravessar o Atlântico. Então a gente podia jantar em paz, dormir sete horas em uma confortável tarimba e tomar aquele ridículo desjejum de “casa de campo” da BOAC, enquanto o dia nascia e inundava a cabina com os primeiros e brilhantes raios dourados do Hemisfério Ocidental. Agora tudo era feito muito depressa. As aeromoças precisavam servir tudo quase correndo e depois a gente mal tinha duas horas para cochilar antes da decida de cento e cinquenta quilômetros a partir dos doze mil metros de altitude. Apenas oito horas depois de ter saído de Londres, Bond estava guiando uma limusine Plymouth, alugada da “Hertz”, ao longo da larga Rota 17 de Montreal a Ottawa e fazendo força para lembrar-se de ficar do lado direito da estrada.

O Quartel-General da Real Polícia Montada do Canadá fica no Departamento de Justiça, ao lado dos Edifícios do Parlamento em Ottawa. Como a maioria dos prédios públicos canadenses, o Departamento de Justiça é um bloco maciço de alvenaria cinzenta construído para parecer pesadamente importante e resistir aos longos e duros invernos. Haviam dito a Bond para perguntar pelo comissário na mesa da entrada e dar seu nome como “Sr. James”. Foi o que fez. Um jovem cabo da Real Polícia Montada, de fisionomia sadia, que parecia não gostar de ficar dentro de casa em um dia quente e ensolarado, levou-o pelo elevador até o terceiro andar e entregou-o a um sargento em um grande e bem arrumado escritório que continha duas secretárias e muitos móveis pesados. O sargento falou pelo telefone interno e houve uma espera de dez minutos, durante os quais Bond fumou e leu um folheto de recrutamento que fazia a Polícia Montada parecer uma mistura de fazenda para turistas, Dick Tracy e “Rose Marien”. Quando o fizeram entrar pela porta de ligação, um homem alto e jovem com terno azul escuro, camisa branca e gravata preta virou-se da janela onde estava e caminhou em sua direção.

— Sr. James? — sorrindo ligeiramente. — Eu sou o Coronel... digamos... Johns.

Trocaram um aperto de mão e o coronel “Johns” prosseguiu:

— Venha sentar-se. O comissário sente muito não poder estar aqui para recebê-lo. Está muito resfriado... um desses resfriados diplomáticos, sabe?

O Coronel “Johns” parecia divertir-se.

— ele achou que talvez fosse melhor tirar o dia de folga. Eu sou um dos auxiliares. Já participei de uma ou duas caçadas e o comissário incumbiu-me de cuidar desse seu pequeno passeio.

O Coronel fez uma pausa antes de acrescentar:

— Só eu. Entendido?

Bond sorriu. O comissário tinha muito prazer em ajudar, mas ia mexer naquilo com luvas de pelica. Não haveria repercussão em seu escritório. Bond imaginou que ele devia ser um homem cuidadoso e muito sensato.

— Compreendo perfeitamente — disse. — Meus amigos em Londres não desejam que o comissário se preocupe pessoalmente com isto. Eu não me encontrei com o comissário nem estive perto de seu gabinete. Assim sendo, podemos falar inglês por uns dez minutos... só entre nós dois?

O Coronel Johns riu.

— Claro. Disseram-me para fazer esse pequeno discurso e depois entrar no assunto. O senhor compreende, comandante, que nós dois vamos cometer vários delitos, a começar pela obtenção de uma licença canadense de caça sob falsos pretextos e violação das leis de fronteiras, indo depois a coisas muito mais graves. Não faria bem a ninguém que algo desse pequeno negócio ricocheteasse. Está entendendo?

— É o que meus amigos também acham. Quando eu sair daqui, cada um de nós se esquecerá do outro, e se eu acabar em Sing-Sing o problema é meu. Bem, e agora?

O Coronel Johns abriu uma gaveta da mesa e tirou uma grossa pasta, que abriu. O documento de cima era uma lista. Apontou com seu lápis o primeiro item e olhou para Bond. Correu os olhos pelo velho terno de tweed preto e branco de Bond, por sua camisa branca e sua gravata preta estreita.

— Roupas — disse, destacando uma folha de papel da pasta e estendendo-a sobre a mesa. — Aqui está uma lista do que acho que vai precisar e o endereço de uma grande loja de roupas usadas aqui na cidade. Nada extravagante, nada conspícuo — camisa caqui, calça marrom escura e botas ou sapatos bons para escalar montanha. Veja que sejam confortáveis. E aqui está o endereço de uma farmácia onde pode comprar tinta de nogueira. Compre um galão e tome um banho com ele. Há muito de marrom nos montes nesta época e você não vai querer usar tecido de para-quedas ou outra coisa qualquer que cheire a camuflagem. Certo? Se fôr apanhado, você é um inglês que estava caçando no Canadá, se perdeu e atravessou a fronteira por engano. Fuzil. Eu mesmo fui colocá-lo no porta-mala de seu Plymouth enquanto você estava esperando. Um dos novos Savage 99Fs, com mira Weatherby 6x62, repetidor de 5 tiros com vinte pentes de 250-3.000 de alta velocidade. É a mais leve arma para caça de grande porte que se encontra à venda. Só três quilos. Pertence a um amigo. Ficará satisfeito em recebê-lo de volta algum dia, mas não lhe fará falta se não fôr devolvido. Foi experimentado e está ótimo até quinhentos metros. Licença de arma — o Coronel Johns estendeu-a sobre a mesa — emitida aqui na cidade em seu verdadeiro nome, pois isso combina com seu passaporte. Licença de caça idem, mas só caça pequena, pois ainda não se iniciou a temporada de veados. Também licença de motorista para substituir a provisória que deixei com a pessoa da “Hertz” para entregar-lhe. Saco de provisões, bússola — tudo usado, no porta-malas de seu carro. Oh, a propósito — disse o Coronel Johns erguendo os olhos de sua lista — você vai levar uma arma pessoal?

— Sim. Walter PPK em um coldre Burns Martin.

— Certo, dê-me o número. Tenho uma licença em branco aqui. Se voltar às minhas mãos está tudo arrumado. Tenho explicação para ela.

Bond tirou sua arma e leu o número. O Coronel Johns preencheu o formulário e entregou-o a Bond.

— Agora, os mapas. Aqui está um mapa local da “Esso”. É o único de que você precisa para chegar até a região.

O Coronel Johns levantou-se, aproximou-se de Bond com o mapa, e abriu-o, dizendo:

— Você toma esta rota 17 de volta para Montreal, atravessa a ponte em St. Anne para tomar a 37 e depois cruza novamente o rio para entrar na 7. Desce pela 7 até o rio Pike. Entra na 52 em Stanbridge. Em Stanbridge você vira a direita para ir a Frelighsburg, onde deixa o carro em uma garagem. Terá estradas boas em todo o trajeto. A viagem não levará mais de cinco horas, incluindo as paradas. Certo? Agora, aqui é que você precisa fazer as coisas direito. Chegue em Frelighsburg mais ou menos às três da madrugada. O empregado da garagem estará meio dormindo. Assim, poderá tirar o material do porta-malas e afastar-se sem que ele preste atenção, ainda que você fosse um chinês de duas cabeças.

O Coronel Johns voltou à sua cadeira e tirou mais dois pedaços de papel da pasta. O primeiro era um pedaço de mapa marcado a lápis e o outro um pedaço de fotografia aérea. Olhando gravemente para Bond, explicou:

— Bem, aqui estão as únicas coisas inflamáveis que você vai levar. Espero que se livre delas logo que tenham sido usadas ou assim que houver probabilidade de arrumar encrenca. Isto — disse, empurrando o papel na direção de Bond — é um tosco esboço de uma velha rota de contrabando do tempo da Proibição. Atualmente não é usada. Se fosse, eu não a recomendaria. Você poderia encontrar alguns indivíduos desagradáveis vindo da direção contrária, que seriam capazes de atirar, sem fazer perguntas nem depois. .. trapaceiros, traficantes de entorpecentes, traficantes de mulheres... Hoje em dia, porém, a maioria viaja em “Viscount”. Esta rota era usada por contrabandistas entre Franklin, logo acima da Linha Derby, e Frelighsburg. Você segue este caminho no sopé dos montes, desvia-se de Franklin e entra no começo das montanhas Green. Lá só há abetos de Vermont e pinheiros, com um pouco de bordos, e você pode ficar dentro da mata durante meses sem ver viva alma. Você atravessa o campo aqui, sobre duas rodovias, e deixa a cachoeira de Enosburg a oeste. Depois chega a uma íngreme serra e desce para o alto do vale que está procurando. A cruz é o Lago do Eco e, a julgar pelas fotografias, eu me sentiria inclinado a descer sobre ela pelo leste. Entendeu?

— Que distância? Uns quinze quilômetros?

— Dezessete quilômetros. Para ir de Frelighsburg até lá você vai levar umas três horas, se não se perder no caminho. Avistará o local lá pelas seis horas e terá claridade durante cerca de uma hora para ajudá-lo no último trecho.

O Coronel Johns empurrou sobre a mesa o pedaço de fotografia aérea. Era um corte central da fotografia que Bond vira em Londres. Mostrava uma comprida e baixa fileira de edifícios bem conservados feitos de pedra talhada. Os telhados eram de lousa. Dava para ver graciosas janelas arcadas e um pátio coberto. Uma estrada empoeirada passava diante da porta da frente e desse lado havia garagens e o que parecia ser canis. Do lado do jardim havia um terraço calçado de pedras com flores na beirada. Além dele, viam-se dois ou três acres de gramado bem cuidado estendendo-se até a beira do pequeno lago. O lago parecia ter sido artificialmente criado por meio de uma funda represa de pedra. Havia um conjunto de móveis de jardim em ferro fundido onde a parede da represa se afastava da margem e, no meio da parede, um trampolim e uma escada para sair do lago. Além do lago, a floresta subia por uma íngreme encosta. Era desse lado que o Coronel Johns sugeria uma aproximação. Não apareciam pessoas na fotografia, mas sobre a calçada de pedras diante do pátio havia móveis de jardim de alumínio de aparência cara e uma mesa central de vidro com bebidas. Bond lembrou-se que a fotografia maior mostrava uma quadra de tênis no jardim e, do outro lado da estrada, bem cuidadas cercas brancas e cavalos de uma fazenda de criação. O Lago do Eco parecia ser o que era: um luxuoso retiro, no fundo do país, bem longe dos alvos de bombas atômicas, pertencente a um milionário que gostava de sossego e provavelmente conseguia cobrir grande parte das despesas de manutenção com a fazenda de criação de cavalos. Seria admirável refúgio para um homem que tivesse passado dez tempestuosos anos na política das Antilhas e precisasse de um repouso para recarregar suas baterias. O lago era também conveniente para lavar o sangue das mãos.

O Coronel Johns fechou sua pasta agora vazia e rasgou a lista datilografada em pequenos fragmentos, que jogou na cesta de papéis usados. Os dois homens levantaram-se. O Coronel Johns levou Bond até a porta e estendeu a mão, dizendo:

— Bem, acho que é só isso. Eu gostaria muito de ir com você. Falar nisso tudo fez-me lembrar de uma ou duas missões de atirador furtivo no fim da guerra. Eu estava no Exército nessa ocasião. Estávamos sob o comando de Monty no Oitavo Exército. À esquerda da linha de frente nas Ardennes. Era uma região mais ou menos igual à que você vai visitar, diferente só nas árvores. Mas você sabe como são as coisas nesses empregos policiais. Muito trabalho burocrático e manter a ficha limpa para a pensão. Bem, até logo e muita sorte. Sem dúvida lerei tudo nos jornais — concluiu sorrindo — qualquer que seja o resultado.

Bond agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. Ocorreu-lhe então uma última pergunta. Disse:

— A propósito, o Savage é de puxão simples ou duplo? Não terei oportunidade de verificar e talvez não haja muito tempo para experimentar quando aparecer o alvo.

— Puxão simples e gatilho muito sensível. Não encoste o dedo enquanto não estiver certo de tê-lo na mira. E fique a mais de trezentos metros se puder. Acho que aqueles homens também são muito bons. Não chegue muito perto.

Estendeu a mão para o trinco da porta. A outra mão descansou no ombro de Bond.

— Nosso comissário — disse — tem um lema: “Nunca mande um homem onde possa mandar uma bala.” Convém lembrar-se disso. Até a vista Comandante.

Bond passou a noite e a maior parte do dia seguinte no “KO-ZEE Motor Court”, perto de Montreal. Pagou adiantado três noites. Passou o dia cuidando de seu equipamento e amaciando as botas de alpinista de borracha mole que comprara em Ottawa. Comprou tabletes de glicose e um pouco de presunto defumado e pão, com os quais fez sanduíches. Comprou também um frasco grande de alumínio e encheu-o com três quartos de uísque e um quarto de café. Quando ficou escuro, jantou e dormiu um pouco. Depois, diluiu a tinta de nogueira e lavou todo o corpo com ela, até mesmo as raízes dos cabelos. Saiu parecendo um índio pele-vermelha de olhos cinzentos azulados. Pouco antes da meia-noite abriu silenciosamente a porta lateral que dava para o abrigo de automóvel, subiu no Plymouth e percorreu a última etapa para o sul até Frelighsburg.

O homem na garagem que ficava aberta a noite toda não estava tão sonolento como dissera o Coronel Johns.

— Vai caçar, senhor?

Nos Estados Unidos pode-se ir longe com lacônicos grunhidos. “Hum”, “nem” e “hã!” em suas várias modulações, juntamente com “claro”, ‘parece’, “é?” e “bolas!” servem para quase qualquer circunstância.

Bond, enfiando a tira de seu fuzil sobre o ombro, respondeu: — Hum-hum.

— Um homem apanhou sábado um belo castor acima de Flighgate Springs.

Bond disse com indiferença “É?”, pagou duas noites e saiu da garagem. Havia parado no fim da cidade e agora precisava apenas seguir a rodovia por uma centena de metros para encontrar a trilha que entrava no mato à sua direita. Depois de meia hora, a trilha acabou diante de uma maltratada casa de fazenda. Um cão acorrentado pôs-se a latir frenèticamente, mas não apareceu luz na casa. Bond ladeou-a e imediatamente encontrou o caminho na margem do córrego. Devia segui-lo por cinco quilômetros. Apressou o passo para afastar-se do cão. Quando cessaram os latidos, fez-se silêncio, o profundo silêncio de veludo das matas em uma noite parada. Era uma noite quente com uma lua cheia amarela que lançava através dos copados abetos luz suficiente para Bond seguir o caminho sem dificuldade. As solas acolchoadas e flexíveis das botas de alpinista eram maravilhosas para caminhar. Bond chegou à sua segunda curva e percebeu que estava fazendo um tempo bom. Mais ou menos às quatro horas, as árvores começaram a rarear e Bond logo estava caminhando por campos abertos, com as luzes dispersas de Franklin à sua direita. Cruzou uma estrada secundária alcatroada e chegou a um caminho mais largo que atravessava a mata, tendo à sua direita o pálido reflexo de um lago. Às cinco horas, já havia atravessado os negros rios das rodovias 108 e 120. Na última, havia uma tabuleta dizendo “ENOSBURG FALLS — 1 MILHA”. Agora estava na última etapa — uma pequena trilha de caçadores que subia quase a pique. Bem longe da rodovia, parou, descansou o fuzil e a mochila, acendeu um cigarro e queimou o esboço de mapa. Já havia um pálido clarão no céu e pequenos ruídos na floresta — o áspero e melancólico grito de um pássaro que não conhecia e o raspar de pequenos animais. Bond imaginou a casa no fundo do pequeno vale do outro lado da montanha à sua frente. Viu as janelas escuras com cortinas, os rostos amassados dos quatro homens que dormiam, o orvalho sobre o gramado e as ondas que se formavam na superfície cinzenta escura do lago. E ali, do outro lado da montanha, o executor estava chegando entre as árvores. Bond fechou o espírito a essa imagem, esmagou o resto de seu cigarro no chão e pôs-se em marcha.

Aquilo seria um monte ou uma montanha? Com que altura um monte se torna uma montanha? Por que não fabricavam alguma coisa com a casca prateada da bétula? Parece tão útil e valiosa. As melhores coisas da América são os esquilos e sopa de ostra. A noite realmente não cai, sobe. Quando a gente se senta no topo de uma montanha e observa o sol se pondo por trás da montanha oposta, a escuridão sobe do vale para a gente. Será que os pássaros algum dia perderão o medo do homem? Deve fazer séculos desde quando o homem matou um passarinho para alimentar-se nestas matas, mas os pássaros ainda têm medo. Quem foi esse Ethan Allen que comandou os Rapazes da Montanha Green de Vermont? Agora, nos motéis americanos, anunciam móveis Ethan Allen como uma atração. Por quê? Será que ele fazia móveis? As botas do Exército deviam ter solas como estas.

Com esses e outros pensamentos vadios, Bond subiu firmemente a encosta, afastando obstinadamente do espírito o pensamento dos quatro rostos adormecidos sobre travesseiros brancos.

O pico redondo ficava abaixo da linha das árvores e Bond nada podia ver do vale embaixo. Descansou e depois escolheu um carvalho, subiu nele e avançou por um galho grosso. Agora podia ver tudo — a vista interminável das montanhas Green estendendo-se em todas as direções até onde seus olhos alcançavam, bem para leste a bola dourada do sol começando a surgir gloriosamente e embaixo, seiscentos metros abaixo por uma longa e suave vertente de copas de ávores, interrompidas uma vez por uma larga faixa de campina, através de um espesso véu de nevoeiro, o lago, os gramados e a casa.

Bond deitou-se no galho e ficou observando a tira de pálidos raios de sol matutino rastejando para baixo em direção ao vale. Levou um quarto de hora para chegar ao lago e depois pareceu cobrir de uma vez o cintilante gramado e as úmidas lousas dos telhados. Depois, o nevoeiro dissipou--se rapidamente sobre o lago e a área do alvo, lavada, brilhante e nova, ficou esperando como um palco vazio.

Bond tirou a mira telescópica do bolso e examinou a cena centímetro por centímetro. Em seguida inspecionou o terreno em declive abaixo de si e calculou as distâncias. Da beirada da campina, que seria seu único campo aberto de fogo, a menos que descesse através do último cinturão de árvores até a beira do lago, haveria uma distância de uns quinhentos metros até o terraço e o pátio, e uns trezentos metros até o trampolim e a beira do lago. Que fazia essa gente com seu tempo? Qual era sua rotina? Tomava banho no lago alguma vez? Ainda estava bastante quente. Bem, havia o dia inteiro. Se até o fim do dia não tivessem descido ao lago, ele teria de tentar a sorte no pátio com quinhentos metros de distância. Mas não seria uma boa probabilidade com um fuzil estranho. Deveria descer diretamente até a beirada da campina? Era uma campina larga, talvez quinhentos metros a percorrer sem cobertura. Talvez fosse melhor deixar isso para trás antes que o pessoal da casa acordasse. Que hora se levantaria essa gente?

Como para dar-lhe resposta, uma persiana branca ergueu-se em uma das janelas menores à esquerda do bloco principal. Bond pôde ouvir distintamente o estalido final das molas de enrolar. Lago do Eco! Claro. Funcionaria o eco em ambos os sentidos? Precisaria ter o cuidado de não quebrar galhos e ramos? Provavelmente não. Os sons do vale refletiam-se da superfície da água para cima. Mas era preciso não correr riscos.

Uma fina coluna de fumaça começou a subir reta de uma das chaminés à esquerda. Bond pensou no toucinho com ovos que logo estaria frigindo. E no café quente. Deixou-se escorregar para trás pelo galho e desceu ao chão. Comeria alguma coisa, fumaria seu último cigarro seguro e desceria para o ponto de tiro.

O pão enrascava na garganta de Bond. A tensão estava crescendo nele. Em sua imaginação já podia ouvir o profundo latido do Savage. Podia ver a bala preta preguiçosamente, como uma abelha voando devagar, descer para o vale em direção a um quadrado de pele cor de rosa. Fazia um leve estalido quando ao bater. A pele afundava, abria-se e depois se fechava de novo, deixando um pequeno orifício com orlas pisadas. A bala aprofundava-se, sem pressa, em direção ao coração pulsante — os tecidos e os vasos sanguíneos abrindo-se obedientemente para deixá-la passar. Quem era esse homem ao qual ia fazer isso? Que fizera ele a Bond? Bond baixou os olhos pensativamente para o dedo com que apertava o gatilho. Dobrou-o vagarosamente, sentindo em sua imaginação a curva fria do metal. Quase automaticamente, sua mão esquerda estendeu-se para o frasco. Levou-o aos lábios e inclinou a cabeça para trás. O uísque com café desceu queimando por sua garganta. Tornou a tampar o frasco e esperou que o calor do uísque chegasse ao estômago. Depois, levantou-se devagar, espreguiçou-se e bocejou profundamente. Apanhou o fuzil e pendurou-o no ombro. Olhou em roda com cuidado para marcar o lugar quando voltasse a subir o monte e começou a descer lentamente entre as árvores.

Agora não havia trilha e tinha de procurar seu caminho vagarosamente, observando o chão para evitar galhos secos.

As árvores agora estavam mais misturadas. Entre os abetos e bétulas prateados havia de vez em quando um carvalho, uma faia, um plátano e, aqui e acolá, os resplandescentes fogos de Bengala de um bordo em roupagem de outono. Embaixo das árvores havia a vegetação esparsa de suas mudinhas e muitos troncos secos derrubados por antigos furacões. Bond desceu cuidadosamente, com os pés fazendo pouco barulho entre as folhas e as pedras cobertas de musgo, mas logo a floresta tomou conhecimento dele e começou a transmitir a notícia. Uma grande corça, com dois filhotes semelhantes a Bambi, avistou-o primeiro e afastou-se galopando com um barulho aterrador. Um brilhante pica-pau de cabeça vermelha voou à sua frente, gritando cada vez que Bond se aproximava. E havia sempre os esquilos, erguendo-se sobre as patas traseiras, levantando os pequenos focinhos por cima dos dentes quando tentavam apanhar seu cheiro e depois disparando em direção a seus buracos entre as pedras com uma barulhada que parecia encher a mata de susto. Bond gostaria que eles não tivessem medo, que soubessem não ser para eles a arma que levava, mas a cada alarma ficava pensando se, quando chegasse à beirada da campina, não veria lá embaixo no gramado um homem com binóculos observando os pássaros assustados que fugiam entre as copas das árvores.

Contudo, quando parou atrás de um último e grosso carvalho e olhou para baixo através da larga campina, na direção do cinturão final de árvores, do lago e da casa, nada havia mudado. Todas as outras persianas ainda estavam baixadas e o único movimento era a fina pluma de fumaça.

Eram oito horas. Bond olhou para as árvores além da campina, procurando uma que servisse ao seu propósito. Encontrou-a — um grande bordo, resplandecente de castanho e vermelho. Combinava bem com sua roupa, seu tronco era bastante grosso e ficava um pouco para trás da parede de abetos. De lá, em pé, poderia ver tudo quanto precisava do lago e da casa. Bond ficou um momento parado, planejando o trajeto que faria para descer através do capim cerrado e das varas de ouro da campina. Teria de rastejar de barriga e devagar. Uma ligeira brisa soprou e agitou a campina. Se continuasse soprando para disfarçar sua passagem!

Em algum lugar não muito longe, à esquerda da orla das árvores, um galho estalou. Estalou uma vez decididamente e depois não houve mais barulho. Bond deixou-se cair de joelhos, com as orelhas fitas e os sentidos vigilantes. Ficou assim durante dez mintos, uma sombra marrom imóvel contra o largo tronco do carvalho.

Quadrúpedes e pássaros não quebram galhos. Madeira seca deve representar para eles um sinal especial de perigo. Pássaros nunca pousam sobre galhos que se quebrem sob eles e mesmo animais grandes como um veado com chifres e quatro cascos move-se silenciosamente na floresta a menos que esteja em fuga. Será que aquela gente tinha guardas avançados? Delicadamente, Bond tirou o fuzil do ombro e pôs o polegar sobre a trava. Se o pessoal ainda estivesse dormindo, um único tiro no alto da mata, talvez fosse atribuído a um caçador. Mas, então, entre eles e mais ou menos o lugar onde estalara o galho, apareceram dois veados que galoparam sem pressa através da campina para a esquerda. É verdade que pararam duas vezes a fim de olhar para trás, mas de cada vez comeram alguns bocados de capim antes de continuar em direção à franja distante da mata de baixo. Não demonstravam susto nem pressa. Certamente tinham sido eles a causa do estalo do galho. Bond suspirou aliviado. Isso estava resolvido. E agora era atravessar a campina.

Rastejar quinhentos metros através de capim alto e escondedor é um trabalho longo e cansativo. Machuca os joelhos, as mãos e os cotovelos, nada se avista senão capim e caules de flores, poeira e pequenos insetos entram nos olhos, no nariz e na garganta da gente. Bond esforçou-se por colocar certo suas mãos e manter uma velocidade pequena e uniforme. A brisa continuava soprando e seu avanço através do capim certamente não poderia ser notado da casa.

De cima, parecia que um grande animal — talvez um castor ou uma marmota — estivesse descendo pela campina. Não, não podia ser um castor. Castores sempre andam aos pares. No entanto talvez pudesse ser um castor — pois agora, em um lugar mais alto na campina, alguma coisa, alguma outra pessoa entrara no capim alto e, atrás e acima de Bond, uma segunda esteira estava sendo aberta no profundo mar de capim. Parecia que, fosse o que fosse, estava vagarosamente alcançando Bond e que as duas esteiras convergiam exatamente para a fileira seguinte de árvores.

Bond rastejava e escorregava firmemente, parando apenas para enxugar o suor e a poeira do rosto e, de tempos a tempos, para verificar se avançava na direção do bordo. Mas quando estava bastante perto para que a fileira de árvores o escondesse da casa, talvez a seis metros do bordo, parou e deitou-se por um momento, fazendo massagem nos joelhos e descansando os pulsos para a última etapa.

Nada ouviu que o avisasse e, quando o sussurro baixo e ameaçador saiu do capim cerrado apenas alguns pés à sua esquerda, virou a cabeça tão brucamente para que as vértebras do pescoço fizeram um barulho de coisa que se quebra.

— Se fizer um movimento, eu o matarei.

Era uma voz de mulher, mas uma voz que revelava ferozmente a intenção de cumprir a ameaça.

Bond, com o coração batendo forte, ergueu os olhos para a haste da flecha de aço cuja ponta triangular azul separava os capins talvez a meio metro de sua cabeça.

O arco estava inclinado, afundando no capim. As juntas dos dedos morenos que seguravam o arco abaixo da ponta da seta estavam brancas. Depois havia a extensão do aço cintilante e, por trás das penas de metal, escondidos em parte pelas hastes de capim oscilantes, havia lábios sinistramente cerrados embaixo de dois ferozes olhos cinzentos contra um fundo de pele queimada pelo sol e úmida de suor. Isso foi tudo quanto Bond pôde perceber através do capim. Quem seria? Um dos guardas? Bond tornou a juntar saliva na boca seca e começou vagarosamente a estender a mão direita, a mão fora da vista, na direção da cintura e da arma. Disse baixinho:

— Quem é você?

A ponta da flecha moveu-se ameaçadoramente. — Pare essa mão direita senão enfio isto em seu ombro. Você é um dos guardas?

— Não. E você?

— Não seja estúpido. Que está fazendo aqui?

Diminuíra a tensão na voz, mas ainda era dura e desconfiada. Havia um traço de sotaque — que seria? Escocês? Galense?

Era tempo de pôr-se em pé de igualdade. Havia algo de particularmente mortal na ponta azul da flecha. Bond disse calmamente:

— Ponha de lado esse arco e flecha, Robina. Então lhe direi.

— Você jura que não pega a arma?

— Está bem. Mas, pelo amor de Deus, vamos sair do meio deste campo.

Sem esperar pela resposta, Bond ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e começou a rastejar de novo. Agora precisava tomar a iniciativa e conservá-la. Fosse quem fosse essa maldita mulher, precisava livrar-se dela rápida e discretamente antes que começasse o tiroteio. Santo Deus, como se já não tivesse bastante coisa em que pensar!

Bond chegou ao tronco da árvore. Levou-se cuidadosamente e deu um rápido olhar através das folhas resplandescentes. A maioria das persianas estava levantada. Duas criadas de cor, movendo-se devagar, punham uma grande mesa de desjejum no pátio. Bond tinha razão. O campo de visão sobre as copas das árvores que agora desciam bruscamente em direção ao lago era perfeito. Bond tirou o fuzil e a mochila, e sentou-se com as costas contra o tronco da árvore. A moça saiu da beirada do capinzal e ficou em pé embaixo do bordo. Conservou-se à distância. A flecha ainda estava segura no arco, mas este não estava retesado. Os dois se olharam cautelosamente.

A moça parecia uma bela e desgrenhada dríade com com blusa e calça esfarrapadas. A blusa e a calça eram verde-oliva, amassadas e manchadas de lama e sujeira, rasgadas em alguns lugares. A moça prendera seus cabelos loiros pálidos com varas de ouro para esconder seu brilho enquanto rastejava pela campina. A beleza de seu rosto era selvagem e quase animal, com uma boca larga e sensual, maçãs altas e desdenhosos olhos cinzentos prateados. Havia sangue de arranhões em seus antebraços e em uma das faces. Uma escoriação inchara e escurecera um pouco a maçã da mesma face. As pernas de metal de uma aljava cheia de flechas apareciam por cima de seu ombro esquerdo. Além do arco, não levava senão uma faca de caça na cintura e, no outro quadril, uma pequena sacola de lona marrom que presumivelmente continha seus alimentos. Parecia uma pessoa bela e perigosa, que conhecia o campo selvagem e as florestas, não tendo medo deles. Devia andar sozinha através da vida e ter pouca necessidade da civilização.

Bond achou-a maravilhosa. Sorriu-lhe. Disse baixinho, em tom tranquilizador:

— Suponho que seja Robina Hood. Meu nome é James Bond.

Apanhou seu frasco, desparafusou a tampa e estendeu-o para ela.

— Sente-se e tome um gole disto. É aguardente e café. Tenho também um pouco de charque. Ou vive de orvalho e frutas silvestres?

Ela se aproximou um pouco mais e se sentou a um metro dele. Sentava-se como uma pele-vermelha, com os joelhos bem abertos e os calcanhares enfiados por baixo das coxas. Estendeu a mão para o frasco e bebeu avidamente com a cabeça jogada para trás. Devolveu o frasco sem fazer comentários. Não sorriu. Disse “Obrigada” relutantemente, tomou sua flecha e jogou-a sobre as costas para juntar-se às outras que estavam na aljava. Observando-o cuidadosamente, disse:

— Suponho que seja um caçador furtivo. A temporada de caça de veado só se abre dentro de três semanas. Mas você não encontraria veado algum aqui embaixo. Eles só descem tanto durante a noite. Durante o dia, você devia subir mais, muito mais. Se quiser, eu lhe direi onde existem alguns. Um grande grupo. O dia já está um pouco avançado, mas ainda poderá apanhá-los. Eles estão contra o vento e você parece saber caminhar furtivamente. Não faz muito barulho.

— É isso que está fazendo aqui... caçando? Deixe-me ver sua licença.

A blusa tinha no peito bolsos abotoados. Sem protestar, ela tirou de um deles o papel branco e o estendeu para Bond.

A licença fora emitida em Bennington, Vermont. Estava em nome de Judy Havelock. Havia uma lista de tipos de permissão, na qual estavam assinalados os de “caça para não residente” e “arco e flecha para não residente”. A taxa fora de 18,50 dólares pagáveis ao Serviço de Pesca e Caça, em Montpelier, Vermont. Judy Havelock dera a idade de vinte e cinco anos e Jamaica como local de nascimento.

“Deus Todo-Poderoso!” pensou Bond, ao devolver o documento. Então era essa a realidade! Disse com simpatia e respeito:

— Você é uma garôta maravilhosa, Judy. Da Jamaica aqui é uma longa caminhada. E vai enfrentá-la com seu arco e flecha? Sabe o que dizem na China? “Antes de partir para a vingança, cave duas sepulturas.” Você fez isso ou espera sair-se bem?

A moça fitava-o.

— Quem é você? — perguntou. — Que está fazendo aqui? Que sabe a respeito disso?

Bond refletiu. Só havia um meio de sair dessa confusão e era aliar-se à moça. Que negócio dos diabos! Disse resignadamente:

— Já lhe disse meu nome. Fui mandado de Londres.. . bem... pela Scotland Yard. Sei tudo sobre suas encrencas. Vim aqui acertar certas contas e fazer com que você não fosse incomodada por essa gente. Em Londres, pensamos que o homem que está naquela casa poderia começar a fazer pressão sobre você, devido à sua propriedade, e não há outra maneira de impedi-lo.

A moça disse rancorosamente:

— Eu tinha um pônei favorito, um Palomino. Há três semanas foi envenenado. Depois, mataram a tiro meu alsaciano. Eu o criara desde pequenino. Em seguida, chegou uma carta, que dizia: “A morte tem muitas mãos. Uma dessas mãos está agora erguida sobre você.” Eu devia pôr um anúncio no jornal, na coluna pessoal, em determinado dia. Devia dizer apenas: “Obedecerei. Judy.” Procurei a polícia. Tudo quanto fizeram foi oferecer-me proteção. Achavam que era gente de Havana. Nada mais podiam fazer. Por isso, fui a Havana, hospedei-me no melhor hotel e joguei forte nos cassinos.

Com um débil sorriso, prosseguiu:

— Eu não estava vestida assim. Usava meus melhores vestidos e as jóias da família. Houve homens que me cortejaram. Fui amável com eles. Precisava ser. E durante todo o tempo eu fazia perguntas. Fingi que estava à procura de emoções, que desejava ver o submundo e alguns bandidos de verdade. Finalmente fiquei sabendo a respeito desse homem. — fez um gesto em direção à casa. — Havia saído de Cuba. Batista descobrira suas falcatruas ou coisa semelhante. Falaram-me muito a respeito dele e, por fim, conheci um homem, uma espécie de policial de alta categoria, que me contou todo o resto depois que eu — hesitou um pouco, evitando os olhos de Bond — depois que eu fui boazinha com ele. fez uma pausa e continuou:

— Deixei Havana e fui para os Estados Unidos. Eu havia lido alguma coisa sobre Pinkerton, a agência de detetives. Procurei-a e paguei para que descobrisse o endereço desse homem.

Virou as palmas das mãos para cima sobre o colo. Agora seus olhos eram desafiadores.

— Isso é tudo — concluiu.

— Como chegou até aqui?

— Vim de avião até Bennington. Depois andei. Quatro dias. Atravessei as montanhas Green. Evitei os caminhos onde havia gente. Estou acostumada com coisas dessa espécie. Nossa casa fica nas montanhas da Jamaica. São muito mais difíceis do que estas. E nas montanhas de lá existe mais gente, camponeses. Aqui parece que ninguém anda a pé. Todos viajam de automóvel.

— E agora o que vai fazer?

— Vou matar von Hammerstein e voltar a pé para Bennington.

A voz era tão casual como se tivesse dito que ia colher uma flor silvestre.

Do fundo do vale veio o som de vozes. Bond levantou-se e deu um rápido olhar através dos ramos. Três homens e duas mulheres haviam saído para o pátio. Conversando e rindo, puxaram cadeiras e sentaram-se à mesa. Na cabeceira da mesa, entre as duas mulheres, foi deixado um lugar vazio. Bond apanhou sua mira telescópica e olhou através dela. Os três homens eram muito pequenos e morenos. Um deles, que sorria o tempo todo e cujas roupas pareciam mais limpas e elegantes, devia ser Gonzales. Os dois outros eram tipos grosseiros de camponês. Estavam sentados juntos na ponta da mesa ablonga e não tomavam parte na conversa. As mulheres eram morenas escuras. Pareciam prostitutas cubanas baratas. Usavam trajes de banho brilhantes e muitas jóias de ouro. Riam e tagarelavam como bonitos macaquinhos. As vozes eram quase suficientemente claras para ser entendidas, mas falavam em espanhol.

Bond sentiu a moça perto de si. Ela estava em pé um metro atrás dele. Entregando-lhe a mira telescópica, disse:

— O homenzinho bem arrumado chama-se Major Gonzales. Os dois na ponta da mesa são pistoleiros. Não sei quem são as mulheres. Von Hammerstein ainda não apareceu.

Ela lançou um rápido olhar através da lente e devolveu-a sem fazer comentários. Bond ficou pensando se ela compreendera que havia olhado para os assassinos de seu pai e sua mãe.

As duas mulheres haviam-se virado e estavam olhando para a porta da casa. Uma delas disse algo que poderia ser um cumprimento. Um homem baixo, atarracado, quase nu, saiu para o sol. Caminhou silenciosamente ao lado da mesa até a beirada do terraço calçado de pedras e voltado para o gramado, e executou um programa de cinco minutos de exercício físico.

Bond examinou o homem minuciosamente. Tinha mais ou menos um metro e sessenta, com ombros e quadris de pugilista, mas a barriga estava começando a crescer. Um tapete de cabelos pretos cobria seu peito e seus ombros. Seus braços e pernas também eram cobertos de cabelos. Em contraste, não havia um fio no rosto e na cabeça. O crânio era de um cintilante amarelo esbranquiçado, com uma profunda marca na parte de trás, que poderia ter sido um ferimento ou a cicatriz de uma trepanação. A estrutura óssea do rosto era a do oficial prussiano convencional — quadrada, dura e repelente — mas os olhos por baixo da testa sem sobrancelhas eram muito juntos e de expressão suína. A boca grande tinha lábios horríveis — grossos, úmidos e vermelhos. O homem não vestia senão uma tira de pano preto não maior que um suspensório atlético, em volta da barriga e um grande relógio de ouro com pulseira de ouro. Bond passou a mira para a moça. Sentia-se aliviado. Von Hammerstein parecia exatamente tão desagradável quanto constava do dossiê de M.

Bond observou a fisionomia da moça. A boca parecia sombria, quase cruel, enquanto olhava para o homem que viera matar. Que devia fazer com ela? Da presença dela não podia prever senão encrencas. Poderia mesmo interferir com seus planos e insistir em fazer algum papel estúpido com seu arco e flecha. Bond decidiu-se. Não podia dar-se ao luxo de assumir riscos. Uma leve batida na base do crânio, e poderia amordaçá-la e amarrá-la até tudo estar acabado. Bond estendeu lentamente a mão para o cabo da automática.

Serenamente a moça recuou alguns passos. Com igual serenidade, curvou-se, pôs a mira no chão e apanhou seu arco. Estendeu a mão para as costas, pegou uma flecha e colocou-a descuidadamente no arco. Depois ergueu os olhos para Bond e disse calmamente:

— Não pense em fazer bobagem. E conserve-se à distância. Eu tenho o que chamam de visão de ângulo largo. Não andei tanto para vir até aqui e um tira londrino de pé chato dar-me uma pancada na cabeça. Não posso errar com isto a cinquenta metros e já tenho matado pássaros voando a cem metros. Não quero enterrar uma flecha em sua perna, mas é o que farei se interferir.

Bond amaldiçoou sua indecisão anterior. Disse ferozmente:

— Não seja tola. Largue esse maldito negócio. Isto é trabalho de homem. Como, diabo, pensa que pode enfrentar quatro homens com arco e flecha.

Os olhos da moça cintilavam obstinadamente. Recuou o pé direito e assumiu a posição de disparo. Com os lábios apertados e ar colérico, disse:

— Vá para o inferno. E não se meta nisto. Foi minha mãe e meu pai que eles mataram. Não os seus. Eu já estava aqui há um dia e uma noite. Sei o que eles fazem e sei como apanhar Hammerstein. Não me interesso pelos outros. Sem ele, nada valem. Agora, vamos resolver.

Retesou um pouco o arco, com a flecha apontada para os pés de Bond, e prosseguiu:

— Ou faz o que eu digo ou vai arrepender-se. E não pense que estou brincando. Esta é uma coisa particular que jurei fazer e ninguém vai impedir-me. E então? — perguntou ela, sacudindo imperiosamente a cabeça.

Bond avaliou sombriamente a situação. Olhou de alto a baixo a jovem ridiculamente bela e selvagem. Era boa e dura cepa inglesa temperada com a quente pimenta de uma infância nos trópicos. Mistura perigosa. Ela chegara a um estado de histeria controlada. Podia ter certeza de que ela não hesitaria em pô-lo fora de ação. E absolutamente não tinha defesa. A arma dela era silenciosa. A sua alertaria toda a vizinhança. Agora a única esperança era trabalhar com ela. Dar-lhe parte do trabalho e fazer o resto. Disse calmamente:

— Escute, Judy. Se insiste em entrar neste negócio, o melhor é fazermos as coisas juntos. Então talvez possamos liquidar a questão e continuar vivos. Essa espécie de coisa é minha profissão. Recebi ordem para fazer isso — de um íntimo amigo de sua família, se deseja saber. E tenho a arma apropriada. Com alcance pelo menos cinco vezes maior que o da sua. Poderia tentar com boa probabilidade matá-lo agora, no pátio. Mas as probabilidades não são inteiramente boas. Alguns deles estão com roupas de banho. Vão descer para o lago. Então farei o que tenho a fazer. Você poderá dar fogo de apoio — disse, para concluir desajeitadamente: — Será um grande auxílio.

— Não — respondeu ela, sacudindo decididamente a cabeça. — Sinto muito. Você poderá dar o que chama de fogo de apoio, se quiser. Para mim tanto faz que dê ou não. Você tem razão quanto ao banho. Ontem todos eles desceram para o lago mais ou menos às onze horas. Hoje está igualmente quente e irão lá de novo. Eu o acertarei da beirada das árvores na margem do lado. Encontrei um lugar perfeito ontem à noite. Os guarda-costas levam suas armas — uma espécie de metralhadoras portáteis. Não tomam banho. Ficam sentados montando guarda. Sei o momento apropriado para apanhar von Hammerstein e estarei bem longe do lago antes que eles percebam o que aconteceu. Garanto-lhe que já planejei tudo. E então? Não posso esperar mais. Eu já devia estar no meu lugar. Sinto muito, mas se não dizer sim imediatamente não haverá alternativa.

A moça ergueu o arco alguns centímetros. Bond pensou: “Que vá para o inferno esta maldita garota.” Em voz alta, disse encolerizado:

— Muito bem. Mas garanto-lhe que se você escapar desta vai receber uma sova tão grande que não poderá sentar-se durante uma semana.

Encolheu os ombros e acrescentou com resignação:

— Pode ir. Eu cuidarei dos outros. Se escapar, encontre-me aqui. Senão, eu irei recolher os pedaços.

A moça afrouxou o arco. Disse em tom indiferente:

— Agrada-me que você esteja sendo sensato. Estas flechas são difíceis de arrancar. Não se preocupe comigo. Mas fique bem escondido e não deixe o sol bater nessa sua lente.

Deu a Bond o sorriso rápido, compassivo e satisfeito da mulher que disse a última palavra, virou-se e começou a descer entre as árvores.

Bond observou a esbelta figura verde escura até desaparecer entre os troncos de árvores. Depois apanhou impacientemente a mira telescópica e voltou a seu ponto de observação. Que ela fosse para o inferno! Era tempo de tirar da ideia a estúpida cadelinha e concentrar-se no trabalho. Haveria alguma outra coisa que pudesse ter feito — algum outro meio de lidar com o caso? Agora se comprometera a esperar que ela disparasse o primeiro tiro. Isso era mau. Mas se disparasse primeiro não poderia saber o que faria a esquentada cadelinha. O pensamento de Bond deliciou-se brevemente com a ideia do que faria à moça depois de tudo acabado. Houve então um movimento na frente da casa. Bond pôs de lado os excitantes pensamentos e ergueu sua mira.

As coisas do desjejum estavam sendo tiradas pelas duas criadas. Não havia sinal das mulheres ou dos pistoleiros. Von Hammerstein estava deitado de costas entre as almofadas de um divã lendo um jornal e dirigindo ocasionais comentários ao Major Gonzales, que estava escarranchado em uma cadeira rústica de ferro perto de seus pés. Gonzales fumava um charuto e, de vez em quando, punha delicadamente uma mão sobre a boca, inclinava-se de lado e cuspia um pedaço de folha de fumo no chão. Bond não podia ouvir o que von Hammerstein dizia, mas seus comentários eram em inglês e Gonzales respondia em inglês. Bond olhou para seu relógio. Eram dez e meia. Como a cena parecia estática, Bond sentou-se com as costas contra a árvore e examinou o Savage com minucioso cuidado. Ao mesmo tempo, pensava no que teria de fazer com ele dentro em pouco.

Não agradava a Bond o que ia fazer. Desde que saíra da Inglaterra, precisara lembrar-se constantemente que espécie de homens eram esses. O assassínio dos Havelocks fora um crime particularmente horrível. Von Hammerstein e seus pistoleiros eram homens particularmente horríveis, que muitas pessoas no mundo provavelmente teriam prazer em destruir, como pretendia fazer aquela garota, por vingança particular. Para Bond, porém, era diferente. Não tinha motivos particulares contra eles. Isso era simplesmente seu trabalho — como matar ratos era trabalho do funcionário incumbido de combater pragas. Era o executor público nomeado por M para representar a coletividade. Em certo sentido, argumentou Bond consigo mesmo, esses homens eram tão inimigos de sua pátria quanto os agentes do SMERSH ou de qualquer outro serviço secreto inimigo. Haviam declarado e travado guerra contra o povo britânico em solo britânico e no momento estavam planejando outro ataque. O espírito de Bond procurava mais argumentos para incentivar sua determinação. Eles haviam matado o pônei da moça e seu cão com dois tapas, como se fossem moscas. Eles...

O estrondo de uma rajada de arma automática no vale fez Bond pôr-se em pé. Havia levantado o fuzil e estava-se preparando para mirar quando houve uma segunda rajada. O desagradável barulho foi seguido por risadas e palmas. O martim-pescador, um punhado de machucadas plumas azuis e cinzentas, caiu no gramado e ficou-se agitando. Von Hammerstein, com fumaça ainda saindo da boca de sua metralhadora portátil, deu alguns passos, abaixou calcanhar nu e girou bruscamente. Levantou de novo o calcanhar e limpou-o na grama ao lado do monte de plumas. Os outros permaneciam em roda, rindo e aplaudindo obsèquiosamente. Os lábios vermelhos de von Hammerstein sorriam de prazer. Disse alguma coisa que incluía a palavra “atirador”. Entregou a arma a um dos pistoleiros e enxugou as mãos em seu gordo traseiro. Deu uma ordem ríspida às duas mulheres, que correram para dentro da casa. Depois, seguido pelos outros, virou-se e desceu vagarosamente em direção ao lago. As mulheres tornaram a sair correndo da casa. Cada uma delas carregava uma garrafa vazia de champanha. Tagarelando e rindo, desceram correndo atrás dos homens.

Bond preparou-se. Prendeu a mira telescópica no cano do Savage e tomou sua posição encostado no tronco da árvore. Encontrou na madeira uma saliência para descansar a mão esquerda, acertou a mira para trezentos metros e mirou bem para o grupo de pessoas à margem do lago. Depois, segurando frouxamente o fuzil, inclinou-se contra o tronco e observou a cena.


Ia haver alguma espécie de competição de tiro entre os dois pistoleiros. Enfiaram pentes novos em suas armas e, por ordem de Gonzales, colocaram-se sobre a parede de pedra lisa da represa, a uns seis metros um do outro, de ambos os lados do trampolim. Ficaram com as costas voltadas para o lago e as armas de prontidão.

Von Hammerstein tomou seu lugar na beira do gramado, balançando uma garrafa de champanha em cada mão. As mulheres ficaram atrás dele, tapando as orelhas com as mãos. Houve excitada tagarelice em espanhol e risadas, das quais os dois pistoleiros não participaram. Através da mira telescópica, seus rostos denotavam intensa concentração.

Von Hammerstein gritou uma ordem e fez-se silêncio. Balançou os dois braços para trás e contou: “Un... dos... três.” Com o “três”, jogou as garrafas de champanha para o ar sobre o lago.

Os dois homens viraram-se como fantoches, com as armas encostadas nos quadris. Quando completaram a volta, dispararam. O estrondo das armas rompeu a pacífica cena e ecoou na água. Pássaros voaram das árvores gritando e alguns pequenos galhos cortados pelas balas caíram no lago. A garrafa da esquerda desintegrou-se, transformando-se em poeira, e a da direita, atingida por uma única bala, dividiu-se em dois pedaços um segundo depois. Os fragmentos de vidro fizeram pequenos chapes no meio do lago. O pistoleiro da esquerda havia vencido. As nuvens de fumaça formadas sobre os dois juntaram-se e foram sopradas sobre o gramado. Os ecos retumbaram e silenciaram suavemente. Os dois pistoleiros caminharam ao longo da parede até o gramado, o de trás com aparência soturna, o da frente com um sorriso zombeteiro no rosto. Von Hammerstein chamou as duas mulheres para a frente. Elas se aproximaram relutantemente, arrastando os pés e espichando o beiço. Von Hammerstein disse alguma coisa, fez uma pergunta ao vencedor. O homem acenou em direção à mulher da esquerda. Esta olhou soturnamente para ele. Gonzales e Hammerstein riram. Hammerstein estendeu a mão e deu um tapa no traseiro da mulher, como se ela fosse uma vaca. Disse alguma coisa da qual Bond apanhou a palavras “una noche”. A mulher ergueu os olhos para ele e inclinou a cabeça obedientemente. O grupo desfez-se. A mulher oferecida como prêmio deu uma rápida corrida e mergulhou no lago, talvez para fugir do homem que conquistara seus favores, e a outra mulher seguiu-a. Nadaram através do lago gritando furiosamente uma para a outra. O Major Gonzales tirou o paletó, estendeu-o na grama e sentou-se em cima. Tinha um coldre de ombro que deixava ver o cabo de uma automática de calibre médio. Observou von Hammerstein tirar o relógio e caminhar ao longo da parede da represa em direção ao trampolim. Os pistoleiros ficaram mais longe do lago e também observaram von Hammerstein e as duas mulheres, que estavam agora no meio do pequeno lago, nadando para a outra margem. Os pistoleiros permaneciam imóveis com as armas descansando nos braços e de vez em quando um deles olhava em roda do jardim ou na direção da casa. Bond pensou que havia muita razão para von Hammerstein ter conseguido permanecer vivo por tanto tempo. Era um homem que se dava a grande trabalho para conseguir isso.

Von Hammerstein havia chegado ao trampolim. Andou até a ponta e ficou olhando para a água embaixo. Bond sentiu-se tenso e soltou a trava. Seus olhos eram duas fendas ardentes. Agora seria a qualquer momento. Seu dedo formigava na guarda do gatilho. Que diabo estaria a moça esperando?

Von Hammerstein decidiu-se. Dobrou ligeiramente os joelhos. Os braços balançaram-se para trás. Através da mira telescópica, Bond pôde ver os grossos cabelos sobre suas omoplatas tremerem sob uma brisa que fez uma rápida ondulação na superfície do lago. Agora seus braços estavam indo para a frente e houve uma fração de segundo em que seus pés já haviam deixado o trampolim e ele ainda estava em posição quase vertical. Nessa fração de segundo, houve um lampejo prateado contra suas costas e depois o corpo de von Hammerstein caiu na água em um belo mergulho.

Gonzales estava em pé, olhando indeciso para a turbulência provocada pelo mergulho. Sua boca estava aberta, esperando. Não tinha certeza se vira ou não alguma coisa. Os dois pistoleiros estavam mais seguros. Tinham suas armas preparadas. Agacharam-se, olhando de Gonzales para as árvores por trás da represa, esperando uma ordem.

Vagarosamente, a turbulência cessou e as pequenas ondas espalharam-se pelo lado. O mergulho fora fundo.

Bond tinha a boca seca. Passou a língua nos lábios, ao mesmo tempo que esquadrinhava o lago com sua lente. Vislumbrou algo cor de rosa bem no fundo. A mancha subiu vagarosamente. O corpo de von Hammerstein apareceu na superfície. Estava de cabeça para baixo, girando vagarosamente. Uns trinta centímetros de haste de metal saía debaixo da omoplata esquerda e o sol cintilava nas penas de alumínio.

O Major Gonzales gritou uma ordem e as duas metralhadoras portáteis rugiram, soltando chamas. Bond pôde ouvir o barulho das balas entre as árvores embaixo dele. O Savage estremeceu contra seu ombro e o homem da direita caiu vagarosamente de frente. Agora o outro homem estava correndo para o lago, com a arma ainda disparando dos quadris em rajadas curtas. Bond disparou e errou. Disparou de novo... As pernas do homem dobraram-se, mas seu impulso ainda o levou para a frente. Caiu na água. O dedo apertado continuou disparando a arma sem mira para cima, em direção ao céu azul, até que a água emperrou o mecanismo.

Os segundos desperdiçados com o tiro adicional haviam dado ao Major Gonzales uma oportunidade. Colocara-se por trás do corpo do primeiro pistoleiro e agora abriu fogo contra Bond com a metralhadora portátil. Quer tivesse visto Bond ou estivesse apenas disparando na direção dos lampejos do Savage, fazia bonito. Balas penetraram zunindo no bordo e lascas de madeira voaram sobre o rosto de Bond. Bond disparou duas vezes. O cadáver do pistoleiro sacudiu-se. Muito baixo. Bond tornou a carregar e mirou de novo. Um galho quebrado caiu sobre o fuzil. Sacudiu o fuzil e derrubou o galho, mas agora Gonzales estava em pé, correndo para o conjunto de móveis de jardim. Jogou a mesa de ferro de lado e colocou-se atrás dela, quando dois tiros rápidos de Bond arrancaram pedaços do gramado em seus calcanhares. Com essa sólida cobertura, seus disparos tornaram-se mais precisos. Rajada após rajada, ora da direita, ora da esquerda da mesa, acertaram no bordo, enquanto os tiros isolados de Bond batiam no ferro branco ou se perdiam através do gramado. Não era fácil acertar a mira telescópica rapidamente de um lado para outro da mesa e Gonzales era esperto em suas mudanças. Repetidas vezes, suas balas bateram no tronco ao lado ou acima de Bond. Este mergulhou e correu rapidamente para a direita. Dispararia em pé, da campina aberta, e apanharia Gonzales desprevenido. Mas quando corria viu Gonzales sair rapidamente de trás da mesa. ele também decidira pôr fim ao impasse. Estava correndo para a represa a fim de entrar na mata e subir atrás de Bond. Bond ficou em pé e ergueu o fuzil. Quando o fez, Gonzales também o avistou. Ajoelhou-se sobre a parede da represa e disparou uma rajada contra Bond. Bond permaneceu em pé gelado, ouvindo as balas. Os fios cruzados da mira centralizavam-se no peito de Gonzales. Bond apertou o gatilho. Gonzales rodopiou. Chegou quase a ficar em pé. Ergueu os braços e, com a arma ainda lançando balas para o céu, mergulhou na água desajeitadamente com o rosto para a frente.

Bond ficou observando para ver se o rosto subia à superfície. Não subiu. Vagarosamente baixou o fuzil e enxugou o rosto com as costas do braço.

Os ecos, os ecos de tanta morte, repercutiram através do vale. Bem longe, à direita, entre as árvores além do lago, Bond viu de relance as duas mulheres correndo em direção à casa. Logo estariam chamando os patrulheiros do Estado, se as criadas já não tivessem feito isso. Era tempo de pôr-se em marcha.

Bond voltou caminhando através da campina até o bordo solitário. A moça estava lá. Estava em pé encostada no tronco da árvore, com as costas voltadas para Bond. Sua cabeça estava afundada nos braços contra a árvore. Sangue escorria por seu braço direito e gotejava no chão. Havia uma mancha escura no alto da manga da blusa verde escura. O arco e a aljava de flechas estavam a seus pés. Seus ombros sacudiam-se.

Bond aproximou-se dela por trás e pôs um braço protetor sobre seus ombros. Disse baixinho:

— Acalme-se, Judy. Agora está tudo acabado. Como está o braço.

Ela respondeu com voz abafada:

— Não é nada. Alguma coisa me atingiu. Mas aquilo foi horrível. Eu não... eu não sabia que seria assim.

Bond apertou-lhe o braço tranquilizadoramente.

— Isso tinha de ser feito. Senão eles a teriam apanhado. Eram assassinos profissionais — dos piores. Mas eu lhe disse que coisas dessas espécie eram trabalho de homem. Agora, vamos dar uma olhada em seu braço. Precisamos ir andando... para atravessar a fronteira. Os patrulheiros não demorarão muito a chegar.

Ela se virou. O belo rosto selvagem estava manchado de suor e lágrimas. Agora os olhos cinzentos eram suaves e obedientes. Disse:

— É bondade sua agir assim. Depois do que eú fiz. Eu estava... estava assustada.

Estendeu o braço. Bond tirou a faca de caça de sua cintura e cortou a manga no ombro. Havia o buraco pisado e sangrento de um ferimento de bala no músculo. Bond apanhou seu lenço caqui, cortou-o em três pedaços e amarrou um no outro. Lavou a ferida com café e uísque. Depois, tirou uma grossa fatia de pão de sua mochila e prendeu-a sobre o ferimento. Cortou a manga da blusa de modo a fazer uma tipóia e estendeu as mãos por trás do pescoço da jovem para dar o nó. A boca da moça estava a centímetros da sua. O perfume de seu corpo tinha um quente sabor animal. Bond beijou-a uma vez suavemente nos lábios e depois tornou a beijar com força. Deu o nó. Fitou os olhos cinzentos próximos dos seus. Pareciam surpreendidos e felizes. Beijou-a de novo em cada canto da boca e a boca sorriu vagarosamente. Bond afastou-se dela e retribuiu o sorriso. Tomou delicadamente a mão direita e enfiou o pulso na tipóia. Ela disse documente:

— Para onde vai levar-me?

— Vou levá-la para Londres — respondeu Bond. — Há aquele velho que deseja vê-la. Mas antes temos de entrar no Canadá. Falarei com um amigo em Ottawa para que ponha em ordem seu passaporte. Você precisará comprar algumas roupas e outras coisas. Demorará alguns dias.Ficaremos em um lugar chamado “KO-ZEE Motel.”

Ela olhou para Bond. Era uma moça diferente. Disse baixinho: — Será ótimo. Nunca me hospedei em um motel.

Bond curvou-se, apanhou seu fuzil e sua mochila, e pendurou-os num ombro. Depois pendurou o arco e aljava no outro. Virou-se e pôs-se a andar através da campina.

Ela o seguiu e, enquanto caminhava, tirou da cabeça os pedaços quebrados de varas de ouro, desamarrou uma fita e deixou que os cabelos cor de ouro pálido caíssem sobre os ombros.


Quantum de refrigério

 

 

(QUANTUM OF SOLACE)

 

 

 

 

James Bond disse: — Eu sempre pensei que, se um dia me casasse, me casaria com uma aeromoça.

O jantar fora bastante aborrecido e agora que os dois outros convidados haviam partido, acompanhados pelo ajudante de ordens, para tomar seu avião, o governador e Bond estavam sentados juntos em um sofá de tecido estampado na grande sala-de-estar do Departamento de Obras, tentando manter conversação. Bond tinha acentuada noção de ridículo. Nunca se sentia confortável afundado em almofadas macias. Preferia sentir o corpo reto em uma poltrona de braços de estofamento sólido, com os pés firmemente assentados no chão. E sentia-se tolo sentado com um idoso celibatário em sua cama de tecido cor de rosa estampado, olhando para o café e os licores na mesa baixa entre as pernas esticadas. Havia na cena algo de clube, íntimo, quase feminino mesmo, e nenhuma dessas atmosferas era apropriada.

Bond não gostava de Nassau. Todo o mundo era rico demais. Os visitantes do inverno e os residentes que tinham casas na ilha não falavam senão em seu dinheiro, suas doenças e seus problemas de empregados domésticos. Nem mesmo mexericavam bem. Nada havia sobre o que mexericar. Os visitantes do inverno eram todos idosos demais para ter casos de amor e, como a maioria dos ricos, cautelosos demais para dizer qualquer coisa maldosa a respeito de seus vizinhos. Os Harvey Miller, o casal que acabara de sair, eram típicos — um agradável milionário canadense, um pouco maçante, que se metera cedo em negócios de gás natural e neles permanecera, e sua esposa, bonita e tagarela. Parecia que ela era inglesa. Sentara-se ao lado de Bond e tagarelara animadamente, perguntando “que espetáculos ele assistira recentemente na cidade” e “se não achava que o Savoy Grill era o melhor lugar para jantar. A gente via lá pessoas tão interessantes — atrizes e pessoas assim”. Bond esforçava-se ao máximo, mas como fazia dois anos que não assistia a uma peça teatral, e só assistira a essa porque o homem que estava seguindo em Viena entrara no teatro, precisava confiar em recordações bastante empoeiradas da vida noturna de Londres, que de uma maneira ou outra não se casavam com as experiências da Sra. Harvey Miller.

Bond sabia que o governador o convidara para jantar apenas como obrigação e talvez para ajudar a entreter os Harvey Miller. Fazia uma semana que Bond estava na Colônia e ia seguir para Miami no dia seguinte. Fora um trabalho rotineiro de investigação o que realizara. Os rebeldes de Castro em Cuba estavam recebendo armas de todos os territórios vizinhos. As armas saíam principalmente de Miami e do Golfo do México, mas, depois que a Guarda Costeira dos Estados Unidos apreendera dois grandes carregamentos, os adeptos de Castro haviam-se voltado para a Jamaica e as Bahamas como possíveis bases, e Bond fora enviado de Londres para acabar com aquilo. Não desejara executar o trabalho. Se sentia simpatia por algum dos lados, era pelos rebeldes, mas o governo tinha um grande programa de exportação com Cuba, em troca de receber mais açúcar do que desejava. E uma pequena condição do negócio era a Grã-Bretanha não dar auxílio ou apoio aos rebeldes cubanos. Bond ficara sabendo de duas grandes lanchas-cruzeiros que estavam sendo preparadas para o trabalho. Ao invés de fazer apreensões quando elas estivessem para partir, provocando assim um incidente, escolheu uma noite bem escura e aproximou-se delas em uma lancha da polícia. Da coberta da lancha não iluminada lançou uma bomba de termita por uma vigia aberta de cada uma delas. Em seguida, afastou-se em grande velocidade e observou a fogueira à distância. Azar das companhias de seguro, naturalmente, mas não houvera vítimas e ele executara rápida e limpamente o que M lhe dissera para fazer.

Pelo que Bond sabia, ninguém na Colônia, com exceção do chefe de polícia e dois de seus auxiliares, tinha conhecimento do que causara os espetaculares e — para os que estavam dentro do negócio — oportunos incêndios no embarcadouro. Bond só prestara informações a M em Londres. Não desejara embaraçar o governador, que lhe parecia um homem facilmente embaraçável, e poderia ter sido realmente uma imprudência dar-lhe conhecimento de um delito com muita possibilidade de ser objeto de um pedido de informações no Conselho Legislativo. Mas o governador não era tolo. Soubera do propósito da visita de Bond à Colônia e, naquela noite, ao apertar-lhe a mão, a aversão de um homem pacífico pela ação violenta comunicara-se a Bond por algo de reservado e defensivo nas maneiras do governador.

Isso não ajudara muito durante o jantar e foram necessários toda a tagarelice e entusiasmo do esforçado ajudante de ordens para dar à reunião a pequena aparência de vida que conseguira ter.

Agora eram apenas nove e meia, e o governador e Bond tinham diante de si mais uma hora de cortesia antes de poderem recolher-se satisfeitos para suas camas, cada um deles aliviado por nunca mais precisar encontrar-se com o outro. Não que Bond tivesse alguma coisa contra o governador. ele pertencia a um tipo rotineiro que Bond encontrara frequentemente em todo o mundo — sólido, leal, competente, sóbrio e justo: o melhor tipo de servidor civil colonial. Solidamente, competentemente, lealmente, ele devia ter ocupado os postos inferiores durante trinta anos, enquanto o Império ruía ao seu redor; e agora, exatamente no tempo, tendo-se agarrado à escada e evitado as serpentes, chegara ao topo. Dentro de um ou dois anos, receberia a G.C.B. e sairia — sairia para Godalming, Cheltenham ou Tunbridge Wells com uma pensão e um pequeno punhado de lembranças de lugares como o Oman, as ilhas Leeward e a Guiana Inglesa, nos quais ninguém do clube de golfe local teria ouvido falar e pelos quais ninguém se interessaria. No entanto, refletia Bond naquela noite, quantos pequenos dramas como o caso dos rebeldes de Castro devia o governador ter testemunhado ou conhecido! Quanta coisa conheceria sobre o tabuleiro de xadrez da política de pequenas potências, o lado escandaloso da vida nas pequenas comunidades do estrangeiro, os segredos de pessoas que ficam arquivados nos Palácios do Governo em todo o mundo. Mas como seria possível acender uma fagulha nessa mente rígida e discreta? Como poderia ele, James Bond, que o governador evidentemente considerava um homem perigoso e possível fonte de perigo para sua própria carreira, extrair um grama de fato ou comentário interessante para evitar que a noite fosse uma fútil perda de tempo?

A observação descuidada e ligeiramente falsa de Bond sobre o casamento com uma aeromoça surgira no fim de uma conversa vaga sobre viagem aérea que se seguira devidamente, inevitavelmente, à partida dos Harvey Miller que iam tomar seu avião para Montreal. O governador dissera que a BOAC estava tomando a parte de leão do tráfego americano para Nassau porque, embora seus aviões pudessem demorar meia hora a mais para vir de Idlewild, o serviço era magnífico. Bond, aborrecido com sua própria banalidade, dissera que preferia voar devagar e confortàvelmente a voar depressa e sem conforto. Foi então que fez a observação sobre as aeromoças.

— Não diga! — falou o governador com a voz polida e controlada que Bond rezava para que se relaxasse e ficasse humana. — Por quê?

— Oh, não sei. Seria ótimo ter uma garota bonita sempre arrumando as cobertas da gente, trazendo bebidas e refeições quentes, perguntando se a gente queria mais alguma coisa. E elas estão sempre sorrindo e querendo agradar. Se não me casasse com uma aeromoça, não teria outro recurso senão casar-me com uma japonesa. Elas também parecem ter ideias certas.

Bond não tinha intenção de casar-se com ninguém. Se casasse, certamente não seria com uma insípida escrava. Esperava apenas divertir-se ou irritar o governador, levando-o assim para a discussão de algum tópico humano.

— Nada sei a respeito das japonesas, mas creio que já lhe ocorreu que essas aeromoças são apenas treinadas para agradar, que elas podem ser completamente diferentes quando estão fora do serviço, por assim dizer.

A voz do governador era sensata, judiciosa.

— Como realmente não estou muito interessado em casar-me, nunca me dei ao trabalho de investigar.

Houve uma pausa. O charuto do governador apagara-se. Demorou um pouco para acendê-lo de novo. Quando falou, pareceu a Bond que o tom uniforme adquirira uma centelha de vida, de interesse. O governador disse:

— Conheci antigamente um homem que devia ter as mesmas ideias que o senhor. Apaixonou-se por uma aeromoça e casou-se com ela. História bastante interessante, de fato. Acho que — o governador olhou de lado para Bond e deu uma curta risada conciliatória — o senhor vê muita coisa do lado mais feio da vida. Esta história talvez lhe pareça um pouco massante. Mas gostaria de ouvi-la?

— Muito — respondeu Bond, pondo entusiasmo na voz. Duvidava que a ideia do governador sobre o que era o lado mais feio da vida fosse igual à sua, mas pelo menos isso o livraria de continuar esforçando-se para manter uma conversa asnática. Precisava agora fugir daquele sofá infernalmente macio. Disse:

— Com sua licença, vou tomar mais um pouco de conhaque.

Levantou-se, derramou dois dedos de conhaque em seu copo e, em lugar de voltar para o sofá, puxou uma cadeira e sentou-se em ângulo com o governador do outro lado da bandeja de bebidas.

O governador examinou a ponta de seu charuto, deu uma chupada rápida e segurou o charuto verticalmente para que a cinza não caísse. Observou a cinza ponderadamente enquanto contava história e falava como se se dirigisse ao fino fio de fumaça azul que subia e rapidamente desaparecia no ar quente e úmido. Começou cautelosamente:

— Esse homem — chamá-lo-ei de Masters, Philip Masters — foi quase contemporâneo meu no Serviço. Eu estava um ano à frente dele. Frequentou Fetters, ganhou uma bolsa de estudos para Oxford — o nome do colégio não importa — e depois se candidatou ao Serviço Colonial. Não era um sujeito particularmente inteligente, mas era trabalhador, competente e a espécie de homem que dá uma boa e sólida impressão em comissões. Aceitaram-no no Serviço. Seu primeiro cargo foi na Nigéria. Saiu-se bem. Gostava dos nativos e se dava bem com eles. Era um homem de ideias liberais e, embora não confraternizasse efetivamente, o que — o governador sorriu amarguradamente — lhe teria criado dificuldades com seus superiores naquele tempo, era tolerante e humano para com os nigerianos. Constituiu uma surpêsa para eles.

O governador fez uma pausa e deu uma chupada em seu charuto. A cinza estava a ponto de cair. Curvou-se cuidadosamente sobre a bandeja de bebidas e deixou a cinza cair em sua xícara de café.

— Acho que a afeição desse moço pelos nativos — continuou o governador — ocupou o lugar da afeição que os moços daquela idade em outras situações na vida sentem pelo sexo oposto. Infelizmente, Philip Masters era um moço tímido e retraído que nunca obtivera qualquer espécie de sucesso nesse sentido. Quando estava estudando para fazer seus diversos exames, jogava hóquei para seu colégio e remava na terceira equipe. Nas férias, ficava com uma tia na Gales e fazia excursões com o clube de alpinismo local. Seus pais, diga-se de passagem, haviam-se separado quando ele estava na escola pública e, embora fosse filho único, não se importaram muito com ele depois que o viram seguro em Oxford com sua bolsa de estudos e uma pequena mesada para se arrumar. Assim, tinha muito pouco tempo para dedicar a moças e muito pouca coisa que o recomendasse àquelas com as quais se encontrava. Sua vida emocional seguiu as linhas frustradas e mórbidas que faziam parte da herança deixada por nossos avós vitorianos. Conhecendo-o como o conheci, posso sugerir que essas relações amistosas com gente de cor na Nigéria eram o que se chama de compensação, feita por uma natureza basicamente afetuosa e vigorosa que estava faminta de afeição e então a encontrou na natureza simples e bondosa dos nativos.

Bond interrompeu a narrativa quase solene, dizendo:

— O único inconveniente de belas negras é que nada sabem sobre controle da natalidade. Espero que ele tenha evitado essa espécie de complicação.

O governador ergueu a mão. Sua voz não demonstrava um traço de desagrado pela vulgaridade de Bond.

— Não, não. O senhor não me compreendeu. Não estou falando sobre sexo. Nunca teria ocorrido a esse moço manter relações com uma mulher de cor. De fato, ele era tristemente ignorante das questões sexuais. Isso não é raro mesmo hoje entre os moços da Inglaterra, mas era muito comum naquele tempo. Era causa, como espero que concorde, de muitos — muitíssimos — casamentos desastrosos e outras tragédias.

Bond concordou com um aceno de cabeça. O governador prosseguiu:

— Não. Estou só explicando com certa minuciosidade como era esse moço para mostrar-lhe o que teria de acontecer a um jovem frustrado e inocente, com coração e corpo ardorosos, mas não despertados, e uma inabilidade social que o fazia procurar companhia e afeição entre os negros e não em seu próprio mundo. Em suma, era um desajustado sensível, fisicamente desinteressante, mas em todos os outros aspectos um cidadão sadio, capaz e perfeitamente adequado.

Bond tomou um gole de seu conhaque e esticou as pernas. Estava gostando da história. O governador contava-a com um estilo narrativo de velho, que lhe dava um tom de verdade. Continuou:

— O tempo de serviço do jovem Masters na Nigéria coincidiu com o primeiro governo trabalhista. Deve lembrar-se que uma das primeiras coisas que os trabalhistas fizeram foi uma reforma no serviço diplomático. A Nigéria recebeu um novo governador de ideias avançadas quanto ao problema nativo, que ficou surpreendido e satisfeito ao descobrir entre seu pessoal um funcionário inferior que, em sua modesta esfera, já estava pondo em prática algumas das ideias do próprio governador. Encorajou Philip Masters, deu-lhe funções acima de sua categoria e, no devido tempo, quando Masters devia ser transferido, escreveu um relatório tão entusiástico que Masters saltou um degrau e foi mandado para as Bermudas como secretário-assistente do Governo.

O governador desviou seu olhar da fumaça do charuto para Bond. Disse como quem pede desculpas:

— Espero que não esteja muito aborrecido com tudo isto. Não demorarei em entrar no assunto.

— Estou realmente muito interessado. Já tenho uma ideia de como era o homem. O senhor deve tê-lo conhecido muito bem.

O governador hesitou antes de acrescentar:

— Conheci-o ainda melhor nas Bermudas. Eu era seu superior e ele trabalhava diretamente sob minhas ordens. Todavia, ainda não chegamos às Bermudas. Foi nos primeiros tempos dos serviços aéreos para a África e, por uma razão qualquer, Philip Masters resolveu ir de avião para Londres e assim passar em casa mais dias de sua licença do que se tomasse um navio em Freetown. Foi de trem até Nairobi e tomou o avião semanal da Imperial Airways — a precursora da BOAC. Nunca viajara em avião e sentiu-se interessado, mas um pouco nervoso, quando decolou, após a aeromoça, que notara ser muito bonita, lhe ter dado uma bala para chupar e mostrado como prendia seu cinto. Quando o avião estava voando horizontalmente e ele descobrira que voar parecia um negócio mais pacífico do que esperava, a aeromoça voltou através do avião quase vazio. Sorriu para ele, dizendo: “Agora pode desprender o cinto.” Como Masters tivesse dificuldade com a fivela, ela se inclinou e soltou o cinto. Foi um pequeno gesto íntimo. Em toda sua vida, Masters nunca estivera tão perto de uma mulher mais ou menos de sua idade. Corou e experimentou uma confusão extraordinária. Agradeceu. Ela sorriu um pouco atrevidamente em vista de seu embaraço e sentou-se no braço da poltrona vazia do outro lado do corredor, perguntando-lhc de onde vinha e para onde ia. Masters respondeu-lhe e, por sua vez, fez-lhe perguntas sobre o avião, a velocidade em que voavam, onde parariam e assim por diante. Achou muito fácil conversar com ela e achou-a deslumbrantemente bonita. Ficou surpreendido pela facilidade com que ela o tratava e por seu aparente interesse pelo que dizia sobre a África. Ela parecia pensar que levava uma vida muito mais excitante e encantadora do que ele próprio achava. fez com que se sentisse importante. Quando se afastou para ajudar os dois comissários a prepararem o almoço, ficou sentado pensando nela e entusiasmou-se com seus pensamentos. Tentou ler, mas não conseguiu fixar os olhos na página. Precisava erguer os olhos para vê-la de relance. Uma vez ela surpreendeu seu olhar e lhe deu o que lhe pareceu ser um sorriso secreto. Somos os únicos jovens no avião, parecia dizer o sorriso. Nós nos compreendemos. Estamos interessados pela mesma espécie de coisas.

— Philip Masters olhou pela janela, vendo-a no mar de nuvens brancas embaixo. Com os olhos da imaginação, examinou-a detidamente, maravilhando-se com sua perfeição. Ela era pequena e elegante, com uma tez de leite e rosas, e cabelos louros presos em um bem arrumado coque. (Gostou particularmente do coque. Sugeria que ela não era “leviana”.) Tinha sorridentes lábios vermelhos como cereja e olhos azuis que cintilavam com maliciosa graça. Conhecendo a Gales, calculou que ela tinha sangue galense nas veias. Isso foi confirmado por seu nome, Rhoda Llewellyn, que, quando foi lavar as mãos antes do almoço, encontrou impresso no fim da lista de tripulantes em cima da prateleira de revistas ao lado da porta do lavatório. fez profundas especulações sobre ela. Ia ficar perto dele durante quase dois dias, mas como poderia encontrar-se com ela de novo depois? Ela devia ter centenas de admiradores. Talvez até mesmo fosse casada. Voaria o tempo todo? Quantos dias de folga tinha entre os voos? Riria dele se a convidasse para jantar e ir ao teatro? Seria capaz de queixar-se ao comandante do avião de que um dos passageiros estava sendo atrevido? Masters teve repentinamente a visão de estar sendo posto para fora do avião em Aden, com uma queixa dirigida ao Departamento Colonial e sua carreira arruinada.

— Chegou o almoço e a tranquilidade. Quando arrumou a pequena bandeja sobre seus joelhos, os cabelos da aeromoça roçaram pela face de Masters. Este sentiu-se como se tivesse sido tocado por um fio elétrico ligado. Ela lhe mostrou como lidar com os complicados pacotinhos de celofane e como tirar a tampa de plástico do molho da salada. Disse que a sobremesa estava particularmente boa — um rico bolo de camadas. Em suma, fez tudo para agradá-lo. Masters não se lembrava de ter sido tratado assim antes, nem mesmo quando sua mãe cuidava dele em criança.

— Ao término da viagem, quando Masters, suando, juntou coragem para convidá-la a jantar, foi quase um anticlímax o fato de ter aceitado prontamente. Um mês depois, ela se demitiu da Imperial Airways e os dois se casaram. Depois de mais um mês, terminou a licença de Masters e os dois tomaram o navio para as Bermudas.

— Estou temendo pelo pior — disse Bond. — Ela o desposou porque sua vida parecia excitante e grandiosa. Gostava da ideia de ser a beldade nos chás do Palácio do Governo. Suponho que Masters a tenha assassinado no fim.

— Não — respondeu o governador brandamente. — Mas acho que o senhor tem razão quanto aos motivos pelos quais ela o desposou. Isso e o fato de estar cansada da rotina e do perigo dos voos. Talvez tivesse realmente boa intenção e, sem dúvida, quando o jovem casal chegou e instalou-se em seu bangalô nos subúrbios de Hamilton, todos nós ficávamos favoravelmente impressionados pela vivacidade dela, por seu bonito rosto e pela maneira como se mostrava amável com todos. Masters, naturalmente, era um homem mudado. Para ele a vida se tornara um conto de fadas. Lembro-me que quase dava pena observá-lo procurando aprumar-se para ficar à altura dela. Passou a preocupar-se com suas roupas, começou a pôr uma horrível brilhantina nos cabelos e deixou até mesmo crescer um bigode de tipo militar, presumivelmente porque ela achava que isso parecia distinto. Ao fim do dia, corria para o bangalô. E era sempre Rhoda para cá, Rhoda para lá e quando será que Lady Burford — que era a esposa do governador — vai convidar Rhoda para almoçar?

— Mas ele trabalhava muito e todos gostavam do jovem casal. As coisas correram como em uma lua-de-mel durante uns seis meses. Depois, e isto é só adivinhação minha, palavras ácidas começaram a ser ouvidas de vez em quando no pequeno e feliz bangalô. Pode-se imaginar como era: “Por que a esposa do secretário colonial nunca me convida para fazer compras com ela? Quanto tempo precisaremos esperar para oferecer outro coquetel? Você sabe que não podemos dar-nos ao luxo de ter um filho. Quando será sua promoção? É terrivelmente maçante ficar aqui dentro o dia inteiro sem nada que fazer. Hoje você mesmo terá de arrumar seu jantar. Simplesmente não estou disposta a cuidar disso. Você tem uma vida tão interessante. Para você tudo está muito bom.” e assim por diante. Naturalmente, o cordeirinho logo se perdeu. Agora era Masters, naturalmente encantado em fazê-lo, quem levava o desjejum na cama para a aeromoça antes de sair para o trabalho. Agora era Masters quem limpava a casa quando voltava à tarde e encontrava cinzas de cigarro e papéis de chocolate por toda parte. Era Masters quem deixava de fumar e de beber seu ocasional drinque a fim de comprar-lhe roupas novas com que pudesse acompanhar as outras esposas. Alguma coisa disso tudo se revelava no Secretariado, pelo menos para mim que conhecia bem Masters. A ruga de preocupação, o ocasional, enigmático e excessivamente solícito telefonema nas horas de serviço, os dez minutos roubados no fim do dia para poder levar Rhoda ao cinema e, naturalmente as ocasionais e meio jocosas perguntas sobre casamento em geral: Que faziam todas as outras mulheres o dia inteiro? As mulheres não achavam a ilha um pouco quente? Acho que as mulheres (e quase acrescentava: “Deus as abençoe”) se perturbam muito mais facilmente que os homens. E assim por diante. O mal, ou pelo menos a maior parte dele, era que Masters estava bestificado. Ela era seu sol e sua lua. Se se sentia infeliz ou inquieta, era por culpa dele. Procurava desesperadamente alguma coisa que pudesse ocupá-la e fazê-Ia feliz. Finalmente, entre todas as coisas, decidiu-se — ou melhor, decidiram-se juntos — pelo golfe. O golfe é uma grande coisa nas Bermudas. Há alguns campos ótimos, entre os quais os do famoso Mid-Ocean Club, onde toda gente boa joga e se reúne depois no clube para mexericar e beber. Era exatamente o que ela desejava — uma ocupação elegante e alta sociedade. Só Deus sabe como Masters economizou o suficiente para entrar no clube, comprar-lhe os tacos, pagar as lições e tudo o mais. Seja como fôr, conseguiu e foi um grande sucesso. Ela começou a passar o dia inteiro no Mid-Ocean. Esforçou-se muito nas lições, obteve um “Handicap”, conheceu gente nas pequenas competições e nas distribuições mensais de medalhas, e, em seis meses, não só estava jogando golfe respeitàvelmente, mas se tornara a querida dos membros masculinos do clube. Não fiquei surpreendido. Lembro-me de tê-la visto lá de vez em quando, uma figurinha queimada de sol vestindo o mais curto dos “shorts” com um visor branco forrado de verde e movimentos ágeis que destacavam seu físico. Posso assegurar-lhe — o governador pestanejou rapidamente — que era a coisa mais bonita que já vi em um campo de golfe. Naturalmente, o passo seguinte não demorou. Havia uma competição de duplas mistas. Ela teve como parceiro o rapaz mais velho dos Tattersall — são os maiores negociantes de Hamilton e mais ou menos a camarilha governante das Bermudas. Era um jovem demônio — bonito como o diabo, grande nadador e ótimo jogador de golfe, com um MG aberto, uma lancha e todos os acessórios. O senhor conhece o tipo. Tinha todas as mulheres que queria e, se não dormiam com ele logo, não passeavam no MG ou no “Chriscraft” nem iam aos clubes noturnos locais. O par venceu a competição depois de árdua luta no final e Philip Masters estava entre a elegante multidão ao redor do décimo-oitavo buraco para aplaudir sua vitória. Foi a última vez que ele aplaudiu por muito tempo, talvez por toda sua vida. Quase imediatamente, ela começou a “andar” com o jovem Tattersall e, assim que começou, foi como o vento. Creia-me, Sr. Bond — o governador fechou o punho e deixou-o cair devagarinho sobre a beirada da mesa de bebidas — foi pavoroso de ver. Ela não fazia a menor tentativa de amaciar o golpe ou esconder o caso de qualquer maneira. Simplesmente pegou o jovem Tattersall, bateu com ele na cara de Masters e continuou batendo. Voltava para casa a qualquer hora da noite — insistira em que Masters se mudasse para o quarto de hóspedes, sob o pretexto de que fazia muito calor para dormirem juntos — e se limpava a casa ou lhe preparava uma refeição de vez em quando era apenas fingimento para manter uma espécie de aparência. Naturalmente, um mês depois, o negócio todo era propriedade pública e o pobre Masters estava usando o maior par de chifres que já foi visto na Colônia. Lady Burford finalmente interferiu e teve uma conversa com Rhoda Masters. Disse-lhe que estava arruinando a carreira do marido etc. Mas o mal foi que Lady Burford achava Masters um tipo bastante maçante e, tendo tido talvez uma ou duas escapadas em sua mocidade — era ainda uma mulher bonita, com brilho nos olhos — provavelmente foi um pouco indulgente demais com a moça. Naturalmente, Masters, como ele próprio me contaria mais tarde, passou pela lúgubre sequência — admoestações, brigas rancorosas, raiva furiosa, violência (disseme que quase a esganou certa noite) e, finalmente, um afastamento gelado e soturna miséria.

O governador fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Não sei se já viu um coração sendo despedaçado, Sr. Bond, despedaçado vagarosa e deliberadamente. Bem, foi o que eu vi acontecer a Philip Masters e era uma coisa terrível de observar. ele havia sido um homem com o Paraíso estampado no rosto e, um ano depois de sua chegada às Bermudas, nele só havia escrito Inferno. Naturalmente, fiz o que pude, nós todos o fizemos de uma maneira ou outra, mas depois de ter acontecido, ao redor daquele décimo-oitavo buraco no Mid-Ocean, realmente nada havia a fazer senão catar os pedaços. Mas Masters era como um cão ferido. Limitava-se a fugir de nós para esconder-se em um canto e rosnava sempre que alguém tentava aproximar-se dele. Cheguei ao extremo de escrever-lhe uma ou duas cartas. Posteriormente, ele me contou que as rasgara sem ler. Um dia, vários de nós nos reunimos e o convidamos para uma festinha só de homens em meu bangalô. Tentamos deixá-lo embriagado. Conseguimos embriagá-lo. O que aconteceu em seguida foi uma barulhada no banheiro. Masters tentara cortar os pulsos com minha navalha. Aquilo estourou nossos nervos e eu fui incumbido de falar com o governador sobre o negócio todo. O governador sabia do caso, naturalmente, mas esperava não precisar interferir. Agora a questão era saber se Masters poderia continuar no Serviço. Seu trabalho reduzira-se a nada. Sua esposa era um escândalo público. ele era um homem liquidado. Poderíamos juntar de novo os pedaços? O governador era um homem magnífico. Uma vez que era forçado a tomar providências, estava decidido a fazer um último esforço para evitar o relatório quase inevitável a Whitehall que arrasaria finalmente o que restava de Masters. E a Providência interferiu para dar uma mão. Exatamente um dia depois de minha entrevista com o governador, chegou um despacho do Departamento Colonial dizendo que ia haver em Washington uma reunião para delinear os direitos de pesca em alto mar e que as Bermudas e as Bahamas haviam sido convidadas a enviar representantes de seus governos. O governador mandou chamar Masters, falou com ele como um tio holandês, disse-lhe que ia ser enviado a Washington, que faria melhor em resolver seus negócios domésticos de uma maneira ou outra nos próximos seis meses e mandou-o embora. Masters partiu uma semana depois e ficou em Washington falando sobre peixes durante cinco meses. Nós todos soltamos um suspiro de alívio e passamos a evitar Rhoda Masters sempre que tínhamos oportunidade.

O governador parou de falar e fez-se silêncio na grande sala-de-estar brilhantemente iluminada. Tirou um lenço do bolso e passou-o sobre o rosto. Suas lembranças haviam-no excitado e seus olhos estavam brilhantes no rosto corado. Levantou-se, serviu um uísque com soda para Bond outro para si próprio.

Bond disse: — Que embrulhada. Acho que alguma coisa teria fatalmente de acontecer mais cedo ou mais tarde, mas foi falta de sorte de Masters acontecer tão cedo. Ela devia ser uma cadelinha insensível. Não demonstrou sinais de lamentar o que havia feito?

 

 

                                          CONTINUA